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8/22/2019 54245778 Antropologia Da Religiao http://slidepdf.com/reader/full/54245778-antropologia-da-religiao 1/25 Antropologia da Religião Apresentação Você foi convidado a cursar a disciplina Antropologia da Religião. Talvez você já tenha se perguntado ou perguntado a algum dos seus colegas por que estudar religião na Universidade? O que isso tem a ver com o curso? Ou o que será que a Universidade pretende com isso? Pois bem, você está numa Universidade, e ‘universidade’ tem a ver com ‘universalidade’. Logo, toda universidade tem o dever de estudar fenômenos relativos à humanidade. Ela não pode permanecer indiferente diante de nenhum fato, nem mesmo a religião, que é um fato que marca profundamente a existência humana desde seu início. Uma universidade que se recuse a estudar o fenômeno religioso estará deixando de cumprir seu papel. Sendo assim, a Universidade Católica de Brasília – UCB sente-se na obrigação de oferecer a seus estudantes de graduação, por meio da disciplina Antropologia da Religião, não só uma reflexão séria sobre o ser humano e a cultura, mas também uma análise antropológica do fenômeno religioso. Assim, na disciplina Antropologia da Religião, você vai ter a oportunidade de conhecer, de modo científico, o fenômeno religioso e os aspectos antropológicos dele decorrentes (FILORAMO & PRANDI, 2003). A UCB propõe esta disciplina aos seus estudantes porque tem a convicção de que a religião contribui para a libertação das pessoas. E isso não só na dimensão pessoal, psíquico-terapêutica, mas também na dimensão social (KUNG, 2003). Por essa razão, a UCB propõe o entendimento do fenômeno religioso por meio de uma abordagem do saber, que se caracteriza pelo diálogo, pela transdisciplinaridade e pela integração. Há outra questão importante. Você já deve ter ouvido a seguinte afirmação: “Futebol, religião e política não se discutem”. Como afirma Zilles (2004), todos que dizem isso pensam que sabem o que se quer dizer com a palavra ‘religião’ e com o termo ‘religioso’. Isso pode até ser verdade quando se trata de manifestações mais visíveis do fenômeno religioso, mas, quando a questão é definir a essência da religião, logo surgem dificuldades. Muitos de nós não sabemos

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Antropologia da Religião

Apresentação

Você foi convidado a cursar a disciplina Antropologia da Religião.Talvez você já tenha se perguntado ou perguntado a algum dos seuscolegas por que estudar religião na Universidade? O que isso tem a ver 

com o curso? Ou o que será que a Universidade pretende com isso?Pois bem, você está numa Universidade, e ‘universidade’ tem a ver com ‘universalidade’. Logo, toda universidade tem o dever de estudar fenômenos relativos à humanidade. Ela não pode permanecer indiferente diante de nenhum fato, nem mesmo a religião, que é umfato que marca profundamente a existência humana desde seu início.

Uma universidade que se recuse a estudar o fenômeno religioso estarádeixando de cumprir seu papel. Sendo assim, a Universidade Católicade Brasília – UCB sente-se na obrigação de oferecer a seus estudantesde graduação, por meio da disciplina Antropologia da Religião, não sóuma reflexão séria sobre o ser humano e a cultura, mas também umaanálise antropológica do fenômeno religioso. Assim, na disciplinaAntropologia da Religião, você vai ter a oportunidade de conhecer, demodo científico, o fenômeno religioso e os aspectos antropológicos

dele decorrentes (FILORAMO & PRANDI, 2003).A UCB propõe esta disciplina aos seus estudantes porque tem aconvicção de que a religião contribui para a libertação das pessoas. Eisso não só na dimensão pessoal, psíquico-terapêutica, mas também nadimensão social (KUNG, 2003). Por essa razão, a UCB propõe oentendimento do fenômeno religioso por meio de uma abordagem dosaber, que se caracteriza pelo diálogo, pela transdisciplinaridade e pela

integração.

Há outra questão importante. Você já deve ter ouvido a seguinteafirmação: “Futebol, religião e política não se discutem”. Como afirmaZilles (2004), todos que dizem isso pensam que sabem o que se quer dizer com a palavra ‘religião’ e com o termo ‘religioso’. Isso pode atéser verdade quando se trata de manifestações mais visíveis dofenômeno religioso, mas, quando a questão é definir a essência da

religião, logo surgem dificuldades. Muitos de nós não sabemos

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distinguir os limites entre o que é verdadeiramente expressão religiosae o que é puramente expressão cultural, folclórica ou social.

Se nos voltarmos com profundidade e honestidade para o fenômenoreligioso, vamos descobrir que lá se encontra a referência aosfundamentos do ser humano. Lá estão perguntas que nenhuma pessoa pode deixar de fazer e que se relacionam com a origem, o fim e ofuturo da humanidade. Você, pelo menos uma vez na vida, já deve ter se perguntado ou perguntado a alguém para que serve a vida e ou o quehá depois da morte. Certamente, percebendo a complexidade dascoisas, do mundo e do universo, você deve ter se perguntado tambémsobre a possibilidade ou não da existência de um ser superior que criou

e mantém toda essa complexidade.

Tudo isso mostra que o fenômeno religioso não é algo superficial, masum aspecto relacionado à própria constituição do ser humano. Oreligioso, mesmo quando a pessoa não quer, atinge sua existência. E aAntropologia nos mostra que o religioso atinge também a história dahumanidade e do mundo.

Você percebe, então, que para entender plenamente o ser humano é preciso estudar o fenômeno religioso e a religião? Tal estudo nos ajuda

a compreender como as pessoas orientam sua existência e sua presençano mundo. Veja o que nos ensinam dois estudiosos da religião: “Areligião dá forma e ensaia no ritual nossos mais importantes laços, unscom os outros e com a natureza, e provê a lógica tanto ao ‘porquê’desses laços serem importantes como ao ‘o quê’ significa estar comprometido com eles” (NEVILLE & WILDMAN apud  NEVILLE,2005, p. 37).

