61713105 teoria e critica discurso noticioso

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    Joo Carlos Correia

    Teoria e Crtica do Discurso NoticiosoNotas sobre Jornalismo e representaes

    sociais

    Universidade da Beira Interior2009

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    Livros LabComwww.livroslabcom.ubi.ptSrie: Estudos em ComunicaoDireco: Antnio FidalgoDesign da Capa: Madalena SenaPaginao: Marco OliveiraCovilh, 2009

    Depsito Legal: 288746/09ISBN: 978-989-654-008-1

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    Contedo

    1. O que o Jornalismo? Uma reflexo terica 31.1. A referncia dos enunciados jornalsticos actualidade

    e relevncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51.2. O problema da actualidade . . . . . . . . . . . . . . . 151.3. A verdade, a objectividade e a seriedade dos enunci-

    ados jornalsticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181.3.1. O jornalismo e o contrato de leitura . . . . . . 241.3.2. Desvantagens da noo de contrato . . . . . . 291.3.3. Promessa e seriedade . . . . . . . . . . . . . 301.3.4. O jornalismo como um enunciado srio . . . 32

    1.4. A natureza pblica do enunciado jornalstico . . . . . . 341.5. O saber profissional dos enunciados jornalsticos: a ob-

    jectividade e a identidade profissional . . . . . . . . . 391.6. O problema da influncia: a importncia da abordagem

    sociocognitiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

    2. A abordagem sociocognitiva e os processos de representa-o meditica 512.1. Fenomenologia e cognio . . . . . . . . . . . . . . . 54

    2.1.1. As tipificaes no mundo da vida quotidiana . 562.1.2. O conceito de realidades mltiplas . . . . . . . 65

    2.2. O Frame . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 682.2.1. O frame meditico . . . . . . . . . . . . . . . 72

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    2.2.2. O frame meditico: consideraes tericas eabordagens metodolgicas . . . . . . . . . . . 76

    2.3. Da fenomenologia aos estudos do discurso: ideologiae modelos mentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 782.3.1. Ideologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 792.3.2. Conhecimento social . . . . . . . . . . . . . . 812.3.3. Conhecimento e ideologia . . . . . . . . . . . 842.3.4. O modelo mental . . . . . . . . . . . . . . . . 85

    2.4. Da anlise fenomenolgica atitude crtica . . . . . . 862.5. A anlise critica do discurso: o modelo estrutural de

    anlise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

    3. Identidade e a alteridade: conceitos e teorias 1033.1. A identidade como fenmeno relacional . . . . . . . . 1063.2. Identidades contemporneas . . . . . . . . . . . . . . 1103.3. Racismo, discriminao e poder . . . . . . . . . . . . 1143.4. Media, cultura e identidade . . . . . . . . . . . . . . . 1193.5. Portugal: identidade e alteridade . . . . . . . . . . . . 125

    4. Discurso e enquadramentos no Arrasto da Praia de Car-cavelos 1374.1. O incio do Arrasto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1384.2. Estratgia de enquadramento meditico . . . . . . . . 1404.3. Principais tpicos noticiosos . . . . . . . . . . . . . . 1434.4. Coerncia local . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1524.5. A controvrsia do Arrasto . . . . . . . . . . . . . . . 164

    5. A construo social da realidade: por um modelo integrado1695.1. Da atitude natural atitude crtica: o papel da estranheza 1715.2. A pluralidade de realidades . . . . . . . . . . . . . . . 1765.3. Estranheza e esfera pblica . . . . . . . . . . . . . . . 181

    6. Bibliografia 185

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    Introduo

    Neste trabalho, pretende-se abordar a relao entre o jornalismo e aconstruo social da realidade, de acordo com uma teoria integrada dosprocessos cognitivos, discursivos e comunicacionais. Para esse efeito,recorre-se a uma tentativa de estabelecimento de pontos de convergn-cia tericos e metodolgicos entre dois campos.

    Por um lado, recorre-se s abordagens que, sob influncia da feno-menologia, analisam os processos de construo de sentido no mundoda vida (traduzindo-se metodologicamente no estudo de enquadramen-tos, tipificaes e scripts), pondo em marcha uma teoria da comunica-o aplicada aos media jornalsticos.

    Por outro, considera-se a relevncia do contributo da anlise cr-tica do discurso, a qual entende a linguagem como uma prtica cujasmanifestaes concretas ao nvel simblico podem ser analisadas es-truturalmente no plano das suas relaes com fenmenos e dinmicaspolticas, sociais e culturais como sejam a excluso, a incluso e o po-der.

    A palavra crtica tem duas conotaes: remete, por um lado, parauma tradio das Humanidades e da Filosofia que rejeita o positivismocomo uma anlise emprica dos fenmenos como factos sobre os quaisos sujeitos no tm qualquer possibilidade de interveno nomeada-mente no sentido de uma prtica normativa; por outro lado, remete paraum conhecimento do jornalismo e da notcia que no se limita s suasevidncias nomeadamente as que resultam da sua aplicao tcnica.

    Para exemplificar a aplicao deste ponto de vista utilizam-se estu-

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    dos de caso relacionados com a representao jornalstica de fenme-nos de relacionamento com o outro, nomeadamente manifestaes deracismo, xenofobia e estigmatizao das minorias.

    Os casos em anlise dizem respeito a alguns episdios recente-mente verificados em Portugal que indiciam um aumento deste tipode fenmenos. Entre os episdios referidos contam-se a alegada exis-tncia de um assalto colectivo perpetrado por 500 jovens africanos naPraia de Carcavelos em 2005, noticiado pelos media, e posteriormentedesmentido pela polcia num contexto de polmica acentuada.

    Na investigao desenvolvida em torno deste caso, as representa-es mediticas das identidades so um eixo que estrutura a pesquisa.No so o eixo central do problema que se joga neste ensaio. Aquiapenas funciona como um elemento de teste s potencialidades de umaTeoria da Notcia que tenha em conta as dimenses social, discursiva ecognitiva.

    Seguir-se-, pois, o seguinte percurso:

    Primeiro, procede-se a um ensaio sobre o modelo terico que seconsidera pertinente para abordar as relaes entre jornalismo,discurso e conhecimento;

    Seguidamente, apresentam-se alguns conceitos centrais para aanlise dos casos: identidade, xenofobia e racismo;

    Em terceiro lugar, procede-se de forma exemplificativa, e nonecessariamente exaustiva, deteco de estratgias discursivase de processos de framing nas notcias em anlise;

    Finalmente produzem-se algumas reflexes sobre as foras e de-bilidades desta abordagem, no plano terico e metodolgico.

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    Captulo 1

    O que o Jornalismo? Umareflexo terica

    Os fenmenos ideolgicos e polticos nas sociedades democrti-cas contemporneas necessitam de reconhecimento para as pretensesde validade que lhe so implcitas. Este reconhecimento no pode seralcanado sem alguma espcie de atribuio de visibilidade por partedos media. Nos casos de estudo que adiante analisaremos, alguns in-teressantes fenmenos que convergem com a demonstrao pontual denacionalismo xenfbico no seriam possveis sem a interveno dosmedia.

    Este trabalho sobre jornalismo, apontando para uma teoria e ummtodo que se lhe aplique no que respeita sua relao com o conhe-cimento. A busca dessa teoria justifica-se: h um conjunto de ideo-logias1, valores, atitudes, tipificaes que lhe so prprios e que so

    1Sobre o sentido da palavra ideologia haver que avisar desde j que nos debrua-remos sobre ela para nos demarcarmos de uma parte da sua tradio, nomeadamenteda sua ligao com o determinismo econmico, enfatizando: a) a sua dimenso cog-nitiva; b) a sua natureza de conjunto de princpios axiomticos que dizem respeito regulao dos grupos sociais; c) sua demarcao em relao ao conhecimento social,o qual, ainda que negociado e obtido por consenso, geralmente aceite: por exem-plo, divergir sobre uma prtica como terrorista ou como martrio pela liberdade no

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    estudados multidisciplinarmente por influncia da lingustica, de abor-dagens interdisciplinares da cognio e da teoria da comunicao, quetm uma relevncia crescente em um mundo crescentemente mediati-zado. Nesse sentido, fala-se de uma teoria do jornalismo.

    Isto desperta um problema relativamente conhecido. Como nemtudo o que vem no jornal jornalismo, o uso do termo considera demodo mais claro e distinto os traos do jornalismo, como aquilo quese pratica sobretudo na notcia e na reportagem. Como afirma Mo-retzshon, em rigor no h propriamente jornalismo, mas jornalismoscom formas, mtodos e objectivos bem distintos entre si, de acordo comos propsitos de quem produz e do pblico a quem se destina. Pararesolver o problema, invoca o terico brasileiro Adelmo Genro Filhopara identificar o que esta chama de jornalismo informativo, tradicio-nalmente entendido como modelo do prprio conceito de jornalismo(Moretzshon, 2002). Apesar de a observao ser pertinente, sobramduas dvidas:

    a) o que h de comum nas diversas formas de jornalismo que nospermite referir a todas como sendo jornalismo, apesar do usodo plural?

    b) porque um determinado tipo de jornalismo chamado informativose transformou tradicionalmente em modelo do prprio conceitode jornalismo?

    Sem pretender resolver-se definitivamente a questo, pode-se conside-rar que h ainda componentes do jornalismo noticioso que so parti-lhadas pelo jornalismo opinativo e editorialista e que podem ser de-tectados como comuns a todos os enunciados que se reclamam comojornalismo:

    a) Um enunciado (no cientfico) que se assume como verdadeiro ou seja que apresenta e assume como tal e se refere a objectos,pessoas e estados de coisas do mundo;

    impede que no haja conhecimento sobre o que uma bomba e sobre o nmero demortos.

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    b) Srio no sentido em que John Searl atribui ao conceito, enquantoenunciado que tem um autor responsvel pela sua verificabili-dade;

    c) Actual, no sentido em que se refere a acontecimentos que ocorre-ram normalmente h pouco tempo e transportam alguma espciede urgncia no seu conhecimento;

    d) Relevante no sentido em que se repercute sobre o mundo da vidado leitor ou ouvinte, isto , um enunciado com consequnciassobre o contexto;

    e) Pblico no triplo sentido:

    1. circula em espaos de acessibilidade em relao aos quaisno existe habilitao prvia para a sua frequncia;

    2. considerado como possuindo um interesse colectivo;

    3. renega a ideia de segredo ou de sabedoria privada ou es-pecializada, no sentido em que baseia a sua actividade nadivulgao e na simplicidade dos enunciados;

    f) Produzido por profisses entendidas como legtimas para o de-sempenho de actividades consideradas adequadas profisso.

