51079721 wladyslaw szpilman o pianista (1)

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WLADYSLAW SZPILMAN O PIANISTA A histria extraordinria da sobrevivncia de um homem em Varsvia, 1939-1945 Com excertos do Dirio de Wi1m Hosenfeld Prefcio de Andrzej Szpilman Eplogo de Wolf Biermann Traduo de Fernanda Pinto Rodrigues Ttulo original: The Pianist Autor: Wladyslaw Szpilman FICHA TCNICA Copyright Wladyslaw Szpilman 1998 Traduo (c) Editorial Presena, Lisboa, 2OO2 Traduo: Fernanda Pinto Rodrigues Capa: Arranjo Grfico de Editorial Presena Pr-impresso, impresso e acabamento: Multitipo - Artes Grficas, Lda. l.a edio, Lisboa, Novembro, 2OO2 2.a edio, Lisboa, Fevereiro, 2OO3 Depsito legal n. 191 827/O3 Reservados todos os direitos para Portugal EDITORIAL PRESENA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2745-578 BARCARENA Email: infoLeditpresenca.pt Internet: http://www.editpresenca.pt NDICE Prefcio de Andrzej Szpilman 1 A Hora das Crianas e dos Loucos 2 Guerra 3 Os Primeiros Alemes 4 O Meu Pai Curva-se aos Alemes 39 5 Vocs So judeus? 47 6 Danando na Rua Chiodna 56 7 Um Bonito Gesto da Sr.a K 68 8 Um Formigueiro Ameaado 77 9 O Umschlagplatz 87 1O Uma Oportunidade de Viver 96 11 "Atiradores, Erguei-vos!" 1O3 12 Majorek 112 13 Discusses e Zangas na Casa ao Lado 118 14 A Traio de Szaas 125 15 Num Edifcio em Chamas 133 16 Morte de uma Cidade 14O 17 Vida por lcool 146 18 Nocturno em D Menor 155 Post scriptum 165 Excertos do Dirio do Capito Wilm Hosenfeld 167 Eplogo: Uma Ponte entre Wladyslaw Szpilman e Wilm Hosenfeld,

por Wolf Biermann

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PREFCIO At h poucos anos o meu pai nunca falava das suas experincias do tempo de guerra. E, no entanto, elas tinham-me acompanhado desde a infncia. Atravs deste livro, que retirei sub-repticiamente de um canto das nossas estantes quando tinha doze anos, descobri por que motivo no tinha avs paternos e o meu pai nunca falava da sua famlia. O livro revelou-me uma parte da minha prpria identidade. Eu sabia que ele sabia que eu o lera, mas nunca tocmos no assunto e, talvez por isso, no me passava pela cabea que o livro pudesse ter qualquer importncia para outras pessoas - pormenor para o qual me foi chamada a ateno pelo meu amigo Wolf Biermann quando lhe contei a histria do meu pai. Vivo na Alemanha h muitos anos e estou sempre consciente da penosa ausncia de comunicao entre judeus e os alemes e polacos. Espero que este livro ajude a fechar algumas das feridas que ainda esto abertas. O meu pai, Wladystaw Szpilman, no escritor. , por profisso, aquilo a que na Polnia chamam "um homem no qual a msica vive": um pianista e compositor que sempre foi uma figura inspiradora e importante na vida cultural polaca. O meu pai completou os seus estudos de piano com Arthur Schnabel na Academia de Artes de Berlim, onde tambm estudou composio com Franz Schreker. Quando Hitler chegou ao poder em 1933, regressou a Varsvia e comeou a trabalhar como pianista na Rdio Polaca. Em 1939 j tinha composto partituras para diversos filmes, assim como muitos lieder e canes que nesse tempo foram muito populares. Antes da guerra tocou com 9 o internacionalmente famoso violinista Bronislav Gimpel, com Henryk Schoering e outros msicos famosos. Depois de 1945 voltou a trabalhar na Rdio Polaca e regressou aos concertos como solista e em conjuntos de cmara. Escreveu vrias obras sinfnicas e cerca de trs centenas de canes populares, muitas das quais foram grandes xitos. Tambm comps msica para crianas, alguma msica para peas radiofnicas e mais partituras para filmes. Foi director do departamento de msica da Rdio Polaca at 1963, ano em que desistiu desse cargo para dedicar mais tempo a digresses de concertos e ao Quinteto de Piano de Varsvia, fundado por ele e por Gimpel. Ao fim de mais de dois mil concertos e recitais pelo mundo fora, abandonou a vida de concertos pblicos em 1986 para se dedicar inteiramente composio. Constitui uma mgoa pessoal, para mim, o facto de as suas composies ainda serem quase desconhecidas no mundo ocidental. Penso que uma das razes desse desconhecimento a diviso da Europa em duas metades, tanto cultural como politicamente, depois da Segunda Guerra Mundial. No mundo inteiro, a msica ligeira, de entretenimento, chega a um nmero muito maior de pessoas do que a msica clssica "sria", e a Polnia no excepo. O seu povo cresceu com as canes de meu pai, pois ele moldou a paisagem da msica popular polaca ao longo de vrias dcadas mas a fronteira ocidental da Polnia constitua uma barreira para msica desse gnero.

O meu pai escreveu a primeira verso deste livro em 1945, destinando-o, suponho, mais a si prprio do que humanidade em geral. Permitiu-lhe aprofundar as suas devastadoras experincias do tempo de guerra e libertar o esprito e as emoes para continuar a sua vida. O livro nunca foi reeditado, apesar de, nos anos 6O, diversas editoras polacas terem tentado coloclo ao dispor de uma gerao mais nova. Os seus esforos foram sempre frustrados. Ningum deu quaisquer explicaes a esse respeito, mas a verdadeira explicao era evidente: as autoridades polticas tinham as suas razes. Mais de cinqenta anos volvidos sobre a primeira edio, o livro foi agora publicado: uma lio til, talvez, para muito boa gente da Polnia, uma lio que poder persuadi-la a reedit-lo no seu prprio pas. Andrzej Szpilman 1 A HORA DAS CRIANAS E DOS LOUCOS Iniciei a minha carreira do tempo de guerra como pianista no Caf Nowoczesna, situado na Rua Nowolipki, em pleno corao do ghetto de Varsvia. Quando os portes do ghetto se fecharam, em Novembro de 194O, h muito tempo que a minha famlia tinha vendido tudo o que pudera, at o bem mais precioso da nossa casa, o piano. Apesar de to insignificante, a vida forara-me a vencer a apatia e a procurar uma maneira de ganhar a subsistncia, e tinha-a encontrado, graas a Deus. O trabalho deixava-me pouco tempo para cismar e a conscincia de que toda a famlia dependia do que eu podia ganhar ajudou-me a ultrapassar gradualmente o meu anterior estado de impotncia e desespero. O meu dia de trabalho comeava tarde. Para chegar ao caf tinha de passar por um labirinto de becos estreitos que conduziam muito para o interior do ghetto, ou, para variar, se me apetecia observar as emocionantes actividades dos contrabandistas, podia contornar o muro. A tarde era melhor para o contrabando. A polcia, exausta por uma manh passada a encher os prprios bolsos, estava ento menos atenta, atarefada a contar os lucros. Vultos inquietos apareciam nas janelas e nas entradas dos prdios de habitao ao longo do muro, para logo desaparecerem e se esconderem de novo, aguardando impacientemente o barulho de uma carroa ou o estrpito de um elctrico que se aproximassem. De vez em quando, o barulho do outro lado do muro aumentava e, passagem de uma 1O 11 carroa puxada por um cavalo, ouvia-se o sinal combinado, um assobio, e sacos e embrulhos voavam por cima do muro. As pessoas que estavam de atalaia saam a correr das entradas dos prdios, apanhavam apressadamente a mercadoria, voltavam para dentro e um silncio enganador, repassado de expectativa, nervosismo e murmrios secretos, descia novamente sobre a rua, durante minutos a fio. Nos dias em que a polcia desempenhava a sua misso quotidiana com mais energia, ouvia-se o eco de tiros de mistura com o barulho de rodas de carroas e, em vez de sacos, voavam por cima do muro granadas de mo que explodiam ruidosamente e faziam cair estuque dos prdios. Os muros do ghetto no desciam completamente at estrada ao longo de toda a sua extenso. Com intervalos certos, havia aberturas compridas ao nvel do solo, atravs das quais a gua das reas arianas da estrada corria para valetas existentes ao lado dos passeios judeus. As crianas costumavam utilizar essas aberturas para o

contrabando. Viam-se pequenos vultos negros, de pernas escanzeladas, avanar depressa para elas, vindos de todas as direces, a olhar cautelosamente, com olhos assustados, para a esquerda e para a direita. Depois as pequenas mos escuras puxavam volumes de mercadorias pelas aberturas - volumes que eram muitas vezes maiores do que os prprios contrabandistas. Feito isso, as crianas iavam os volumes para cima dos ombros e, curvadas e cambaleantes sob o peso, com as veias das tmporas salientes como cordas azuis, devido ao esforo, e as bocas escancaradas e dolorosamente ofegantes na nsia de respirar, fugiam em todas as direces como ratinhos assustados. O seu trabalho era to arriscado, e acarretava o mesmo perigo para a vida e para o corpo, como o dos contrabandistas adultos. Um dia, ao caminhar ao lado do muro, observei uma operao infantil de contrabando que parecia ter sido concluda com xito. A criana judia, ainda do lado oposto do muro, faltava apenas seguir o caminho das suas mercadorias, passando pela abertura. O seu corpo magro e franzino j estava parcialmente vista quando desatou, de sbito, a gritar e eu ouvi o berro rouco de um alemo, do outro lado. Corri para ajudar a criana a passar o mais depressa possvel, mas, desafiando os nossos esforos, os seus quadris ficaram presos na valeta. Puxei-lhe os pequenos braos com toda a fora, enquanto os seus gritos se tornavam cada vez mais desesperados e, ao mesmo tempo, ouvia as pancadas violentas desferidas pelo polcia do outro lado do muro. Quando consegui, finalmente, faz-la passar, estava morta. A sua espinha tinha sido despedaada. Na realidade, o ghetto no dependia do contrabando para se alimentar. A maior parte dos sacos e embrulhos contrabandeados por cima do muro continha donativos de polacos para os judeus muito, muito pobres. O verdadeiro e regular comrcio contrabandista era dirigido por magnatas como Kon e Heller e tratava-se de uma operao mais fcil e inteiramente segura. Polcias subornados limitavam-se a fechar os olhos, em momentos combinados, e depois colunas inteiras de carroas transpunham o porto do ghetto, mesmo debaixo dos narizes deles, e, com o seu acordo tcito, transportavam alimentos, bebidas caras, as mais sumptuosas iguarias, tabaco vindo directamente da Grcia e artigos de luxo e cosmticos franceses. Eu podia ver de perto essas mercadorias contrabandeadas, diariamente, no Nowoczesna. O caf era freqentado por ricos, que l apareciam carregados de jias de ouro e refulgentes de diamantes. Ao som do estouro de rolhas de champanhe, mulheres fceis, berrantemente pintadas, ofereciam os seus servios a exploradores da guerra sentados a lautas mesas. Perdi, l, duas iluses: as minhas crenas na nossa solidariedade geral e no esprito musical dos judeus. No era permitida a presena de pedintes porta do Nowoczesna. Porteiros gordos repeliam-nos cacetada. Vinham com freqncia riquexs de muito longe, e os homens e as mulheres neles recostados usavam ls caras no Inverno e chapus de palha luxuosos e sedas francesas no Vero. Antes de chegarem zona protegida pelos cacetes dos porteiros, eles prprios enxotavam a turba com paus, de rostos desfigurados pela clera. No davam esmolas: na sua opinio, a caridade s servia para desmoralizar as pessoas. Se elas trabalhassem to esforadamente como eles, ento tambm ganhariam muito: estava ao alcance de todos faz-lo, e se algum no sabia como singrar na vida a culpa era inteiramente sua. 12 13 Uma vez sentados, finalmente, s pequenas mesas do espaoso caf, que visitavam apenas para tratar de negcios, comeavam logo a queixar-se dos tempos difceis