Há, ainda, outra questão que mostra a importância do estudo da religiãono atual momento. Cresce no mundo aquilo que se costuma chamar de‘fundamentalismo religioso’. O fundamentalismo religioso é aquelaatitude pela qual a pessoa “confere caráter absoluto ao seu ponto devista” (BOFF, 2002, p. 25). A pessoa fundamentalista, independente dareligião que professe, não aceita a opinião dos outros e acredita que sóela tem razão.

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Você, por acaso, já encontrou uma pessoa assim? Ora, a pessoafundamentalista não é capaz de descobrir a riqueza das outras religiõese a compreensão que elas têm do ser humano. Assim sendo, ofundamentalismo não contribui para a construção da paz, pois “quemse sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outraverdade e seu destino é a intolerância” (BOFF, 2002, p. 25). O

fundamentalismo, com frequência, leva ao acirramento entre asreligiões, gerando ódio e alimentando violência. Por esse motivo, ofenômeno religioso precisa ser analisado de maneira científica, a fim deque se possa contribuir para a superação desse risco.

A disciplina Antropologia da Religião procura responder a essasinquietações. Ela parte de uma reflexão sobre a humanidade e sobre acultura como realidades complexas, buscando compreender como o ser 

humano foi e continua sendo visto por ele mesmo, com base em umadas suas mais significativas e originais manifestações: a religião.

E então, vamos começar? Mas, antes, leia o texto “Antropologia da religião”, de Robson Stigar, para ter uma visão mais ampla dadisciplina Antropologia da Religião. Leia também o artigo de OtávioVelho “A Antropologia da Religião em tempos de globalização” paraentender a atualidade desta disciplina.

Aula 01 - O Estatuto Científico do Estudo da ReligiãoVocê sabia que religião foi e ainda é objeto de estudo de muitasciências? A Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Medicina, aPedagogia e tantas outras ciências estudam religião. No âmbito daFísica, cientistas como Albert Einstein escreveram sobre a relação entreciência e religião.

A religião não é mais objeto exclusivo da Teologia. Se você pesquisar na rede de computadores, por exemplo, encontrará uma infinidade deartigos científicos sobre o tema. Você terá indicações de diversosestudos sobre religião.

Como e quando começou o interesse dos cientistas pela religião será oassunto desta aula. Antes de começar o estudo, porém, leia o texto deAlbert Einstein “Ciência e Religião”.

1.1 Da História das Religiões à Ciência da Religião

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Tudo começou no século XVI com dois grandes estudiosos: BeneditoSpinoza e Giambattista Vico (CIPRIANI, 2007, p. 21-39). Esses pensadores defenderam uma posição crítica contra a religião. Você jáouviu falar deles? Spinoza, por exemplo, afirmou a superioridade doEstado sobre a Igreja. Vico, por sua vez, afirmou que a história domundo começa, em todos os povos, com as religiões. Vico falou de três

fases ou eras da história, sendo que a primeira fase corresponde à erados deuses. Em seguida, vieram outros estudiosos, como David Hume(1711-1776), conhecido por suas críticas impiedosas à religião.

A partir do século XIX, o estudo da religião foi influenciado pelo processo de ramificação das ciências naturais e humanas. Além disso, odeclínio da hegemonia cristã no Ocidente contribuiu significativamente para a revisão de muitos parâmetros. O cristianismo teve de se

confrontar com outras tradições religiosas que se tornavam cada vezmais conhecidas. Surgiu, a partir de então, a disciplina História dasReligiões nas universidades. A finalidade desta disciplina era fazer umestudo comparado das diferentes tradições religiosas, em vista de umareconstituição da evolução da trajetória religiosa da humanidade. A partir desse fato, dentro do contexto iluminista da época, foi seafirmando a necessidade de substituir a disciplina História dasReligiões por outra disciplina, chamada Ciência da Religião, cuja

finalidade era unificar as diversas contribuições provenientes dosdiferentes estudos feitos e da observação de muitos estudiosos.

 No final do século XIX, com a crise do Positivismo, os pressupostos daCiência da Religião começaram a ser seriamente questionados. Massomente no início do século XX aconteceu uma mudança substancial: passou-se, aos poucos, da pretensão de querer explicar a religião para o princípio da compreensão. A consequência disso foi que a religião

 passou a ser vista a partir de uma estrutura própria e de uma verdadeque ia sendo aos poucos desvelada, de acordo com o desenrolar das pesquisas.

 No momento atual, busca-se a superação da contraposição entre ométodo da explicação e aquele da compreensão. Os dois modeloscontraditórios vão sendo hoje substituídos pelo modelo de integração.Segundo esse modelo, procura-se valorizar, por um lado, a necessidade

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de um pluralismo metodológico e, por outro, os aspectos subjetivosdecisivos no resultado de pesquisas.

1.2 O Objetivo do Estudo da Religião

Você certamente cursa várias disciplinas na Universidade e já deve ter  percebido que todas elas têm definido o seu  próprio objeto de estudo.

 No caso da disciplina Antropologia da Religião, o objeto de estudo seráa religião, ou melhor, o fenômeno religioso, e terá como objetivo, a partir do estudo do fenômeno religioso, favorecer o conhecimentomútuo, fomentar o diálogo respeitoso e contribuir para a construção da paz entre as pessoas e as religiões. Além de estudar o fenômenoreligioso, a disciplina pretende também perceber a relação que existeentre os diversos fenômenos religiosos, a cultura e a história dasociedade. Para chegar a isso, é indispensável conhecer a lógica e a

estrutura do fenômeno religioso e, mais particularmente, da religiãocomo sistema.

 Nesse momento, surge então uma pergunta muito importante: será possível estudar uma disciplina sem gostar dela? Sem cultivar pelomenos um pouco de simpatia pelo objeto de estudo? Filoramo e Prandi(2003, p. 21) recordam que no “estudo de qualquer realidade humana, a‘simpatia’ pelo objeto de estudo é uma condição psicológica quefacilita sua inteligibilidade e sua interpretação”. Portanto, somente asimpatia nos possibilita uma convergência para o diálogo e oentendimento mútuo.

