338 katrina britt - magia oriental (bianca 338)

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  Magia Oriental THE MAN ON THE PEAK  Katrina Britt  Bianca 338  Suzanne nunca imaginou encontrar o ex-marido em Hong Kong Da janela de seu quarto, no alto da colina, Suzanne observava o colorido das embarcações contrastando com o azul do céu e o verde do mar. O porto de Hong Kong ervia de atividade. !la, porém, n"o conseguia prestar muita atenç"o. # presença de $aul, seu e%&marido, a dei%ava intensamente perturbada. !le, no entanto, n"o parecia se importar com seus sentimentos eridos. #o contr'rio, insistia em alar cinicamente do novo amor que estava vivendo. Digitalizaç"o e $evis"o( #lice )aria  1

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esse livro é uma ótima leitura de romance

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Magia OrientalTHE MAN ON THE PEAK Katrina Britt Bianca 338 Suzanne nunca imaginou encontrar o ex-marido em Hong KongDa janela de seu quarto, no alto da colina, Suzanne observava o colorido das embarcaes contrastando com o azul do cu e o verde do mar. O porto de Hong Kong fervia de atividade. Ela, porm, no conseguia prestar muita ateno.A presena de Raul, seu ex-marido, a deixava intensamente perturbada. Ele, no entanto, no parecia se importar com seus sentimentos feridos. Ao contrrio, insistia em falar cinicamente do novo amor que estava vivendo.

Digitalizao e Reviso: Alice Maria

CAPTULO I

Suzanne suspirou, desviando o olhar da janela. Apesar da imensa beleza, o tapete de nuvens no conseguia mais absorver sua ateno, depois de tantas horas de vo: Damasco, Bombaim e Singapura haviam ficado para trs. Logo estariam aterrissando em Hong Kong.

O convite de tia Janete, feito h quase um ano, fora uma boa oportunidade para se distrair. A morte do pai a abalara profundamente, e agora precisava refazer sua vida. Ao receber o convite estava passando por uma fase muito difcil e relutara em aceitar. Na realidade, Janete era tia legtima de Raul, seu ex-marido. Depois do divrcio, nunca mais tinham se encontrado mas sentiam uma grande simpatia uma pela outra.

Os rudos rotineiros de dentro do avio eram o suficiente para deix-la tensa. As recordaes dos seus ltimos anos de vida eram to dolorosos que no conseguia relaxar apesar de estar exausta.

Absorta em seus pensamentos, no havia prestado muita ateno ao vizinho, um jovem magro de cabelos lisos e finos. Ele tambm permanecera o tempo todo calado.

Suzanne ficou imaginando quem seria, porque a aeromoa redobrara-se em atenes durante todo o vo. Olhando bem, no parecia ser rico, pois suas roupas eram simples e surradas.

Mas Suzanne logo se esqueceu dele, preocupada com os prprios problemas. Por que decidira vir a Hong Kong Ser que ali poderia esquecer o passado? Perambulava em vo pelo mundo todo, em busca de um sentido para sua vida. Sentia-se fraca e vazia. Perdera tudo o que mais queria, at mesmo Raul. Por mais que tentasse, no conseguia esquec-lo.

Onde estava com a cabea ao aceitar o convite de tia Janete?

Era certo que estava carente, sozinha no mundo. Mas hoje no era mais uma adolescente mimada; tornara-se uma mulher.

Dois golpes profundos e rpidos haviam-na recolocado frente a frente com a realidade da vida. O divrcio de Raul e a morte do pai tinham destrudo seu mundo de iluses. Agora, mais madura e sensvel, tentava reconstruir sua vida.

S que no seria nada fcil, e levaria algum tempo ainda.

Com muita coragem e fora de vontade, esperava estar pronta para enfrentar todos os problemas que surgissem. No rosto delicado transpareciam as marcas de todo seu sofrimento. Os ossos salientes e as olheiras profundas denotavam seu estado de esprito.

Recostou-se no assento e fechou os olhos, envergonhada das lgrimas que teimavam em lhe correr pelo rosto. Com gestos dissimulados, procurou evitar que o seu companheiro de viagem percebesse que chorava.

O rapaz continuava impassvel, como se no tivesse notado que havia algo errado com ela.

Quando se separara de Raul, estava decidida a reconstruir a vida sem ele. Na ocasio, acreditava que o esqueceria depressa.Alm disso, contava com o auxlio do pai, que a apoiara e mimara durante toda a vida.

S que ele morrera de repente, deixando-a confusa e sozinha.

No fundo, seu pai tambm sentia falta de Raul de Brecourt, seu companheiro fiel. Eram inseparveis. O sr. Dawson admirava-lhe a desenvoltura e a experincia com as quais transitava no mundo dos negcios. Considerava-o seu sucessor natural.

Suzanne sabia que poucas mulheres seriam capazes de resistir ao charme de Raul. Ele era realmente cativante, um perfeito cavalheiro, capaz de fazer qualquer mulher sentir-se nas nuvens. Como tinha lutado contra a fora daquele encanto! No entanto, todos seus esforos foram inteis. Seus prprios passos a guiaram at ele, como que atrada por um poderoso m.

Desde que haviam se conhecido, ele a via como uma criana, tratando-a como tal.

Sua reao, quando o encontrou, pela primeira vez, foi de espanto e admirao. Ele parecia um deus grego Do alto de sua beleza emanava segurana. Como o odiara por isso depois!

Os olhos escuros transmitiam uma vitalidade incrvel. Alm disso, tinha senso de humor apurado, tpico de pessoas inteligentes, bem-sucedidas. Era naturalmente elegante, e tinha uma graa felina, peculiar. Suzanne so saberia dizer se era pela pele bronzeada, se pelo corpo musculoso... o fato era que ele transpirava sensualidade.

Seu pai sempre quis que se casassem. Ainda mais que pretendia associar sua empresa de Raul.

S que ela no estava preparada para o casamento. Raul, por sua vez, pouco contribura. Na realidade, tratava-a como uma adolescente mimada, trazendo-lhe chocolates, flores e pequenos presentes. A condescendncia divertida com que se dirigia a ela deixava-a furiosa. Suzanne, ento, procurava agredi-lo de todas as formas.

Desde o princpio, a proximidade de Raul provocava-lhe sensaes perturbadoras, que ela no sabia definir. Imatura, reagia com provocaes. Ainda no conhecia o amor e, quando se dera conta, j era tarde demais.

Parecia impossvel olhar para trs e identificar-se como a garota mimada e sem preocupaes que fora um dia. Nada era suficiente para satisfaz-la; o pai atendia de imediato a todos os seus caprichos.

S que, agora, nada disso importava mais. Quando s portas da morte, seu pai pedira que chamassem Raul. Mas ele estava em viagem pelo Oriente Mdio, e a secretria prometeu avis-lo, contudo, no houve reposta, e Henry Dawson morreu sem v-lo.

Aps o divrcio, Raul tinha deixado uma grande soma de dinheiro para ela, que manteve intacta, sem usar um centavo.

No precisava disso. As nicas coisas que lhe faziam falta eram a ternura e a fora daqueles braos fortes a sua volta, daqueles lbios exigentes sobre sua boca. Quantas noites adormecera sozinha, ansiando pelo corpo de Raul a seu lado! Como pudera ser to tola, incapaz de enxergar o que estava a sua frente.

Lembrava-se muito bem de suas atitudes hostis, das tentativas de humilh-lo, das palavras rudes. Por fim, cansado de tantos caprichos, Raul fora embora.

No adiantava pensar que era apenas uma garota de dezenove anos, completamente inexperiente, ao se casar com ele. Nada justificava seu comportamento. Durante a doena do pai, fora obrigada a ver que havia outras pessoas no mundo, alm de si mesma. Com medo de perd-lo. ficara a seu lado dia e noite, quase sem dormir, at cair sobre a cama, exausta. Ainda assim, no conseguia adormecer, receando que ele precisasse de algo durante a noite. Por fim, a doena o vencera. O pai, to querido, no existia mais. Deixara-a s e aturdida.

A voz da aeromoa, pedindo para apertar os cintos, trouxe-a de volta realidade. Na mesma hora olhou pela janela e viu as nuvens flutuando sobre os campos verdes, as colinas rochosas. O porto estava repleto de navios e iates, alm de pequenas embarcaes que circulavam entre eles O avio comeou a se aproximar do aeroporto de Kai Tak,

uma faixa de terra prxima ao mar, e o pouso foi perfeito.

S ento Suzanne percebeu que seu companheiro de viagem tateava procura de alguma coisa. Ele era cego.

O sofrimento tinha feito com que Suzanne aprendesse a respeitar a dor dos outros, e no pde deixar de se comover.

Ele era to jovem!

Ao sair do avio, o calor e a confuso de vozes falando vrias lnguas formavam uma verdadeira Torre de Babel. Sorriu ao observar aquela profuso de cores e idiomas. Era fantstico, fascinante. A multido, no entanto, caminhava apressada. Decidiu entrar no ritmo, e logo estava dentro de um txi, a caminho do hotel, onde se encontraria com Janete de Brecourt.

A tia de Raul j a esperava no saguo, com um sorriso de boas-vindas irradiante. Era uma mulher atraente, esguia e alta.

O passar dos anos no tinha afetado sua beleza e elegncia.

Vestia um conjunto de seda branco, com um turbante combinando, imperturbvel mesmo sob um calor abrasador. Suzanne! Deixe-me olhar para voc! Est mais magra, mas continua linda como sempre. Aproximou-se sorrindo, abraando-a com carinho. Como vai?

Bem, obrigada, tia Janete. Parece mais jovem cada vez que a vejo disse espontaneamente.

A outra riu, satisfeita.

Vou lhe contar um segredo. Jamais tomo sol no rosto. Mas voc jovem e no precisa se preocupar com isso.

Mal completara a frase, j dava instrues ao carregador para que apanhasse a bagagem de Suzanne Em seguida, pegou-a pelo brao, conduzindo-a para o porto.

Venha. Adoro esta pequena viagem de balsa. Espero que tambm goste.

Suzanne olhou a sua volta, observando o movimento frentico dos chineses e as construes tipicamente orientais. A cidade pulsava, viva.

Acho que vou adorar suspirou, revigorada. Espero no ter vindo atrapalhar.

De jeito nenhum, querida. um prazer t-la aqui. Com expresso crtica, observou o rosto abatido de Suzanne. Voc mudou muito.

Eu amadureci.

No se preocupe com a bagagem Janete mudou de assunto para tranqiliz-la O carregador tomar conta de tudo e nos entregar do outro lado. Como no obtivesse resposta, voltou a falar: Voc tem namorado?