e da falta de solidariedade mostrada por judeus americanos. O que pensavam eles que estavam a fazer? As pessoas aqui estavam a morrer, mngua de uma cdea. Aconteciam as coisas mais pavorosas, mas a imprensa americana no dizia nada, assim como os banqueiros judeus do outro lado do mar nada faziam para levar a Amrica a declarar guerra Alemanha, embora pudessem ter aconselhado facilmente esse tipo de aco, se tivessem querido. No Nowoczesna ningum prestava a mnima ateno minha msica. Quanto mais alto eu tocava, mais alto falavam os presentes abancados a comer e a beber, e todos os dias eles e eu competamos para ver qual de ns conseguia abafar o outro. Em certa ocasio, um cliente mandou at um empregado dizer-me que parasse de tocar uns momentos, porque a msica o impossibilitava de examinar as moedas de ouro de vinte dlares que tinha acabado de adquirir a outro cliente. Depois foi batendo levemente com as moedas na superfcie de mrmore da mesa, pegando-lhes com as pontas dos dedos, levandoas orelha e escutando atentamente o seu tinido: essa era a nica msica que lhe despertava algum interesse. No toquei ali durante muito tempo. Tive a sorte de arranjar outro emprego num tipo de caf muito diferente, na Rua de Sienna, onde a intelectualidade judaica ia para me ouvir tocar. Foi l que constru a minha reputao artstica e arranjei amigos com os quais viria, mais tarde, a passar alguns bocados agradveis, mas, tambm, outros terrveis. Entre os freqentadores habituais do caf contava-se o pintor Roman Kramsztyk, artista extremamente dotado e amigo de Artur Rubinstein e Karol Szymanowski. Trabalhava nessa altura num magnfico ciclo de desenhos que representava a vida no interior dos muros do ghetto, mal sabendo que viria a ser assassinado e que a maioria dos desenhos se perderia. Outro freqentador do caf da Rua de Sienna era uma das mais excelentes pessoas que jamais conheci: Janusz Korczack. Tratava-se de um homem de letras que conhecia quase todos os principais artistas do movimento Jovem na Polnia. Falava deles de um modo fascinante, com um discurso ao mesmo tempo directo e apaixonan te. No era considerado um dos escritores de primeira categoria, talvez por as suas realizaes no campo da literatura terem um carcter muito especial: eram histrias para e sobre crianas, notveis pela sua grande compreenso da mentalidade infantil. No eram escritas por ambio artstica: vinham directamente do corao de um activista e pedagogo nato. O verdadeiro valor de Korczak no residia naquilo que escrevia, mas sim no facto de viver como escrevia. Anos antes, no incio da sua carreira, dedicara cada minuto do seu tempo livre e todos os zltis de que podia dispor causa das crianas, s quais continuaria a dedicar-se at morte. Fundava orfanatos, organizava toda a espcie de angariaes de fundos para crianas pobres e fazia conferncias na rdio, granjeando enorme popularidade (e no s entre crianas) como o "Velho Doutor". Quando os portes do ghetto se fecharam, foi para l, embora se pudesse ter salvo, e continuou a sua misso, muros adentro, como pai adoptivo de uma dzia de rfos) judeus, as mais pobres e mais abandonadas crianas do mundo. Quando falvamos com ele na Rua de Sienna no podamos imaginar quo admiravelmente, nem com que intensa paixo, a sua vida terminaria. Ao fim de quatro meses mudei-me para outro caf, o Sztuka (Arte), na Rua Leszno. Era o maior caf do ghetto e tinha aspiraes artsticas. As exibies musicais efectuavam-se na sua sala de concertos. Entre os cantores contava-se Maria Eisenstadt, que seria hoje um nome famoso para milhes de pessoas, graas sua voz maravilhosa, se os alemes a no tivessem posteriormente assassinado. Eu apresentava-me a tocar duetos de piano com Andrzej Goldfeder e obtive grande xito com a minha parfrase

da Valsa de Casanova de Ludomir Rzycki, com letra de Wladyslaw Szlengel. O poeta Szlengel aparecia todos os dias com Leonid Fokczarski, o cantor Andrzej Wiast, o comediante popular "Wacus, o Amante da Arte", e Pola Braunwna no espectculo "Jornal Vivo", uma crnica humorstica da vida do ghetto cheia de aluses mordazes e picantes aos alemes. Alm da sala de concertos havia um bar onde os que gostavam mais de comer e beber do que de artes podiam encontrar excelentes vinhos e cotelettes de volaille ou boeuf Stroganofj deliciosamente preparados. Tanto a sala de concertos como o bar estavam quase sempre cheios e, por isso, eu nessa altura ganhava 14 15 bem e podia prover s necessidades da nossa famlia de seis pessoas, embora com alguma dificuldade. Teria gostado realmente de tocar no Sztuka, visto encontrar l muitos amigos e poder conversar com eles entre as actuaes, se no fosse o pensamento do meu regresso a casa, noite. Essa perspectiva entristecia-me a tarde inteira. Isto passava-se no Inverno de 1941 a 1942, que foi muito duro no ghetto. Um mar de misria judaica cercava as pequenas ilhas de relativa prosperidade, representadas pela intelectualidade judaica e pela vida luxuosa dos especuladores. Os pobres j se encontravam gravemente debilitados pela fome e no possuam nada que os protegesse do frio, pois no tinham com que comprar combustvel. Estavam, alm disso, infestados de parasitas. Pululavam no ghetto que no se podia fazer nada. O vesturio das pessoas por quem passvamos na rua estava inado de piolhos, e o mesmo acontecia aos interiores de elctricos e lojas. Passeavam piolhos pelos passeios e pelas escadas acima e caam dos tectos de reparties pblicas que tinham de ser visitadas por tantos e to diversos assuntos. Os piolhos encontravam o caminho para as dobras dos nossos jornais e para os nossos trocos, e at os encontrvamos na cdea do po que acabvamos de comprar. E cada um desses repugnantes parasitas podia ser portador de tifo. Eclodiu uma epidemia no ghetto. Segundo as estatsticas, o nmero de mortes causado pela doena era de cinco mil por ms. O tema principal das conversas, tanto entre ricos como entre pobres, era o tifo. Os pobres perguntavam-se, simplesmente, quando seria a sua vez de morrerem, enquanto os ricos pensavam numa maneira de conseguirem a vacina do Dr. Weigel e protegerem-se. O Dr. Weigel, um bacteriologista eminente, tornou-se a figura mais popular depois de Hitler: o bem ao lado do mal, por assim dizer. As pessoas diziam que os alemes tinham prendido o doutor em Lemberg, mas graas a Deus no o haviam assassinado; na verdade, quase o reconheciam como um alemo honorrio. Dizia-se que lhe tinham oferecido um ptimo laboratrio e uma maravilhosa moradia, assim como um igualmente maravilhoso carro, depois 1, de o colocarem sob a maravilhosa superviso da Gestapo, para. terem a certeza de que no fugia em vez de produzir o maior 16 nmero possvel de vacinas para o infestado de piolhos exrcito alemo no leste. Claro que, rezava a histria, o Dr. Weigel recusara a moradia e o automvel. Desconheo quais eram realmente os factos a seu respeito. Sei apenas que estava vivo, graas a Deus, e que, depois de ter revelado aos alemes o segredo da sua vacina

e ter, portanto, deixado de lhes ser til, eles, por qualquer milagre, no o tinham remetido para a mais maravilhosa das cmaras de gs. De qualquer modo, graas sua inveno e venalidade alem, muitos judeus de Varsvia foram salvos de morrer de tifo, ainda que apenas para morrerem de outra morte qualquer, mais tarde. Pessoalmente, no me vacinei. No tinha dinheiro para mais do que uma nica dose da vacina, o suficiente para mim e no para o resto da famlia, e no quis fazer isso. No ghetto no havia possibilidade de enterrar as vtimas do tifo com rapidez suficiente para acompanhar a taxa de mortalidade. No entanto, os cadveres tambm no podiam ser deixados simplesmente dentro de casa. Por isso encontrou-se uma soluo intermdia: depois de despojados das suas roupas - por de mais valiosas para os vivos para serem deixadas com eles -, eram colocados nos passeios embrulhados em papel. Permaneciam a durante dias, at veculos camarrios virem recolh-los e lev-los para valas colectivas no cemitrio. Eram os cadveres das vtimas do tifo, assim como os dos que tinham morrido de fome, que tornavam to terrvel o meu regresso do caf a casa, noite. Eu era um dos ltimos a sair, juntamente com o gerente, depois de feitas as contas do dia e me ser pago o que me era devido. As ruas estavam escuras e quase desertas. Acendia a minha lanterna elctrica e mantinha-me atento presena de cadveres, para no cair em cima deles. O vento frio de janeiro soprava-me no rosto ou impelia-me para a frente, fazendo farfalhar o papel que embrulhava os mortos, levantando-o e expondo canelas nuas e mirradas, ventres afundados, rostos de dentes arreganhados e olhos fixos no vazio. No estava, ainda, to familiarizado com os mortos como viria a acontecer, mais tarde. Estugava o passo pelas ruas fora, com medo e nusea, para chegar a casa o mais depressa possvel. A minha me esperava-me com uma taa de lcool e uma pina. Velou o melhor 17 que pde pela sade da famlia durante essa perigosa epidemia, e no nos deixava passar do patamar para dentro de casa sem antes ter, conscienciosamente, retirado com a pina os piolhos dos nossos chapus, sobretudos e fatos, e de os haver afogado no lcool. Na Primavera, depois de ter estreitado a minha amizade com Roman Kramsztyk, era freqente no ir directamente do caf para;; minha casa, mas antes para a dele, na Rua Elektoralna, onde nos encontrvamos e conversvamos at altas horas da noite. Kramsztyk era um homem com muita sorte: tinha um quarto minsculo, com tecto esconso, s para si, no ltimo andar de um prdio; Reunira a todos os tesouros que tinham escapado pilhagem dos alemes: um div largo, coberto com um kilim, duas valiosas cadeiras antigas, uma encantadora cmoda Renascena, um tapete persa algumas armas antigas, vrios quadros e toda a espcie de pequenos objectos que coleccionara ao longo dos anos em diferentes lugares da Europa, cada um dos quais era uma pequena obra de arte e um regalo para os olhos. Era agradvel estar sentado naquele pequeno quarto, suave luz amarela de um candeeiro com um quebra-luz feito por Roman, a beber caf e a conversar animadamente. Antes de escurecer amos para a varanda tomar um pouco de ar, mais puro ali em cima do que nas ruas poeirentas e sufocantes. A hora do recolher aproximava-se. As pessoas tinham ido para casa e fechado as portas; o sol baixo da Primavera projectava um brilho rosado nos telhados de zinco, bandos de pombos brancos rasgavam o cu azul e o perfume dos lilases passava por cima dos muros, vindo do vizinho Ogrd Saski (Jardim Saxnico), e chegava at ns, aqui, no bairro dos malditos.