    1.1. A referncia dos enunciados jornalsti-cos actualidade e relevncia

    O jornalismo refere-se a objectos, pessoas e estados de coisas domundo que se identificam relevantes e actuais: actuais, no sentido emque se realizaram normalmente h pouco tempo e transportam algumaespcie de urgncia no seu conhecimento; relevantes no sentido emque repercutem sobre o mundo da vida das audincias. Relevncia eactualidade so noes complexas. Existem listagens bastante detalha-das sobre os critrios que fazem com que um determinado conjunto de

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    ocorrncias e seus agentes sejam dignos de serem transformados emnotcias: chamam-se critrios de noticiabilidade. Porm, o que signi-fica ser actual e relevante? Uma notcia um enunciado que d quefalar, diz Lorenzo Gmis (1991). O mesmo dizer, a notcia por na-tureza relevante. Porm, a questo que se coloca a de saber quais osacontecimentos que so relevantes e actuais para poderem dar origemao tipo de enunciado que designamos por notcia.

    A actualidade parece ser um conceito simples de entender a suaassociao com o que novo. Porm, no jornalismo, um contedo actual porque ele apresenta um sentido de relevncia pblica, ou sejacompe aquele leque seccionado de contedos que so reconhecidospelos indivduos como indispensveis para participarem na vida social as notcias falam dos factos que iro interferir no curso quotidiano davida e de cujo conhecimento o indivduo no pode (em tese) prescin-dir (Franciscato in Mortezshon, 2002: 62). Dada a importncia destaobservao, importa comear por definir o que relevante para depoisdeixar a actualidade no que respeita ao seu elemento mais bvio: arelao com o tempo.

    A noo de relevncia proveniente da fenomenologia do mundosocial diz respeito a uma considerao pragmtica que orienta a pre-sena do agente no mundo quotidiano, isto com o que ele seleccionacomo importante para o seu curso de aco no mundo quotidiano.2

    Todavia existem vrias formas de relevncia. A seleco do curso deaco no significa apenas conhecer para agir, no sentido de obter amera concretizao de objectivos orientados por motivos a fim de.A atribuio de relevncia inclui seleccionar os temas que lhe dizem

    2Referimo-nos aqui noo de relevncia estabelecida por Alfred Schutz. A rele-vncia diz respeito ateno selectiva pelo qual estabelecemos os problemas a seremsolucionados pelo nosso pensamento. Dito de outro modo o mundo aparece em cadamomento ao agente dado como estratificado em diferentes camadas de relevncia,cada um dos quais requerendo um diferente grau de conhecimento (Schutz, 1976:93).

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    respeito, interpret-los e, em muitos casos, certamente a maioria, usaros conhecimentos obtidos para realizar projectos de aco.

    Quando analisamos detalhadamente a noo de relevncia vemosque esta uma qualidade que no emana directamente do aconteci-mento, como se o acontecimento se conseguisse isolar a si prpriocomo acontecimento. A relevncia de um acontecimento atribudaem funo de contextos sociais e culturais.

    Por exemplo, ao nvel do mundo da vida quotidiano, a relevnciadas notcias sobre inflao, sobre a subida das taxas de juro habitaoou sobre o preo dos alimentos parece incontestvel. Porm, se olharde um modo mais distante, pode achar-se que estes enunciados sobretemas de natureza econmica s so relevantes numa cultura em que aposse de determinadas mercadorias ou bens considerada relevante.

    Outro exemplo: as notcias sobre a sade parecem extraordinaria-mente relevantes sob o ponto de vista do nosso bem-estar individual.Porm, a superabundncia de notcias sobre o tema no transformaa relevncia destes enunciados sobre estes temas como algo de auto-evidente que se oferece a si mesmo em funo de todos os tempos ede todos os lugares. Tambm so resultado de uma sociedade maisconfortvel, mais receosa da morte, mais obcecada com o prolonga-mento de uma certa cultura juvenil junto de segmentos de mercado queanteriormente se podiam considerar envelhecidos. Isto , pode haverformaes culturais em que a relevncia destes temas seja menor. Averdade que a importncia destas notcias aumentou na medida emque a esperana de vida aumentou e, consequentemente, cresceu a ne-cessidade de atender necessidade de cuidados mdicos de sectores dapopulao cada vez mais envelhecidos.

    Por outro lado, a definio de aquilo que nos diz respeito, de aquiloque nos interessa pode variar, de acordo com critrios sociocognitivosmuito distintos. As camadas de relevncia variam em funo de in-teresses e do impacto que estes tenham na organizao da cognioindividual. Uma refeio desperta interesses diversos, consoante o co-mensal simplesmente algum com fome, um cozinheiro ou um gas-

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    trnomo. O cliente com fome pode preocupar-se com as quantidades, ocozinheiro j quer saber como se faz o cozinhado, o gastrnomo poderefinar o seu interesse na busca cuidadosa de determinados paladaresenquanto o antroplogo pode interessar-se pela significao de deter-minados ingredientes no contexto de um determinada economia quereflecte opes culturais ainda mais abrangentes.

    O interesse do agente nos vrios elementos tem graus diferenciadose, por essa razo, ele no aspira a tomar conhecimento com eles comigual intensidade.

    O que ele pretende obter um conhecimento gradu-ado dos elementos relevantes, sendo o grau de conheci-mento a que se aspira correlacionado com a sua relevn-cia. Dito de outro modo, o mundo aparece-lhe em cadamomento dado como estratificado em diferentes camadasde relevncia, cada um dos quais requerendo um diferentegrau de conhecimento (Schutz, 1976: 93).

    Por outro lado, os esquemas cognitivos que acompanham a relevncia,tambm variam originando vrios tipos de relevncia. Schutz refere aexistncia de trs tipos de relevncia: temtica, interpretativa e motiva-cional. A relevncia temtica relaciona-se com a capacidade de definirtemas como estando relacionados com os nossos interesses: saber oque nos interessa. A relevncia interpretativa consiste na seleco deesquemas interpretativos baseados na reserva de experincia do actor,sobre os quais so subsumidos os temas identificados pela relevnciatemtica: compreender e explicar o que nos interessa. A relevnciamotivacional resulta do estabelecimento de planear objectivos e cursosde aco: agir do modo como nos interessa, ou seja definir acesque correspondam adequadamente aos interesses previamente identifi-cados.

    Finalmente, de acordo com a ateno do actor em relao ao mundoque o rodeia, este divide o seu horizonte social em vrias zonas de re-levncia, consoante o grau de preparao ou de conhecimento exigido

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    (Schutz, 1974:124-125). Procedendo concepo de trs tipos ideaisde actores sociais o homem da rua, o perito, e o cidado bem infor-mado o primeiro apenas se preocupar com as zonas de relevnciaque dizem respeito sua esfera imediata de actividade, entendendo-ascomo um dado, considerando-as independentemente da sua origem ouestrutura; o perito apenas se debruar sobre problemas pr-estabeleci-dos que dizem respeito ao seu campo de actividade e de investigao,at porque ao tornar-se perito, escolheu um determinado sistema de re-levncias e no outro; finalmente, o cidado bem informado de que ojornalista, o lder de opinio e o consumidor de informao constituemum exemplo encontra-se colocado num domnio situado entre o ho-mem da rua e o perito, escolhendo ele prprio os quadros de refernciae as zonas de relevncia aos quais adere, tendo a conscincia perfeitade que elas so mutveis (Schutz, 1974:130-131).

    Ou seja, as estruturas ou sistemas de relevncia variam consoante asculturas, as comunidades, os grupos e os indivduos pelo que a identifi-cao dos problemas e dos interesses e, consequentemente, a relevnciados assuntos, complexa. Por isso, cada sociedade, cada comunidadetm conceitos distintos de acontecer, e, portanto, o contedo dos meiosreflecte o conceito dominante de notcia em cada sociedade.

    O jornalismo no procede, pois, seleco dos factos apenas emfuno de uma qualidade a relevncia dos factos que seria evi-dente em si mesma, independente das condies sociais e histricas edos interesses dos agentes sociais envolvidos.

    O jornalismo vai destacar aqueles fatos que mais re-levam os valores e crenas da sociedade naquele momentohistrico (Cfr. Oliveira da Silva, 2006: 94).

    Mesmo considerando a importncia dos dados sociais e cognitivosna definio do que relevante podemos tomar duas atitudes diversas.Para uma perspectiva mais tradicional, a definio do que notcia, omesmo dizer, daquilo que possui suficiente relevncia para ser trans-formado em notcia, depende da prpria estrutura da sociedade. Os

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    jornalistas so socializados nas atitudes sociais e nas normas profissio-nais e cobrem, seleccionam temas identificados como interessantes ouimportantes. As notcias seriam um espelho das suas preocupaes einteresses. As definies de notcias permanecem dependentes da es-trutura social, e no das actividades dos jornalistas ou das organizaesjornalsticas.

    Para uma abordagem sociocognitiva, a actividade dos jornalistas edas organizaes noticiosas contribuindo para definir e redefinir, cons-truir e reconstruir os fenmenos sociais, ajuda a produzir normas quedeterminam o que possui relevncia para ser considerado notcia (cfr.Tuchman, 2002: 91-92).

    Para alm dos motivos que tornam evidente que no existe umaqualidade da relevncia em si prpria, imune s estruturas cognitivas, histria e s condies culturais, h no caso especfico dos media, noplano da relevncia jornalstica, um problema que j foi detectado porMerton e Lazarsfeld (1987): o que importante desperta a ateno dosmedia. Estes ao dar-lhes ateno reforam a sua importncia. Gera-seuma bem conhecida tautologia: H assuntos que so relevantes porqueos media os focaram, e, ao serem focados, adquiriram relevncia. Omais provvel que, sendo relevantes, venham ser de novo objecto deateno.

    Este ponto confronta-se com outra questo no menos pertinente:se os media atriburam relevncia, porque houve um momento zeroem que se considerou adequado atribuir essa importncia. Mesmo re-lativamente a este argumento, h que tomar as devidas reservas.

    Para autores como Jacques Rancire um acontecimento pode torna-se relevante porque o acontecimento de certo modo esperado pelamquina social de fabricao e de interpretao dos acontecimentos,a qual dispe de um certo horror ao vazio. Uma sociedade fascinadapela vigilncia e pela transparncia acha que importante que se saiba,no sendo completamente claro que importe o que se saiba. Ou seja,a relevncia de alguns acontecimentos resulta da sua adequao empreencherem um vazio noticioso.

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    A posio de Rancire no resulta de nenhum ponto de vista sobrea presso do mercado e das audincias mas to s da impossibilidadedos media de conviver com a ausncia de um acontecimento: A ordemconsensual representa-se como a de uma grande famlia em que os che-fes so antes de mais nada mdicos atentos a todos os sintomas de umadoena incubada ou mesmo de um mal-estar capaz de engendrar osfantasmas perigosos para a sade colectiva.