No. Estou sozinha.

Tem a vida inteira pela frente...

A resposta foi um sorriso triste e desanimado. Queria dizer que era esse o seu medo. O que iria fazer com o resto da vida?

Mas no disse nada. Depois da morte do pai, o mundo se tornara um lugar estranho e hostil. Sentia-se desprotegida. No importava o fato de estar em Hong Kong, ou em qualquer outro lugar, a sensao da solido jamais a abandonava. De qualquer forma, Hong Kong era diferente de tudo que j conhecera.

Apesar da tristeza, uma tnue excitao a invadiu.

Uma brisa balanou-lhe as mechas de cabelo louro, dando-lhe uma vaga sensao de liberdade quando entrou na balsa. Acomodou-se ao lado de sua anfitri, num banco de madeira.

Assim que a embarcao ganhou velocidade, chegou a esquecer as lembranas tristes, interessada nas centenas de barcos, iates e pequenos botes de junco, que se amontoavam no porto, num balano cadenciado.

A atmosfera oriental da cidade era algo indescritvel, misterioso, extremamente fascinante! Ningum podia ficar alheio a tanta beleza.

Quando se voltou, percebeu que tia Janete a observava com expresso preocupada. Por mais que tentasse dissimular seus sentimentos, no conseguia. Era evidente que representava um papel. E muito mal. Isso no passou despercebido aos olhos experientes e sensveis da mulher mais velha. Janete j havia notado que ela no estava to segura e serena quanto queria aparentar.

Na verdade, no sabia o que acontecera antes do divrcio e preferia no se envolver. Suzanne sempre fora uma moa adorvel e, no momento, era sua convidada.

Adorando a brisa e o calor do sol, Suzanne sorria, meiga, descontrada. Os olhos cor de violeta, brilhantes e profundos, sombreados por longos clios escuros, tinham uma expresso sonhadora. Era uma mulher linda e atraente. No era de se surpreender que Raul no tivesse resistido ao seu encanto.

Uma amiga me trouxe at aqui e nos levar de volta explicou Janete. O carro dela no est longe do ancoradouro e no precisaremos andar muito.

A balsa contornou alguns barcos para alcanar o cais. Aromas exticos espalhavam-se pela atmosfera em harmonia com aquele mundo completamente desconhecido para um ocidental.

O fato que ningum podia ficar imune quele cheiro mstico.

Olhava para tudo maravilhada, enquanto seguia Janete pelas ruas estreitas, cheias de restaurantes que ofereciam os mais variados tipos de comida.

No estacionamento de uma casa de ch, dirigiram-se para um carro novo, moderno. O carregador acomodou a bagagem no porta-malas. As duas sentaram-se no assento de trs, espera da amiga de Janete.

Um homenzinho franzino saiu do estabelecimento e aproximou-se, trazendo duas delicadas xcaras de porcelana, cheias de ch fumegante.

Janete agradeceu calorosamente ao chins e apresentou-lhe a convidada.

Obrigada, Chin Lung. Estava louca por uma xcara de ch e acho que minha amiga tambm. muita bondade sua vir at aqui para nos servir. Quero lhe apresentar a sra. Suzanne de Brecourt, que veio me visitar. Com um gesto delicado, virou-se para Suzanne; Este um bom amigo, o sr. Chin Lung.

Ele inclinou a cabea e sorriu, mostrando alguns dentes de ouro.

Prazer em conhec-la disse, fazendo uma reverncia.

Bem-vinda nossa ilha saudou-a, retornando casa de ch.

Ao v-lo desaparecer de vista, Suzanne olhou diretamente para Janete.

No uso meu nome de casada desde o divrcio. Prefiro ser conhecida como Suzanne Dawson.

Janete tomou um gole de ch antes de responder, observando-lhe a mo esquerda.

Desculpe se pareo intrometida, mas me preocupo com voc. Uma garota rica, bonita e solteira est exposta a todos os tipos de perigo. Convenhamos: se usasse uma aliana se livraria de muitos problemas...

Suzanne assentiu com um gesto de tolerncia.

Isso podia ter lgica antes do casamento. S que agora sei me cuidar. Amadureci muito, apesar dos meus vinte e dois anos.

Janete concordou com um gesto de cabea. No estava, em absoluto, convencida da determinao da jovem. Aparentemente continuava frgil e delicada, como sempre.

Esteve viajando, no ? Escrevi convidando-a a vir, h quase um ano.

Sua carta ficou entre a correspondncia que encontrei em casa, ao voltar. Fiquei contente em saber que ainda estava aqui. Saiba que muito bom v-la de novo explicou rapidamente para no entrar em detalhes.

Durante um ano viajara pelo mundo, como integrante de um grupo de voluntrios que prestavam auxlio aos pases subdesenvolvidos. Nesse perodo, fizera todo tipo de trabalho, desde alfabetizao at primeiros socorros., passando at por servios pesados. Ao retornar, a vontade de ver algum de quem gostasse era to grande que no perdeu tempo e escreveu para tia Janete.

to bom v-la aqui tambm, Suzanne. Acho que cansou de viver em cruzeiros milionrios, no ?

Ela bebeu devagar o resto do ch. Gostaria de evitar maiores explicaes... Aps uma pausa, mudou de assunto.

Como est tio Philippe?

Um sorriso iluminou o rosto da Janete:

Est no Oriente Mdio, cuidando de um novo projeto das Empresas Brecourt. Com certeza se encontra numa cidadezinha afastada de tudo. adorando a vida simples do povo da regio. Como v, estou sozinha; por isso ainda melhor t-la aqui. Senti muito ao saber da morte de seu pai. Deve ter sido um golpe terrvel.

A ferida era ainda muito recente, e aquela simples meno a comovia imensamente. Procurou disfarar a emoo.

Por que escolheu Hong Kong para viver? perguntou, curiosa. J est aqui h bastante tempo, no ?

Acho que a magia desta ilha me fascina. Vim pela primeira vez com Philippe, e foi paixo primeira vista. Desde ento decidi ficar por aqui. H no ar uma envolvente sensao de mistrio. Estou contente que tenha vindo antes da nossa partida.

Vocs vo embora?

Talvez. Decidiremos quando Philippe voltar. Penso que ele tem vontade de regressar a Paris.

Tia Janete no mencionou Raul uma s vez. Apesar de ansiosa por notcias, Suzanne no ousou perguntar. Um garoto apareceu para recolher as xcaras de ch, quando a proprietria do carro apareceu.

Desculpem o atraso.

A voz forte e clara interrompeu o dilogo. A porta do carro se abriu e uma jovem esguia e elegante, de pernas muito bem feitas, entrou. Ela usava um vestido branco de linho, revelando-lhe as linhas perfeitas do corpo bronzeado. Suzanne virou-se para observ-la melhor. Era uma das mulheres mais deslumbrantes que j tinha visto. Os cabelos negros e brilhantes estavam presos por uma fivela de prata, deixando mostra um rosto perfeito. Em sua mo direita, uma safira enorme brilhava luz do sol.

A recm-chegada observava-a tambm, sem esconder a curiosidade. Os olhos escuros, a boca carnuda e o nariz reto completavam o conjunto, que era simplesmente estonteante. A bela morena faria qualquer homem perder o flego, s ao fit-la.

Sem querer, Suzanne imaginou que aquela seria a mulher ideal para Raul, e uma sensao de desamparo a dominou.

Suzanne, esta minha amiga, a sra. Silvana Lapport, uma italiana que se casou com um ingls e agora est divorciada. Silvana, esta Suzanne Dawson.

Os olhos negros de Silvana a fitaram com interesse. Prazer em conhec-la disse com a voz rouca. O prazer meu respondeu Suzanne, formal. Sinto-me feliz por estar aqui.

Silvana riu, como se lhe ocorresse algo engraado.

Somos tipos opostos; eu to morena e expansiva, bem italiana; e voc, loira, de modos tipicamente ingleses. No concorda, Janete?

Ela as observou atentamente antes de responder:

Bem, pelo menos tm algo em comum. So divorciadas.

No pense que me importo com isso, cara. Logo ser diferente. A solido no est em meus planos. No tenho a mnima pretenso de ficar solteira.

Com um sorriso, ligou o carro e logo se encontravam na avenida principal, cheia de bicicletas, pedestres, carros e nibus de dois andares, misturados num trafego confuso e barulhento.

Suzanne observava tudo avidamente: os anncios enormes, os prdios altos, os hotis luxuosos, as lojas cheias de artigos exticos. Encantada com a multido cheia de cores, sorriu e fitou Silvana, que lhe retribuiu o sorriso.

Tenho uma casa agradvel no centro da cidade. Quero que venha me visitar, Suzanne. A voz de Silvana revelava um interesse sincero. claro que no to grande quanto a casa de Janete, l no morro, com uma vista maravilhosa para o porto e para Kowloon.

Janete sorria, serena. Ela no aparentava mais que trinta e cinco anos, apesar de ter quase cinqenta.

O carro comeou a subir por uma estradinha que levava s colinas, e o aroma de pinho encheu o ar. Pouco depois, Silvana fez uma curva, atravessando um porto para chegar ao jardim, cheio de azalias e primaveras. S ento Suzanne teve uma viso da casa ampla, de dois andares, num estilo que misturava as caractersticas tpicas do Oriente ao conforto e praticidade do Ocidente.

A casa uma grande mistura explicou Janete. Mas a influncia ocidental predominante.

Um terrao rodeava todo o andar trreo, levando a enormes portas de vidro, que proporcionavam uma viso extraordinria das montanhas e das ilhas que ficavam no Mar da China, alm do porto. Silvana ficou apenas o suficiente para que descarregassem a bagagem.

Sun Yu-Ren, um jovem empregado, vestido de branco, apareceu, enquanto Janete conduzia Suzanne a uma sala fresca e confortvel, revestida de tapetes chineses e decorada com mveis de junco. As paredes brancas estavam cobertas de gravuras antigas, retratando a velha China. As cadeiras confortveis tinham almofadas de tapearia com motivos orientais. Esculturas abstratas espalhavam-se pelo ambiente e, num canto da sala, um enorme vaso de porcelana harmonizava a decorao.

Aps lhe mostrar os aposentos do trreo, convidou-a a subir at o quarto espaoso que reservara especialmente para ela. O aposento era aconchegante, com um banheiro ao lado, e estava agradvel mente fresco, por causa do ar condicionado.

Quero que descanse, minha querida. Sun Yu-Ren vai lhe trazer um refresco. Depois poder se deitar um pouco, para se recuperar da viagem.