Era a hora das crianas e dos loucos. Roman e eu j estvamos a olhar pela Rua Elektoralna abaixo, procura da "senhora das plumas", como chamvamos nossa louca. Tinha um aspecto invulgar, com as faces pintadas de vermelho-vivo e as sobrancelhas, com um centmetro de espessura, desenhadas de tmpora a tmpora com um lpis de khol. Usava uma velha cortina de veludo verde, com franja, por cima do esfarrapado vestido preto, e do chapu de palha subia, erecta para o ar, uma enorme pluma de avestruz lils, que oscilava suavemente ao ritmo dos seus inseguros passos rpidos. Enquanto caminhava, ia detendo transeuntes com um sorriso corts e perguntando-lhes pelo marido na sua presena. "Desculpe... viu por acaso Izaak Szerman? Um homem alto e bem-parecido, com uma pequena barba grisalha?" Depois olhava com ateno para o rosto da pessoa que interpelara e, ao receber uma resposta negativa, exclamava, decepcionada, "No?!" O seu rosto desfigurava-se dolorosamente, um instante, mas um sorriso corts, ainda que artificial, logo o suavizava. "Oh, perdoe-me!", desculpava-se, e seguia o seu caminho, a abanar a cabea, meio pesarosa por ter feito perder tempo a algum, meio atnita por esse algum no ter conhecido o seu marido, Izaak, um homem to bem-parecido e encantador. Era mais ou menos a essa hora que o indivduo chamado Rubinstein costumava, tambm, descer a Rua Elektoralna, esfarrapado e desgrenhado, com as roupas a adejar em todas as direces. Brandia uma bengala, pulava, cabriolava, cantarolava e murmurava baixinho. Era muito popular no ghetto. Sabamos que se aproximava muito antes de o vermos aparecer, quando ouvamos o seu grito infalvel de "Mantm a pila ao alto, meu rapaz!" O seu objectivo era fortalecer o nimo das pessoas, fazendo-as rir. Os seus gracejos e os seus comentrios cmicos percorriam o ghetto inteiro, espalhando boa disposio. Uma das suas especialidades era aproximar-se dos guardas alemes, aos pulos e a fazer caretas, e chamar-lhes nomes: "Seus tratantes, seus bandidos, corja de ladres!", e toda a espcie de termos mais obscenos. Os alemes achavam isso hilariante e, com freqncia, atiravam-lhe cigarros e algumas moedas, como paga dos seus insultos; no fim de contas, no se podia levar a srio um doido daqueles. Eu no estava to certo disso como os alemes, e ainda hoje no sei se Rubinstein era, de facto, um dos muitos que tinham perdido o juzo por causa dos tormentos sofridos, ou se se armava simplesmente em pateta para escapar morte. Embora, quanto a isso, no tenha sido bem sucedido. Os loucos no ligavam hora do recolher; no significava nada para eles, nem para as crianas. Esses fantasmas de crianas saam das caves, dos becos e dos portais onde dormiam, espicaados pela esperana de ainda conseguirem despertar compaixo em coraes 18 19 humanos naquela derradeira hora do dia. Paravam junto de candeeiros de iluminao pblica, junto de paredes de prdios e na estrada, de cabeas levantadas e a lamuriar monotonamente que tinham fome. Os mais dados msica cantavam. Com vozes finas e fraLcas, cantavam a balada do jovem soldado ferido em combate; abandonado por todos no campo de batalha, grita, "Me!", ao morrer. Mas a me no se encontra ali, est muito longe, sem saber que o filho jaz moribundo, e s a terra embala o pobre homem a caminho do sono eterno com o sussurro das suas rvores e ervas: "Dorme bem, meu filho, dorme bem, meu querido!" Uma flor cada de uma rvore para o seu peito morto a sua nica medalha de honra.

Outras crianas tentavam apelar conscincia das pessoas, suplicando-lhes. "Temos tanta, tanta fome. H muito tempo que no comemos nada. D-nos um bocadinho de po, ou, se no tem po, uma batata ou uma cebola, s para nos mantermos vivos at de manh." Mas quase ningum tinha essa cebola, e se tinha no encontrava no peito a vontade necessria para a dar, pois a guerra transformara-lhe o corao em pedra. 2 GUERRA Em 31 de Agosto de 1939 toda a gente de Varsvia estava convencida, h algum tempo, de que a guerra com os Alemes era inevitvel. S os optimistas incorrigveis acalentavam ainda a iluso de que a atitude determinada da Polnia dissuadiria Hitler no ltimo momento. O optimismo de outras pessoas manifestava-se, porventura inconscientemente, como oportunismo: uma convico intrnseca, ao arrepio de toda a lgica, de que, embora a guerra fosse certa - isso estava decidido h muito tempo -, a sua ecloso de facto seria adiada, de modo que poderiam viver a vida em pleno durante mais algum tempo. No fim de contas, a vida era boa. Nessa noite foi imposto cidade um blackout rigoroso. As pessoas vedaram as salas que planejavam usar como abrigos antigs e experimentaram as respectivas mscaras. O gs era temido mais do que qualquer outra coisa. Entretanto, continuavam a tocar bandas atrs das montras enegrecidas de cafs e bares onde os clientes bebiam, danavam e excitavam os seus sentimentos patriticos entoando canes beligerantes. A necessidade de um blackout, a oportunidade de se passearem com uma mscara antigs suspensa do ombro, um regresso de txi a casa, noite, por ruas que subitamente pareciam diferentes, tudo isso acrescentava um certo picante vida, sobretudo porque ainda no existia nenhum perigo real. O ghetto ainda no tinha sido criado e eu vivia com os meus pais, as minhas irms e o meu irmo na Rua Sliska e trabalhava para a 2O 21 Rdio Polaca como pianista. Cheguei tarde a casa, nesse ltimo dia de Agosto, e como me sentia cansado fui logo deitar-me. A nossa casa ficava no terceiro andar, o que tinha as suas vantagens: nas noites de Vero a poeira e os cheiros da rua desciam e pelas nossas janelas abertas entrava ar refrescante, vindo de cima e transportando a humidade que subia do rio Vstula. Acordou-me o barulho de exploses. J havia claridade. Olhei para o relgio: seis horas da manh. As exploses no eram particularmente fortes e pareciam um bocado distantes - fora da cidade, de qualquer modo. Tratava-se obviamente de exerccios militares; nos ltimos dias habituramo-nos a eles. Passados alguns minutos, as exploses cessaram. Hesitei, sem saber se devia voltar a dormir, mas o dia j estava demasiado claro e cheio de sol e resolvi ler at ao pequeno-almoo. Deviam ser pelo menos oito horas quando a porta do meu quarto se abriu. A minha me apareceu entrada, vestida como se fosse sair a qualquer momento. Estava mais plida do que era costume e no conseguiu disfarar uma certa desaprovao, ao ver-me ainda na cama, a ler. Abriu a boca, mas quando tentou pronunciar a primeira palavra a voz traiu-a e teve de pigarrear. Depois disse, em tom nervoso e apressado: - Levanta-te! A guerra... a guerra comeou. Resolvi ir directamente para a estao de rdio, onde encontraria os meus amigos e tomaria conhecimento das ltimas notcias. Vesti-me, tomei o pequeno-almoo e

sa de casa. J se viam grandes cartazes brancos nas paredes de edifcios e em espaos para anncios: continham a mensagem do Presidente nao, anunciando que os Alemes tinham atacado. Algumas pessoas estavam paradas em pequenos grupos, a l-Ia, enquanto outras seguiam apressadas em vrias direces diferentes, para tratarem dos seus assuntos mais urgentes. A proprietria da loja da esquina, no longe do nosso prdio, colava tiras de papel branco nos vidros das montras, esperando que isso as mantivesse intactas no bombardeamento que viria. Entretanto, a sua filha decorava travessas de salada de ovos, presunto e rodelas de salsichas com pequenas bandeiras nacionais e fotografias de dignitrios polacos. Rapazes vendedores de jornais corriam ofegantes pelas ruas abaixo, apregoando edies especiais. No havia pnico. O estado de esprito oscilava entre a curiosidade - o que aconteceria a seguir? - e a surpresa: era assim que tudo comeava? Um cavalheiro grisalho, de rosto escanhoado, parecia preso ao cho ao lado de uma das colunas com o anncio presidencial. A sua agitao era visvel nas vivas manchas vermelhas que lhe cobriam o rosto e o pescoo, e empurrara o chapu para trs, coisa que com certeza no teria feito em circunstncias normais. Olhou para o comunicado, abanou incredulamente a cabea e continuou a ler, comprimindo as lunetas com mais firmeza contra o nariz. Leu algumas palavras em voz alta, indignado. - Eles atacaram-nos... sem avisar! Olhou volta, para ver a reaco das outras pessoas, levantou a mo, ajeitou de novo as lunetas e declarou: - Francamente, isto no maneira de proceder! - E, enquanto se afastava, depois de ter lido tudo de novo e ainda incapaz de controlar a agitao, abanava a cabea e murmurava: - No, no, isto no pode ser! Eu morava muito perto do centro de radiodifuso, mas no foi nada fcil l chegar. Levei o dobro do tempo do costume. Ia mais ou menos a meio do caminho quando o silvo de sereias saiu dos altofalantes instalados em candeeiros pblicos, nas janelas e por cima das entradas das lojas. Depois ouvi a voz do locutor da rdio. Isto um alerta para a cidade de Varsvia... Estejam atentos! Vm neste momento a caminho... - A seguir leu uma lista de algarismos e letras do alfabeto, em cdigo militar, que caiu nos ouvidos dos civis como uma misteriosa ameaa cabalstica. Significariam os algarismos o nmero de avies que a vinham? Seriam as letras um cdigo dos lugares onde estavam prestes a ser lanadas bombas? E seria o lugar onde naquele momento nos encontrvamos um deles? A rua ficou deserta num instante. Mulheres corriam em pnico para os abrigos. Os homens no queriam dar parte de fracos; ficaram s portas, amaldioando os Alemes, fazendo grande alarido da sua coragem e manifestando a sua ira contra o governo, por ter atamancado de tal maneira a mobilizao que somente um pequeno grupo de homens aptos para o servio militar fora convo 22 23 cado. Os restantes andavam de uma autoridade militar para outra, incapazes de serem incorporados no exrcito por amor ou dinheiro. No se ouvia nada na rua deserta e parada, alm das discusses entre os vigilantes dos ataques areos e pessoas que insistiam em sair das entradas dos prdios para irem tratar de qualquer assunto e tentavam seguir o seu caminho encostadas s paredes. Um momento depois ouviram-se mais exploses, mas ainda no muito prximas.