Desse modo, o convidamos, agora, a ter simpatia pela disciplinaAntropologia da Religião. O estudo dessa disciplina vai ser muitointeressante, pois você vai agregar novos conhecimentos e saberes atantos outros que você já possui.

1.3 Ausência do Termo ‘Religião’ nas Culturas Religiosas

Você sabia que a primeira grande discussão sobre o termo ‘religião’aconteceu no final do século XVIII com o filósofo alemãoSchleiermacher? Ele tratou do assunto nos seus célebres discursosSobre a Religião. O filósofo manifestava uma certa insatisfação com atendência da maioria dos estudiosos do fenômeno religioso, que

identificavam o termo ‘religião’ apenas com o cristianismo.

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Convidava-os, então, a ampliar o conceito, vendo o cristianismo comouma entre tantas religiões existentes no planeta (FILORAMO &PRANDI, 2003, p. 253-54).

A mais simples e, ao mesmo tempo, mais interessante definição dereligião foi dada por Tylor: religião é “a crença em seres espirituais”(apud MARCONI & PRESOTTO, 2006, p. 151). Há, porém, uma coisamuito curiosa. Será que você já sabe o que é? É que o termo ‘religião’(do latim, religio)é totalmente estranho à quase totalidade das culturasreligiosas. Elas não usam tal expressão para se autodefinirem. A palavra ‘religião’, por exemplo, não aparece na Bíblia judaica e cristã. Nas demais religiões, existem outros conceitos para indicar aautocompreensão que elas têm de si mesmas.

Para facilitar a compreensão e o bom aproveitamento dessa disciplina,é muito importante entender o conceito de ‘religião’. Então, vamos prosseguir?

1.4 O Significado Cristão de Religião

A palavra ‘religião’ vem, pois, do latim, que era a língua falada noImpério Romano. Antes da chegada do cristianismo, a palavra religio(religião) estava associada aos comportamentos que expressavam

escrúpulo, consciência, exatidão e lealdade, indicando um estilo decomportamento marcado pela rigidez e pela precisão. Não tinha, portanto, a conotação que passou a ter mais tarde.

 No século V d.C., o escritor latino Macróbio afirmou que o termo‘religião’ deriva do verbo latino relinquere, isto é, deixar, abandonar.Religião seria, então, o ato de abandonar-se nas mãos de Deus. Masessa explicação não teve muita repercussão. Preferiu-se continuar com

a definição proposta por Cícero, por volta do ano 45 a.C., em sua obra De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses). Para esse pensador,o termo ‘religião’ vem do verbo latino relegere e significa umaobservância escrupulosa do rito, acompanhada de uma precisãorepetitiva de atos devocionais dirigidos à divindade. Afirmou Cícero:“os que consideravam com cuidado e, por assim dizer, reliam tudo oque se referia ao culto dos deuses eram chamados de religiosos, de

relegere” (apud FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 255-56).

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Entre os séculos III e IV d.C., o pensador africano Lactâncio rejeitou aleitura ciceroniana, afirmando que o termo religio vem do verbo latinoreligare. Nesse caso, a religião seria um vínculo que nos une a Deus.Lactâncio afirmava o caráter de dependência gerado pela religião: acriatura depende do seu Criador.

A questão foi retomada, mais tarde, por outro pensador africano,Agostinho, especialmente no  De civitate Dei ( A Cidade de Deus) e no De vera religione ( A verdadeira religião). Agostinho buscava umsignificado intermediário: do termo relegere para a expressão religere,isto é, ‘reeleger’, entendendo a religião como movimento humano deretorno a Deus. A partir de Agostinho, a religião passou a ser definidacomo ligação feita de submissão e de amor entre a pessoa humana eDeus.

Mais tarde, durante a Idade Média, Tomás de Aquino, na suamonumental obra Suma Teológica, unificou os diversos conceitos,afirmando que tanto faz que religio venha de relegere como dereligere. O importante, na opinião dele, é entender que ela implica umarelação com Deus. Tal concepção passou de forma definitiva para acultura cristã.

Para Saber MaisAntes de prosseguir, você precisa aprofundar o conceito de ‘religião’.Para tanto, estude o texto “Religião, diversidade e valores culturais: conceitos teóricos e a educação para a cidadania”, de autoria de ElianeMoura da Silva.

1.5 Os Conceitos Substantivado e Funcional de Religião

Você já compreendeu o significado etimológico da palavra ‘religião’?Viu quantas definições foram dadas? Isso tudo mostra que a religião precisa ser bem compreendida!

O conceito de ‘religião’ de Tomás de Aquino só sofreu algumaalteração quando se iniciaram as reflexões sobre a visão de mundo, provocadas pelas descobertas científicas que se seguiram à viradacopernicana. Nesse período, o debate deslocou-se da questão filológica

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 para a dimensão  funcional  da religião, isto é, do  substantivo para oadjetivo: para que serve a religião?

Recuperou-se, assim, um pensamento do poeta latino Lucrécio (séculoI a.C.), o qual afirmava que se as pessoas encontrassem uma saídasegura para seus problemas e tribulações, elas certamente esqueceriame até se oporiam à religião.

A) A Crítica Iluminista

A crítica iluminista radicalizou esse debate, contrapondo-se comnitidez à concepção das igrejas cristãs da época. E, se você tiver acuriosidade de pesquisar, vai encontrar umas ideias muito interessantes.

Voltaire, por exemplo, no seu  Dicionário filosófico, dizia, entre outras

coisas, que a melhor religião é aquela mais simples, com pouquíssimosdogmas, que ajude a pessoas a serem mais justas, que não as obrigue acrer em absurdos e em coisas contraditórias e impossíveis; que ensineapenas a adoração a Deus, bem como a justiça, a tolerância e ahumanidade. Voltaire resumia na sua definição de religião os doiselementos que na época estavam em discussão: o substantivo (adoraçãoa Deus) e o funcional (exercício da justiça e humanização das pessoas).