    (. . . ) O essencial que haja sempre acontecimentosa interpretar, sintomas a decifrar. Um gracejo famoso di-zia que um homem de sade um doente que se ignora.Esta lgica tornou-se a lgica global de uma sociedade in-cansavelmente ocupada na tarefa de auscultar-se de auto-interpretar-se (cit. in Moretzshon, 2007).

    A abordagem de Rancire tem alguma semelhana com a abor-dagem de Luhmann: o sistema de informao, ao mesmo tempo queproduz informao, desvaloriza-a. Ao dar uma informao, o sistemaretira-lhe valor, desvaloriza-a e cria um vazio que s pode ser preen-chida por uma nova informao (Cfr. Santos, 2005: 68). Muitas ve-zes, a pertinncia uma pertinncia de uma mquina que no podesilenciar-se: que seria do modelo da TV News SIC Notcias, CNN eRTPN ou dos sites noticiosos online de actualizao em tempo real?3

    Um outro problema relacionado com a relevncia reside no factode o observador no poder ver tudo:

    (. . . ) ainda que trabalhassem todas as horas do dia, to-dos os reprteres do mundo no poderiam presenciar todos

    3Esta constante busca de acontecimentos no to trivial como a crtica de Ran-cire possa fazer suspeitar. Os media, para autores como Luhmann, mantm a so-ciedade acordada. Em face da hiper-especializao de alguns sistemas funcionaiscomo a economia, a poltica e a tecnocincia, os riscos so cada vez mais frequen-tes. Os media de massa funcionam como um espcie de alerta geral, adaptando otempo da conscincia dos indivduos ao ritmo imposto pela acelerada sucesso deacontecimentos no sistema (Cfr. Santos, 2005: 69).

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    os acontecimentos mundiais (Lippman cit. in Oliveira daSilva, 1998: 21).

    Na verdade, existe uma rede que determina os locais onde se podemverificar acontecimentos aos quais atribuda relevncia, isto que po-dem ser transformados em notcias: a Policia, o Parlamento, o Estdiode Futebol, os Hospitais, os locais da moda. Porm, isso j implicatoda uma definio prvia da relevncia efectuada pelos media, poisimplica saber identificar locais onde existem acontecimentos potenci-almente relevantes. Tambm implica a seleco daquilo que possa serincludo ou excludo. Isto vir identificar-se com a problemtica doframe e do esteretipo que, mais adiante, ser objecto de uma extensaanlise. Neste sentido, existe alguma verdade na afirmao segundo aqual notcia aquilo que os jornalistas pensam que interessa aos p-blicos, pelo que, em ltima instncia o que interessa aos jornalistas.

    Finalmente, costuma-se entender que a relevncia orienta a prpriafabricao do enunciado jornalstico, exactamente porque o modelo deenunciado jornalstico a notcia usa a tcnica da pirmide invertida ordena os acontecimentos pela ordem decrescente de importncia. Po-rm, os diversos acontecimentos necessitam de uma coordenao pr-via que origina o lead. Ou seja, a atribuio de relevncia tambm feita no enunciado de acordo com a organizao interna do seu discursoe no o contrrio, isto a disposio no enunciado puramente conformea ordem de importncia e relevncia do evento, previamente existente sua percepo.

    Assim, a relevncia em si de um acontecimento X ou de um enun-ciado Y que lhe diga respeito no existe, no sentido que a relevncia deX no uma qualidade que lhe seja intrnseca. No h acontecimentosrelevantes em si prprios, que possuam em si uma espcie de atributorevestido de uma eternidade, independente do contexto social em queocorre e do contexto discursivo que o refere. Existem acontecimen-tos relevantes mas a relevncia de um acontecimento construda numprocesso em que intervm diversos factores. A relevncia de um acon-

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    tecimento tambm o produto de um sistema meditico que decide oque relevante que as pessoas conheam.

    A noo de relevncia funciona para caracterizar os enunciados no-ticiosos: porm, ter que se ter em conta que a relevncia um conceitotil para caracterizar os fenmenos sociais e as ocorrncias mas resultade processos conflituais e de contextos sociocognitivos.

    Depende de processos conflituais sim, porque o jornalismo umdos protagonistas essenciais em definir o que relevante em cada mo-mento o agendamento e o framing so, justamente, processos em quese fazem sobressair issues, temas e quais os esquemas interpretativosque se podem aplicar a esses temas considerados relevantes. Assim, oreconhecimento da capacidade dos media em tornar relevantes os te-mas e em definir estes esquemas torna-se mbil de uma luta insanvelpor parte de vrios agentes interessados: assessorias de comunicao,RPs, movimentos sociais, partidos polticos.

    Depende de contextos sociocognitivos, tambm, porque a relevn-cia constitui sistemas e estruturas variveis em funo de estruturascognitivas vigentes em formaes culturais diversas e ncleos tem-ticos mais vastos. Esta definio no exclui os prprios fait-divers eas notcias sociais. Estas tornam-se relevantes no contexto do jorna-lismo, em determinadas formaes socioculturais ou em determinadasespecialidades do jornalismo. Assim faz sentido lembrar que a nossamaneira de ver as coisas uma combinao daquilo que se encontra edaquilo que se espera ver (Gmis, 1991: 70). Um bom exemplo destefacto o caso da manifestao de Londres contra a Guerra do Viet-name, cuja cobertura foi estudada por Halloran Elliott e Murdock, ondea expectativa da violncia fez a cobertura incidir sobre os poucos aspec-tos violentos do evento (Cfr. Gmis, idem). Um outro exemplo maisrecente o arrasto da Praia de Carcavelos em Lisboa onde a expecta-tiva da violncia por gangs de origem africana desencadeou a coberturade um evento de grandes dimenses cuja existncia foi desmentida pelaPolcia. As expectativas sobre o acontecimento como que ditam umaorientao do olhar que se debrua sobre aquilo que considera impor-

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    tante: encontramos s o que procuramos. Finalmente, outro exemplopode ser dada pela manifestao promovidas por Unies de Trabalha-dores, ONGs e Grupos ambientalistas em Seattle contra as polticas daorganizao mundial do comrcio (OMC). Apesar de a manifestaoter sido relativamente pacfica, e reunido cerca de 40 mil pessoas, a co-bertura meditica incidiu sobre 150 manifestantes que endureceram assuas formas de protesto, originando cenas de vandalismo e confrontoscom a polcia (Cfr. Martins, 2007: 32).

    Daqui resulta um problema, que a necessidade adicional de mos-trar que o enunciado relevante. Como explica Josenildo Guerra:

    (. . . ) a relevncia um parmetro relativo, compat-vel com as audincias e suas expectativas de uso. Isso nosignifica, contudo, que todos os parmetros de relevnciasejam relativos nem que todos os segmentos possam de-terminar seus parmetros, de modo privado e indiscrimi-nado. (. . . ) a relevncia torna-se um parmetro contextual,a depender do contrato de uso entre uma determinada or-ganizao jornalstica e seus potenciais consumidores. Aseleco dos factos se processa para atender a demandadestes consumidores. A relevncia avaliada pelos produ-tores decorre do discernimento inicial de que nem todosos fatos do mundo tm os mesmos apelos junto aos indi-vduos, portanto, nem todos precisam estar disponveis nonoticirio. O jornalismo ento alm de reportar os fatoscumprindo sua funo mediadora elementar, selecciona-os em decorrncia da expectativa alimentada pelos indi-vduos, expectativa esta determinada pelo uso que eles vofazer das informaes disponibilizadas (Guerra, 2003).

    Como recorda Oliveira da Silva (1988: 22), a vida e tudo o que aenvolve excludo e destacado do contexto A questo torna-se simples:uma greve relevante para quem a protagoniza: reconhece os lamen-tos da vida diria, a monotonia do trabalho, as frustraes dirias da

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    1.2. O problema da actualidadeA questo da actualidade parece mais simples se tivermos em conta

    a dimenso meramente temporal. A notcia no pode esperar. O quevai ser dito, lido, escrito ou mostrado to importante que necessriointerromper o fluxo normal do noticirio quotidiano: breaking news,notcias de ltima hora.

    A actualidade de um acontecimento a sua proximidade temporalem relao aos seus destinatrios. Todavia, est associada relevnciapois, para ser actual, um enunciado jornalstico tem de ser relevante,isto tem de ter pertinncia para os seus destinatrios. Como j sereferiram a algumas dificuldades da relevncia, vale a pena observar aquesto da actualidade, cingindo-a ao elemento temporal, sem perderde vista a ideia de que a observao da actualidade no seu todo deveconsiderar os elementos atrs introduzidos sobre a relevncia.

    A prpria actualidade temporal objecto de uma construo so-cial. Um evento actual em si mesmo ou porque se sincroniza como tempo pblico marcada pela hora dos noticirios? A pergunta no completamente dicotmica, pois impossvel hoje dissociar a noo deactualidade do tempo pblico em grande parte marcado pela hora dosnoticirios e pela actividade noticiosa.

    No se trata de simplesmente afirmar que um evento e o corres-pondente enunciado que se lhe refere actual e relevante isto queexiste urgncia no seu conhecimento porque os media informativosos anunciaram como tal: o evento ter uma actualidade que resulta danovidade da ocorrncia que descreve e do impacto que o enunciado temnas condies contextuais que o rodeiam.

    Porm, parte da actualidade e da urgncia atribuda necessidade

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    de conhecimento do evento determinada pela acelerao introduzidapelos media. Assim, a actualidade no resulta apenas de uma qualidadeintrnseca dos fenmenos mas da forma como as qualidades do aconte-cimento so percebidas pelos media. Ser, pois, mais coerente falar deuma actualidade e de uma pertinncia jornalsticas.

    Nalguns casos, at se pode falar de manipulao, no sentido emque se pretenda passar por urgente o que pertence ao passado. Certasbreaking news tornaram-se um bom exemplo dessa relativa falsifica-o da urgncia: surgidas para acontecimentos inesperados, perderama sua frescura inesperada quando se tornaram um gnero: hoje no oinesperado que irrompe no ecr (claro que h excepes, 11 de Setem-bro, Ponte de Entre Rios, etc.) mas buscam-se notcias que caibamno gnero da notcia urgente. A situao em que as breaking newsou notcias de ltima hora j deixaram muitas vezes de serem efec-tivamente urgentes um bom exemplo: criam-se rotinas para dar aopblico a sensao de estar consumindo informao indita.