Cheguei ao centro de radiodifuso precisamente quando o alarme soava pela terceira vez. No entanto, ningum que estava dentro do edifcio tinha tempo para se dirigir para os abrigos antiareos sempre que o alarme soava. O plano de emisso estava um caos. Assim que se conseguia alinhavar pressa algo parecido com um programa provisrio, chegavam informaes importantes, quer da frente quer de natureza diplomtica. Havia ento que interromper tudo para transmitir esse tipo de notcias o mais depressa possvel, intercalado com marchas militares e hinos patriticos. Reinava tambm uma confuso sem remdio nos corredores do centro, onde prevalecia um estado de esprito de autoconfiana beligerante. Um dos locutores que tinha sido convocado veio despedir-se dos colegas e exibir o uniforme. Esperava, provavelmente, que todos o rodeassem para uma comovente e encorajadora cena de despedida, mas ficou decepcionado: ningum tinha tempo para lhe prestar muita ateno. Ficou por ali, interceptando os colegas que passavam apressados por ele e tentando pr no ar pelo menos uma parte do seu programa intitulado "O Adeus de um Civil", para poder um dia falar disso aos seus netos. Mal sabia que duas semanas depois continuariam a no ter tempo para ele, nem sequer para homenagear a sua memria com um funeral digno. Do lado de fora da porta do estdio, um velho pianista que trabalhava na estao de rdio pegou-me no brao. Era o caro Professor Ursztein. Enquanto outras pessoas medem as suas vidas por dias e horas, a dele tinha sido medida por dcadas de acompanhamentos ao piano. Quando o professor tentava lembrar-se de algum acontecimento passado, comeava assim: "Ora deixe-me ver... Nessa altura eu estava a acompanhar Fulano...", e quando situava determinado acompanhamento pela sua data, como um marco na beira da estrada, deixava a memria espraiar-se por outras, e invariavelmente menos importantes, reminiscncias. Neste dia estava atordoado e desorientado, do lado de fora do estdio. Como ia esta guerra ser travada sem acompanhamento ao piano? Como ia ser? Perplexo, comeou a lamentar-se: - No me dizem se vou trabalhar hoje... tarde estvamos ambos a trabalhar, cada um no seu piano. Continuavam a fazer-se transmisses de msica, embora no em conformidade com o horrio habitual. A meio do dia, alguns de ns sentiram fome e saram do centro para almoarem qualquer coisa num restaurante prximo. As ruas pareciam quase normais. Havia muito trnsito nas vias principais da cidade: elctricos, automveis e pees. As lojas estavam abertas, e como o presidente da Cmara apelara populao para no aambarcar alimentos, garantindo no haver necessidade disso, nem sequer havia bichas s suas portas. Vendedores de rua faziam bom negcio com um brinquedo de papel que representava um porco: dobrando e desdobrando o papel de determinada maneira, o boneco transformava-se na cara de Hitler. Arranjmos mesa no restaurante, ainda que com alguma dificuldade, e verificmos que diversos pratos habituais no constavam da ementa e outros eram bastante mais caros do que de costume. Os especuladores j estavam em campo. A conversa girou principalmente volta da declarao de guerra da Frana e da Inglaterra, esperada para muito breve. Muitos de ns, tirando alguns pessimistas incurveis, estavam convencidos de que, agora, esses pases entrariam na guerra a qualquer momento, e tambm havia os que pensavam que os Estados Unidos declarariam igualmente guerra Alemanha. Os argumentos apresentados baseavam-se nas experincias da Grande Guerra e havia um sentimento generalizado de que o nico resultado desse conflito fora mostrar-nos como conduzir melhor o de agora e faz-lo como devia ser, desta vez. A declarao de guerra da Frana e da Gr-Bretanha tornou-se realidade no dia 3 de Setembro. 24

25 Eu ainda me encontrava em casa embora j fossem onze horas. Deixvamos o rdio ligado todo o dia, para no perdermos uma palavra das importantssimas notcias. Os comunicados da frente no correspondiam ao que esperramos. A nossa cavalaria atacara a Prssia Oriental e a nossa aviao estava a bombardear objectivos militares alemes, mas entretanto a superior capacidade militar do inimigo no parava de forar o exrcito polaco a retirar deste ou daquele lugar. Como podia semelhante coisa ser possvel, se a nossa propaganda nos dissera que os avies e os tanques alemes eram feitos de carto e alimentados a combustvel sinttico que no prestava sequer para acender isqueiros? Vrios avies alemes tinham j sido abatidos sobre Varsvia e testemunhas oculares afirmavam que os cadveres dos aviadores inimigos vestiam e calavam roupa e sapatos de papel. Como podiam tropas to miseravelmente equipadas obrigar-nos a recuar? No fazia sentido. A minha me andava atarefada a arrumar a sala, o meu pai ensaiava violino e eu estava sentado numa poltrona, a ler, quando um programa qualquer, sem importncia, foi subitamente interrompido e uma voz informou que ia ser feita uma comunicao da mxima importncia. O meu pai e eu corremos para o aparelho de rdio, enquanto a minha me ia sala ao lado chamar as minhas duas irms e o meu irmo. Entretanto, o rdio transmitia marchas militares. O locutor repetiu a informao, seguiram-se mais marchas e novo aviso da comunicao iminente. Mal conseguamos suportar a tenso nervosa quando soou finalmente o hino nacional, seguido pelo da Gr-Bretanha. Depois ficmos a saber que j no enfrentvamos o nosso inimigo sozinhos; tnhamos um aliado poderoso e a guerra seria com certeza vencida, embora fossem de esperar altos e baixos e a nossa situao pudesse no ser muito boa, nos tempos mais prximos. difcil descrever a emoo que sentamos enquanto escutvamos a comunicao pela rdio. A minha me tinha lgrimas nos olhos, o meu pai soluava sem rebuo e o meu irmo Henryk aproveitou a oportunidade para me dar um soco e dizer, irritado: "A tens! Eu tinha-te dito, no tinha?" Regina no gostou de nos ver brigar num momento daqueles e interveio, dizendo calmamente: "Oh, acabem com isso! Todos sabamos que isto tinha de acontecer." Fez uma pausa e acrescentou: "E a conseqncia lgica dos tratados." Regina era advogada e uma autoridade em tais matrias, por isso no valia a pena discutir com ela. Entretanto, Halina, sentada ao lado do aparelho, tentava sintonizar Londres; queria uma confirmao em primeira mo da notcia. As minhas duas irms eram os membros da famlia dotados de mais bom senso. A quem saam? Se saam a algum, s podia ser me, mas at ela parecia uma pessoa emotiva comparada com Regina e Halina. Quatro horas depois, a Frana declarou guerra Alemanha. Nessa tarde, o meu pai insistiu em participar na manifestao porta do edifcio da Embaixada Britnica. A minha me no gostou da idia, mas ele estava decidido. Regressou num estado de grande agitao, amarrotado e despenteado do aperto da multido. Vira o nosso ministro dos Negcios Estrangeiros e os embaixadores britnico e francs, aplaudira e cantara juntamente com todos os outros, mas, de sbito, fora pedido aos manifestantes que dispersassem o mais depressa possvel, pois podia haver um ataque areo. As pessoas obedeceram com celeridade, e o meu pai podia ter sido asfixiado na barafunda da resultante. Fosse como fosse, estava muito satisfeito e bem disposto. Infelizmente, a nossa alegria foi de curta durao. Os comunicados da frente tornavam-se cada vez mais alarmantes. No dia 7 de Setembro, pouco antes de alvorecer,

bateram com fora porta da nossa casa. O nosso vizinho do apartamento do lado oposto, um mdico, estava parado nossa porta, de botas altas do exrcito, casaco de caa, bon desportivo e uma mochila. Apesar de estar com muita pressa, achava seu dever informar-nos de que os alemes avanavam para Varsvia, o governo se mudara para Lublin e todos os homens fisicamente aptos deviam deixar a cidade e dirigir-se para a outra margem do Vstula, onde seria construda uma nova linha de defesa. Ao princpio, nenhum de ns acreditou nele. Eu resolvi tentar obter confirmao de alguns dos outros vizinhos. Henryk ligou o rdio, mas respondeu-lhe o silncio: a estao sara do ar. 26 27 No encontrei muitos dos nossos vizinhos. Diversos apartamentos estavam fechados e, noutros, mulheres faziam as malas para os maridos ou irmos, chorosas e preparadas para o pior. No restavam dvidas, o mdico falara verdade. Tomei rapidamente uma deciso: ficaria. No fazia sentido nenhum andar s voltas fora da cidade; se tinha de morrer, preferia morrer em casa. E, no fim de contas, algum tinha de olhar pela minha me e pelas minhas irms, se o meu pai e Henryk partissem. No entanto, quando discutimos todos juntos o assunto, verifiquei que eles tambm tinham resolvido ficar. Mesmo assim, o sentido do dever da minha me levou-a a tentar persuadir-nos a sair da cidade. Olhava de um para outro de ns, com os olhos dilatados pelo receio, e ia apresentando novos argumentos a favor de deixarmos Varsvia. Quando, porm, insistimos em ficar, um alvio e uma satisfao instintivos espelharam-se nos seus bonitos olhos expressivos: acontecesse o que acontecesse, era melhor estarmos juntos. Esperei at s oito horas e depois sa e encontrei a cidade irreconhecvel. Como podia o seu aspecto ter mudado tanto, e to completamente, em apenas algumas horas? Todas as lojas estavam fechadas. No se viam elctricos nas ruas, apenas automveis cheios de gente, carregados e a grande velocidade, todos em direco s pontes sobre o Vstula. Um destacamento de soldados marchava pela Rua Marszalkowska abaixo. Os homens mostravam uma atitude desafiadora e cantavam, mas notava-se uma negligncia fora do vulgar no tocante a disciplina: cada um tinha o bon inclinado sua maneira, transportavam as espingardas como lhes apetecia e no marchavam com passo certo. Alguma coisa nos seus rostos indicava que partiam para lutar por sua prpria iniciativa, por assim dizer, e h muito tinham deixado de fazer parte de uma mquina to precisa e de funcionamento to perfeito como o exrcito. Do passeio, duas jovens mulheres atiraram-lhes steres, ao mesmo tempo que gritavam qualquer coisa, histrica e repetidamente. Ningum lhes prestava ateno. As pessoas passavam apressadas; era evidente que todas tencionavam atravessar o Vstula e estavam apenas ansiosas por resolver algumas ltimas coisas importantes antes de os alemes comearem a atacar. Todas essas pessoas pareciam tambm diferentes das da noite anterior. Varsvia era uma cidade to elegante! Que fora feito das damas e dos cavalheiros vestidos como se tivessem sado das pginas de uma revista de moda? As pessoas que se apressavam agora em todas as direces pareciam estar mascaradas de caadores e turistas. Usavam botas altas, botas de esquiar, calas de esquiar, cales e lenos na cabea, e transportavam trouxas, mochilas e bengalas. No se tinham dado ao trabalho de se arranjarem para parecerem civilizadas, pois tinham-se vestido descuidadamente e com visvel pressa.

As ruas, ainda ontem to limpas, estavam cheias de lixo e poeira. Havia outros soldados sentados ou deitados em ruas transversais, no passeio, na beira do passeio, no meio da rua; tinham vindo directamente da frente e os seus rostos, atitude e gestos denunciavam exausto e desnimo extremos. Na realidade, tentavam mesmo acentuar o seu desnimo, para que quem os visse soubesse que estavam ali e no na frente porque no servia de nada estar na frente. No valia a pena. Pequenos grupos de pessoas trocavam entre si as notcias das zonas de combate que tinham obtido dos soldados. Eram todas ms. Olhei instintivamente em redor, procura de altofalantes. T-los-iam levado? No, continuavam nos mesmos lugares, mas tinham emudecido. Apressei o passo para o centro de radiodifuso. Por que motivo no haveria comunicaes? Por que motivo ningum tentava dar nimo s pessoas e estancar aquele xodo macio? Mas o centro estava fechado. A sua direco abandonara a cidade e s restavam os tesoureiros, a pagar aos empregados da estao de rdio e aos artistas trs meses de ordenado em substituio do aviso prvio de despedimento. - O que vamos fazer agora? - perguntei, agarrando a mo de um administrador superior. Olhou inexpressivamente para mim, mas depois vi desdm nos seus olhos, desdm que deu lugar a clera quando soltou bruscamente a mo da minha. - Quem se importa com isso? - gritou, encolhendo os ombros e saindo em grandes passadas para a rua. Bateu furiosamente com a porta. 28 29 Era intolervel. Ningum podia persuadir toda aquela gente a no fugir. Os altofalantes colocados nos candeeiros pblicos estavam mudos e ningum limpava a sujidade das ruas. Sujidade ou pnico? Ou a vergonha de fugir por aquelas ruas fora em vez de combater? A dignidade que a cidade subitamente perdera no podia ser restabelecida. Isso era derrota. Muito acabrunhado, fui para casa. Ao anoitecer do dia seguinte, a primeira granada da artilharia alem atingiu o depsito de madeira que ficava defronte da nossa casa. As janelas da loja da esquina, to cuidadosamente protegidas com tiras de papel branco, foram as primeiras a ficar estilhaadas. 3 OS PRIMEIROS ALEMES Nos dias seguintes, felizmente, a situao melhorou muito. A cidade foi declarada fortaleza e foi-lhe dado um comandante, que fez um apelo aos seus habitantes para permanecerem onde se encontravam e se prepararem para defender Varsvia. Do outro lado da curva do rio tropas polacas estavam a organizar um contra-ataque e, entretanto, ns teramos de conter a fora principal do inimigo em Varsvia, at os nossos soldados virem render-nos. A situao a toda a volta de Varsvia tambm estava a melhorar e a artilharia alem deixara de bombardear a cidade. Em contrapartida, os ataques areos inimigos tinham-se intensificado. E agora no eram dados alertas desses ataques; tinham paralisado a cidade e os seus preparativos de defesa durante demasiado tempo. Qi i"e hora a hora, os vultos prateados dos bombardeiros apareciam muito acima de ns, no cu extraordinariamente azul daquele Outono, e vamos as nuvens de fumo branco das exploses das granadas disparadas contra eles pela nossa artilharia. Tnhamos, ento, de correr para os abrigos. O caso agora era muito srio: a cidade inteira estava a ser bombardeada. O cho e as paredes dos abrigos antiareos tremiam, e se uma bomba caa no edifcio debaixo