 No período do pós-iluminismo e das grandes revoluções, a críticacontra a religião se intensificou, retomando a afirmação de Lucrécio.

Você está curioso para saber mais?

Então veja só alguns detalhes (o restante você vai encontrar nos textosindicados; vale a pena pesquisar!):

Os críticos, entre outras coisas, questionavam as religiões sobre suaindiferença diante da situação das classes mais pobres, particularmentedo proletariado. Feuerbach, por exemplo, dizia que o cristianismo tinhase reduzido a uma ideia, e que Deus seria apenas uma projeção do ser humano. Karl Marx via a religião como o suspiro da criatura oprimida,mas acreditava que ela tinha se tornado o ópio do povo. Para Marx, areligião anestesiava as pessoas, tirando-lhes a capacidade de resistir ede lutar. Weber mostrou a relação existente entre determinadas formas

de economia e certos conteúdos de fé religiosa. Freud chegou a falar de

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uma semelhança entre neurose e devoções religiosas, fazendo acreditar que existia uma relação entre a religião e o estado patológico dealgumas pessoas.

B) Início de um Caminho Bipolar 

 No final do século XIX e início do século XX os diferentes conceitos

de ‘religião’ foram se aglutinando em torno de uma bipolaridade:

• uma do tipo  substantivada, isto é, teológica, filosófica, tentandodizer o que é religião com referência a entidades transcendentes;

• outra do tipo  funcional , que procurava discutir a finalidade dareligião – prevalece a ideia de que a religião é uma concepçãohumana que desenvolve um papel específico, semnecessariamente se referir a uma entidade meta-histórica.

De acordo com Cipriani (2007, p. 8), a definição substantivada dereligião refere-se “a elementos justamente substantivos, como o culto,o sobrenatural, o invisível, o rito”. Já a definição funcional salienta “aconotação funcional, o papel da religião na sociedade”.

A partir da segunda metade do século XX, alguns autores começaram a juntar os dois conceitos. Passaram a sustentar, na definição

substantivada, um aspecto também funcional da religião. Ao dizer quea religião é o fundamento dos laços sociais, esses autores incluíramtambém nessa definição o aspecto funcional (CIPRIANI, 2007).

Mas qual é a importância do estudo do conceito funcional de religião?É que mesmo reconhecendo que a experiência religiosa é um fenômenoantropológico universal, os estudiosos concentram suas pesquisas emtorno da influência ou ingerência da religião na construção social da

realidade e na concepção de mundo.Analisando a capacidade que as experiências religiosas têm de reduzir a incerteza, de determinar o que parece indeterminado, de representar oque não pode ser representado, os teóricos buscam perceber de modocientífico a forma como a religião interfere na formação da complexaestratificação e diferenciação que vigoram nas sociedades (CIPRIANI,2007).

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C) A Religião como Empreendimento Humano

Os estudiosos passaram, então, a afirmar que a religião é “umempreendimento humano”, ou seja, “a temerária tentativa de conceber o universo como algo humanamente significativo” (FILORAMO &PRANDI, 2003, p. 266). Eles insistiam em afirmar que a perspectivafuncional era a única forma de compreender cientificamente a religião:

uma obra humana por meio da qual é construído um cosmo sagrado.

Para os teóricos funcionalistas, a religião refere-se ao que chamam deultimate concern, isto é, preocupação última. O termo ‘último’,segundo esses estudiosos, não se refere a algo metafísico outranscendente e nem pretende negá-lo. O cientista da religião não precisa afirmar ou negar essas realidades. Apenas insistem em dizer, na perspectiva funcional, que a expressão ‘última’ refere-se a uma preocupação que, num determinado contexto histórico, social ecultural, é a coisa mais importante para uma determinada pessoanaquele momento (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 267-268).

E você sabe que, sob certos aspectos, eles têm razão? Se você observar  bem, vai ver que, ainda hoje, a técnica e a ciência não conseguirameliminar certos problemas da humanidade, como o sofrimento, o mal, ahostilidade, as injustiças. A religião, então, teria o papel de buscar umasolução definitiva para tais problemas. Esquecer esse aspecto é cair naabstração.

Se o estudo científico da religião esquece o papel de legitimação socialque ela sempre exerceu, esvazia-a de seu real e verdadeiro conteúdo.Até hoje, a religião ainda é vista como um modo último de resposta ede adaptação; como uma tentativa de explicar o que não pode ser explicado, de recuperar o vigor quando todas as outras forças falham,de instaurar o equilíbrio e a serenidade diante de tantos males e detantos sofrimentos (FILORAMO & PRANDI, 2003, p. 267).

1.6 A Religião como Fato Antropológico Universal

 Na Antropologia da Religião, buscamos não apenas refletir sobre ofenômeno religioso, mas também visamos a uma compreensão do ser humano presente em tais manifestações culturais e religiosas. Por isso,

cabe ressaltar ainda dois aspectos.

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A) Ser Aberto à Transcendência

O primeiro refere-se a uma constatação fantástica, que não há comonegar. O ser humano é uma realidade complexa e tal complexidade seacentua ainda mais quando se passa do plano da ação ao plano do ser.

Uma manifestação tipicamente humana é a religião. Ela não está

 presente nos outros seres vivos. Os antropólogos nos informam que oser humano desenvolveu a atividade religiosa desde sua primeiraaparição na terra:

A religião é um aspecto universal da cultura e, juntamente com amagia, tem despertado o interesse de vários cientistas, desde o século passado. Todas as populações estudadas pelos antropólogosdemonstraram possuir um conjunto de crenças em poderes

sobrenaturais de alguma espécie (MARCONI & PRESOTTO, 2006, p.151).