    No pode, porm, ser imune ao fetiche da velocidade que marca ojornalismo. Se virmos numa dimenso mais vasta, a histria do seu sur-gimento a histria de uma poca em que a ideia de novo ganha umnovo estatuto. Em bom rigor, isso foi assim logo nos primrdios da mo-dernidade: o jornalismo do perodo moderno inicia os seus passos como alvor das cidades, da civilizao mercantil e da expanso monetria.Nas suas configuraes mais recentes, atingiu a sua maturidade na al-tura em que surgia uma mentalidade cultural favorvel velocidade: aera da reprodutibilidade tcnica foi associada imagem primordial dachegada de um comboio gare de Lyon. Estava-se numa poca de in-dustrialismo acentuado, de generalizao e expanso dos negcios e daeconomia monetria. A escrita breve que o jornalismo reclama, produze reflecte a acelerao das formas culturais em que foram incubadas assuas manifestaes contemporneas. O cinema ter ajudado a fixar aideia de que a imprensa trabalha sobre o signo da velocidade: narrativasbreves, um discurso que reproduz a urgncia, narrativas que se relaci-onam com uma poca em que os consumidores j no dispem mais

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    de tempo para uma leitura ciosa e solitria. O jornalismo enquantoforma de conhecimento do mundo foi afectado pela imagem que criade si prprio: os prego dos ardinas e jornaleiros, os efeitos sonorosque acompanham notcias rpidas e urgentes (Cfr. Moretzshon, 2002:46).

    O clich cinematogrfico das rotativas a girarem a grande veloci-dade ou os grandes planos das manchetes que levam protagonistas atomar rpidas e inesperadas decises construram a prpria imagem daimprensa. O jornalismo contemporneo tornou-se produto e causa deuma poca em que o tempo se tornou um bem mais escasso. Nasceudesse tempo que tambm ajudou a criar. Ontem, isso correu com oscomboios e o cinema. Hoje isso ocorre com os avies de baixo custo, ateleviso e a Internet, factores decisivos na contraco do mundo. Porisso, hoje pode falar-se de uma espcie de cultura do presente contnuono qual se omite a relao orgnica com o passado pblico da pocaque vivemos. Nesse sentido, como recorda Luhmann, uma caracters-tica essencial da informao a sua relao com o tempo: a informao perecvel uma vez pronunciada (Cfr. Santos, Idem, Ibidem).

    Apesar do que fica dito, h uma actualidade que, nem que seja poruma demonstrao por absurdo, se distingue e percepciona. A ideiageral de novidade precede o jornalismo. H uma certa fora coactivada realidade: falar da actualidade temporal do 5 de Outubro de 1910(implantao da Repblica em Portugal) pode remeter para a sua re-levncia histrica mas no para a sua novidade jornalstica. Porm,um terramoto que ocorreu h cinco minutos uma novidade. Ascomemoraes do 5 de Outubro de 1910 ou do 14 de Julho de 1789so actualidade. Porm, tal como a relevncia depende de uma per-cepo social e cognitiva a actualidade temporal tambm depende deuma percepo social e pblica do tempo. A noo de tempo pblicoj trabalhada por Bergson o tempo dos relgios e dos marcos quese consideram relevantes para a sua medio. Reconhece-se uma legi-timidade aos jornalistas para representar a percepo social e pblicado tempo. Espera-se que o reprter chegue primeiro, que se antecipe

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    e que nos oferea a actualidade, entendida como uma qualidade quejustifica a urgncia do conhecimento dos acontecimentos. Porm, temque se admitir que os elementos sobre a actualidade so socialmenteconstrudos e percepcionados num processo em que os procedimentose os enunciados jornalsticos desempenham uma tarefa fundamental.Ou seja, as notcias so sobre factos actuais, mas a actualidade tam-bm socialmente construda num processo em que os media intervmdecisivamente.

    1.3. A verdade, a objectividade e a seriedadedos enunciados jornalsticos

    No jornalismo, h a pressuposio tcita partilhada sob a veraci-dade dos enunciados no que diz respeito a uma certa relao com osestados de coisas e pessoas do mundo social objectivo. Por exemplo,independentemente da forma como se organiza a notcia sobre a rea-lizao de uma demonstrao pblica contra o Governo (a qual podiaser classificada como um levantamento, uma insurreio, uma mani-festao, agitao ou como um protesto popular), houve um grupo depessoas que ergueram cartazes e pronunciaram todas juntas um con-junto de frases ritmadas. Esta evidncia factual mais complexa doque parece: a prpria classificao deste conjunto de frases ritmadascomo palavras de ordem ou protestos em voz alta mostra que no bvia nem evidente a escolha da forma de classificar esse conjunto defrases pronunciadas de forma ritmada.

    Todavia, esse conjunto de frases ritmadas existiu num tempo e numlugar. Pode-se falar, neste sentido, de uma certa coaco da reali-dade: pode-se dizer tudo mas dificilmente poder admitir-se que du-rante a deslocao das pessoas estas permaneceram silenciosas. Poroutro lado, difcil ser que se aceite que manifestao tenha ocorridoem 17 de Junho de 1789, quando ocorreu em 2008-05-15. Como lem-bra o famoso exemplo de Hannah Arendt: Pode dizer-se tudo sobre a I

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    Guerra Mundial excepto que a Blgica invadiu a Alemanha. Todavia,isso no impede que seja possvel apresentar numerosos enunciadosdiversos sobre a invaso da Blgica ou sobre a manifestao.

    Isto acontece tambm nos prprios gneros opinativos. Indepen-dentemente dos qualificativos atribudos pelo editorialista e do tom pe-daggico, crtico, moderador, instigador ou apoiante usado numa Cr-nica e num Editorial, a medida ministerial criticada pelo enunciadoopinativo (suponhamos que foi isso que se passou) existiu. Sem entrarem questes de natureza ontolgica, parece bvio que existe um con-junto de folhas escritas com prescries jurdicas classificadas comoCdigo de Trabalho. Se um publicista se referir existncia de medi-das legislativas que no foram tomadas ou se por engano se referira um Cdigo de Famlia que ainda no foi publicado, ou se elaboraruma notcia sobre um Cdigo de Trabalho aprovado no sculo passadocomo se ele tivesse sido aprovado ontem pelo Parlamento, estamos di-ante de uma violao da promessa inerente ao enunciado jornalsticoacerca de se referir a estado de coisas verificveis no mundo.

    Ser que a emisso de uma opinio sobre a medida governamentalno implica uma expectativa em que a pretenso de validade do locu-tor diz sobretudo respeito sinceridade? Certamente que sim, mas tercomo condio de possibilidade da classificao do enunciado comojornalstico a existncia simultnea de uma pretenso de validade im-plcita ao prprio texto jornalstico relacionado com a verdade. Nose pode ser sincero sobre o repdio ou a aprovao de um Cdigo deTrabalho que no existe.

    Uma pretenso de validade relativa verdade de um enunciadodeste gnero implicaria:

    a) a existncia da medida;

    b) a sua adequada referncia e nomeao, isto , referir-se ao nomeque efectivamente lhe foi dado e no ao que lhe parece ser ade-quado.

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    Estabelecido isto, o produtor do enunciado poder desenvolver cr-ticas, detectar obstculos sua aplicao, denunciar eventuais con-sequncias que no hajam sido previstas pelo legislador e faz-lo nosmais diversos registos, dentro dos critrios editoriais que lhe so ine-rentes.

    Tambm vlido, finalmente, para as notcias de sociedade. Qual-quer que seja o estilo (irnico, descontrado, o que seja) com que serelata o aparecimento da estrela de futebol junto a uma pessoa do sexofeminino que exerce a profisso de modelo, este verificou-se efectiva-mente ou no e a verificao deste acontecimento quanto ao tempo eao lugar, a qualidade e existncia de personagens torna-se um crit-rio vlido para aferir da competncia profissional ou da credibilidadedo enunciador. Mas ser que o encontro da estrela com o modelo noimplica da parte do destinatrio uma expectativa vocacionada para en-tretenimento, verificando-se mesmo um desinteresse pelo problema daadequao dos enunciados? Certamente que sim, porm isso no im-pede que a prpria natureza daquilo que prometido como enunciadojornalstico mesmo quando jornalismo cor-de-rosa, fixa um limite euma srie de graduaes para a apreciao da conformidade com o quese espera do cumprimento dessa promessa. Avaliar ou fazer sorrir ouentreter no implica criar personagens de fico. Alis, uma parte dosorriso ou do entretenimento provm da presuno de verdade dos fac-tos que suscitam o riso. Mesmo que haja destinatrios a quem isto apa-rentemente no interesse, o sabor extra de uma notcia reside secreta-mente na sua veracidade. Seno podia ser publicada numa antologia decontos fantsticos. Mesmo que parecesse idntica, a intencionalidade ea contextualizao originariam uma classificao diferente.

    Claro que isto no significa que o acontecimento seja uma realidadeobjectiva (Cfr. Alsina, 1986: 16). A existncia de uma modelo que saiucom um futebolista ou de uma importante medida governamental quedesencadeou opinies no pode ser posta em causa mas a sua selecocomo relevante j resulta de critrios cuja complexidade difcil anali-sar: porque que a vida amorosa de um futebolista um acontecimento

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    meditico? Porque uma medida governamental um acontecimentomeditico? Que complexa teia de critrios culturais, editoriais e pes-soais se combinaram para formular um determinado discurso? Comodiz Borges, citado por Alsina: Mi relato ser fiel a la realidad o, entodo o caso, a mi recuerdo de la realidad, lo cual es lo mismo (Cfr.Alsina, 1986: 17). Marconi Oliveira da Silva diz a propsito: (. . . ) noritual de passagem do facto notcia engendra-se uma nova realidadeque, correspondendo a novas representaes serve para enfeitiar a re-alidade original (Cfr Oliveira da Silva, 1998: 14). Ou ainda: (. . . )o mundo relatado na notcia fruto de actividades de categorizao eno de um simples acto de nomeao da realidade como se ela esti-vesse pronta para ser designada. O relato jornalstico no um actode descrever ou dizer de forma directa, determinada e precisa um factoemprico acontecido no mundo exterior, mas um acto de apresentaode uma realidade que se constitui inclusive com a participao activado leitor (. . . ) mas isso no equivale a dizer a que imprensa mente,inventa ou diz inverdades. Significa apenas que os nossos discursosso condicionados pelos limites de nossos modos de dizer, ou seja, soconstrues do mundo dentro de certos limites impostos pelos nossosjogos de linguagem (Oliveira da Silva, 2006: 8). Na verdade, nuncah uma descrio completa da realidade seno muitas, todas diferen-tes, cada uma das quais diferentes segundo os critrios em que o autordo enunciado se baseou para a seleco das suas informaes, que dis-tines e valorizaes efectuou e a partir de que perspectiva, com queinteresses e com que objectivo abordou o tema (Cfr. Simon Cit. inRodrigo Alsina, 1999: 44).

    evidente que, a partir da seleco de aquilo que se considera comofacto, toda a organizao discursiva dispe de um vasto campo de estra-tgias enunciativas e discursivas que permitem organizar a informao,com uma vasto espao indefeso aberto a manipulaes, a constrangi-mentos cognitivos, ideolgicos e outros ou prpria evidncia da or-ganizao dos significados inerentes a qualquer acto de enunciao:se aquilo que se designa por construo da realidade e por constru-

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    o de significado j comeou antes quando se decidiu destacar umacerta parte do mundo, as diferentes tonalidades que o quadro simblico(frame) aplicado ao evento pode adquirir continuam a desenvolver-seao longo da organizao do texto, das expectativas da suas recepo,etc. Ou seja: quando se fala da construo social da realidade no para falar de manipulao mas apenas para dizer que a construo deum significado objectivo um processo histrico, social e cultural queresultou da interveno de protagonistas da realidade social que neleparticiparam e de processos cognitivos que esto associados aos pro-cessos sociais e culturais. Logo, a evidncia desta construo no uma licena para a mentira, a manipulao ou a subverso factual, asquais constituem uma violao dessas expectativas inerentes produ-o e recepo dos enunciados jornalsticos.