do qual estvamos escondidos, era morte certa: a bala naquele mortfero jogo de roleta russa. Ambulncias cruzavam constantemente a cidade, e quando se esgotavam eram complementadas com txis, e at com simples veculos de traco animal, para o transporte de mortos e feridos retirados das runas. 30 31 O moral da populao era elevado e o entusiasmo crescia de hora a hora. J no dependamos da sorte e da iniciativa individual, como em 7 de Setembro. Agora ramos um exrcito, com comandantes e munies; tnhamos um objectivo - a autodefesa - cujo xito ou fracasso dependiam de ns. Tnhamos apenas de usar toda a nossa fora. O general comandante pediu s pessoas que abrissem trincheiras volta da cidade, a fim de impedir o avano dos tanques alemes. Oferecemo-nos todos como voluntrios para essa tarefa; s a minha me ficava em casa de manh, para cuidar do apartamento e prepararnos uma refeio. Estvamos a cavar ao longo do lado de uma colina nos limites dos subrbios. Atrs de ns havia um simptico bairro residencial de moradias e nossa frente um jardim municipal cheio de rvores. Teria sido realmente um trabalho agradvel se no fossem as bombas lanadas contra ns. A pontaria no era muito precisa e elas caam a alguma distncia, mas no deixava de ser desconfortvel ouvi-las assobiar por cima de ns enquanto trabalhvamos l em baixo, na nossa trincheira, conscientes de que nada impediria que uma delas nos acertasse. No primeiro dia, um velho judeu de cafet e solidu cavava a meu lado. Fazia-o com fervor bblico, atirando-se p com todo o seu peso, como se ela fosse um inimigo mortal, espumando pela boca, com o rosto plido banhado de suor, o corpo inteiro a tremer e os msculos contrados. Rangia os dentes, enquanto trabalhava, um torvelinho negro de cafet e barba. O seu esforo obstinado, muito superior s suas capacidades normais, produzia resultados desoladoramente pequenos. A ponta da sua p mal conseguia penetrar na lama endurecida e os torres secos, amarelos, que lograva arrancar, escorregavam de novo para a trincheira, antes que o pobre velho pudesse, com um esforo sobre-humano, erguer a p e lan-los para fora da vala. Com intervalos de poucos momentos, encostava-se parede de terra, sacudido por ataques de tosse. Plido como um moribundo, sorvia a infuso de hortel-pimenta preparada para refrescar os trabalhadores por mulheres idosas, demasiado fracas para cavarem, mas empenhadas em serem de alguma utilidade. - Est a esforar-se demais - disse-lhe numa das suas paragens. - No devia, de facto, estar a cavar, visto no ser suficientemente forte para isso. - Com pena dele, tentei persuadi-lo a desistir; era claramente inapto para aquele trabalho. - No fim de contas, ningum lhe pede que faa isto. Olhou para mim, ainda a ofegar, e depois para o cu, um sereno azul-safira onde as pequenas nuvens brancas deixadas pelas granadas ainda pairavam, e uma expresso de xtase encheu-lhe os olhos, como se visse Jeov em toda a sua majestade, ali, no firmamento. - Tenho uma loja! - murmurou. Suspirou ainda mais profundamente, e saiu-lhe do peito um soluo. O desespero voltou-lhe ao rosto, quando agarrou de novo a p, fora de si com a violncia do esforo. Parei de cavar ao fim de dois dias. Tinha ouvido dizer que a estao de rdio estava de novo a transmitir, agora com um novo director, Edmund Rudnicki, que fora o chefe do departamento musical. Em vez de fugir como os outros, reunira os seus colegas dispersos e reabrira a estao. Cheguei concluso de que seria mais til l do que a cavar, e era verdade: toquei muito, como solista e acompanhante.

Entretanto, as condies na cidade comearam a deteriorar-se, dir-se-ia que na razo inversa da coragem e determinao crescentes dos seus habitantes. A artilharia alem recomeou a bombardear Varsvia, primeiro os subrbios e depois tambm o centro da cidade. Cada vez mais edifcios perdiam os vidros das suas janelas, havia buracos redondos nas paredes atingidas e esquinas de alvenaria arrancadas. noite, o reflexo dos incndios avermelhava o cu e o ar estava impregnado do cheiro a queimado. As provises escasseavam. Este era o nico ponto em que o herico prefeito da cidade, Starzynski, se enganara: no devia ter aconselhado as pessoas a no fazerem reservas de alimentos. A cidade tinha agora de se alimentar no s a si mesma, mas tambm aos soldados encurralados dentro dela e ao exrcito de Poznan, que viera do oeste para Varsvia a fim de reforar a defesa. Por volta de 2O de Setembro, a nossa famlia mudou-se toda da Rua Sliska para casa de uns amigos que tinham um apartamento 32 33 no primeiro andar de um prdio da Rua Pariska. Nenhum de ns gostava dos abrigos antiareos. Era quase impossvel respirar o ar abafado, na cave, e o tecto baixo dava a impresso de ir desabar a qualquer momento, sepultando tudo debaixo dele com as runas de um prdio de vrios andares por cima. Mas era difcil continuar no nosso terceiro andar. Ouvamos constantemente o silvo das granadas a passar pelas nossas janelas, que tinham perdido todos os vidros, e um dos projcteis poderia facilmente atingir o nosso prdio, na sua trajectria pelo ar. Decidimos que o primeiro andar seria melhor: as granadas atingiriam os andares mais altos, onde explodiriam, e ns no teramos de descer para a cave. J se encontravam vrias pessoas em casa dos nossos amigos, que estava apinhada, e por isso tivemos de dormir no cho. Entretanto, o cerco de Varsvia, o primeiro captulo da trgica histria da cidade, chegava ao fim. Tornava-se cada vez mais difcil para mim chegar ao centro de radiodifuso. Os cadveres de pessoas e cavalos mortos pelos estilhaos jaziam espalhados pelas ruas, zonas inteiras da cidade estavam em chamas e, agora que os servios camarrios de abastecimento de gua tinham sido danificados pela artilharia e pelas bombas, no era possvel tentar extinguir os incndios. Tocar no estdio tambm era perigoso. A artilharia alem estava a alvejar todos os lugares mais importantes da cidade, e, assim que um locutor comeava a anunciar um programa, as baterias alems abriam fogo contra o centro de radiodifuso. Durante esta penltima fase do cerco, o medo histrico de sabotagem que se apoderara da populao atingiu o ponto mximo. Qualquer pessoa podia ser acusada de espiar e abatida de um momento para o outro, antes de ter tempo de se explicar. Uma solteira idosa, professora de msica, vivia no quarto andar do prdio para onde nos mudramos, a fim de estarmos com os nossos amigos. Tinha a pouca sorte de ter o apelido de Hoffer e de ser corajosa. A sua coragem, alis, tambm podia ser descrita como excentricidade. No havia ataque areo ou disparos de artilharia capazes de induzi-la a descer para o abrigo em vez de fazer as suas duas horas dirias de prtica de piano, antes do almoo. Tinha alguns pssaros numa gaiola, na varanda, e alimentava-os trs vezes por dia com a mesma obstinada regularidade. Este modo de viver parecia claramente estranho na sitiada cidade de Varsvia. E extremamente suspeito s empregadas domsticas do prdio. Reuniam-se nas instalaes da porteira, para falarem de poltica. Depois de muitas idas e vindas, chegaram firme concluso de que uma professora com um apelido to inequivocamente alemo devia ser, ela prpria, alem e de que os seus ensaios de piano eram um cdigo secreto que utilizava para enviar sinais aos pilotos da Luftwaffe, dizendo-lhes

onde deviam lanar as suas bombas. Num abrir e fechar de olhos, as agitadas mulheres entraram em casa da excntrica senhora, amarraram-na e fecharam-na numa das caves, juntamente com os pssaros, como prova da sua sabotagem. Sem o pretenderem, salvaram-lhe a vida: poucas horas depois, uma granada atingiu a sua casa e destruiu-a completamente. Toquei pela ltima vez frente do microfone no dia 23 de Setembro. No fao a mais pequena idia de como cheguei ao centro de radiodifuso, nesse dia. Corri da entrada de um prdio para a entrada de outro, escondi-me e depois corri de novo para a rua, quando me pareceu que j no ouvia o silvo das granadas nas proximidades. Encontrei o prefeito Starzynski porta do centro. Estava despenteado e com a barba por fazer e tinha estampada no rosto uma expresso de mortal fadiga. Havia alguns dias que no dormia. Era o corao e a alma da defesa, o verdadeiro heri da cidade. Pesava-lhe nos ombros toda a responsabilidade pelo destino de Varsvia. Estava em todo o lado: percorria as trincheiras, tinha a seu cargo a construo de barricadas, a organizao de hospitais, a distribuio justa da pouca comida que existia, as defesas contra ataques areos e os servios de combate a incndios, e ainda arranjava tempo para se dirigir diariamente populao. Todos aguardavam ansiosamente os seus discursos, que lhes davam coragem: no havia motivo algum para desanimar enquanto o prefeito no tivesse dvidas. De qualquer modo, a situao no parecia demasiado m. Os franceses tinham atravessado a Linha Siegfried, Hamburgo fora violentamente bombardeada pela fora area britnica e o exrcito britnico podia, agora, desembarcar na Alemanha a qualquer momento. Ou, pelo menos, era isso que ns pensvamos. 34 35 Nesse ltimo dia na estao de rdio, ia fazer um recital de Chopin. Foi a ltima msica ao vivo transmitida de Varsvia. Explodiram granadas perto do centro de radiodifuso durante o tempo todo em que toquei e estavam a arder edifcios muito perto de ns. Quase no ouvia o som do meu piano no meio de tanto barulho. Depois do recital tive de esperar duas horas que o bombardeamento abrandasse o suficiente para poder ir para casa. Os meus pais, o meu irmo e as minhas irms tinham pensado que eu morrera e acolheram-me como se tivesse ressuscitado do tmulo. A nossa empregada era a nica pessoa convencida de que toda aquela ansiedade tinha sido desnecessria. "No fim de contas, ele tinha os documentos no bolso", lembrou. "Se tivesse sido morto, saberiam aonde traz-lo." No mesmo dia, s trs e um quarto da tarde, a Rdio Varsvia saiu do ar. Estava a ser transmitida uma gravao do Concerto para Piano em D Menor, de Rachmaninov, e, precisamente quando o belo e sereno segundo andamento chegava ao fim, uma bomba alem destruiu a central elctrica. Os altofalantes emudeceram em toda a cidade. Ao anoitecer, apesar de o fogo de artilharia ser de novo intenso, tentei trabalhar na composio do meu concertino para piano e orquestra. Continuei a trabalhar nele durante todo o ms de Setembro, embora com dificuldade crescente. Quando escureceu, nessa noite, espreitei pela janela. A rua, avermelhada pelo reflexo dos incndios, estava completamente deserta, e o nico som que se ouvia era o eco da exploso de granadas. esquerda, a Rua Marszaikowska estava em chamas, assim como a Rua Krlewska e o Largo Grzybowski, atrs de ns, e a Rua de Sienna, mesmo em frente. Grandes massas de fumo vermelho-sangue erguiam-se acima dos prdios. As ruas e os passeios estavam salpicados de panfletos alemes brancos, que