Portanto, o ser humano é um ser religioso, isto é, aberto ao infinito,insaciável, que busca a ponto de ir até realidades fora de si mesmo. Por isso ele é um ser autotranscendente, capaz de superar a si mesmo.Diferente dos outros animais, apresenta uma realidade profunda esingular que não pode ser totalmente conhecida pelos outros, uma

interioridade que não pode ser violada. Portanto, é um ser que possuialgo a mais, além daquilo que aparece. Um ser que traz em si umelemento de espiritualidade: consciência de que nele habita um ‘Simais profundo’ ( Radhakrishnan), uma ‘luz’ que nenhuma potência pode extinguir.

A experiência nos faz perceber que, ainda hoje, os seres humanos, por meio dos cultos e rituais religiosos, tanto públicos como privados,

“tentam conquistar ou dominar, pela oração, oferenda, sacrifícios,cantos, danças etc., a área do seu universo não submetida à tecnologia”.A Arqueologia nos mostra que os “registros arqueológicos mais antigossobre religião datam do Paleolítico Superior, com o Homem de Neandertal, que enterrava seus mortos com oferendas, demonstrandouma crença em algo sobrenatural” (MARCONI & PRESOTTO, 2006, p. 151). Portanto, temos registros arqueológicos que nos asseguram quehá pelo menos 150 mil anos o ser humano já era religioso.

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B) Retomando o Ponto de Partida

A outra questão nos leva de volta ao início desta nossa conversa: areligião não pode ficar de fora da universidade. Não podemos, noâmbito acadêmico, deixar de lado um dado antropológico tãosignificativo. E, olhando o caso do Brasil, basta lembrar que, no Censode 2000, 92,74% da população brasileira se definiu adepta de uma

religião. Apenas 7,26% disse não ter religião. Mas isso não quer dizer necessariamente que a pessoa não acredite em algo transcendente,sobrenatural, espiritual.

Portanto, o fato incontestável de um tão grande número de pessoasreligiosas em nosso país merece um estudo sério. Trata-se de algo quemarca a quase totalidade da população e que, sem dúvida, interfere nodia a dia das pessoas e na vida social, política, econômica e cultural do

País. Por isso, pretendemos, por meio da Antropologia da Religião,contribuir para que você mergulhe nesse contexto tão marcado pelareligiosidade e seja capaz não só de dialogar com essa realidade plural,mas também de contribuir efetivamente para que essa cultura religiosaseja um verdadeiro espaço de construção de um mundo mais justo,mais humano e mais solidário.

Aula 02 - A Antropologia no Campo das Ciências Sociais

 Na aula anterior você pôde entender por que o estudo da Antropologiada Religião é importante no âmbito da Universidade. Agora, nesta aula,você vai aprender o que é Antropologia. Para tanto, você vai contar com a ajuda de alguns personagens. Trata-se de um grupo de alunos daUniversidade Católica de Brasília. Acompanhe-os nessa jornada!

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Universidade

Católica de Brasília, Campus I

2.1 A Antropologia no Quadro das Ciências

É início das aulas e Pedro desceu lepidamente do ônibus, caminhoualguns passos e se encontrou com seus amigos antes de chegar aos jardins verdes e ensolarados da universidade. Todos eram calouros,com exceção de Laura e João, que haviam iniciado o curso no anoanterior.

O grupo se mostrava ansioso por iniciar as aulas e conversava sobre as

disciplinas que iriam cursar. Pedro adiantou-se e disse:

- Tenho uma disciplina chamada ‘Antropologia da Religião’. Essetermo “antropologia” é novo; não sei bem do que se trata.

Maria, com os olhos atentos, mencionou que também cursaria adisciplina, mas na modalidade de educação a distância.

João, imediatamente, falou:- É uma disciplina da área das Ciências Sociais.

Laura, sorrindo, acrescentou:

- Você ajudou muito! A Sociologia, a História, a Psicologia Social, aEconomia e tantos outros cursos, além de serem da área, têm muitas desuas disciplinas no campo das Ciências Sociais. Mas, afinal, o que sãoas Ciências Sociais?

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Pedro olhava para um e para outro, querendo entender melhor essasnovas palavras, já que iria cursar “Antropologia da Religião”, que faz parte da “Antropologia” que, por sua vez, é da área das CiênciasSociais. Balançou a cabeça e disse, de supetão:

- E daí?

João, como sempre muito sistemático, falou pausadamente:

- Vamos por partes.

Enquanto caminhavam em direção à biblioteca, o jovem dizia:

- O conhecimento científico é um tipo de conhecimento que érelativamente recente na história da humanidade, não é mesmo?

Perguntou como se quisesse apenas criar uma sequência em suaargumentação. Antes não havia propriamente uma hierarquia entre asvárias formas de conhecimentos científicos de diferentes povos, comoos chineses, árabes, maias e outros. Contudo, com a expansão colonialeuropeia, a partir dos séculos XV e XVI, iniciou-se um processo decriação de uma ‘ciência central’, abrangente e excludente. A ideia deciência que temos hoje, em grande parte, é fruto desse modelo que

 partiu da Europa e depois se fez presente em outros continentes.2.2 Ciências Naturais e Ciências Sociais

Universidade Católica de Brasília,

Biblioteca

Quando chegaram à biblioteca, Pedro, ainda interessado no assunto, perguntou:

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- E a Antropologia nisso tudo?

Já dentro da biblioteca, dirigiam-se para uma sala de estudo em grupo.Maria, também caloura, que até o momento permanecera apenasouvindo, disse:

- O assunto está interessante! Que tal buscarmos informações em

alguns livros e em algum sítio acadêmico na Internet?