Suzanne olhou sua volta, notando a cama de casal coberta por um mosquiteiro, a penteadeira, o guarda-roupa e as cortinas de cetim estampadas com pequenos drages, combinando com a colcha.

Todos os quartos so assim to lindos? perguntou, observando os jardins e o porto atravs da janela.

Quase todos. Raul comprou a casa para a companhia quando h convenes ou congressos, difcil encontrar acomodaes em Hong Kong. Os diretores e executivos das Empresas Brecourt podem ficar hospedados aqui, quando preciso. Temos uma sala de reunies bem grande, onde podem trabalhar sem ter de sair daqui.

Suzanne mal ouviu a explicao, pois a simples meno do nome de Raul fez seu pulso acelerar. Janete tirou as luvas e encarou-a com uma expresso preocupada no rosto bonito.

Raul est em Hong Kong.

A cor desapareceu do rosto de Suzanne, que procurou ganhar tempo virando-se para a janela.

Devia ter me avisado falou, num fio de voz. Estou contando agora.

Mas podia ter dito antes.

Sinto muito. Na ocasio em que lhe escrevi, ele estava fora, realmente. Eu sabia que estava sentindo muita falta de seu pai e quis t-la comigo. Quando voc me respondeu, confirmei o convite, sem pensar que a presena de Raul poderia perturb-la. Afinal, est tudo acabado entre vocs... res- pondeu, mal disfarando o quanto estava constrangida.

S ento Suzanne virou-se para encar-la, j recuperada do primeiro choque.

Est certa, tia Janete. Talvez um dia acabe me acostumando a conviver com ex-maridos. Quem sabe quantos vou ter?

No fale to cinicamente. Sei que no assim que se sente. Eu poderia aceitar isso vindo de Raul, mas no de voc.

Por que diz isso? desafiou Suzanne, erguendo o queixo trmulo. Qual a verdadeira razo pela qual me convidou?

Minha querida Suzanne Janete sorriu condescendente , por que as pessoas convidam os amigos para suas casas? Gosto de sua companhia e pensei que seria bom para voc descansar um pouco de sua vida social, to intensa.

Suzanne mordeu o lbio para no responder. Vida social intensa! Festas eram coisa do passado. Desde que voltara de viagem, depois de um ano de trabalho, era uma pessoa diferente.

Tinha aprendido muito e experimentado emoes desconhecidas.

A atividade constante mal lhe deixava tempo para pensar. Ao chegar a seu luxuoso apartamento em Londres, porm, o peso de estar sozinha foi grande demais Recebeu o convite para ir a Hong Kong como um presente dos cus.

Agora chegava concluso de que tinha agido de forma insensata. Pensava que jamais veria Raul de novo. Cansada da viagem e abalada pela notcia, decidiu que abreviaria sua visita o suficiente para no ser indelicada. Partiria em seguida.

Desculpe, tia Janete, fui muito rude. Por favor, me perdoe. Um sorriso suave iluminou-lhe o rosto, e inclinou-se para beijar a face perfumada da amiga Obrigada por ter me convidado.

Janete segurou-lhe as mos, com uma expresso bondosa.

Mandei preparar um lanche para voc e quero que, depois de comer, v direto para a cama. Est magra demais, e a viagem foi cansativa. J hora de algum cuidar de voc.

Sem querer, Suzanne estremeceu. Era exatamente o que Raul tinha dito quando se casaram. Assim que a tia saiu, atirou-se na cama, fitando o teto. As imagens do passado voltaram-lhe mente como cenas de um filme. Raul...

Seu pai viajara, e ela resolvera dar uma festa. S que Raul tinha ficado por ali, tomando conta de tudo. As atitudes dele a irritavam profundamente. Com o passar do tempo, a festa fora se tornando cada vez mais animada. Animada demais, refletiu, pensando agora. A maioria dos convidados havia bebido alm da conta. Em determinado momento fora para o jardim, a fim de tomar ar e descansar. Um dos convidados a seguira. Era um universitrio bonito e falante, que passara a noite toda expondo seus ideais polticos.

O rapaz mal parava em p, de to bbado, e Suzanne sobressaltara-se ao v-lo to perto.

Ol, Derek. Tentara se manter calma. Tambm veio tomar ar aqui fora? Est abafado no salo, no ?

Esforando-se para se equilibrar, ele a fitara desafiante.

Tem razo, vim tomar ar. E sabe por qu? Porque todos vocs so fteis e cheios de dinheiro.

E da? ela replicara, irritada. dinheiro que foi ganho com trabalho.

Ele se aproximara, encarando-a de perto, e Suzanne dera um passo para trs.

Voc jamais trabalhou em toda sua vida.

Com um gesto brusco, apertara dolorosamente o brao dela, que tentara soltar-se.

No estou gostando disso. melhor voc ir embora, no gosto que abusem da minha hospitalidade, Derek.

verdade? Pois, ento, que tal esquecer as diferenas e nos divertirmos um pouco?

Ao dizer isso, ele a puxara para si, beijando-lhe os lbios com brutalidade, enquanto a arrastava para trs de uns arbustos. Suzanne lutara para se libertar, mas o jovem a forara a se deitar na grama, rasgando-lhe o vestido.

Na luta violenta que se seguiu, ela quase perdera a conscincia. Estava sem foras quando sentiu, com alvio, que ele era puxado para trs. Na seqncia, algum o atingira com um soco violento. Fora, ento, envolvida por dois braos fortes, que a carregaram para dentro de casa.

Era Raul. Ele a levara direto para o quarto, deitando-a na cama. Ela ainda estava paralisada pelo choque, completamente imvel, com um brao cobrindo o rosto.

Est tudo bem agora. A voz familiar era, reconfortante.

Quando ele se aproximou da cama, Suzanne comeara a tremer.

Com carinho, ele a abraara, apertando-a contra si por um longo tempo, at que se acalmasse.

No aconteceu nada demais. Felizmente cheguei a tempo. Acalme-se. A voz dele se alterara um pouco, ao perguntar: Que idia foi essa de passear no jardim com um sujeito como aquele? Estava procurando encrenca...

Toda a antipatia contra Raul voltara de repente, e Suzanne, ao notar seu vestido rasgado, revelando o suti, procurara cobrir os seios.

isso que pensa? ela havia procurado afastar as lgrimas ao encar-lo com raiva. Deve achar que agora estou querendo provoc-lo, no ?

Raul lhe estendera um leno para que enxugasse os olhos.

No seja to criana. Teve uma experincia ruim, mas acho que mereceu. Tem sido muito mimada por seu pai, que faz todas as suas vontades.

Devolvera-lhe o leno bruscamente, sem conseguir parar de tremer.

Parece Derek falando! Ele disse algo parecido antes de...

Est bem. Esquea. A voz de Raul atenuara-se ao perceber as lgrimas que voltavam. Tire o que sobrou do vestido e v dormir. Vou cuidar da sua festa.

Ele se levantara, fitando-a com uma expresso de desafio.

Se no estiver de camisola na cama, quando eu voltar, minha pequena, vou cuidar de voc pessoalmente ameaara.

Quando ele voltara, Suzanne estava acomodada na cama h algum tempo.

Beba isto dissera, estendendo-lhe um clice de conhaque.

Com um gesto decidido, ele se sentara na cama. Ela se sentira perturbada pela proximidade daquele homem to atraente.

Vamos, beba, seja uma boa menina.

A bebida a ajudara a relaxar, e ela se acomodara na cama, fechando os olhos. Apesar de tudo, sabia que Raul a salvara de uma situao perigosa.

Boa noite dissera em voz fraca. E obrigada.

No mereo nem um sorriso?

No tenho vontade de sorrir.

Eu sei, no sou to insensvel como pensa. No quero que tenha pesadelos. Esquea o que aconteceu. H outros tipos de beijo, diferentes daqueles de Derek.

O tom de voz dele no deixara dvidas. Numa atitude de defesa, ela se encolhera, permanecendo calada. Ele se aproximara lentamente e a beijara com uma delicadeza comovente.

Suzanne j havia sido beijada antes, mas era como se fosse a primeira vez. Nunca sentira nada semelhante. Surpreendera-se ao ver que correspondia com a mesma intensidade. Suas mos delicadas rodearam o pescoo de Raul, enquanto se entregava quele momento. Mais tarde, ao relembr-lo, teve a certeza de que tinha apagado a sensao horrvel deixada pela situao criada por Derek.

O beijo fora longo e profundo

Reconhecia agora que, a partir daquele momento, toda sua vida mudara. S que os caprichos de menina mimada tinham estragado tudo.

Raul estava novamente em seu caminho. S de pensar nisso, sentia uma dor atroz. Com gestos cansados, escolheu uma camisola e preparou um banho quente, para relaxar. No dia seguinte veria o que Hong Kong lhe reservava.

CAPTULO II

Ao acordar, Suzanne piscou vrias vezes para se certificar de que no estava vivendo um pesadelo. A vida lhe preparara mais uma armadilha. Precisava encontrar uma sada. No podia magoar tia Janete, partindo imediatamente, mas no queria rever Raul.

A casa pertencia s Empresas Brecourt, e ela sentia a presena velada dele por todos os cantos, Os dois anos que estavam separados pareciam reduzidos a nada. Era tudo muito vivo.

Em sua mente estava ntido o dia em que se conheceram, h quatro anos. Casaram-se quando ela estava com dezenove anos, e um ano depois j haviam se divorciado.

Logo aps a separao, partiu para a Grcia em cruzeiro com alguns amigos, a fim de se distrair. Sua nica preocupao eram os passeios e as roupas que deveria usar em cada ocasio. Com o tempo percebeu que cometera um grande equvoco. A princpio, sentiu-se aliviada. Era dona de seu destino. Dali por diante poderia viver livremente, sem a presena arrogante e dominadora do marido. Mergulhou fundo num mundo de festas, solenidades, viagens. No fundo, ela fugia de si mesma, no queria encarar a realidade: o divrcio abalara todas as suas estruturas.

Durante o ltimo ano, teve tempo suficiente para analisar seu relacionamento com Raul. Hoje via as coisas sob outro prisma; conseguia at mesmo compreender as suas atitudes protetoras. A maioria das pessoas que ento a rodeava no era sincera. Para eles, ela no era uma pessoa e sim a conta bancria e a posio social de seu pai. Nessa roda-viva, Raul sobres-

saa-se, s vezes at com atitudes paternais, numa luta inglria. Sorriu desanimada ao constatar que tivera de seguir rduos caminhos, com seus prprios ps, at dar o exato valor s coisas.