ningum apanhava por constar que estavam envenenados. Jaziam dois cadveres debaixo de um candeeiro, no cruzamento, um estendido de braos abertos e o outro encolhido, como se estivesse a dormir. porta do nosso prdio encontrava-se o cadver de uma mulher, com a cabea e um brao arrancados por uma exploso. A seu lado, estava cado um balde; ela tinha sado para ir buscar gua ao poo. O seu sangue corria para a valeta, num comprido regato escuro que depois mergulhava num esgoto coberto por uma grade. Um carro puxado por uma cavalo avanava com alguma dificuldade pela rua abaixo, vindo da Rua Wielka e indo na direco da Rua Zelazna. Era difcil perceber como ali chegara e por que motivo cavalo e o cocheiro pareciam to calmos, como se nada estivesse a passar-se sua volta. O homem parou o cavalo esquina da Rua Sosnowa, como se estivesse indeciso entre virar ali ou continuar em frente. Aps breve reflexo, optou por seguir em frente; deu um estalo com a lngua e o cavalo reatou o trote. Encontravam-se a cerca de dez passos da esquina quando se ouviu um silvo, um estrondo a rua ficou momentaneamente banhada de luz branca, como se o flash de uma mquina fotogrfica tivesse disparado. Fiquei ofuscado. Quando os meus olhos voltaram a habituar-se ao crepsculo, o carro desaparecera. Pedaos de madeira, restos de rodas e varais, bocados dos forros dos bancos e os corpos despedaados do cocheiro do cavalo espalhavam-se ao longo das paredes dos prdios. Se ele tivesse optado por descer a Rua Sosnowa... Chegaram os terrveis dias 25 e 26 de Setembro. O estrpito das exploses misturava-se com o troar constante dos canhes, atravessado pelo zumbido de avies em voo picado, como brocas elctricas a abrir buracos em ferro. O ar estava saturado de fumo, poeira de tijolos e estuque esboroados. Entrava por todos os lados, sufocando pessoas que se tinham fechado em caves ou nas suas casas, para estarem o mais afastadas possvel da rua. No sei como sobrevivi a esses dias. Um estilhao de granada matou uma pessoa que estava sentada a meu lado, no quarto dos nossos amigos. Passei duas noites e um dia com dez pessoas, de p, num lavabo minsculo. Algumas semanas depois, quando nos perguntmos como tal fora possvel e tentmos meter-nos l de novo, verificmos que s cabiam oito pessoas - a no ser, claro, que estivessem apavoradas com medo de morrerem. Varsvia rendeu-se na quarta-feira, 27 de Setembro. Passaram mais dois dias antes de me atrever a sair. Voltei para casa profundamente deprimido: a cidade j no existia; ou pelo menos assim pensei, ento, na minha inexperincia. Nowy Swiat era um beco estreito, que serpenteava entre montes de entulho. Em cada esquina era obrigado a fazer desvios volta de barricadas construdas com elctricos voltados e lajes de pavimen 36 37 tao arrancadas. Havia corpos corpos em decomposio amontoados nas ruas. As pessoas, famintas em conseqncia do cerco, atiravam-se s carcaas de cavalos espalhadas por ali. As runas de muitos edifcios ainda fumegavam. Encontrava-me na Aleje Jerozolimskie quando se aproximou uma motocicleta vinda da direco do Vstula. Montavam-na dois soldados com uniformes verdes que no conhecia e capacetes de ao. Tinham caras grandes, impassveis, e olhos azul-claros. Pararam junto ao passeio e chamaram aos berros um rapaz assustado. Ele aproximou-se. - Marschallstrasse! Marschallstrasse!

Repetiam a mesma palavra, que era o equivalente alemo Rua Marszaikowska. O rapaz ficou parado, confuso, de boca aberta e incapaz de proferir um som. Os soldados perderam a pacincia. -Ora, raios partam! - berrou o condutor, com um gesto furioso. Acelerou e a motocicleta afastou-se, ruidosamente. Eram os primeiros alemes que eu via. Poucos dias depois, apareceram nas paredes de Varsvia proclamaes bilinges, assinadas pelo comandante e prometendo populao condies de trabalho tranqilas e a ateno do Estado alemo. Havia um pargrafo especial dedicado aos judeus: eram-lhes garantidos todos os seus direitos, a inviolabilidade dos seus bens e que as suas vidas estariam em absoluta segurana. 4 O MEU PAI CURVA-SE AOS ALEMES Voltmos para a Rua Sliska. Encontrmos o nosso apartamento intacto, apesar de termos pensado que isso seria impossvel. Faltavam alguns vidros nas janelas, mais nada. As portas estavam fechadas chave, como as deixramos, e at os objectos mais insignificantes continuavam nos seus antigos lugares. Outras casas daquela zona tambm permaneciam intactas ou haviam sofrido apenas pequenos estragos. Nos dias seguintes, quando comemos a sair para sabermos o que acontecera aos nossos conhecidos, descobrimos que, apesar de muito danificada, na sua essncia a cidade continuava de p. As perdas no eram to pesadas como se poderia pensar, primeira vista, ao passar pelas grandes extenses de runas ainda fumegantes. Acontecia o mesmo em relao s pessoas. Inicialmente, falou-se de cem mil mortos, o que equivalia a quase dez por cento da populao da cidade e horrorizou toda a gente. Mais tarde, soubemos que tinham morrido cerca de vinte mil pessoas. Entre elas contavam-se amigos, que vramos vivos poucos dias antes e jaziam agora sob as runas ou despedaados por granadas. Duas colegas da minha irm Regina tinham morrido quando um prdio da Rua Koszykowa ruiu. Ao passarmos por l, tnhamos de tapar o nariz com um leno: o fedor nauseante de oito corpos em decomposio passava por recessos e fendas das janelas tapadas da cave e contaminava o ar. Uma granada matara um dos meus colegas na Rua Mazowiecka. S depois de a sua cabea ter sido encon 38 39 trada foi possvel determinar que os desposjos espalhados pertenciam a um ser humano que fora um violinista talentoso. Por terrveis que estas notcias fossem, no conseguiam perturbar o nosso prazer animal de ainda estarmos vivos e sabermos que quem escapara morte j no corria perigo imediato, embora o subconsciente reprimisse, por vergonha, tais sentimentos. Neste novo mundo, onde tudo quanto havia apenas um ms tivera um valor permanente estava destrudo, as coisas mais simples, coisas em que mal teramos reparado antes, adquiriam um enorme significado: uma poltrona slida e confortvel, o aspecto apaziguador de um fogo revestido de mosaicos brancos no qual podamos repousar os olhos, o estalar das tbuas do soalho, tudo isso era um agradvel preldio para a atmosfera de paz e tranqilidade em casa. O meu pai foi o primeiro a voltar sua msica. Fugia realidade tocando violino horas a fio. Quando algum o interrompia com uma m notcia, escutava e franzia

a testa, com ar irritado, mas o seu rosto no tardava a desanuviar-se e ele dizia, levantando o violino para o queixo: "Oh, no se preocupem. Os Aliados estaro com certeza aqui dentro de um ms." Esta resposta estereotipada a todas as perguntas e problemas daquele tempo era a sua maneira de fechar a porta da realidade e regressar quele outro mundo da msica onde se sentia mais feliz. Infelizmente, as primeiras notcias comunicadas por pessoas que tinham comprado acumuladores, que lhes permitiam ter de novo os aparelhos de rdio a funcionar, no confirmavam o optimismo do meu pai. Nada do que ouvramos estava certo: os Franceses no tinham inteno alguma de atravessar a Linha Siegfried, do mesmo modo que os Britnicos no planejavam bombardear Hamburgo, quanto mais desembarcar na costa da Alemanha. Por outro lado, estavam a comear em Varsvia as primeiras incurses racistas alems. Ao princpio, foram efectuadas atabalhoadamente, como se os perpetradores tivessem vergonha daqueles novos meios de atormentar pessoas, e de qualquer maneira faltava-lhes a prtica. Vrios pequenos carros particulares percorriam as ruas e encostavam inesperadamente ao passeio quando localizavam um judeu. As portas do automvel abriam-se e uma mo estendia-se, a chamar com um dedo. "Entre!" Os que regressavam dessas detenes ainda no eram muito graves. As ofensas fsicas limitavam-se a bofetadas, murros e, algumas vezes, pontaps. Mas, em virtude de se tratar de um procedimento to novo, as vtimas ressentiam-no vivamente, considerando uma bofetada de um alemo algo ignominioso. Ainda no tinham compreendido que uma pancada dessas no tinha mais significado moral do que um empurro ou um coice de um animal. Nessa fase inicial, a ira contra o governo e o exrcito, de que tinham ambos fugido e deixado o pas entregue ao seu destino, era de modo geral mais forte do que o dio aos alemes. Amargamente, recordvamos as palavras do marechal-de-campo que tinha jurado que no permitiria que o inimigo ficasse com um nico boto do seu uniforme - e no permitiu, de facto, mas apenas porque os botes continuaram presos ao seu uniforme quando ele salvou a pele fugindo para o estrangeiro. No tinham faltado sequer vozes insinuando que talvez at estivssemos melhor assim, pois os alemes poriam alguma ordem no caos que a Polnia era. Agora, porm, que tinham ganho o conflito armado contra ns, os alemes pareciam decididos a perder a guerra poltica. A execuo da primeira centena de cidados inocentes de Varsvia, em Dezembro de 1939, foi um ponto de viragem crucial. Decorridas poucas horas, erguera-se uma muralha de dio entre alemes e polacos, e depois disso nenhum deles conseguiu transp-la, embora os alemes tivessem mostrado alguma disposio para o fazer nos anos posteriores da ocupao. Os primeiros decretos alemes estipulando a pena de morte para quem no obedecesse foram colados nas paredes. O mais importante dizia respeito ao preo do po: quem fosse apanhado a comprar ou vender po a preo superior ao de antes da guerra seria fuzilado. Esta proibio causou-nos uma impresso devastadora. Passvamos dias a fio sem comer po, substituindo-o por batatas e outros alimentos amilceos. Mas depois Henryk descobriu que ainda havia po, e estava venda, sem que o vendedor casse forosa e imediatamente morto. Por isso recomemos a compr-lo. Como o decreto nunca foi revogado e toda a gente comprou e comeu po diariamente durante os cinco anos de ocupao, s por esse crime deveria ter havido 40 41