    Neste sentido, aparece adequada a observao de Ricoeur citadapor Cornu (1994: 375), segundo a qual a hermenutica no dissoci-vel, separvel da pesquisa histrica e logo da pesquisa jornalstica. impossvel constatar os factos sem os interpretar. No jornalismo e nahistria, a verdade passa por uma reconstruo, que permite contextua-lizar os factos, proceder ao seu encadeamento, procurar as suas causase apresent-los na sua coerncia. Ou ainda: na prtica informativa, ilusrio separar a discusso do acontecimento da discusso sobre o seusignificado (Cornu, 1994: 374). Logo existem potencialmente muitaspossibilidades de reconstruo possveis da realidade. Porm, tal noimpede que a inteno de objectividade faa tambm parte como ele-mento orientador da reconstruo e da interpretao.

    Estabelecido um mnimo, haver gradaes mas poder-se- dizerque um jornalista cumpre a sua parte da promessa implcita ao papelque lhe atribudo tanto melhor quanto mais se mantiver fiel buscada comprovao dos factos que escolhe e adequao das qualificaesque lhe atribui. Estas devem ser assumidas como tais e devem poderdistinguir-se da fico pelo facto de possurem uma relao com factos,pessoas e estados de coisas verificveis no mundo social. Apesar detudo e isso remete para a questo da cognio e da representao

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    possvel produzir enunciados muito diversos sobre o ocorrido sem cairno domnio da subverso factual, nem dizer que todos os enunciadosso igualmente vlidos.

    Esta uma definio operativa que nos permite pensar uma relaomais firme entre a componente deontolgica e a componente profissio-nal. Poder-se- contestar: e os rumores e os boatos que insistentementepercorrem os jornais? justamente a que encontramos a articulaoentre o que e jornalismo e a sua boa prtica, no sentido deontol-gico. Da mesma forma que um mdico pratica medicina sem qualidadequando deixa de fazer o acto mais adequado cura do paciente, umjornalista faz mau jornalismo quando fere a promessa tcita de fundaro seu enunciado mesmo aquele que opinativo na apresentao deuma pretenso de validade relacionada com a verdade relativa a partesdo mundo social objectivo, ou seja quando incumpre a promessa im-plcita ao seu papel de se relacionar com a divulgao e comentrio defactos do mundo social objectivo que considera verdadeiros, relevantese actuais. Todos o sabemos: o jornalismo foi no passado, frequente-mente opinativo, feito para entreter, sendo de excluir mesmo aquelasteorias que se referem ao facto de ser recente o perigo da contaminaopelo entretenimento. Ser que isso feriu a sua pretenso de validade noque toca ao tipo de enunciado? Se lermos a histria, constatamos queos jornais sempre se apresentaram como verdadeiros e foi isso que mar-cou a sua presena e funo social, independente dos constrangimentosque ameacem a ideia de verdade.

    Um reprter do famoso Daily Journal costumava dizer lembrarquantas vezes inventara histrias de processos que nenhuma corte ja-mais vira, envolvendo nomes que nenhuma cidade jamais conhecera(. . . ) tudo isso cheio de reviravoltas exticas na trama, envolvendo pa-pagaios, galinhas, carpas douradas, serpentes epigramas e cortinas desegundo ato (Hetech in Moretzsohn, 2007: 192). Ramonet (in Mo-retzshon, 2007: 193) recorda como o World e o Journal promoverama Guerra de Cuba e, claro, nos nossos dias, haver que pensar sobre omesmo em relao ao Iraque (Idem). Porm, estas referncias s fa-

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    zem sentido porque estes textos so exemplos negativos: afastaram-sedo padro jornalstico por se afastarem da pretenso de validade de umenunciado jornalstico.

    isso que torna pertinente a sua referncia objectividade: a exis-tncia de uma pretenso relativa mesma. H uma pretenso de va-lidade relativa construo de um enunciado verdadeiro que se tornaelemento diferenciador e uma expectativa de cumprimento dessa pro-messa implcita por parte do destinatrio.

    1.3.1. O jornalismo e o contrato de leituraO termo contrato de leitura funcionou como uma chave hermenu-

    tica que permitisse desenvolver as expectativas recprocas dos envol-vidos no acto comunicativo que se verifica em torno dos enunciadosjornalsticos.

    Franois Jost (2004: 10) enuncia trs definies possveis de con-trato: a semitica, a lingustica e a sociolgica. O contrato de comuni-cao surgiu na tradio semitica francesa assinalando que o interlo-cutor (leitor, ouvinte, telespectador, usurio, participante) aceita e subs-creve condies da situao comunicativa, reconhecendo finalidades(vises), identidade, o domnio do saber, dispositivo e modo de enunci-ao. Para responder estas questes, Vern props o contrato de leituraque estabelece um elo fundamental entre um suporte de imprensa eseus leitores. No caso especfico da teorizao dos contratos de leitura,considera-se que h um conjunto de regras e de instrues constitudaspelo campo da emisso para serem seguidas pelo campo da recepo.Dans le cas des communications de masse, bien entendu, cest la m-dia qui propose le contrat (Vern 1985, p. 206). Desta forma, os con-tratos actuariam como interpeladores que visam persuadir e capturar oreceptor. Eles funcionariam, ainda, no sentido de construir o real, poisao mesmo tempo em que possibilitam ao sujeito a sua incurso na re-alidade, determinam de que forma o receptor deve ver este real (Cfr.Jost, 2004: 10).

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    Ao propor um contrato de leitura4 com o receptor da mensagemjornalstica, atravs de um ritual com inmeras estratgias discursivas,o jornal ofereceria ao leitor, atravs do ttulo das fotografias, das cartas,a sua identidade, pede um certo reconhecimento, tentando estabelecercom as audincias uma parceria discursiva em que, todavia, o emissorpossui a ltima palavra.

    Numa perspectiva lingustica Charaudeau define contrato de comu-nicao como:

    (...) o conjunto das condies nas quais se realizaqualquer ato de comunicao (qualquer que seja sua forma,oral ou escrita, monolocutiva ou interlocutiva). Tal permiteaos parceiros reconhecerem um ao outro os traos identit-rios que os definem como sujeito desse acto (identidade),reconhecerem o objectivo do acto que os sobredetermina(finalidade), entenderem-se sobre o que constitui o objectotemtico da troca (propsito) e considerarem a relevnciadas coeres materiais que determinam esse acto (circuns-tncias) (...) (Charaudeau, Mainguenau: 2004: 132).

    No pode haver um acto de comunicao sem que a ele esteja subja-cente um contrato.

    Com a operacionalidade terica e metodolgica adquirida com adefinio de Charaudeau, a noo de contrato coloca em cena as con-dies que unem os media a seus consumidores, com o objectivo prin-cipal de preservar a manuteno dos leitores travs do consumo dosmeios. Na metodologia proposta, o texto j presume o leitor. Assim,podemos dizer que nesta anlise, o pblico tambm est inserido no

    4Contrato de leitura o termo proposto por Eliseo Vron para referir-se ao modocomo cada veculo de comunicao modela seu discurso a fim de atingir o destinat-rio. O contrato, segundo Vron, implique que les discurs dun support press est unespace imaginaire o des parcours multiples sont proposs au lecteur, un paysage, enquelque sorte, o le lecteur peut choisir as route avec plus o moins de libert, o il ya des zones dans lequelles il risque de se perdre ou, au contraire, qui sont parfaitementbalises (Vron, 1985,pp.54-55)

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    texto e visvel nas marcas narrativas que o texto evidencia. Porm, aconstituio do pblico pelo enunciador est longe de encerrar o pro-cesso de produo/interpretao. No caso desta concepo, pode-sedefinir o contrato como uma espcie de acordo graas ao qual emissore receptor reconhecem que se comunicam e o fazem por razes com-partilhadas (Cfr. Jost, 2004: 10).

    A evoluo do contrato de leitura colocou em evidncia a dinmicados leitores (suas aspiraes, as suas expectativas, interesses e motiva-es), as mudanas socio-culturais (que modificam tambm o contratode leitura) e a situao de concorrncia (o comportamento dos agentesda concorrncia tambm um factor de mudana).

    Finalmente, para os socilogos da comunicao, o contrato estabe-lece um palco entre os media e os seus pblicos, particularizando asrelaes entre emissor e receptor.

    (. . . ) a actividade jornalstica uma manifestao so-cialmente reconhecida e compartida (. . . ) Por conseguinte,esta relacin entre el periodista e sus destinatrios est es-tablecida por um contrato fiducirio social y histricamentedefinido. A los periodistas se les atribuye la competenciade recoger los acontecimientos y temas importantes y atri-buirles un sentido. Este contrato se basa en unas actitudesepistmicas colectivas que se han indo forjando por la im-plantacin de del uso social de los medios de comunicacincomo transmisores de la realidad social de importancia pu-blica. Los propios medios son los primeros que llevan acabo una continua prctica de autolegitimacin para refor-zar este rol social (Rodrigo Alsina, 1996: 31).

    A gnese da noo pode ser compreendida de forma mais produtivaquando se tem em mente o conceito de interaco desenvolvido pelaescola de Palo Alto segundo o qual os protocolos de comunicao sovistos como instituidores de regras de interaco e de comportamentosque, por sua vez, iro determinar as prticas sociais existentes entreemissores e receptores de um determinado processo de comunicao.