Sob a gua quente do chuveiro, fechou os olhos, numa tentativa de afastar Raul do pensamento. Enquanto se enxugava com movimentos vigorosos, percebeu que no poderia manter-se enclausurada, temendo rever o ex-marido.

A gua realmente exerceu um efeito tranqilizante sobre ela.

Depois do banho se sentia mais animada para enfrentar o novo dia. Escolheu um vestido de vero, de algodo branco, e escovou bem os cabelos, deixando-os cair em cascatas onduladas sobre os ombros. Olhando-se no espelho, imaginou como seria rever Raul. Qual seria a atitude dele? Ser que conseguiriam manter um relacionamento amigvel depois de tudo? Que bobagem! Como homem sofisticado e seguro que era, com certeza manteria a calma, mas no iria alm disso.

Num impulso, calou sandlias de salto alto e desceu para tomar caf. Janete estava sentada na varanda. Vestia um conjunto de seda verde, elegante e impecvel.

Bom dia, querida, ia mandar Sun Yu-Ren ao seu quarto com o ch. No pensei que fosse se levantar to cedo. Dormiu bem?

Suzanne acomodou-se em frente a ela e abriu o guardanapo.

Muito bem, obrigada respondeu e virou-se para Sun Yu-Ren.

Bom dia disse ele, com um largo sorriso, inclinando a cabea. Vou trazer o seu caf da manh.

Assim que ele trouxe a bandeja. Suzanne literalmente devorou tudo. No percebera, mas estava faminta! Comeu com vontade o melo e adorou as frutas chinesas. O ch verde, servido em delicadas xcaras de porcelana, era delicioso.

Depois da refeio, conversou com tia Janete enquanto ela abria a correspondncia.

Oh, no! exclamou ao ler uma carta datilografada. Pretendia lev-la para passear nesta manh, mas me esqueci que tinha marcado uma entrevista com jornalistas de Londres. Justo hoje! Esqueci-me completamente!

Dando de ombros, continuou explicando, como se falasse consigo mesma.

uma dessas revistas mensais que adoram contar a vida de pessoas conhecidas. Sabe como : fotografias no jardim e nas salas principais... Prometi jornalista que atenderia hoje de manh...

No se preocupe Suzanne apressou-se em tranqiliz-la. No desmarque seus compromissos por minha causa. Ficarei no meu quarto ou darei um passeio.

Por favor, fique aqui. Nunca fui entrevistada, e voc pode me dar um apoio. Sei que uma futilidade, mas no podia recusar. Pedi a Raul que viesse, mas ele apenas riu Na verdade, acho que no me levou a srio.

Ao saber que ele no viria, Suzanne relaxou. Pelo menos teria mais tempo para se preparar. Enquanto os jornalistas estivessem em casa, faria companhia a tia Janete. S a presena de algum conhecido j seria o suficiente para deix-la mais segura e vontade durante a entrevista.

Tomara que no fiquem muito tempo suspirou, dobrando o envelope. Creio que vo almoar aqui. Gosta de comida chinesa?

Suzanne riu ao v-la to preocupada.

No sou exigente. Gosto de quase tudo!

Sorte sua. Quando cheguei, no podia nem pensar em comida chinesa. Hoje, adoro todos os pratos e no dispenso o ch verde.

Conversavam animadamente sobre culinria quando o rudo de um carro quebrou o silncio.

Deve ser eles Janete sobressaltou-se como uma adolescente.

Logo em seguida, um jovem casal entrou pelo ptio, olhando volta com curiosidade. primeira vista pareciam bastante descontrados.

A mulher se dirigiu a elas com um sorriso corts:

Bom dia. Espero que a hora no seja inconveniente.

Ao mesmo tempo, observava as duas com ateno. Deteve-se em Suzanne por um momento, como se reconhecesse.

claro que no. No fundo, tia Janete estava adorando tudo aquilo. Vocs so Norma Reagan e Neil Kilbridge, no? Fiquem vontade.

uma linda casa. Bem grande, no ? O olhar avaliador da jovem voltou-se de novo para Suzanne. J no nos vimos antes?

Janete interrompeu depressa.

Minha amiga acaba de chegar do exterior.

Norma Reagan arrumou a ala da bolsa no ombro e cruzou os braos, sem inteno de desistir.

Neil, venha c. No a conhecemos de algum lugar? perguntou, indicando Suzanne.

Neil Kilbridge riu com malcia, sem esconder um olhar de admirao.

Se a tivesse visto antes, garanto que no a esqueceria. Tenho certeza de que no nos conhecemos.

Imvel ao lado de Janete, Suzanne no respondeu. Estava muito plida s por recordar algumas cenas que definitivamente queria esquecer. O flash da mquina a transportou para o dia de seu casamento. Havia uma multido de jornalistas. Era bem possvel que Norma tambm estivesse presente.

Preocupada, Janete tentou mudar de assunto.

Bem... estou disposio. Por onde querem comear?

Ao ouvir passos, Suzanne se colocou em estado de alerta, intua que era ele. Seu corao quase parou, e os lbios delicados se abriram, sem emitir qualquer som. Ao se deparar com Raul, seu rosto plido corou. Era incrvel, ele continuava o mesmo. Esguio e viril como sempre.

Por favor, Suzanne, voc pode ir at a cozinha e pedir a Sun Yu-Ren para fazer um ch? pediu Janete.

Por um momento ela no se moveu, fitando a tia, numa atitude infantil. Num impulso, levantou-se depressa e caminhou para a cozinha. Era uma excelente oportunidade para ganhar tempo.

"Deus a abenoe, tia Janete", suspirou Suzanne, grata pela chance de se recompor.

Na cozinha, parou por um momento, tentando se controlar. Depois de falar com Sun Yu-Ren, a coragem desapareceu de novo. No podia encontrar Raul. De repente, fugiu para o quarto e fechou a porta, sentando-se na cama.

Mas no podia ficar ali indefinidamente. Logo tia Janete levaria os jornalistas para fotografar a casa, e ela precisaria estar presente. Levantou-se, arrumou o vestido, retocou a maquilagem e escovou os cabelos. Logo estava descendo as escadas.

Com determinao, dirigiu-se para a sala. Sun Yu-Ren j tinha servido o ch, e estavam todos sentados conversando. Ser que conseguiria sair pelos fundos?

Por que est parada a, Suzanne?

A voz familiar a fez tremer. Raul estava a seu lado, na porta da sala, e Suzanne o fitou sem dizer nada. Os cabelos negros e sedosos estavam mais compridos, e o rosto parecia mais plido. A boca bem feita tinha uma expresso grave, mas ainda assim ele sorriu, fitando-a intensamente. Ela conhecia bem aquele olhar, parecia ter o poder de enxergar at a parte mais ntima do seu ser. Sentia-se deslumbrada.

Ol, Raul. Como vai? Sua voz soou fraca, e ela se afastou um pouco, como se temendo a proximidade dele.

Estou bem. Por que no voltou logo? Todos esperavam por voc. A intensidade do olhar aumentou. O que tem feito? por acaso esteve doente?

No.

O que aconteceu? Ser que conheceu um amor impossvel na viagem, e agora est definhando de saudades?

No houve nada. Por que pergunta?

Est plida e magra demais.

Viajei para tentar pr as idias em ordem respondeu, formal.

E conseguiu?

Em parte. Apesar da determinao de trat-lo com frieza, Suzanne tremia. Agora, se j terminou seu interrogatrio, podemos nos juntar aos outros, no ?

As visitas no vo demorar explicou, enquanto a conduzia ao terrao, onde estavam os outros. Num impulso, ele parou e disse baixinho. Senti muito a morte de seu pai. Gostava muito dele.

Suzanne no pde encar-lo e mordeu o lbio com fora. "Que cnico!" Vir a Hong Kong tinha sido um erro. A nica coisa que desejava era voltar para casa. Juntaria toda a sua fora de vontade e esqueceria Raul. Ao encontr-lo, uma srie de lembranas dolorosas voltaram tona.

Tia Janete saudou-os calorosamente.

Suzanne, Raul, venham tomar ch.

Neil Kilbridge levantou-se e ofereceu uma cadeira a Suzanne, enquanto Raul se sentava ao lado da tia, que servia o ch.

Tem uma linda casa, monsieur de Brecourt. Talvez concorde em posar para algumas fotografias da reportagem. A voz de Norma Reagan era rouca e insinuante.

Raul sacudiu a cabea e bebeu o resto do ch.

Sinto muito, mas tenho um encontro e no poderei ficar. Espero que me desculpem.

A reprter no escondeu seu desapontamento.

Nem mesmo uma nica fotografia? insistiu.

Ele tornou a negar, com um sorriso displicente, enquanto se inclinava na direo de Suzanne, para servir-se de mais ch.

Trmula pela proximidade, ela se afastou e, ao faz-lo, a xcara escorregou-lhe da mo e caiu entre os dois. Ao mesmo tempo, inclinaram-se para evitar que casse no cho. Suas mos se encontraram quando tentavam pegar a xcara.

Desculpe disse ele.

Foi minha culpa.

Suzanne afastou a mo, furiosa por ter demonstrado seus sentimentos e envergonhada pelo rubor que lhe subiu ao rosto. Ao erguer os olhos, viu que Norma Reagan a observava com interesse. Ser que a reprter tinha lembrado quem era ela?

Sem parecer que notara seu embarao, Raul levantou-se e pediu desculpas, entrando na casa. Os dois jornalistas tambm se levantaram e comearam a fotografar o jardim.

Vou acompanhar nossos convidados e mostrar-lhes a casa. D um passeio, ou descanse at a hora do almoo, Suzanne disse Janete, ansiosa por ajudaria.

Por um momento, ela hesitou, ao se lembrar de que estava num pas desconhecido. Notando sua relutncia, Janete explicou:

Sinto que meu carro no esteja disponvel, mas no estamos longe da rodovia principal, e os nibus so eficientes e pontuais. Pode sair tranqila. Ela parecia ansiosa para que Suzanne sasse, evitando as perguntas embaraosas da reprter.

Suzanne no culpava Janete por querer evitar comentrios desagradveis, caso algum a identificasse. Se tivesse idia de como Suzanne estava se sentindo, certamente sua preocupao dobraria.

O contato dos dedos de Raul tinha sido como um choque eltrico. Vinham-lhe flor da pele todos os sentimentos sufocados h mais de um ano. No podia negar que o amava e que faria qualquer coisa para v-lo mais uma vez.

Pegou a bolsa e desceu lentamente as escadas, pensativa.