O grupo concordou, mas antes de se dispersarem para a pesquisa, Joãodisse:

- Acho uma boa ideia, mas seria melhor acordarmos primeiro o quequeremos pesquisar, qual nosso objetivo de pesquisa, para depois nosdividirmos. Então, retomando o que estava falando, acrescento que

nesse modelo de ciência desenvolvido na Europa há uma divisão entreaquilo que chamamos hoje de ‘ciências da natureza’ e ‘ciênciashumanas’. Recordo-me das anotações que fiz das ideias de um famosoantropólogo brasileiro chamado Roberto Damatta, não lembro bem dolivro, mas ainda deve estar aqui no meu pendrive.

Damatta menciona algo sobre essa distinção:

 Nossas reconstruções, assim, diferentemente daquelas realizadas peloscientistas naturais, são sempre parciais, dependendo de documentos,observações, sensibilidade e perspectivas. (...) O problema não é o desomente reproduzir e observar o fenômeno, mas substancialmente o decomo observá-lo. (DAMATTA, 1983, pp.21-22)

Enquanto caminhava em direção à entrada da sala de estudos em grupo,João vasculhava sua mochila procurando o  pendrive. Ao sentarem nas

cadeiras ao redor de uma mesa circular, Maria abriu sua mochila,retirou seu notebook e disse para João procurar o arquivo que continhaas ideias desse antropólogo Roberto Damatta. João prontamenteconectou o dispositivo e procurou o mencionado arquivo. Disse, logoem seguida:

- Está aqui! Vejam o esquema que montei das ideias da primeira partedo livro  Relativizando: uma introdução à antropologia social ,

intitulada “A Antropologia no quadro das Ciências”:

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Fonte: DAMATTA (1983, pp.17-22).

Ciências Naturais Ciências Sociais

Estudo de fenômenos e fatosque se repetem, têm umaconstância e, nesse sentido, podem ser consideradosfenômenos simples eisoláveis. São fenômenos queestão perto de nós, masradicalmente diferente de nós(o objeto de estudo écompletamente diferente do pesquisador).

Estudo de fenômenoscomplexos, situados em planos de causalidade edeterminação complicados.São fenômenos que estão bem perto de nós (muitas vezes édifícil, senão impossível,separar realmente o objeto deestudo do pesquisador).

Geralmente, os fenômenosobservados são reproduzidosem laboratórios ou similaresem vista de uma comprovaçãoempírica.

 Não é fácil isolar causas emotivações exclusivas.

Seus resultados são, na maior  parte, materializados em

tecnologias que trazem, comrelativa agilidade,consequências e impactos nasociedade.

Seus resultados, por não poderem ser reproduzidos ‘em

laboratório’, não trazem deimediato tanto impacto quantoos resultados das Ciências da Natureza, mas tendem a produzir modificações nocomportamento social. Emgeral, seus resultados práticossão vistos fora do campo

científico e tecnológico:filmes, teatro, novelasromances etc.

Pode-se presenciar, por exemplo, os modos dereprodução de formigas, poiso fenômeno pode ser criado

em laboratório.

 Não é possível reproduzir amatéria-prima das CiênciasSociais. Mas pode ser observada (por exemplo,

funerais, aniversários, rituais

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de iniciação, trocas comerciaisetc.).

Maria e Pedro coçaram a cabeça e olharam o esquema de um lado e deoutro. Pensavam apenas, sem falar, mas seus gestos corporaisexpressavam bem as dúvidas e inquietações. Pedro rompeu com osilêncio e perguntou:

- Quer dizer então que a Antropologia é uma disciplina das CiênciasSociais, e que esta área difere das Ciências Naturais, mas ambasformam o conhecimento científico?

Laura, como já havia cursado Antropologia da Religião e MetodologiaCientífica, e, portanto, estava por dentro da formação do conhecimentocientífico, sorriu e disse:

- É isso mesmo. O fato de haver essa divisão é mais didática, pois nofundo pergunto-me se há alguma ciência que não seja humana ousocial. Mesmo os cursos com disciplinas majoritariamente da área dasCiências da Natureza e Exatas também não são cursos que nascem edesenvolvem-se a partir do ser humano e de suas relações, da busca demelhor viver? Certamente que sim!

Maria olhou para Laura, e Pedro e fez uma observação:- Mas tem muita gente que pensa e age como se o seu curso fossemelhor e mais importante que os outros. Como se fosse mais científicoque outros. A ideia de que essas áreas são interdependentes e que naverdade formam um único conhecimento, o conhecimento científico, émuito importante, pois evita comparações ingênuas e preconceituosasque de nada ajudam na formação de um ambiente acadêmico sério e

aberto à interação entre diferentes áreas e, consequentemente, entrediferentes cursos.

Para Refletir...

O conhecimento humano expresso nas duas imagens abaixo deve ser hierarquizado frente ao critério do bem viver coletivo e individual? Por que em algumas relações sociais ainda se insiste em tais

hierarquizações?

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Laura retomou a palavra e disse:

- Lembram do que o João falou sobre a história do conhecimentocientífico? Que é relativamente novo? Então, não vamos nos esquecer de que existem outros importantes tipos de conhecimentos que tambémnos ajudam ou podem nos ajudar no bem viver, assim como a Ciência.

São eles: a Filosofia, a Teologia, o conhecimento mítico, oconhecimento artístico.

João ouvia a conversa e olhava concomitantemente a tela docomputador, que apresentava, além do esquema, outras anotações sobreo referido assunto, com base no antropólogo Damatta. Numa tentativade síntese mencionou:

- Concordo com você Laura. Nesse mesmo capítulo, o RobertoDamatta chama nossa atenção para o fato de que a distinção entre as‘Ciências Naturais’ e as ‘Ciências Sociais’ é que na primeira a naturezanão pode falar diretamente com o pesquisador, ao contrário da segunda:cada sociedade humana conhecida é um espelho em que nossa própriaexistência se reflete. Para ele, as ‘Ciências da Natureza’ são maissimples e se repetem, já as ‘Ciências Sociais’ são mais complexas ecomplicadas, por dependerem de vários aspectos. O fato de aAntropologia Social lidar com a dimensão cultural e simbólica nosinforma da complexidade de seu objeto de estudo, bem como daimportância de seus estudos, que podem nos ajudar a compreender e propor mudanças de comportamento social. Embora este últimoaspecto seja, para o autor, algo difícil, pois é mais fácil para os grupossociais mudarem ou trocarem de objetos e bens do que trocarem devalores simbólicos e políticos.