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    Na mesma linha, os contratos de leitura regulariam as relaes co-municativas do processo de construo e interpretao de um discurso.Revelariam a opo do receptor e do emissor por um modo de se mos-trar o mundo e denotariam definies estabelecidas a partir dos nveisestilsticos e estticos, polticos e ideolgicos relativos intencionali-dade com que o enunciador e receptor se debruam sobre o mundo. Seo enunciado construdo tendo como pretenso de validade principal oreconhecimento por parte do enunciatrio da existncia de uma relaocom o mundo, estamos no campo da no fico. Se enunciador, e re-ceptor se debruam sobre o mundo, de forma organizada e sistemtico,de acordo com particulares regras de apresentao em busca de des-crio e comentrio a fim de proporcionar um conhecimento sobre umfacto tido como existente no mundo objectivo e considerado relevante eactual, ento estamos diante de um contrato que enuncia clusulas queconfiguram um conjunto de condies prximas do jornalismo.

    A teoria da enunciao desenvolveu fundamentos para o desenvol-vimento da noo de contrato de leitura. A enunciao jornalsticapropriamente dita implica formas bem estabelecidas de definir o que o jornalismo em torno de um conjunto de elementos que expressamo ethos da profisso, na sua relao com o pathos das audincias ecom o contexto organizacional de produo do discurso. A enunciaojornalstica implica um determinado conjunto de opes mais gerais eabstractas que se fazem sentir como regras em relao enunciaoeditorial: independentemente das opes editorais de um medium es-pecfico sabemos reconhecer um discurso jornalstico por um conjuntode traos empiricamente verificveis: organizao do discurso, estilo,intencionalidade, etc. Por outro lado, a enunciao jornalstica implicasempre uma pretenso de validade determinante que constitui uma dassuas diferenas: a pretenso de verdade, a relao com o estado decoisas e as pessoas do mundo objectivo. Esta pretenso de validadeseria uma das caractersticas que permitiria distinguir o jornalismo deoutros discursos. Todavia, no seria a nica, pois seria comum ao re-

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    latrio policial ou a qualquer outro enunciado de natureza fortementedenotativa.

    A enunciao editorial diz respeito a opes evolutivas, estticas,ideolgicas, normativas. Em ambas se constri a imagem daquele quefala (o local que ele se atribui, a relao aquilo que diz), a imagemdaquele a quem o discurso dirigido (o pblico), e a relao entreenunciador e destinatrio (emissor e receptor) que se constri no dis-curso. Porm, a interveno do destinatrio j se encontra presenteno discurso e prossegue em situaes extra-discursivas modificando asopes do enunciador, graas ao feedback.

    Imaginados, quantificados, sondados, os pblicos tam-bm se exprimem seja sobre o controle dos jornalistas (car-tas de leitores, colunas de onbudsman) seja fora o seu con-trolo, como hoje se verifica na blogosfera (Ringot & Ru-ellam, 2006).

    Seria isso que permitiria distinguir os jornais uns de outros.Finalmente os gneros jornalsticos implicam estratgias enuncia-

    tivas distintas: A corporalizao enunciativa disponibiliza o acessoaos corpos e aces do jornalista, como acontece na reportagem e naentrevista que implicam a vivncia do enunciador na convocao aoleitor; a caracterizao enunciativa implica a publicitao da opinio,buscando a adeso do leitor como acontece no editorial ou na crnica;a despersonalizao evidencia a obliterao do sujeito e o apagamentodo jornalista, como se no houvesse um intermedirio e o texto espe-lhasse o mundo (Ryngoot, 2006: 136 consultado emhttp://unb.br/fac/posgraduacao/revista2006/15-e-roselyne.pdf).

    A anlise do contrato de leitura seria orientada por um critrio com-parativo. Cada discurso carregaria os seus traos especficos que mu-dam ao longo do tempo. A anlise do contrato de leitura busca detec-tar o conjunto do funcionamento discursivo dos suportes de imprensabaseado nestas invariantes referenciais. Para observar estas caracte-rsticas dos discursos em questo, ser preciso levar em conta trs im-perativos fundamentais: a regularidade das propriedades descritas (as

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    propriedades no podem ser ocasionais); a diferena obtida pela com-parao entre os suportes (as diferenas e as semelhanas regulares for-jam a identidade ou o contrato de leitura); a sistematizao das pro-priedades exibidas por cada suporte (o contrato de leitura estabelece-sea partir de um conjunto de invariantes referenciais).

    1.3.2. Desvantagens da noo de contratoO modelo do contrato de leitura desempenha uma funo heurs-

    tica assinalvel na anlise dos veculos de comunicao, j que permitea compreenso como estes constroem os laos com o pblico Todavia,deve ser relativizada no que respeita a qualquer suspeita de manifes-tao de uma espcie de essncia esttica dos actos comunicativos ejornalsticos, evidenciando algumas desvantagens que no podem dei-xar de ser consideradas.

    A ideia de contrato baseada no pressuposto estruturalista daimanncia, segundo a qual o texto preveria dentro do seu interiorum destinatrio. uma ideia que tm algumas virtualidades mas limitada.

    A ideia de contrato algo tautolgica: para se ler um texto comojornalismo, preciso saber o que jornalismo. Logo no se trataapenas de saber o que jornalismo mas o que proposto pelocampo dos media como jornalismo.

    Por outro lado, se enjeitarmos essa imanncia no deixam de existirquestes que ajudam a suspeitar ainda mais da noo:

    A noo de contrato, mesmo que considerada numa perspectivaheurstica e metafrica, pressupe uma partilha recproca e si-multnea entre duas partes livres e iguais. O lastro sociolgico epoltico da noo de contrato demasiado vasto para ser esque-cido.

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    A relao entre as partes do contrato extraordinariamente assi-mtrica e demasiado diferenciada em funo de vrios circuns-tancialismos (tecnomediticos, sociais, culturais) o que a noo,em si mesma, ou oculta ou reveste de ambiguidade: o desejo deparceria oculta os desconfortos da excluso e da desigualdadenas posies relativas dos parceiros.

    A diferenciao entre as partes tem a ver com o fenmeno dopoder, entendido aqui como possibilidade de acesso. Neste sen-tido, h que levar em conta a diferenciao entre pblicos fracose pblicos fortes ou at entre pblicos e audincias.

    1.3.3. Promessa e seriedadeJustamente, pelas vrias dimenses que atravessam o contrato de

    leitura vale a pena avaliar a noo de promessa, indiciada por FranoisJoste. A ideia de promessa remonta a Bateson e ao enquadramento(frame): o enquadramento (Frame) implica a existncia de uma pro-messa que qualifica a mensagem (cfr. Rocco de Biasi, 2001). Ao nvelmetacomunicativo, qualifica-se a enunciao.

    A ideia de uma promessa implcita no falante interessante por-que implica todos os interlocutores de forma generalizada. A ideia de"reconhecimento de condies, inerentes noo de contrato opera-tiva para o sucesso do acto comunicativo, nomeadamente nalgumas dassuas formas particulares de expresso. Todavia, o reconhecimentoimplcito ao contrato tem uma natureza orientadora. Muitas vezes nor-mativa, no suscita um compromisso e, sobretudo, menos ainda ata aspartes a um compromisso prvio, como possa erroneamente pensar-se.

    J na promessa, um interlocutor pode reconhecer finalidades e iden-tidades profissionais, mas permanecer expectante e crtico sobre o cum-primento do enunciador dessas finalidades inerentes identidade pro-fissional. Pode-se reconhecer as promessas de um discurso e, aomesmo tempo, no se crer nelas, ficar expectante em relao ao seu

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    cumprimento ou, pelo menos, determinar o seu carcter orientador vin-culativo mas nem sempre eficaz.

    Conforme a relao que o autor ter com o mundo e a intencionali-dade com que se debrua sobre a realidade, podemos descortinar umapromessa distinta implcita na relao com o leitor. Na comdia, huma promessa de riso. No jornalismo, h uma promessa de ajuste entreo contedo proposicional e o mundo. Claro, a promessa tem implcitauma dimenso argumentativa, publicitria como assinala Jost (2004:19). Podemos afirmar que inerente ao jornalismo existe uma dimensoque poderia ser implcita ao enunciado factual e que pode traduzir-senuma espcie de slogan: Creiam na veracidade do meu relato.

    Logo, no h contrato pois este bilateral e co-assinado, sendo, porisso, instantneo e sincrnico. Antes h uma promessa que abre a portaa uma expectativa e a uma exigncia pelo receptor que seja cumprida.

    Um quadro comparativo evidencia que o primeiro bilateral e co-assinado. Contrariamente perspectiva domodelo do contrato que instantneo, sincrnico, o mo-delo da promessa ocorre em dois tempos. O espectadordeve fazer a exigncia de que a promessa seja mantida. As-sim, em um segundo tempo, o espectador tem o dever deverificar se a promessa foi efectivada. Esta diviso tambmocorre na poltica. O homem poltico deve diferenciar a as-suno de um contrato, da afirmao de uma promessa. Seele fizer uma promessa poder posteriormente ser cobradopor ela. Portanto, o modelo da promessa o mais cida-do. Este modelo exige do espectador uma contribuioactiva, embora ela no se d simultaneamente ao momentoda prpria promessa (Jost, 2004: 19).

    A ideia de promessa de produo de um enunciado relacionado comfactos e estados de coisas verificadas num mundo social objectivo im-plica o reconhecimento de um fim. Por isso, a questo da credibilidadesurge relacionada de um modo to radical ao exerccio da profisso jor-nalstica: Timisoara o falso massacre da revoluo romena noticiados

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    pelas televises de todo o mundo e a Guerra do Iraque tero sido gol-pes profundos exactamente porque os jornalistas no tero cumprido oseu fim. Revelaram uma linha de fractura na confiana atribuda aosmedia (Cornu, 1994: 17).

    1.3.4. O jornalismo como um enunciado srioNuma aproximao que nos parece til para a compreenso da no-

    o de promessa, John Searl sustenta a diferena de estatuto lgicoentre fico e no fico pelo uso srio da linguagem. A utilizao dapalavra srio no significa qualquer minimizao da fico. No sen-tido conferido por Searl pretende se apenas dizer que um enunciadode no fico exige a verificao do fundamento do seu contedo, o queno exigido a Walter Scott, Ea de Queiroz, Shakespeare ou QuentinTarantino. O enunciado jornalstico srio, querendo com isto dizerque o seu autor se compromete com a verificao do seu contedo, ouno sentido em que o locutor se empenhou na existncia de um estadode coisas ou na verdade de uma proposta expressa. Neste sentido, aassero sria obedece a regras precisas sob pena de perder a validade:

    a) o autor da assero responde pela proposta expressa, sendo fiadorou responsvel pelo que afirma;

    b) o locutor deve apresentar provas que permitam afirmar a asser-o;

    c) a verdade da proposta expressa no deve parecer evidente nemao locutor nem o ao ouvinte no contexto da enunciao;

    d) o locutor responde pela sua crena na verdade da proposta ex-pressa.