Que tal posar para uma foto? pediu Norma, com um sorriso dissimulado.

Por favor, srta. Suzanne! reforou Neil Kilbridge, com entusiasmo. Nada como uma linda garota para valorizar as fotos!

Ela apertou a ala da bolsa, sem saber o que dizer. Tia Janete, apesar de constrangida, procurou um modo de evitar a foto sem ser indelicada.

Sinto muito, mas Suzanne no poder ficar. Vou lev-la cidade.

A voz firme de Raul quebrou o gelo, e Suzanne apenas o olhou, surpresa ao sentir como a ligao entre eles ainda parecia existir. S a presena dele a fazia agir com calma, e at conseguiu sorrir.

Estou pronta respondeu, passando por Norma, que estava parada na escada.

Cuidado! Dizem que d azar cruzar com algum na escada advertiu a reprter, com uma risadinha.

Ao deixarem a casa, em direo ao carro, Raul perguntou:

Voc no queria tirar a foto, no ?

No, lgico que eu no queria. Nem como sua ex-esposa, nem como Suzanne Dawson.

Ele ergueu uma sobrancelha e fitou-a provocante.

Est arrependida do divrcio? perguntou, parecendo divertido.

Suzanne ficou muda e virou o rosto, para evitar-lhe o olhar.

Quando nos casamos eu flertava com vrios rapazes. Mas sabia muito bem que no amava nenhum deles, incluindo voc.

s vezes o amor uma questo de convivncia ele replicou.

Isso no se aplica a voc, no , Raul? Sabe o que quer e faz tudo para conseguir. Tem razo. Mas tambm cometo enganos. Felizmente, costumo perceber os erros a tempo de evitar desastres maiores.

Suzanne olhava para as mos fortes sobre o volante, refletindo que a conversa se encaminhava para um terreno perigoso, sem que fosse capaz de evit-lo.

Sempre com uma resposta na ponta da lngua ela provocou, sem poder se conter. Deve ser interessante para voc ver como os simples mortais costumam errar.

Ele sorriu, sem desviar os olhos da estrada, no demonstrando raiva nem irritao.

No acha que podamos fazer as pazes? sugeriu, suavemente. Se continuarmos a discutir, todos vo pensar que ainda somos marido e mulher. No concorda comigo?

Estavam chegando ao centro da cidade.

Raul diminuiu a velocidade e disse, enquanto estacionava junto calada.

Terei de deix-la aqui, porque tenho uma reunio de negcios. Sugiro que visite as lojas da rua principal. O correio aqui perto e poder comprar cartes postais e selos. Virei busc-la aqui mesmo, dentro de uma hora, para almoarmos juntos.

Ela se virou para encar-lo, surpresa. Sua vontade era gritar que no era mais aquela menina mimada; que amadurecera a duras penas e sabia muito bem cuidar de si. Mas no disse nada.

Era incrvel que ele ainda a tratasse daquela maneira, usando um tom paternal. No iria mais aceitar isso. Tinha levado quase dois anos para descobrir que ele era o nico homem que marcara sua vida. Queria que ele a visse como mulher. Enfim, agora era tarde demais, e no deveria ter falsas esperanas. Ele era um homem seguro e experiente, que a afastava de sua vida com a maior tranqilidade. Precisava ser sensata o bastante para fazer o mesmo.

Tia Janete me espera para almoar. No se preocupe comigo. Vou dar uma volta e, em seguida, voltarei para casa.

J disse que apanho voc dentro de uma hora. Est num pas estranho. Hong Kong no Londres. Tia Janete espera que eu tome conta de voc e sabe que a levarei para almoar insistiu Raul.

Ele se inclinou para abrir a porta e parou com a mo na maaneta. Suzanne apertou-se contra o assento, para evitar aquela proximidade perigosa. O suave aroma de sndalo era familiar e lembrava momentos to ntimos que ela fechou os olhos por um instante.

Extremamente perturbada, reagiu da maneira mais agressiva possvel. Era sua nica defesa.

No quero dar trabalho. J disse isso a tia Janete. No sei se sabe, mas o convite dela foi feito um ano atrs. Alm disso, no esperava encontr-lo aqui.

Ele se virou e fitou-a de perto.

O que h em voc que me d vontade de lhe dar uma surra? Sei que no tem tempo para mim, mas veio at aqui e cuidaremos para que volte s e salva. Alis, por que resolveu vir?

Vim para c porque no conseguia enfrentar Londres sem meu pai. Achei que precisava de um tempo. O ano que passei viajando me ensinou muito sobre independncia, mas, ao voltar para casa, a solido foi grande demais.

Com voz rouca, Raul argumentou:

Apoiar-se em tia Janete no vai adiantar. Precisa de um marido.

Tentei uma vez e foi um desastre, como sabe. Quando algum estende a mo, num momento em que precisamos de ajuda, no se pode recusar. Sua voz soava trmula, ela falava sem erguer os olhos. Tia Janete me ofereceu refgio e afeto, mas no pretendo abusar. Voltarei logo a Londres.

Ento cuidaremos para que volte recuperada. Apanho voc no correio, dentro de uma hora, e melhor que esteja l. Vou almoar com uma pessoa amiga e, portanto, no estaremos sozinhos. No pense que est me atrapalhando.

O rosto dele era to bonito e estava to prximo que o corao de Suzanne disparou. Ao descer do carro, suas pernas tremiam tanto que mal podia andar. Reuniu todas as foras e tentou sorrir. A simples presena de Raul balanava todos os seus alicerces. A princpio achara que conseguiria contornar bem a situao. medida que o tempo passava, no entanto, ficava

cada vez mais difcil. As emoes que camuflara brotavam agora com toda intensidade. Ele, s ele era capaz de despertar-lhe tais sentimentos. Fora o primeiro homem de sua vida. O nico. Irritada, viu-o afastar-se no enorme carro luxuoso, desaparecendo no meio do trnsito. Como ousava dizer que ela precisava de proteo? O que era pior: de um marido? As vitrines das lojas expunham as mercadorias mais diversas: relgios, prolas, diamantes, marfim, jade, seda, porcelana, cristais, corais, tapetes magnficos. Durante o passeio chegou a esquecer-se de seus problemas.

Na verdade, nunca tinha visto algo parecido, e apreciou a caminhada com prazer. Uma pessoa podia passar meses observando tudo aquilo, pensou.

Numa das vitrines algo lhe chamou a ateno: um lindo bracelete de jade, extico e delicado. Imediatamente decidiu entrar para perguntar o preo. Um par de brincos combinando estava colocado ao lado, e o vendedor sorriu, apressando-se em tirar as jias da vitrine.

Ela achou que eram perfeitos para tia Janete, e j ia pedir para embrulhar quando um rudo vindo da rua chamou-lhe a ateno.

Atravs da porta aberta, viu a figura inclinada de um jovem tentando alcanar algo que derrubara. Na mesma hora, reconheceu o rapaz cego que se sentara a seu lado na viagem. Com um murmrio de desculpas ao vendedor, correu para a rua e apanhou a bengala branca, entregando-a ao dono.

Aqui est disse ela. Est sozinho?

Ele se virou, e Suzanne ficou surpresa ao notar como parecia frgil. O rosto magro estava plido, e ele tinha um ar doentio. Voc est bem?

O jovem continuava impassvel, concentrado, como se fizesse um esforo para se lembrar de algo. Em seguida, sorriu:

aquela garota bonita que sentou a meu lado no avio, no ?

Surpresa, Suzanne perguntou sem pensar:

Mas como pode se lembrar de mim e saber como sou?

Posso ver alguns contornos e cores, e h um perfume a sua volta, que diz muito sobre voc. Como se chama?

Suzanne, Suzanne Dawson. E voc?

Alan Edge. Obrigado, srta. Dawson.

Um raio de sol iluminou o rosto do rapaz, e Suzanne ficou impressionada com sua palidez e seu ar abatido. Algo o estava perturbando, e desejou ajud-lo.

Estou fazendo algumas compras. Posso ajud-lo em alguma coisa? Acho que muito corajoso, andando por aqui sozinho.

Estava indo para as docas e no quero det-la por mais tempo.

Oh, no se preocupe. Vou almoar com um amigo, mas ainda tenho tempo. Se quiser, posso acompanh-lo.

Ele hesitou, como se fosse recusar, mas acabou aceitando com um sorriso. Suzanne pegou-o pelo brao e dirigiram-se para o porto. Ela procurou se orientar pelas placas indicativas, conduzindo-o atravs da multido.

Suponho que disponha de um co guia disse ela.

No. O acidente com meus olhos aconteceu enquanto meu navio estava ancorado no porto ele explicou. Foi uma exploso na casa das mquinas. Eu estava noivo e ia me casar logo. Minha noiva, Jane, encontrava-se em Singapura, com um grupo de bailarinos, e soube do acidente quando voltava para c. S que eu estava no hospital e nos desencontramos.

Que falta de sorte! murmurou Suzanne. Ela ainda est aqui?

No sei. A exploso no foi sria, e o navio partiu logo depois de fazer os reparos. Fiz perguntas por todo lado, mas at agora no tive notcias dela. At polcia eu j fui, mas no puderam fazer nada.

J estavam quase no porto quando Alan parou, assegurando que podia continuar sozinho.

No precisa vir comigo disse ele. Obrigado pela ajuda, mas daqui posso ir sozinho. Muito obrigado por tudo.

CAPTULO III

Raul j esperava por ela no correio, encostado displicentemente do lado de fora do carro.

Desculpe. mais tarde do que pensei disse esbaforida pelo esforo da corrida que empreendera para chegar a tempo.

Acabo de chegar ele falou. Parece que est com calor.

Numa atitude gentil, ele abriu a porta para que Suzanne entrasse no carro.

Adoro andar ao sol! disse.

O olhar zombeteiro de Raul percorreu-a de alto a baixo, fazendo-a corar ainda mais.

Por que veio a Hong Kong sozinha? Sabe que no consigo imagin-la como uma pessoa solitria? Sempre adorou viver cercada de gente, no verdade?

Acha que me conhece muito bem, no , Raul? De qualquer forma, no tem nada a ver com minha vida.

Digamos que eu tenha uma fraqueza que me leva a tentar ajudar os desprotegidos. Especialmente voc. De to superprotegida que foi, no tem a mnima estrutura para enfrentar a vida.

Suzanne ergueu o queixo, desafiante. A ltima coisa que desejava no mundo era a piedade de Raul. Ele no deu mostras de perceber sua atitude belicosa de to atento ao trfego que estava.

Aprendo depressa ela voltou carga. E tive um bom professor: voc.