Pedro e Maria ouviam atentos, e Pedro disse:

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- De fato, é mais fácil trocar de aparelho celular do que, por exemplo,mudar de hábitos politicamente incorretos como beber uma cerveja edepois dirigir um carro. A ‘Lei seca’ serve de exemplo do que vocêestá falando. Os estudos da Antropologia, dos costumes de um povoou grupo, nos ajudam a melhor compreendê-lo e, se for o caso,modificar esses costumes, não é?

João confirmou, dizendo que estudar ‘objetos’ como os hábitos ecostumes de um grupo humano é extremamente desafiante, poisdepende de uma série de fatores sociais e individuais que se modificamconforme o contexto e o momento em que ocorrem as ações.

Laura pediu a palavra e afirmou:

- É isso mesmo João! Destaco ainda, conforme o antropólogo Damatta,

que os fatos de as ‘Ciências Sociais’ não produzirem resultados que possam ser generalizados, tal como as ‘Ciências Naturais’, e de nãoterem consequências práticas na mesma proporção não tornam um tipode conhecimento inferior ao outro. A Antropologia envolve fatoscomplexos que dependem de condições de percepção e interpretação do pesquisador. Os seres humanos não se separam por espécies, mas pelaorganização de suas experiências, por sua história e pelo modo como

classificam suas realidades internas e externas. Desse modo, quandovemos um costume diferente, acabamos reconhecendo-o pelo contrasteem relação ao nosso próprio costume.

Os fatos sociais são irreproduzíveis em condições controladas e, por isso, quase sempre fazem parte do passado. São eventos a rigor históricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nunca naforma de uma experiência. (DAMATTA, 1983, p. 21)

2.3 O que é Antropologia?Maria sorriu e exclamou:

- Puxa! Vejam como discutir academicamente um assunto nos obriga aver diversos ângulos de uma questão! Diante da simples pergunta doPedro – o que é Antropologia –, afirmamos isso, afirmamos aquilo.Tudo para preparar uma resposta. Mas até agora não dissemos, afinal, o

que é Antropologia!

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Pedro também sorriu e disse:

- Tô curioso e até entendo que, para uma melhor compreensão, énecessário, academicamente falando, ver as relações de algo com otodo e como essa parte se constitui nesse todo, senão teremos umavisão muito parcial e ingênua das coisas. Mas agora acho que já temosuma visão panorâmica para falar especificamente sobre o que éAntropologia. Não é mesmo?

João e Laura também sorriram, dizendo:

- É isso mesmo! Bem vindos à universidade! Bem vindos ao debateacadêmico!

- Ok, galera! Vamos fazer o seguinte – disse Pedro– a Maria tinha

 proposto que buscássemos informações aqui na biblioteca em algunslivros e em algum sítio acadêmico na Internet, e o João nos advertiuque antes seria melhor acordarmos o que queremos pesquisar, qualnosso objetivo de busca e depois nos dividirmos. Acho que já temosmais claro o que queremos. Então vamos lá?

Maria disse que procuraria sobre “o que é Antropologia” na Internet.Pedro disse que procuraria no ‘pai dos burros’ (que na verdade

significa o contrário do que aparentemente quer dizer, isto é, só quemquer aprender mesmo é que consulta e pesquisa no dicionário, logo aexpressão mais exata seria ‘pai dos sábios’).

Laura tomou a palavra e disse:

- Em que dicionário você irá procurar, Pedro?

Ele respondeu:- Em qualquer um que eu encontrar, como o Aurélio, o Houaiss...Qualquer um.

Mas Pedro percebeu que aquela pergunta tinha uma razão de ser. Quemexplicou foi o João:

- Na universidade, precisamos consultar, sempre que possível, a fonte bibliográfica apropriada, isto é, que tenha um caráter científico

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comprovado. Assim, no caso dos dicionários, embora esses dois quevocê citou sejam boas fontes, há dicionários especializados em algumasáreas, como dicionários de Filosofia, Botânica etc. E para o casoespecífico que estamos discutindo, há dicionários de Ciências Sociais.

Laura complementou:

- Isso vale não só para livros, revistas ou qualquer material impresso,mas também para consultas virtuais, para materiais encontrados naInternet. Cada área e curso, geralmente, conta com livros clássicos, periódicos e outros que têm o aval da comunidade científica. Omaterial publicado nessas fontes é previamente apreciado por umaequipe de especialistas na área. Nas revistas, também chamadas de‘periódicos’, a gente pode ver quem são esses especialistas no‘Conselho Editorial’. Geralmente são doutores ou reconhecidos pesquisadores. Um estudo acadêmico deve ter, direta ou indiretamente,referência a essas obras, pois são o que há de mais legitimado nomomento. Na Internet, alguns sítios na área de Ciências Sociais,especialmente na Antropologia, são o do DAN – UnB; o do Museu  Nacional – UFRJ; o da Associação Brasileia de Antropologia – ABA, ede forma geral, o Scielo. O Google é uma ferramenta de busca muitousada, mas para esses fins que mencionamos sugiro que busque o

Google acadêmico.Enquanto ouvia, Maria rapidamente acessou o verbete ‘antropologia’, einúmeros links abriram-se em sua tela. Ela disse:

- Vejam só! Como escolher entre essas dezenas de links? Que critérioutilizar? Vocês têm razão. Precisamos ter referências acadêmicas.

Pedro e Laura afastaram-se para procurar, na estante de dicionários, umdicionário especializado. Enquanto isso, Maria conversava com João:

- Veja só o que diz o dicionário Houaiss sobre ‘antropologia’: “ciênciado homem no sentido mais lato, que engloba origens, evolução,desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia,características raciais, costumes sociais, crenças etc.”