    Neste sentido, difcil desligar a promessa do conceito de pretensode validade: a legitimidade do jornalismo est intimamente associadacom pretenses de conhecimento verdadeiro. graas sua pretenso

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    de ser capaz de oferecer aos cidados conhecimento importante e cred-vel que o jornalismo justifica a sua posio como uma instituio cons-titutiva da sociedade democrtica (Cfr. Ekstrom, 2002). Parece-nosque esta abordagem justifica a ideia de um tipo particular de enunciadoque se dirige verdade, e que solicita aos receptores e pblicos quecreiam nessa direco: tal explica que se multipliquem os mecanismosde exigncia do cumprimento da promessa como sejam onbudsman,laboratrios, observatrios, etc. Da mesma forma se multiplicam osmecanismos de auto-promoo:

    esses peritextos, esses paratextos, esses epitextos sotambm promessas sobre o benefcio simblico que o es-pectador vai usufruir (Jost, 2004: 27).

    Na televiso, mas tambm noutros media, multiplicam-se entrevistascom autores, reportagens sobre reportagens, comunicados de imprensasobre a imprensa; dossiers de imprensa, anncios publicitrios, etc.

    Nesse sentido, Jost fala de uma segunda promessa que designa porpromessa pragmtica, a qual repousa sobre compromissos a) quanto aointeresse e s emoes daquele que procura o enunciado anunciado; b)quanto garantia de encontrar nos enunciados os atributos atribudos eexemplificados pela autopromoo (Cfr. Jost, 2004: 30).

    Se uma promessa a definio metacomunicativa das regras de in-terlocuo, estamos diante de um tema e de um questionamento queexige e a referncia a um conjunto de elementos prprios de um mo-delo sociocognitivo: um documento produzido em funo de umacrena visada pelo destinador; em contrapartida ele s pode ser inter-pretado por aquele que possui uma ideia prvia do tipo de ligao queune o destinador realidade.

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    1.4. A natureza pblica do enunciado jorna-lstico

    A promessa implcita ao jornalismo remete para um enunciado es-pecfico que reflecte estas caractersticas que so consideradas prpriasda qualidade de ser pblico:

    1. circula em espaos de acessibilidade em relao aos quais noexiste habilitao prvia para a sua frequncia;

    2. considerado como possuindo um interesse colectivo;

    3. renega a ideia de segredo ou de sabedoria privada ou especiali-zada, no sentido em que baseia a sua actividade na divulgao ena simplicidade.

    Em relao ao primeiro ponto, parece haver uma certa evidncia:em princpio, a regra que o enunciado jornalstico possa ser lida portodos. por isso que h censura. porque, nas condies de legi-timidade construdas pela modernidade, a existncia de um discursopblico que possa ser lido tendencialmente por todos uma realidadesujeita a constrangimentos mas inegvel. Todos podem chegar ao qui-osque e adquirir um jornal. Em condies normais, ningum solicitaum certificado de habilitao prvia para ler o que foi publicado. Umavez publicado, tornado pblico, fica, de certa forma, impossvel de con-trolar. Por isso, a interveno censria dos poderes se faz antes de serpublicado seja atravs da eliminao ou da configurao do texto paraeliminar eventuais incmodos que este possa propiciar. Ou seja, comoo discurso pblico se tornou um elemento fundamental da moderni-dade, os poderes que convivem mais ou menos mal com esta ideia re-correm a duas estratgias possveis: a) impedem que a mensagem che-gue ao pblico ou b) fazem tudo para que a mensagem reflicta o maisdetalhadamente possvel, um enquadramento que coincida o mais pos-svel com aquele que lhe convm. Porm, esta noo de pblico aindaest associada aquilo que comum por oposio ao que privado. O

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    discurso pblico, procedendo a uma distino analtica, apenas signi-fica que est disponvel a todos como um terreno baldio que no precisada autorizao de nenhum dono para ser visitado.

    A identificao moderna entre o adjectivo pblico e o interessecolectivo muito mais difcil de discernir. Todavia, parece ser difcilnegar que a noo moderna de legitimidade implica que as decisesdo poder sejam escrutinadas e legitimadas publicamente. Ou seja, hdecises secretas. Porm, o seu secretismo constitui motivo de cen-sura e crtica luz da cultura poltica herdada da Modernidade e doIluminismo. H decises com motivos ocultos. Contudo, o prprioaf dos poderes em apresentar motivos aceitveis para as suas decisessignifica que existe um ambiente colectivo que exige que as decisesimplicam o consentimento e a legitimidade pblicos. Se isso bviopara as questes do poder, deixa de ser para muitas outras questes: asdecises de uma SAD de futebol so de interesse pblico no sentido emque dissemos anteriormente? Ser que, mais uma vez, a sada nocturnado futebolista e da modelo uma questo de interesse pblico?

    Obviamente, enquanto o tipo de interesse pblico relacionado como exerccio do poder poltico, tem a ver com a legitimidade das deci-ses do sistema poltico, duvidoso que isso se possa aplicar a todosos domnios. A legitimidade uma categoria que tem a ver com a acei-tabilidade e o consentimento de prticas ou decises pblicas. Podehaver instncias de poder privado cujas decises afectem direitos so-bre cuja proteco possam invocar um interesse pblico: vejam-se, nocaso da economia, as polmicas em torno das decises da Administra-o do BCP ou, no caso do ensino, decises de instituies de ensinoque conduzam ao mercado de trabalho profissionais deficientes; vejam-se, no plano social as polmicas em torno de direitos relativos a orien-taes sexuais das pessoas. H uma legitimidade de certas decisesque pode ser posta em causa mesmo quando tomadas por instituiesprivadas. Seno, haveria instncias que podiam actuar impunementesimplesmente porque as suas aces no so conhecidas ou, porque,sendo-o, no so punveis pelo direito positivo.

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    Porm, altamente duvidoso que este conceito de interesse p-blico possa dizer respeito deciso de um adulto conhecido (o fute-bolista) sair com outro adulto conhecido (um modelo). Estaremos ano domnio de uma curiosidade cuja legitimidade pode ser ela prpriacontestada ou objecto de indignao. Porm, a a noo de pblicodeixa de ser articulada com a questo da legitimidade para passar a estarassociada de entretenimento partilhado por todos, revelando sobrevi-vncias de conceitos pr-modernos de pblico: por exemplo, a ideia dedisponibilidade e acessibilidade acima referida ou a ideia de pblicocomo representao do poder hoje transferida para a representaodo estatuto, nomeadamente do estatuto das celebridades. Os moti-vos que determinam a ostenso cultivada pelo Rei Lus XIV para pro-porcionar fantsticos fogos de artifcio em Versalhes so os mesmosque levam Hollywood e as cadeias televisivas a desenvolver fausto epompa aos famosos do cinema, da moda e do futebol, proporcionandouma proliferao de galas e de espectculos cheios de brilhantismo e denotoriedade. S que os critrios de distino so naturalmente diferen-tes. Neste sentido, o conceito de pblico est associado a conceitoscomo os de notoriedade e fama. A esta dimenso associa-se umaoutra: a dimenso da publicidade comercial, associada legitimaopelo mercado. Neste sentido, muitas das aces de tornar pblico galas, acontecimentos sociais, atribuies de prmios da indstria, pro-gramas sobre famosos so uma forma de auto-celebrao laudatriaou de associao a marcas que vendem: jogadores de futebol, mode-los e actores atraem audincias e anunciantes. Conceitos pr-modernosde pblico associam-se assim a uma outra forma de pblico: obter no-toriedade para gerar lucros.

    J a ltima forma de classificar o discurso jornalstico como p-blico est articulado com a ideia de acessibilidade. O jornalismo umsaber exotrico que procura conferir maior acessibilidade a saberes es-pecializados. De origem grega, adjectivo eksterikos, -, -on (exterior,destinado aos leigos, popular, exotrico) ope-se a esterikos, -, -on(no interior, na intimidade, esotrico). Esotrico traduz, um ensino

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    que, em certas escolas da Grcia antiga, era destinado a discpulos par-ticularmente qualificados, completando e aprofundando a doutrina. Porextenso, diz-se de todo o ensinamento secreto e misterioso, ministradoa crculo restrito e fechado de ouvintes, discpulos ou iniciados. Exot-rico, pelo contrrio, expressa o ensinamento passvel de ser ministradoao grande pblico e no somente a um grupo selecto de alunos, disc-pulos especializados ou iluminados. Significa, assim, o que externo,aquilo que a pessoa comum conhece; que se torna pblico, exterior.

    Os saberes exotricos abrem ao conhecimento dos leigos e das pes-soas vulgares. O jornalismo tem esta marca de busca da acessibilidade,de divulgao, que constitui uma das suas mais acentuadas marcas epis-temolgicas. A forma de conhecer especfica do jornalismo distingue-se do da cincia exactamente por permitir a acessibilidade das novasclasses urbanas a saberes especializados. responsvel pela acessibi-lidade de temas polticos, econmicos, sociais e culturais, tornando-osdisponveis a quem no possui conhecimentos de natureza sistemticae formal sobre esses temas. Assim uma das questes que pode ser as-sociada destrina do que jornalismo a sua forma especfica deconhecer: para Meditsch, cit. in Moretzshon (2007); 124 o jornalismono revela mais nem menos do que a cincia, revela de um modo dife-rente, isto tem uma forma especfica de conhecer.

    Nesse sentido, vale a pena rever a distino entre conhecimento de,emprico, prprio do dia a dia e da vida quotidiana e o conhecimentosobre, cientfico, sistemtico e analtico, distino esta trabalhada porPark na sequncia de William James:

    Existem duas espcies de conhecimento ampla e per-feitamente distinguveis: podemos chamar-lhe conhecimentode trato e conhecimento acerca de (. . . ) Nos espritos quepossuem alguma capacidade de falar, por mnima que seja,existe, verdade, algum conhecimento acerca de tudo. Ascoisas, pelo menos, podem ser classificadas e referidas asocasies do seu aparecimento. Mas em geral, quanto me-nos analisemos uma coisa e quanto menor o nmero das re-

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    laes que percebemos menos sabermos acerca dessa coisae mais do tipo de trato a nossa familiaridade com ela. Asduas espcies de conhecimento, portanto, como o espritohumano praticamente as exerce, so termos relativos. Isto,a mesma ideia de uma coisa pode denominar-se conheci-mento acerca dessa coisa, em confronto com uma ideiamais simples, ou trato com ela em comparao com umaideia ainda mais articulada ou explcita (James em Oli-veira da Silva, 1988: 41).