Tambm aprendi algumas coisas com voc. Est surpresa?

claro. O que eu podia ensinar que j no soubesse? A ironia de sua voz era cortante.

No disse que me ensinou ele corrigiu. Apenas aprendi algo com voc, o que uma coisa bem diferente.

Verdade? Ento me diga o qu.

Bem, acho que vou comear com as coisas boas provocou-a. Descobri que seu corpo to perfeito quanto aparenta. S que, no momento, est magra demais.

Ela o olhou indignada, estava to furiosa que no conseguiu responder.

Ainda no acabei. Sua aparncia delicada um disfarce.

Essa pele clara e os lbios rosados escondem uma sade de ferro. Apesar de parecer frgil, forte e sadia.

Que sujeito petulante! Quem pensava que era para analis-la dessa forma? O que pensava que fosse, um objeto raro, passvel de ser criticado? Ele no tinha o direito de trat-la assim.

Com uma guinada na direo, Raul entrou numa rua tranqila e parou em frente a um muro alto, completamente alheio s sensaes que desencadeara. O ar quente atingiu-a, assim que saiu do carro. Raul segurou-a pelo brao, conduzindo-a a um pesado porto de madeira. Ao entrar, Suzanne deparou-se com um ptio acolhedor e agradvel. O perfume das mimosas enchia o ar, e cadeiras de vime espalhavam-se pelo jardim. Ao fundo, uma pequena casa em estilo chins.

Silvana Lapport aproximou-se, vestindo um quimono de seda azul, parecendo ainda mais linda. Raul caminhou em sua direo, sorrindo.

Ento voc, Raul. E trouxe Suzanne, como prometeu saudou-os, estendendo a mo esguia para cumpriment-los.

Dando os braos aos recm-chegados, conduziu-os a uma sala fresca e agradvel.

Sente-se, Suzanne. Raul servir os aperitivos. Espero que goste de comida italiana. Agora, com licena um instante.

Como uma perfeita anfitri, instalou Suzanne junto a uma pequena mesa," arrumada com capricho: pratas e cristais brilhavam, um arranjo de flores completava a decorao. Em seguida, saiu da sala, dirigindo-se cozinha.

Raul preparou os drinques num pequeno bar, com uma desenvoltura incrvel. Ao observ-lo, a idia que a assaltara quando vira Silvana pela primeira vez assumiu outras dimenses. Ele parecia completamente vontade, como se estivesse habituado casa. Com certeza os dois costumavam passar as noites naquela sala acolhedora. Sentindo-se uma intrusa, estendeu a mo para pegar o copo que ele lhe oferecia. Agradeceu como um autmato.

Foi s quando levou a bebida aos lbios que percebeu surpresa que ele no havia se esquecido da sua preferncia.

A prpria Silvana tinha preparado a refeio, e no havia sinal de empregados. Era evidente que fizera tudo para impressionar.

Na realidade, o almoo estava delicioso. Apesar disso, Suzanne mal tocou na comida. Por mais que se esforasse, no conseguia se sentir vontade.

De certo modo, Silvana a perturbava at mais do que Raul.

A voz rouca e sensual dava-lhe uma sensao de desconforto, apesar da atitude gentil da jovem italiana.

O que est achando de Hong Kong? ela perguntou, sorrindo.

Gosto muito respondeu, polida.

Pois eu adoro viver aqui. A vida nunca montona. H muito a explorar. S os diferentes tipos de cozinha so um verdadeiro desafio.

Silvana pegou o copo de vinho e bebeu um gole, olhando para Raul. Notando a troca de olhares, Suzanne estremeceu, sem querer. Qual seria o relacionamento entre eles? O que significavam um para o outro? De qualquer forma, no era da sua conta. Com um gesto cavalheiresco, Raul ergueu o copo, num brinde a Silvana. Embora o observasse com ateno, Suzanne no saberia definir o sorriso dele. Era um misto de cinismo e afetividade.

Espero que possa ficar aqui por muito tempo. Seno terei que achar uma cozinheira melhor e uma anfitri mais bonita. Vai ser difcil.

S isso? perguntou ela.

No o suficiente? ele replicou, ao se levantar. Agora vou fazer caf.

Raul recolheu os pratos e os copos, arrumou-os numa bandeja e levou tudo para a cozinha. Mais uma vez Suzanne achou que o lugar dele era ali, naquela adorvel casa chinesa. Por que Silvana no tinha empregados? Provavelmente os dispensava para no atrapalhar o almoo a dois.

Sabe, Suzanne, tenho uma diarista para fazer o servio da casa explicou com um sorriso. Portanto, no preciso me preocupar em lavar a loua. Como sabe, queria muito conversar com voc. H tempos ouvia falar da ex-esposa de Raul e desejava conhec-la.

Ento j sabia quem eu era?

claro. Venha, vamos at o terrao para tomar caf. Fique vontade.

Silvana conduziu-a a uma pequena rea decorada com mveis de junco e um toldo colorido. Suzanne sentou-se, procurando aparentar uma naturalidade e tranqilidade que no sentia. No estava gostando do rumo que as coisas tomavam. At que ponto a outra saberia de seu relacionamento com Raul? Com certeza, fora tia Janete quem lhe dera as informaes. De qualquer forma, no gostava de ter sua privacidade invadida e, muito menos, de ter de submeter-se a interrogatrios.

Estou surpresa. Voc no o tipo de pessoa que imaginava casada com Raul. to tipicamente inglesa, to frgil e jovem, que mais parece uma boneca. Confesso que esperava algum completamente diferente.

Tenho vinte e dois anos.

Mas era ainda mais nova quando se casou com ele. Raul um homem bastante experiente. Voc o oposto dele.

A idia de a outra fazer uma anlise de seu casamento no a agradou e, alm disso, no pedira a opinio de ningum. Procurou deixar bem claro que no pretendia levar o assunto adiante, apesar de sentir-se ferida pelas palavras da outra.

Tenho conscincia de que muitas mulheres desejariam ter se casado com Raul. S que ele se casou comigo. De qualquer modo, est tudo acabado. No quero mais falar disso. Em seguida, apressou-se em justificar. Por favor, no me interprete mal. Aprecio sua franqueza, mas responda sinceramente no acha que perda de tempo discutirmos nossos casamentos?

Por um momento, os olhos negros de Silvana tornaram-se sombrios, mas em seguida ela sorriu:

Vamos ser boas amigas. Tenho certeza afirmou, dando um tapinha amigvel no brao de Suzanne.

Ser que perdi alguma brincadeira? perguntou Raul, ao voltar e ver que ambas sorriam.

Ele trazia o caf numa bandeja e serviu-o com cuidado. Parecia descontrado, e o rosto bonito revelava um contentamento genuno. Se ao menos pudesse esquecer os momentos que haviam passado juntos, pensou Suzanne.

No foi nada disso, querido. Apenas uma conversa de mulheres respondeu Silvana com voz rouca, ao pegar um cigarro na caixa de marfim, sobre a mesinha de vidro. Raul apressou-se a acend-lo e ofereceu um a Suzanne, que recusou.

Ao v-lo inclinar-se sobre a mureta da varanda, fumando vagarosamente, Suzanne desejou ser mais velha e experiente. Silvana e Raul no pertenciam ao seu mundo. Eram sofisticados e vividos, e pareciam feitos um para o outro. Ao observar o perfil msculo, lembrou que jamais demonstrava cansao, irradiando sempre energia e vitalidade, mesmo aps um longo dia de trabalho.

Obrigada pela refeio deliciosa disse com sinceridade, tentando quebrar o silncio constrangedor.

Gostou? Silvana sorriu. Estou ensinando Raul a fazer comidas italianas. S que vamos muito devagar, porque ele um homem muito ocupado.

Raul virou-se, e Suzanne duvidou que era apenas a cozinha italiana o motivo de tanta intimidade.

Enquanto isso, aproveito a comida de Silvana sorriu, ao virar-se para ela. No se esquea de que acho a cozinha francesa insuportvel.

Cnico! S por isso, ter que fazer um daqueles pratos franceses maravilhosos para mim uma noite dessas.

Quando quiser, madame. No vai se arrepender ele riu, e os olhos escuros brilharam.

Suzanne podia sentir a atmosfera de sensualidade que os envolvia. No era imaginao sua, era muito fcil perceber a atrao quase selvagem que os unia. Suspirou, contrariada. Aquele almoo tinha se transformado num verdadeiro suplcio para ela. Com sua mente atormentada, podia at v-los abraados na penumbra da sala. Estremeceu s de imaginar a cena. Ser que algum dia deixaria de am-lo?.

Apagando o cigarro num belo cinzeiro em forma de drago, Raul olhou para o relgio.

Preciso ir agora. Est pronta, Suzanne?

Silvana despediu-se dos dois e ficou acenando do porto, at v-los desaparecer. Impossvel no se gostar dela; alm disso, Suzanne no a conhecia o suficiente para julgar se era sincera ou no. Inegavelmente, era uma mulher linda, ciente do seu charme. Mas Raul no era tolo. De repente, lembrou-se de algo que seu pai lhe dissera um dia.

Raul um desses homens fascinantes, que todas as mulheres adoram, mas no tolo. Por isso, gostaria que se casasse com ele. Todo homem ama uma mulher mais do que as outras durante boa parte da vida. Tenho certeza de que essa mulher ser voc.

Ela fechou os olhos. O pai se enganara. No era ela a mulher mais importante da vida de Raul. Est muito quieta. Ser que preferia ter ido a um restaurante?

Ao abrir os olhos, Suzanne fitou as mos fortes sobre o volante. Podia senti-las sobre seu corpo, acariciando-a lentamente, provocando as mais loucas sensaes...

No, claro que no. A comida estava deliciosa e Silvana encantadora.

mesmo. Como voc, precisa de um marido. muito feminina e vulnervel para viver sozinha.

Mas ela divorciada, no ?

O carro elegante deslizava veloz por ruas e avenidas.

, sim, s que a religio dela no reconhece o divrcio.

Quer dizer que ela no pretende se casar outra vez?

Eu no disse isso ele sorriu. Sendo uma criatura to apaixonada, bem provvel que o faa.

O ex-marido muito mais velho do que ela? perguntou sem esconder a curiosidade.

Est pensando se h possibilidade de ele morrer logo? retrucou Raul, fitando-a de modo estranho.

No nada disso. Foi s uma pergunta.

Entendo ele murmurou. Para ser franco, o homem no s muito mais velho, mas muito doente.

Suzanne ficou silenciosa, medida que o carro se aproximava

da casa dos Brecourt.