milhes de condenaes morte na zona do Governo Geral do territrio polaco sob domnio alemo. Mas foi preciso muito tempo para nos convencermos de que os decretos alemes no tinham realidade nenhum peso, e que o verdadeiro perigo que corramos era o que nos podia acontecer a qualquer momento, de forma totalmente inesperada, sem ser anunciado por quaisquer normas ou regulamentos, por muito fictcios que fossem. Em breve comearam a ser publicados decretos aplicveis e exclusivamente a judeus. Uma famlia judia no podia ter em casa mais de dois mil zltis. Outras economias e objectos de valor deviam ser depositados no banco, numa conta bloqueada. Ao mesmo tempo os bens imveis dos judeus tinham de ser entregues aos alemes. Naturalmente, quase ningum foi ingnuo ao ponto de entregar o que era seu ao inimigo por sua prpria iniciativa. Como toda a gente, resolvemos esconder os nossos objectos valiosos, embora consistissem apenas no relgio e corrente de ouro do meu pai e na quantia de cinco mil zltis. Discutimos acaloradamente sobre a melhor maneira de os escondermos. O meu pai sugeriu alguns mtodos tentados e testados na ltima guerra, tais como abrir um buraco na perna da mesa sala de jantar e esconder l os valores. - E se eles nos levam a mesa? - perguntou Henryk, sarcasticamente. - Idiota - replicou o meu pai, aborrecido. - Para que queriam eles uma mesa? Uma mesa como esta? Olhou desdenhosamente para a mesa. A sua brilhante superfcie de nogueira estava manchada por lqidos entornados e o foliado do tampo comeava a soltar-se ligeiramente, num ponto. A fim de retirar a essa pea de mobilirio o ltimo vestgio de valor, o pai meteu o dedo debaixo do foliado solto, que estalou e se partiu deixando vista uma tira de madeira nua. - O que ests tu a fazer? - perguntou a minha me, num tom repreensivo. Henryk tinha outra sugesto. Achava que devamos utilizar mtodos psicolgicos e deixar o relgio e o dinheiro bem Os alemes procurariam em todos os cantos e nunca reparariam nos valores que se encontrassem vista, em cima da mesa. Chegmos a um acordo amigvel: o relgio foi escondido debaixo do aparador, a corrente sob o brao do violino do meu pai e o dinheiro enfiado nos caixilhos da janela. Embora alarmadas com a severidade das leis alems, as pessoas no perdiam o nimo e confortavam-se com a idia de que os alemes poderiam entregar Varsvia Rssia Sovitica a qualquer momento, e reas ocupadas apenas para manter as aparncias seriam restitudas Polnia to depressa quanto possvel. Ainda no fora estabelecida nenhuma fronteira na curva do Vstula e vinham cidade pessoas de ambas as margens, que juravam ter visto com os prprios olhos tropas do Exrcito Vermelho em Jablonna ou Garwolin. Mas logo a seguir chegavam outras que juravam ter visto, tambm com os prprios olhos, os russos retirarem de Vilna e Lvv e entregarem essas cidades aos alemes. Era difcil decidir em quais dessas testemunhas oculares acreditar. Muitos judeus no esperaram que os russos chegassem; venderam os seus bens e partiram para leste, o nico caminho que ainda lhes restava para fugirem dos alemes. Quase todos os meus colegas msicos partiram e instigaram-me a ir com eles. A minha famlia, porm, continuava decidida a ficar onde estava. Um desses colegas voltou dois dias depois, contuso e faminto, sem mochila e sem dinheiro. Vira judeus seminus atados pelas mos s rvores prximas da fronteira e serem chicoteados. E assistira morte do Dr. Haskielewicz, que disse aos alemes que queria atravessar a curva do rio. De pistola apontada, tinham-lhe ordenado que entrasse no rio, cada vez mais e com gua mais alta, at perder o p e se afogar. O meu colega tinha perdido apenas os seus pertences e o seu dinheiro, depois do que fora espancado e mandado para trs. Mas muitos judeus, apesar de roubados e maltratados, conseguiram chegar Rssia.

Tivemos pena do pobre homem, evidentemente, mas ao mesmo tempo experimentmos um sentimento de triunfo: nada daquilo lhe teria acontecido se tivesse seguido o nosso conselho e ficado. A nossa deciso no se devia a qualquer espcie de raciocnio lgico. A verdade pura e simples que decidimos ficar devido ao nosso afecto por Varsvia, embora tambm no tivssemos sido capazes apresentar alguma explicao lgica para isso. 42 43 Quando digo a nossa deciso, estou a pensar em todos os entes queridos, excepto o meu pai. Se ele no partia de Varsvia mais por no querer estar muito longe de Sosnowiec, de era oriundo. Nunca gostara de Varsvia, e quanto pior a sit se tornava, para ns, mais ele ansiava por uma Sosnowiec id da. Sosnowiec era o nico lugar onde a vida era boa, e pessoas tinham sensibilidade musical e apreciavam um bom pianista. Sosnowiec era, at, o nico lugar onde se podia beber cerveja decente, pois em Varsvia no se conseguia encontrar do que repugnante e intragvel gua de lavar loua. Depois do jantar, o meu pai cruzava as mos sobre o estmago, recostava-se na cadeira, fechava sonhadoramente os olhos e enfadava-nos com montono desfiar de vises de uma Sosnowiec que s exist sua enternecida imaginao. Nessas semanas de fins de Outono, menos de dois meses de os alemes terem tomado Varsvia, a cidade regressou, de sbito e completamente inesperado, ao seu antigo modo de vida. melhoria das suas circunstncias materiais, alcanada to facilmente. Foi mais uma surpresa para ns naquela guerra, mais surpreendente que qualquer outra, onde nada acontecia como espervamos. A me cidade, capital de um pas com uma populao de muitos milhares de pessoas, estava se parcialmente destruda, um exrcito de funcionrios pblicos estava sem emprego e no paravam de chegar va evacuados da Silsia, da rea de Poznan e da Pomernia. Inesperadamente, todas essas pessoas - gente sem um tecto, sem trabalho e. as mais sombrias perspectivas - compreenderam que era ganhar muito dinheiro, com grande facilidade, contornando os muitos alemes. Quantos mais decretos eles impunham, mais a eles eram as probabilidades de ganhar. Comearam a viver-se duas vidas paralelas: uma vida fictcia, baseada em normas que obrigavam as pessoas a todo alvorecer ao anoitecer, quase sem comerem, e uma se vida, no oficial, cheia de fantsticas oportunidades de ter com um trfico de dlares, diamantes, farinha, cabedal ou, documentos falsos: uma vida vivida sob constante ameaa de morte, mas alegremente gozada em restaurantes luxuosos quais as pessoas iam em "riquexos". Nem todos a viviam assim, evidentemente. Todos os dias, quando regressava a casa noite, via uma mulher sentada no mesmo nicho da parede da Rua de Sienna, a tocar concertina e a cantar tristes canes russas. Nunca comeava a pedir antes do crepsculo, talvez por ter medo de ser reconhecida. Usava um fato cinzento, porventura o ltimo que tinha, cuja elegncia mostrava que a sua dona conhecera melhores tempos. O seu rosto bonito parecia sem vida, no lusco-fusco, e os seus olhos estavam fixos no mesmo ponto, algures acima das cabeas dos transeuntes. Cantava com nina atraente voz profunda e acompanhava-se bem com a concertina. Todo o seu porte,

o modo como se encostava parede, revelava tratar-se de uma senhora da sociedade que s a guerra forara a ganhar assim a vida. Mas at ela ganhava muito bem. Havia sempre muitas moedas na pandeireta enfeitada de fitas que ela supunha, com certeza, ser o smbolo da profisso de pedinte. Colocara-a aos ps, para que ningum pudesse ter qualquer dvida de que estava a mendigar, e alm de moedas continha algumas notas de cinqenta zltis. Eu prprio nunca saa antes do crepsculo, se podia, mas por razes inteiramente diferentes. Entre os muitos regulamentos incmodos impostos aos judeus, havia um que, embora no escrito, tinha de ser respeitado muito cuidadosamente: homens de origem judaica tinham de curvar-se diante de cada soldado alemo que encontrassem. Esta exigncia estpida e humilhante deixava-nos fulos de raiva, a Henryk e a mim, e recorramos a todos os estratagemas para a contornar. Fazamos grandes desvios nas ruas para evitarmos encontrar um alemo, e se tal era impossvel olhvamos para outro lado, fingindo no o ter visto, embora pudssemos ser espancados por isso. A atitude do meu pai era muito diferente. Procurava as ruas mais compridas para os seus passeios e curvava-se com um garbo indescritivelmente irnico diante dos alemes, sentindo-se feliz quando um dos soldados, induzido em erro pelo seu rosto radiante, lhe retribua com uma saudao corts e sorria como se ele fosse um bom amigo. Ao regressar a casa, todas as noites, no podia de comentar, com ar displicente, o seu extenso crculo de conhecidos: bastava-lhe pr os ps na rua, dizia-nos, e era cercado 44 por dzias deles. No podia, sinceramente, resistir sua cordialidade e a sua mo estava a ficar rgida de tanto e to cortesmente levantar o chapu. Sorria, travesso, enquanto dizia estas coisas e esfregava as mos de contentamento. Mas a maldade dos alemes no devia ser tomada de nimo leve. Fazia parte de um plano destinado a manter-nos num constante estado de incerteza nervosa quanto ao nosso futuro. De poucos em poucos dias, saam novos decretos. Aparentemente, no tinham qualquer importncia, mas recordavam-nos que os alemes no nos haviam esquecido, nem tinham inteno alguma de nos esquecer A seguir, os judeus foram proibidos de viajar de comboio. Mais tarde, passaram a cobrar-nos, por um bilhete de elctrico, o qudruplo do que cobravam a um "ariano". Comearam a circular os primeiros boatos acerca da construo de um ghetto. Proliferaram durante dois dias, encheram-nos os coraes de desespero, e depois cessaram. 5 VOCES SO JUDEUS? Cerca do fim de Novembro, quando os belos dias daquele Outono extraordinariamente longo estavam a tornar-se mais raros e chuvadas frias caam na cidade com freqncia crescente, o meu pai, Henryk e eu tivemos o nosso primeiro contacto com o estilo de morte alemo. Uma noite, framos os trs visitar um amigo. Tnhamos estado a conversar e quando olhei para o relgio, dei-me conta, assustado, de que eram quase horas de recolher. Precisvamos de sair imediatamente, embora no houvesse a mnima probabilidade de chegarmos a casa a tempo. Mas no era um crime assim to grande estar um quarto de hora atrasado e havia esperana de escaparmos daquela encrenca. Pegmos nos sobretudos, despedimo-nos apressadamente e samos. As ruas estavam escuras e j completamente desertas. A chuva fustigava-nos os rostos, rajadas de vento

sacudiam as tabuletas dos anncios e o ar ressoava com o matraquear de metal. Levantmos as golas dos sobretudos e tentmos andar o mais depressa possvel, rente s paredes dos prdios. Encontrvamo-nos j a meio da Rua Zielna, e comeava a parecer-nos que chegaramos em segurana ao nosso destino, quando uma patrulha policial surgiu, de sbito numa esquina. No tnhamos tempo para nos escondermos ou voltarmos para trs. Parmos simplesmente, apanhados la luz ofuscante das suas lanternas, cada um a tentar pensar numa desculpa, quando um dos polcias veio direito a ns e apontou a lanterna aos nossos rostos. 46 47 - Vocs so judeus? - A pergunta era puramente retrica,, pois ele no esperou pela resposta. - Ento verdade. Havia uma nota de triunfo na sua confirmao da nossa origem racial. Exprimia satisfao por terem capturado semelhante presa. Num pice, tnhamos sido agarrados e virados para a parede do prdio enquanto os polcias recuavam para o meio da rua e comeavam a destravar as carabinas. Era afinal assim que amos morrer. Isso aconteceria nos prximos segundos e, depois, ficaramos cados no passeio, banhados no nosso prprio sangue e com os crnios despedaados, at ao dia seguinte. S ento a minha me e irms saberiam o que tinha acontecido e viriam, desesperadas, encontrar-nos. Os amigos que visitramos censurar-se-iam por nos terem demorado demais. Todos estes pensamentos me, passaram pela cabea de uma maneira estranha, como se outra pessoa os estivesse a pensar. Ouvi algum dizer, alto: " o fim." S um momento depois tive conscincia de que fora eu prpria que falara. Ao mesmo tempo, ouvi um choro alto e um soluar convulso. Virei a cabea e, luz crua da lanterna, vi o meu pai de joelhos no passeio molhado, a soluar e a suplicar aos polcias pelas nossas vidas. Como podia ele rebaixar-se tanto? Henryk estava debruado para o meu pai, a falar-lhe baixinho e a tentar levant-lo. Henryk, o meu reservado irmo com o seu eterno sorriso sarcstico, tinha, naquele momento um ar extraordinariamente doce e terno. Eu nunca o vira assim. Devia haver, pois, outro Henryk, um Henryk, que eu compreenderia se o conhecesse, em vez de estar constantemente a brigar com ele. Virei-me de novo para a parede. A situao no se modificara. O meu pai continuava a chorar, Henryk tentava acalm-lo e os polcias ainda tinham as armas apontadas a ns. No conseguamos v-los atrs da parede de luz branca. De sbito, numa fraco de segundo, soube instintivamente que a morte deixara de nos ameaar. Passaram mais uns momentos, e uma voz forte soou atravs da parede de luz. - Como ganham a vida? Henryk respondeu pelos trs. Estava espantosamente controlado e tinha a voz muito calma, como se nada tivesse acontecido. - Somos msicos. Um dos polcias colocou-se minha frente, agarrou-me na gola do sobretudo e sacudiu-me numa ltima exploso de fria, embora no houvesse nenhuma razo para isso, agora que resolvera deixar-nos viver. - Tm sorte por eu tambm ser msico! Deu-me um safano que me atirou contra a parede. - Desapaream! Corremos para a escurido, ansiosos por nos afastarmos do alcance das suas lanternas o mais depressa possvel, antes que mudassem de opinio. Ouvimos as suas vozes