    Assim, estas duas formas de conhecimento no seriam mutuamente ex-clusivas mas encontrar-se-iam numa espcie de contnuo, podendo anotcia aproximar-se mais de uma ou de outra, embora mais provavel-mente o faa da primeira.

    Para muitos o jornalismo seria precisamente a aproximao ao sensocomum e s suas potencialidades democrticas. Assim enquanto a ci-ncia pode ser traduzida em linguagem comum, o jornalismo conheci-mento imediatamente formatado como linguagem comum (Cfr. Serra,Antnio in Moretzshon 2007: 131). Enquanto um cientista mesmoaquele que trabalha com a realidade social como o socilogo umpensador que pode propor os problemas epistemolgicos do seu pr-prio trabalho, o jornalista um homem de aco que deve produzirum discurso com as limitaes do sistema produtivo no qual est inse-rido (Cfr. Alsina, 2006, p. 38).

    Apesar destes elementos, necessrio evitar a identificao do co-nhecimento do senso comum com o conhecimento individual da vidaquotidiana, elementar e positivo. Na verdade o que existe muitas vezes uma simulao dessa imediatidade, dessa instantaneidade porm, elano um ponto de partida como no conhecimento individual mas umponto de chegada (Genro, 58 in Moretzshon, 2007: 128). O jornalismono se trata de algo espontneo associado conscincia individual es relaes externas imediatas de cada pessoa mas um processo queimplica complexas mediaes objectivas (Gento cit. in Moretzshon,2007: 133).

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    interessante ainda recordar que os tericos da Escola de Chicagoapenas conheceram dois modelos de conhecimento: um fundado nosenso comum e outro no paradigma positivista da cincia. Nosso en-tendimento, possvel ir mais longe: a notcia pode oscilar entre umaconcepo limitada de senso comum e uma espcie de pedagogia cr-tica, na medida em que possa activar o pensamento sobre realidadeslongnquas, estranhas ou que no coincidem com o que temos por fami-liar e adquirido. Porm, essa oscilao no to simples nem linear. Ojornalismo pode ser exactamente o lugar que permite o sentido comume a atitude crtica, que implcita a algumas formas de comunicaopblica, encontrarem-se.

    1.5. O saber profissional dos enunciados jor-nalsticos: a objectividade e a identidadeprofissional

    Finalmente, o enunciado jornalstico produzido por indivduosdotados de um conjunto de saberes e competncias que se estruturaramem torno de uma determinada relao com a verdade, como um valorfundamental que estrutura a profisso. As profisses so desempenha-das por indivduos, dotados de saberes e competncias especializadas,princpios e valores partilhados que podemos classificar de elementosideolgicos que lhes procuram conferir legitimidade, e regras de fun-cionamento organizacional que regulamentam a insero no mercadode trabalho ou numa unidade empresarial. No caso concreto do jorna-lismo, houve alguma dificuldade em definir, de forma universal, os me-canismos de acesso profisso assim como os respectivos mecanismosde formao que permitam aceder a um corpo de saberes estabilizadomnimo prescrito para o exerccio da mesma (Cfr. Fidalgo, 2008: 11-11; Cfr. Deuze, 2005). Entre o fim do sculo XIX e princpio do sculoXX, verificou-se uma consolidao da cultura profissional, a qual tevecomo modelo, as profisses liberais tradicionais, tal como medicina e

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    direito e se traduziu na constituio de associaes profissionais comsistemas de controlo normativo sobre os seus membros, expresso atra-vs de cdigos deontolgicos. Tal movimento traduziu uma aspiraode legitimidade das novas profisses que pretendiam alcanar reconhe-cimento social. O aparecimento de um conjunto de valores e de deveresnas profisses relacionadas com a comunicao emergiu do ethos doprofissionalismo que caracteriza a ascenso da classe mdia na forma-o das sociedades modernas (White, s/d: 47). A promoo da legi-timidade das novas profisses baseou-se na possibilidade de um treinotcnico, na busca de um acesso crescente s especializaes cientficasmais recentes e na associao voluntria em defesa do aperfeioamentoda profisso por aqueles que a exerciam (White, s/d: 47).

    A legitimidade profissional necessria para a afirmao social epara a afirmao do monoplio do mercado profissional, exige doisrequisitos:

    1) que um conjunto de conhecimentos esotricos e su-ficientemente estveis relativamente tarefa profissionalseja ministrado por todos os profissionais; 2) que o p-blico aceite os profissionais como sendo os nicos capazesde fornecer os servios profissionais (Solosky, 1993: 93).

    No caso especfico do jornalismo, contrariamente ao direito e medi-cina, a classe no exerceu na maior parte dos casos o controlo da edu-cao profissional necessria para o exerccio da profisso, pelo queeste , grande parte exercido no mbito das organizaes empresari-ais. Tal pode ser o motivo que conduziu interiorizao rotineira eburocraticamente enquadrada de normas profissionais como sejam aobjectividade, traduzida em especial, num conjunto de procedimentos(Tuchman, 1978).

    O conjunto de procedimentos associados ideia de objectividade(audio das partes conflituais, uso de aspas, etc.) funciona em tornoda estandardizao do produto e da procura da auto-legitimao da pro-fisso (Tuchman, 1978; Schudson, 1978). Assim, possvel referir o

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    corpo de valores associados objectividade como uma ideologia, isto como um quadro integrado de categorias, conceitos e relevncias quevisam legitimar uma profisso. Sem prolongar a discusso demasiadovelha e qui exagerada sobre as implicaes ontolgicas e episte-molgicas da palavra objectividade, mais vale apontar para o modocomo esta se relaciona com a auto-legitimao profissional. Relacio-nada com o ambiente positivista em que floresceram fenmenos comoa racionalidade administrativa e a especializao cientfica, a objectivi-dade ficou famosa atravs da sua identificao com um ritual estrat-gico que torna possvel a adeso racionalidade das indstrias de pro-duo da notcia e necessidade de evitar processos de difamao ouacusaes de parcialidade. Como Tuchman explicou de forma exem-plar, os jornalistas procuraram explicar que usando determinados pro-cedimentos (audio das vrias partes, uso judicioso das aspas, a intro-duo elementos probatrios, a narrao dos acontecimentos segundouma forma cannica que estrutura a relevncia dos acontecimentos) re-solveriam o problema da adequao entre o enunciado e a realidade.

    A ideologia e o ethos jornalstico associado relao com a ver-dade (objectividade e outro conjunto de conceitos como o rigor, im-parcialidade, neutralidade, distanciamento profissional, etc.) podemser uma imagem construda com propsitos estratgicos (obter legi-timao profissional) mas tambm podem orientar normativamente osprocedimentos, articulando-se com a ideia de promessa atrs referida,que afinal, estaria no centro da prpria imagem e orientao cognitivaassociada ao profissionalismo jornalstico. Assim, influenciam a es-trutura da organizao noticiosa e a prtica quotidiana do jornalismo,tornando-o possvel devido sua influncia no inconsciente colectivoda comunidade jornalstica.

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    1.6. O problema da influncia: a importn-cia da abordagem sociocognitiva

    Tendo em conta a influncia social do jornalismo, teremos de ana-lisar alguns problemas relacionados com a chamada teoria dos efeitos,nome geralmente dado a uma considervel quantidade de pesquisa di-reccionada para a avaliao da influncia dos mass media nas atitudese nas opinies (Cfr. Hartman and Husband, 1973: 271).

    A primeira fase da teoria dos efeitos foi influenciada por uma vi-so dos actores sociais como uma unidade atomizada da sociedade demassa, cuja psicologia fundada no modelo estmulo-resposta, era en-tendida como sendo directamente influencivel pelo estmulo da men-sagem.

    A concepo atomstica do pblico nas comunicaes de massa (t-pica da teoria hipodrmica) correlacionou-se com a disciplina que lide-rava a primeira fase dos estudos comunicacionais, ou seja, a psicologiabehaviorista que privilegiava os comportamentos dos indivduos. Combase nesta hiptese, levaram-se a feito uma enorme quantidade de ex-perincias de laboratrio que se centravam em aquilatar o modo comoos media influenciavam as audincias. A postura dos investigadores,na maior parte dos casos, respondia a uma ampla base de experinciase de ideias vigentes que convergiam numa tese central sobre o extremopoder dos media.

    A propaganda alcanaria sempre os seus objectivos, de acordo comuma formulao terica que passou a ser designada, caricaturalmente,como bala mgica, isto uma bala de alta preciso que nunca falhariao seu alvo.

    Esta primeira tentativa de produzir uma observao cientfica so-bre os processos de comunicao evidencia uma preocupao unilateralcom os efeitos produzidos, resultante de um conjunto de preocupaescircunstanciais e prprias da poca com os efeitos da propaganda.

    Torna-se, de certa forma legtimo, intuir uma inquieta-o envolta por um clima de terror e de certo mistrio, mas

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    tambm de uma profunda ignorncia quanto aos meandrosmais secretos do funcionamento dos novos meios de comu-nicao e aos limites do seu poder (Esteves, 2002: 14).

    De uma forma geral, o modelo de efeitos totais tinha como implcitoum conjunto de premissas:

    a) Os processos comunicacionais so assimtricos com um emissoractivo que produz um estmulo e uma massa passiva de destina-trios que, uma vez atingida pelo estmulo, reage;

    b) A comunicao intencional e tem por objectivo produzir umefeito observvel e susceptvel de ser avaliado na medida em quegere um comportamento que pode de certa forma associar-se aesse objectivo;

    c) Os papis de comunicador e destinatrio surgem isolados, inde-pendentes das relaes situacionais e culturais em que os proces-sos comunicativos se realizam mas que o modelo no contem-pla: os efeitos dizem respeito a modelos atomizados, isolados(Schultz, 1982 citado por Wolf, 1987: 25).

    Numa segunda fase da pesquisa, emerge uma segunda abordagemconhecida como paradigma dos efeitos limitados que estabelece umaespcie de ortodoxia at aos anos sessenta. Segundo esta abordagem,os media no so geralmente uma causa suficiente para a produo deefeitos sobre a audincia, antes produzindo um nexo entre influnciasdspares. Considerando trs tipos de efeitos (reforo, modificao ouconverso das atitudes pr-existentes) o reforo das pr-disposies dosagentes sociais foi o efeito mais frequentemente verificado.

    Os efeitos dos media teriam assim de ser analisad