 Nesse momento, chegaram Pedro e Laura com o  Dicionário deCiências Sociais (1986). No verbete ‘antropologia’, encontraram sete

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 páginas sobre o termo e suas divisões, como ‘antropologia cultural’,‘antropologia política’ etc.

Após lerem todo o verbete sobre antropologia, destacaram as seguintes partes:

Inicialmente a antropologia era uma disciplina global, singularizada

 pela junção de traços biológicos e características históricas e sócio-culturais. Ou estava inteiramente voltada para o passado, como revela aimportância das técnicas arqueológicas; ou inteiramente dominada pelo biologismo, que tipificava o cientificismo reinante na época. Assim, asespeculações sobre a vida social e cultural do homem se subordinavamao plano biológico (ou plano natural), o que conduzia as reduçõesindiferenciadas de tudo o que era cultural a uma questão de biologia ouclima. A antropologia geral, deste modo, era uma ciência na medida emque especulava e afirmava em suas teorias uma origem e umaexplanação cabal e irredutível para os fenômenos de diferenciaçãoentre homens e sociedades, reduzindo tudo a um problema de meiogeográfico e de traços genéticos dados em grandes unidades biológicas,as raças (SILVA, 1986, p. 58).

João comentou as consequências desse trecho, com base nasinformações do dicionário. Destacou que essa perspectiva

antropológica, em alguns países como a França, a Inglaterra, osEstados Unidos , aAlemanha e a Itália, gerou interpretações racistas ouserviu também para criar interpretações que explicassem os tipos decomportamento criminoso ou desviante. Segundo essas teorias preconceituosas, poderíamos observar nas feições de um criminoso asua criminalidade.

Laura, tomando a palavra, disse:

- Em uma aula que tive de Direito, a professora mencionou algo nessesentido. Essas ideias serviram para algumas teorias médicas, como a deLombroso (1835-1909), que contribuiu para uma antropologia criminalque tinha como base a ideia de que existe uma relação direta entre oatavismo e o delinquente nato. O que distingue criminosos e não-criminosos seriam anomalias e estigmas de origem atávica oudegenerativa.

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Pedro, complementou dizendo:

- O conde Gobineau também dizia para D. Pedro II que um dos grandes problemas para o sucesso da sociedade brasileira era ser uma sociedademestiça. Igual perspectiva era defendida pelo cientista natural daUniversidade de Harvard, L. Agassiz, quando visitou o Brasil no séculoXIX.

Então Pedro leu no  Dicionário de Ciências Sociais: “Para osantropólogos racistas europeus e norte-americanos da época, a misturadas raças era um grave perigo a ser evitado, provocando demora naformação da raça pura,que deveria ser a verdadeira espinha dorsal danação” (SILVA, 1986).

Maria, espantada com essas ideias, disse que compreendia agora o

 porquê de um trecho mencionar que o desenvolvimento daAntropologia se deu sobretudo a partir do momento em que ela seseparou da Biologia ou de uma perspectiva predominantemente biológica. Com base no mesmo dicionário, destacou que essa separaçãooportunizou “a descoberta da cultura (e da sociedade) como fenômenoshumanos singulares, dotados de lógica e autonomia próprias, que poderiam variar independentemente do plano biológico ou geográfico”.

Dando continuidade a seu raciocínio, Maria chamou atenção para outrotrecho do dicionário:

“costumes antigos” e “exóticos”, como as formas de casamento, asnomenclaturas de parentesco, as leis civis e criminais, os sistemas deorganização do poder, as maneiras de enterrar os mortos ou o modo pelo qual a paternidade era assumida, esses estudiosos descobriram adinâmica de certas formas culturais, formas que, uma vezinstitucionalizadas como moralidade, regulavam e davam sentido a práticas sociais complexas. Não seriam, portanto, as práticasutilitariamente orientadas pelo estômago ou pela raça quedeterminavam a invenção de costumes "bizarros" e "primitivos", masseriam os conjuntos dos costumes como instituições e como fontes deoralidade e valor que orientariam as práticas humanas. Suas variaçõeseram problemas muito mais complexos do que poderiam imaginar os

filósofos sociais do período anterior, dominado pelo universalismo

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típico da Revolução Francesa. Esses estudos indicavam que, se oshomens, afinal, não eram mesmo iguais, eles também não eraminteiramente diferentes ou grosseiramente superiores e inferiores(SILVA, 1986, p. 59).

João olhou para o relógio e disse:

- O tempo passa rápido, não é mesmo? Especialmente quando estamosfazendo algo interessante. É fascinante conhecermos mais de nósmesmos e da sociedade. As Ciências Sociais nos ajudam nesse sentido.

Laura sorriu, dizendo:

- Engraçado é que, após lermos e comentarmos esses trechos doverbete de antropologia, começam a aparecer muitas questões.

Maria interrompeu a fala e disse, enfaticamente:

- É isso mesmo! Por exemplo: como iniciaram os estudos daAntropologia? Quais foram os primeiros e principais antropólogos? Emque basearam suas teses? Tudo isso começou a me causar curiosidade.Certamente devo procurar saber mais sobre alguns aspectos da históriada Antropologia a fim de compreender melhor essas novas informaçõesque obtivemos.

João, sorriu e completou:

- Não se preocupe que nas aulas de Antropologia da Religião vocês‘conversarão com’ Malinowski, Mauss, Franz Boas, Durkheim,Margaret Mead, Lévi-Strauss, Geertz e tantos outros.

Então Pedro animou-se:

- Vamos lá!

Caminharam em direção ao bloco da universidade em que se concentraa maior parte dos cursos da área de Ciências Sociais aplicadas.

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Universidade Católica de

Brasília, bloco M.

Enquanto caminhavam, conversavam e se deleitavam com oshorizontes vicejantes e reluzentes que se abriam nas passarelas a serem

construídas pelo saber e pelo sabor do conhecimento.