a ficarem mais fracas atrs de ns, envolvidas numa discusso violenta. Os outros dois protestavam com o que nos deixara partir. Achavam que no merecamos qualquer compaixo, pois iniciramos a guerra em que estavam a morrer alemes. De momento, porm, eles no estavam a morrer, mas sim a enriquecer. Com freqncia cada vez maior, bandos de alemes invadiam casas de judeus, pilhavam-nas e levavam as moblias em camionetas. Donos de casa transtornados vendiam as suas coisas mais valiosas e substituam-nas por objectos sem valor, que no tentariam ningum. Ns prprios vendemos os nossos mveis, embora mais por necessidade do que por medo: estvamos cada vez pobres. Ningum da famlia tinha jeito para regatear. Regina tentou mas sem xito. Como advogada, tinha uma forte noo de honestidade e responsabilidade e era incapaz de pedir, ou aceitar, o dobro do preo que qualquer coisa valia. No tardou a dar lies particulares. O meu pai, a minha me e Halina davam lies de msica. Henryk ensinava ingls. Eu era o nico que no conseguia arranjar um modo de ganhar o meu sustento naquele tempo. Mergulhado na apatia, a nica coisa que podia fazer era trabalhar ocasionalmente na orquestrao do meu concertino. Na segunda metade de Novembro, sem apresentarem quaisquer razes, os alemes comearam a barricar as ruas transversais a norte da Marszlkowska com arame farpado, e no fim do ms foi feito um comunicado no qual ao princpio ningum conseguiu acreditar. Nem nos nossos mais secretos pensamentos teramos jamais suspeitado que semelhante coisa pudesse acontecer: do dia 1 ao dia 5 de Dezembro, os judeus tinham de arranjar braaderas brancas 48 49 com uma Estrela de David azul cosida e passar a us-las. amos, pois, ser publicamente estigmatizados como prias. Iam ser anulados vrios sculos de progresso humanitrio e estvamos de novo na Idade Mdia. Durante semanas a fio, a intelectualidade judaica manteve-se sob priso domiciliria voluntria. Ningum se arriscava a sair rua com a marca na manga, e se era de todo impossvel evitar sair de casa, tentvamos passar despercebidos caminhando de olhos postos no cho, envergonhados e angustiados. Seguiram-se, sem aviso, meses de Inverno rigoroso em que o frio parecia aliar-se aos alemes para matar gente. A geada durou semanas e a temperatura desceu mais do que algum na Polnia se lembrava de ter acontecido antes. Era quase impossvel arranjar carvo e o pouco que havia atingia preos fantsticos. Lembro-me de uma srie de dias em que tivemos de ficar na cama porque a temperatura no apartamento era insuportvel. Durante o pior desse Inverno, chegaram a Varsvia numerosos deportados judeus evacuados do Ocidente. Isto , apenas alguns deles chegaram, de facto: tinham sido metidos em vages de gado nos seus lugares de origem, os vages tinham sido selados e as pessoas que se encontravam l dentro tinham partido sem comida, gua ou quaisquer meios para se manterem quentes. Era freqente esses horrveis carregamentos levarem dias para chegarem a Varsvia, e s ento deixavam as pessoas sair. Nalguns deles, apenas uma escassa metade dos passageiros continuava viva, e esses estavam gravemente enregelados. A outra metade era constituda por cadveres de p, rgidos e gelados entre os restantes, que s caam quando os vivos se mexiam. Chegara-se a um ponto em que parecia que as coisas no poderiam piorar. Mas essa era apenas a opinio dos judeus; os alemes pensavam de outro modo. Fiis ao seu sistema de exercerem presso por fases graduais, emitiram novos decretos repressivos judeus em Janeiro e Fevereiro de 194O OP primeiro anunciava que os judeus iriam

prestar dois anos de trabalho em campos de concentrao onde receberiam "educao social apropriada", para se curarem do hbito de sermos "parasitas do organismo saudvel dos povos arianos". Os homens com idades compreendidas entre os doze e os sessenta anos e as mulheres entre os catorze e os quarenta e cinco, teriam de ir. O segundo determinava o mtodo como seramos registrados e levados. Para se pouparem a esse trabalho, os alemes confiaram-no ao Conselho judaico, encarregado da administrao da comunidade. Tnhamos, em suma, de participar na nossa prpria execuo, de preparar a nossa queda com as nossas prprias mos, de cometer uma espcie de suicdio legalmente regulamentado. Os transportes partiriam na Primavera. O Conselho resolveu actuar de modo a poupar a maioria dos membros da intelectualidade. A troco de mil zltis por cabea, mandava um membro das classes trabalhadoras judaicas como substituto da pessoa supostamente registrada. Evidentemente, nem todo o dinheiro acabava nas mos dos prprios substitutos: os funcionrios do Conselho precisavam de viver, e viviam bem, com vodka e umas iguariazitas. Mas os transportes no partiram na Primavera. Constou, de novo, que os decretos oficiais alemes no eram para ser levados a srio, e de facto houve, durante alguns meses, um abrandamento da tenso das relaes germano-judaicas, que parecia cada vez mais genuno medida que cada uma das partes tinha de se concentrar mais no que se passava na frente. A Primavera chegara, finalmente, e agora no podiam restar quaisquer dvidas de que os Aliados, que tinham passado o Inverno a fazer preparativos adequados, atacariam a Alemanha a partir simultaneamente da Frana, da Blgica e da Holanda, atravessariam a Linha Siegfried, tomariam o Sarre, a Baviera e a Alemanha Setentrional, conquistariam Berlim e libertariam Varsvia, o mais tardar nesse Vero. A cidade inteira encontrava-se num estado de feliz excitao. Espervamos o comeo da ofensiva como se esperssemos uma festa. Entretanto, os Alemes invadiram a Dinamarca, mas na opinio dos nossos polticos locais isso no significava nada. Os seus exrcitos seriam simplesmente eliminados l. Em 1O de Maio a ofensiva comeou, finalmente, mas foi uma ofensiva alem. A Holanda e a Blgica caram. Os Alemes entraram em Frana. Mais uma razo para no desanimarmos. O ano de 1914 estava a repetir-se. Se at as mesmas pessoas estavam no comando, no lado francs: Ptain, Weygand - excelentes homens 51 5O da escola de Foch. Podamos confiar que se defenderiam contra os alemes to bem como se tinham defendido na ltima vez. Por fim, em 2O de Maro, um violinista, meu colega, visitou-me depois do almoo. amos tocar juntos uma sonata de Beethoven que no tocvamos h algum tempo e nos dava a ambos grande prazer. Estavam presentes mais alguns amigos, e a minha me, querendo fazerme uma surpresa agradvel, serviu-nos caf. Estava um belo dia de sol e aprecimos o caf e os bolos deliciosos que ela fizera. Sentamo-nos bem dispostos. Todos ns sabamos que os Alemes estavam s portas de Paris, mas ningum estava excessivamente preocupado com isso. No fim de contas, havia o Marne, essa clssica linha de defesa onde tudo teria de parar, como acontece na fermata da segunda seco do scherzo em si menor de Chopin, num ritmo tumultuoso de colcheias que se sucedem cada vez mais tempestuosamente, at ao acorde final: altura em que os Alemes recuariam para a sua prpria fronteira to vigorosamente quanto tinham avanado, conduzindo assim ao fim da guerra e a uma vitria aliada. Depois do caf, preparmo-nos para continuar a execuo. Sentei-me ao piano, com um grupo de ouvintes sensveis minha volta, pessoas capazes de apreciar o prazer

que tencionava proporcionar-lhes, e tambm a mim prprio. O violinista estava de p minha direita e, minha esquerda, estava sentada uma encantadora jovem amiga de Regina, que ia virar as pginas para mim. Que mais podia eu desejar para que a minha felicidade fosse completa, naquele momento? S espervamos por Halina, que fora loja fazer um telefonema, para comearmos. Quando ela voltou, trazia um jornal, uma edio especial. Na primeira pgina estavam impressas duas palavras em letras enormes, com certeza as maiores de que os compositores dispunham: PARIS CAI! Apoiei a cabea no piano e, pela primeira vez naquela guerra, desfiz-me em lgrimas. Embriagados pela vitria e detendo-se um momento para tomar flego, os alemes dispunham agora de tempo para pensar de novo em ns - embora no se pudesse dizer que nos tinham esquecido por completo durante os combates no Ocidente. Roubos a judeus, a sua evacuao forada, deportaes para trabalhar na Alemanha, tudo isso acontecia constantemente, mas ns habituramo-nos. Agora esperava-nos pior. Em Setembro partiram os primeiros comboios para os campos de trabalho de Belzec e Hrubieszw. Os judeus que estavam a receber "educao especial apropriada" passavam l dias a fio com gua at cintura, a instalar sistemas de esgoto aperfeioados, e recebiam cem gramas de po e um prato de sopa aguada por dia, para se agentarem. O trabalho no durava, na verdade, dois anos, como fora anunciado, mas apenas trs meses. Isso chegava, no entanto, para esgotar as pessoas fisicamente e deixava muitas delas tuberculosas. Os homens que ainda permaneciam em Varsvia tinham de se apresentar para trabalhar l: toda a gente tinha de fazer seis dias de trabalho fsico por ms. Eu fazia tudo o que podia para escapar a esse trabalho. Preocupava-me com os meus dedos. Bastaria uma atonia muscular, uma inflamao das articulaes ou uma simples pancada forte e a minha carreira como pianista estaria acabada. Henryk via as coisas de modo diferente. Na sua opinio, uma pessoa intelectualmente criativa tinha de fazer trabalho fsico para poder avaliar de modo adequado as suas faculdades, e por isso ele fazia a sua quota de trabalho, apesar de para isso ter de interromper os estudos. Passado pouco tempo, dois outros acontecimentos afectaram o estado de esprito pblico. Primeiro, comeou a ofensiva area alem contra a Inglaterra. Segundo, foram colocados avisos nas entradas das ruas que, posteriormente, assinalariam os limites do ghetto judeu, informando os transeuntes de que essas ruas estavam contaminadas de tifo e deviam ser evitadas. Pouco tempo depois, o nico jornal de Varsvia publicado em polaco pelos alemes trazia um comentrio oficial sobre esse as