No vai perguntar se estou interessado nela? Raul olhou-a divertido, como se pudesse ler sua mente.

Por que deveria? Acha que estou interessada no que sente? Voc livre para fazer o que quiser.

Pensei que quisesse saber ele replicou, com um tom de voz ambguo.

Sem responder, Suzanne procurou controlar a raiva. Este era o Raul que detestava, sempre seguro e capaz de decifrar seus mais ntimos segredos.

Quanto tempo pretende ficar aqui? perguntou, mudando de assunto.

Por enquanto, estou usando Hong Kong como minha base de operaes. Quando preciso, viajo ao resto do mundo e volto para c. Isso a desaponta?

Por que deveria? No tenho nada a ver com isso. Suzanne sentia que sua voz no era convincente. No sabia mentir.

S que Raul jamais saberia quanto o amava.

Tia Janete no vai ficar aqui para sempre. Sabe disso, no ? Depois que tio Philippe voltar, planejam viver em Paris.

Ela me contou. Espero v-lo antes de voltar a Londres.

No tenho dvida. Tio Philippe gosta muito de voc. Bem, chegamos disse ele, ao parar o carro junto ao porto. Tem planos para hoje noite?

Vou fazer companhia a tia Janete. Na pressa de descer, no conseguiu abrir a porta, e ele teve de ajud-la. Entrou na sala feito um furaco. Tia Janete percebeu de imediato o rosto corado e os olhos brilhantes.

Gostou do almoo, querida? Venha se sentar aqui para me contar tudo. E Raul? Onde est?

Acho que tinha uma reunio respondeu Suzanne, afundando numa poltrona e tentando sorrir. Continua dominador como sempre concluiu, tentando dar um tom de indignao voz.

Eu no diria que continua o mesmo. Acho que mudou muito. No sei dizer ao certo o que , mas ele me preocupa. Gostaria que se casasse e levasse uma vida mais tranqila.

Sem erguer os olhos do tapete, Suzanne disse, lentamente:

Isso me leva a perguntar outra vez por que me convidou a vir aqui. Nunca mais me procurou aps o divrcio. Encarou tia Janete de frente. Sei que tem todo o direito de pensar o pior de mim.

No acho que esteja apta a julgar algum, nem que tenha esse direito. Havia uma ponta de tristeza em sua observao. Acho que vocs estavam imaturos para o casamento. s.

Talvez eu no tenha sido feita para o casamento. O que acha? Suzanne olhava para Janete com uma expresso franca, procurando uma resposta objetiva. Gostaria de explicar a ela que o casamento fora um arranjo de negcios. S depois do divrcio percebera que amava Raul. Mas calou-se. Isso era um assunto morto.

Os olhos de tia Janete suavizaram-se e ela sorriu:

A vida foi generosa com voc. Tem muitas qualidades e ainda jovem. Mudando de assunto, continuou: Deve visitar-nos em Paris, quando Philippe e eu nos mudarmos. Quero lhe mostrar muitas coisas bonitas e romnticas. Quem sabe possa encontrar ali a felicidade que procura.

Suzanne sorriu, voltando pergunta.

Ainda no disse por que me convidou.

Com a voz delicada, Janete respondeu:

Acho que queria v-la. Pensei que pudesse conhec-la melhor.

Numa visita to curta?

Pode-se saber muito sobre uma pessoa durante apenas a hora do ch. Alis, no acha uma boa idia pedirmos a Sun Yu-Ren que nos traga uma xcara? Enquanto bebemos, pode me contar o que planeja usar nesta noite.

Quem disse que vou sair? Suzanne parecia surpresa.

Com certeza, Raul a convidou para sair. E, se for sensata, vai aceitar. Ora, que garota, em seu juzo perfeito, se recusaria a jantar numa das cidades mais fabulosas do mundo, ao lado de um homem encantador? Alm disso, acho que precisam conversar. Quem sabe no resolvem de uma vez por todas as divergncias?

Suzanne estremeceu ao pensar em algo que no tinha lhe ocorrido antes.

Por que Raul no est hospedado aqui? No disse que a casa para hospedar o pessoal da companhia?

Janete pareceu pouco vontade e hesitou antes de responder:

Raul mudou-se porque no queria aborrec-la com sua presena. Est morando no clube.

Oh, no! Suzanne ergueu a mo, para disfarar o rubor do rosto. Devia ter me dito! Sinto-me to mal com essa situao...

Quer dizer que no viria, se soubesse que ele estava aqui?

No, com certeza no viria afirmou com segurana. No quero favores de Raul. Nem sequer toquei no dinheiro que me deixou. Sou completamente independente dele.

Talvez Raul pense da mesma forma e por isso preferiu se afastar. Creio que ele tambm pretende conservar a independncia. Janete falava devagar, procurando ser cautelosa.

As ltimas palavras atingiram Suzanne como um baque. Num esforo sobre-humano, conseguiu conter as lgrimas. Ento era isso! O cho pareceu abrir-se sob seus ps.

Quer dizer que ele tem medo de que eu tente fazer as pazes, s pelo fato de estar aqui? um absurdo!

Sun Yu-Ren entrou com o ch, quebrando o clima tenso, e comeou a encher as xcaras.

Suzanne estava furiosa! Aquilo era injusto! Jamais pensara que Raul encarasse sua visita como uma tentativa de reconciliao. No costumava se importar com o que os outros pensavam, mas com ele era diferente.

Ao se lembrar da conversa que haviam tido no carro, recordou que dissera que ela precisava de um marido. E tinha insistido para saber o motivo que a trouxera a Hong Kong. Bem, teria de deixar tudo bem claro.

CAPTULO IV

Ao se olhar no espelho na manh seguinte, levou um choque: toda a agonia que sentira durante a noite ainda estava estampada cm seu rosto. Desanimada, caminhou para o banheiro. Nada como um bom banho para revigorar. Demorou-se muito no chuveiro, procurando aliviar a tenso. S depois de enxugar-se que leve coragem de se olhar no espelho novamente. Suas plpebras continuavam inchadas, as profundas olheiras acentuavam seu aspecto desolado. Por que tinha de ser to tola a ponto de deixar transparecer a todos o que sentia?

Exausta, constatou que no havia mais nada a fazer e desceu para tomar caf. Tia Janete surpreendeu-se ao v-la.

Bom dia, querida. Dormiu bem? perguntou, tentando disfarar a preocupao, enquanto servia o ch.

Sim, o que surpreendente, depois de uma refeio como aquela mentiu, pegando a xcara de ch. ; No ficou chateada por eu ter ido para a cama quando cheguei, no ?

De jeito nenhum. Devia estar exausta. Vocs jovens sempre abusam de tudo.

Suzanne tomou um gole de ch, procurando ser tolerante.

No me diga que estou magra demais. Desde que cheguei todos falam nisso.

Com um leve erguer de sobrancelhas, Janete perguntou:

Tambm Raul?

O rosto de Suzanne corou, e ela no conseguiu dizer nada, limitando-se a assentir com um gesto de cabea. Por um instante, Janete fitou-a com ateno. Em quaisquer circunstncias, seus olhos azuis eram francos e lmpidos como os de uma criana.

Flores para a senhorita. O mensageiro avisou que o carto est dentro.

Sun Yu-Ren entregou-lhe o buqu de rosas vermelhas, dando-lhe um sorriso. Ela retribuiu e pegou o carto, preso com uma fita de cetim vermelha. Ao abri-lo, o silncio era completo. O empregado e tia Janete aguardavam curiosos seus comentrios. A letra firme e masculina era-lhe muito familiar.

"Aproveite sua visita. Raul."

Com calma, Suzanne colocou o carto ao lado do prato e pediu a Sun Yu-Ren para pr as flores na gua. Ento, ergueu a cabea, enfrentando o olhar interrogativo da anfitri.

So de Raul explicou, consciente de que mais uma vez deixara transparecer o quanto estava abalada.

Janete, por sua vez, esperava que ela lhe fizesse confidencias. Ser que Suzanne amava Raul, apesar do rompimento? No era possvel. O sobrinho nunca entrara em detalhes sobre a separao. Alm disso, ela e Philippe sempre atriburam a culpa do rompimento imaturidade de Suzanne.

Deve ser um presente de despedida falou sem pensar, de to perturbada que estava.

Despedida? Suzanne repetiu com voz fraca. Quer dizer que Raul foi embora?

Sim. Ele no lhe contou?

Um estranho tremor a percorreu. Todo seu corpo latejava. De repente, viu-se mergulhada num estado de torpor. Ainda h pouco, tentava se convencer de que a ausncia de Raul seria o melhor para ambos. S que agora seu corao dizia algo bem diferente.

As duas comeram em silncio, enquanto tia Janete abria a correspondncia que acabara de chegar. claro que Suzanne gostaria de perguntar para onde Raul tinha ido, mas relutou para no revelar seu interesse. De mais a mais no tinha o direito de fazer perguntas sobre ele. No sabia qual seria a reao de Janete, mas estava certa de que no aprovaria.

No tem curiosidade em saber para onde ele foi? perguntou Janete, erguendo os olhos da carta que estava em seu colo.

Mais uma vez, Suzanne corou, no conseguiu esconder sua perturbao.

Um pouco admitiu, sem coragem de mentir. O fato de estarmos divorciados no significa que o outro deixou de ter importncia.

Janete concordou, apreciando a franqueza peculiar da jovem que tanto a cativava. Em seguida, procurou justificar:

Raul como Philippe. Nunca se sabe para onde iro. s vezes acho que as secretrias deles sabem at mais do que eu mesma. No vejo a hora de Philippe reduzir suas atividades. Mal posso esperar para ter um marido de verdade outra vez.

Isso no ir sobrecarregar Raul?

Raul infatigvel: tomar conta de tudo sem o menor problema. S espero que leve uma vida normal depois de assumir lodo o controle das empresas.

Sabe que Silvana est lhe ensinando pratos da cozinha italiana? perguntou instintivamente.

Janete sorriu, antes de responder.

Eles se do muito bem. Fui eu quem os apresentou h cerca de um ano. Sabe, minha solido aqui muito grande. Desde que conheci Silvana, nos tornamos boas amigas.

A resposta negligente da outra s aumentou o cime que Suzanne sentia da bela italiana. No se contendo, prosseguiu:

Ento acha que ela seria a esposa ideal para Raul?

No sei... fica difcil afirmar... Raul muito fechado... De minha parte, gostaria que se casasse com uma francesa.

Isso seria timo para vocs. Se fez planos para hoje, tia Janete Suzanne procurou mudar de assunto , no se incomode comigo. Gostaria de dar umas voltas para ver as vitrines.

Sentiu uma necessidade imensa de sair da sala e refugiar-se em seu quarto. No via a hora de ficar sozinha. Viera a Hong Kong em busca de companhia, mas sentia-se mais solitria do que nunca. Tia Janete, com delicadeza, deixara bem claro que ela no era mais parte da famlia. Precisava partir o quanto antes.

Tinha viajado para to longe s para descobrir que Raul estava definitivamente fora de sua vida.

Tudo que tinha a fazer era encarar essa realidade de uma vez por todas. Na verdade, s podia contar consigo mesma. De fato, tenho vrias coisas para fazer pela manh. Acho que vou me demorar no cabeleireiro. Se quiser, posso deix-la na cidade. A voz de Janete trouxe-a de volta realidade. Se no se importa, gostaria que voltasse para almoar comigo.

Obrigada disse, suavemente. Aceito a carona, mas prefiro almoar fora. Est bem assim?

Janete hesitou, como se pretendesse argumentar, mas acabou cedendo.

Desde que no fique fora o dia todo... Prometi a Raul que cuidaria para que nada lhe acontecesse.

Olhando para o carto, com a letra dele, Suzanne duvidou que essa preocupao fosse realmente to grande.

Estou acostumada a tomar conta de mim respondeu em voz fraca.

Ao chegar cidade, caminhou por um bom tempo, a fim de recuperar a serenidade. Grossas lgrimas corriam livremente pelo seu rosto. As palavras de Janete voltavam-lhe memria o tempo inteiro. Por mais que relutasse em aceitar, estava excluda da vida de Raul. A prpria Janete, a quem viera procurar como um apoio, tinha feito o convite apenas porque precisava de companhia.

Passou o olhar distrado pelas vitrines das lojas. Da ltima vez que viera para a cidade, pretendia comprar um presente para ela, mas encontrara Alan no exato momento.

Decidiu ento sair procura da loja, j que no sabia o endereo, Seu nico ponto de referncia era uma ruazinha estreita, longe da avenida principal. Seria uma tima terapia, passaria o dia todo ocupada, pensou. De qualquer forma, precisaria comprar alguma coisa para Janete o mais breve possvel, porque decidira partir na primeira oportunidade.

Na hora do almoo, ainda no tinha encontrado a loja, mas estava completamente exausta e faminta. Resolveu ento procurar um restaurante. Enquanto decidia-se pelo local, um barulho chamou sua ateno. Virou-se lentamente e deu com o rosto familiar de Alan.

Alan! Que bom v-lo de novo! Como vai?

O jovem ergueu uma sobrancelha, como se procurasse reconhecer a voz.

Suzanne, srta. Dawson! voc, no ?

Ele estendeu a mo, e Suzanne a segurou com firmeza, impressionada com a magreza dos dedos delicados.

Sou eu, sim. J encontrou Jane, sua noiva?

Alan sacudiu a cabea.

Ainda a estou procurando disse com ar desanimado, enquanto afastava a mo para pegar um leno e enxugar o suor do rosto. O calor est forte demais e no tenho tido sorte.

Que tal almoarmos juntos? Estava procurando um restaurante quando o vi. Aceita o convite? perguntou animada, gostaria de ajud-lo de alguma forma.

Suzanne pegou-lhe o brao, e seu corao se condoeu ao sentir os ossos finos sob a pele. Pobre rapaz! Como estava magro e abatido!

Fico contente. Saiba que pode contar com uma amiga aqui. Onde est hospedado?

Estou na Misso dos Marinheiros. No ruim. No restaurante, ele afundou na cadeira, com um suspiro de alvio. A vida no devia ter sido fcil para Alan. Com efeito, ele lhe contou que ficara rfo e tinha sido criado pela av. Jane, a noiva, era uma amiga de infncia. Planejavam se casar, e ela decidiu aceitar o convite para excursionar com um grupo de dana s para encontr-lo em Hong Kong.

Ela maravilhosa disse, sonhador. Podia ter o namorado que quisesse, mas escolheu a mim. Depois do acidente, fiquei um tempo hospitalizado e nos desencontramos.

E seus olhos? Suzanne perguntou, com cuidado. H alguma esperana de que possa ver de novo?

Ele deu de ombros, com expresso triste, antes de explicar.

S o tempo pode dizer se tenho chances. Os mdicos acreditam que ainda haja alguma esperana. Sabe, eu no estou completamente cego. Posso ver algumas manchas e contornos, mas tudo.

Tentando encoraj-lo, Suzanne comentou:

Talvez sua viso melhore quando estiver mais forte. Precisa de uma boa alimentao.

Sempre fui magro. No h nada de errado com minha sade. No momento, no estou ligando para os meus olhos. S quero encontrar Jane. Quero falar com ela, temos uma srie de coisas a resolver... amos nos casar e agora no podemos mais... Por qu? No acha que a deciso deve ser dela?

No me casarei com ela, a menos que volte a enxergar.

No seja precipitado, nem ao menos sabe o que pode acontecer. Espere at encontrar Jane e vai sentir-se melhor. Tem alguma idia do roteiro da excurso?

No.

Que pena! De repente, veio-lhe uma idia, que primeira vista pareceu fantstica. Acho que precisa de algum que o acompanhe por Hong Kong, de preferncia com um carro, para visitar os teatros e bares onde ela possa estar se apresentando.

uma boa idia Alan demonstrou entusiasmo. Mas quem...? Um txi custa uma fortuna...

Deixe-me alugar um para voc ela sugeriu, com cautela. Ele foi colhido de surpresa pela oferta, mas reagiu, relutante.

Olhe, no quero caridade, especialmente de uma garota. Vou cuidar de tudo sozinho. Sinto que parea ingrato, mas no posso aceitar.

J tentou a polcia ou o consulado ingls? Acho que com tantos recursos eles podem conseguir algum resultado. Ela queria encontrar alguma forma para ajud-lo.

J fiz isso disse, desanimado. Mas no adiantou.

Por que no me deixa acompanh-lo?

No justo arrast-la comigo por todo lado. A oferta tentadora, mas voc no est aqui em frias? Deve ter compromissos... um namorado...

Sou livre para fazer o que quiser falou com franqueza. Sou divorciada.

mesmo? Alan no pde esconder a surpresa. Engraado, isso a ltima coisa que teria imaginado.

Ela procurou no pensar em seus prprios problemas para poder anim-lo.

Ento, Alan? Vai deixar que o ajude ou no?

Adoraria que me ajudasse. O rapaz sorriu.

Aps o almoo, Suzanne pegou-o pelo brao e comearam uma peregrinao pelas ruas, procura de algum indcio de Jane.

Suzanne observava os cartazes dos clubes noturnos com ateno. Na mo direita, trazia uma fotografia da jovem para auxiliar na busca. Era uma garota linda.

Apesar das instrues de Alan, que conhecia bem Hong Kong, no conseguiram nada.

Os chineses negavam, sacudindo a cabea, cada vez que perguntavam por Jane ou mostravam seu retrato. Depois de percorrerem inmeras ruazinhas, bares e restaurantes sem nenhum resultado, Suzanne sugeriu que tomassem um ch, para descansar um pouco. No estava com fome, mas preocupava-se com o estado de debilidade de Alan. Tinha quase certeza de que no era s a preocupao de achar a noiva que o afligia. Provavelmente tambm no tinha dinheiro para se alimentar bem. Com certeza, voltaria para a Misso dos Marinheiros e iria para a cama sem comer.

Suzanne estava olhando volta, procurando um lugar agradvel, quando uma porta pesada foi aberta sua frente por uma jovem eurasiana, de olhos amendoados. Usava um traje tpico chins, justo e com uma fenda do lado, alm de um pequeno enfeite de renda nos cabelos e um aventalzinho combinando. Na certa, era uma garonete. Que sorte, dar de cara com uma casa de ch, depois de andar tanto!

O ambiente era tranqilo, encantador, com mesinhas no jardim. Sentaram-se entre vasos de azalias e rvores ans.

Vamos tomar ch, Alan, mas com uma condio: eu pago.

O rapaz nem quis ouvir seus argumentos. Com expresso decidida, que no dava margem a discusses, afirmou:

Desta vez, o convite meu, eu pago.

A casa de ch tinha um ptio interno, onde o sol filtrava-se atravs de uma trelia de madeira. Cercada por muros altos e sem uma placa para indicar que aquele era um lugar pblico, dava a impresso de estar fora do mundo, de ser um refgio de sonho.

Suzanne descreveu tudo minuciosamente a Alan, inclusive a bela garonete que os servia com um sorriso amistoso.

Enquanto conversavam e bebericavam o ch, ela olhou distraidamente para as outras mesas do jardim. Uma garonete, muito bonita, servia um casal ingls de meia-idade e. quando se virou para pegar a bandeja, Suzanne perdeu a fala.

A jovem, vestida com um traje de seda negra fitava Alan e Suzanne, com uma expresso atnita. De repente, saiu correndo para os fundos. Era Jane, a noiva de Alan.

O primeiro impulso de Suzanne foi contar-lhe tudo, mas no o fez. Estava bem claro que a jovem no queria falar com ele. O que devia fazer?

Murmurando uma desculpa qualquer, levantou-se e saiu atrs da garota. Alm do ptio, havia uma porta que levava cozinha, e ela parou por um momento, sem saber como agir. De repente, a garonete que tinha servido o ch apareceu e fitou-a com curiosidade.

Por favor, gostaria de falar com Jane. muito importante disse, aflita.

Os olhos da garota continuaram impassveis. Sem dizer nada, ela desapareceu cozinha adentro. Os minutos pareciam horas.

Suzanne estava tensa. Tinha se envolvido muito nos problemas de Alan. Gostaria que tudo corresse bem para ele, e agora acontecia isso!

No h nenhuma Jane aqui disse a garonete ao retornar minutos depois. Desculpe-me, por favor.

Procurando ganhar tempo, dirigiu-se toalete. Enquanto escovava os cabelos e retocava a maquilagem, refletiu sobre o que deveria fazer. No estava enganada, tinha encontrado a noiva de Alan. A expresso perturbada da jovem no deixara margens para dvida. S que ela fugira, e agora no sabia como agir. De uma coisa tinha certeza! No contaria nada a ele at que conseguisse falar com Jane. Precisava explicar a ela a situao e saber por que estava evitando o noivo. A ento contaria a Alan, para livr-lo daquela agonia.

Depressa, anotou o endereo da casa de tia Janete e saiu em busca da garonete.

Por favor, entregue isto a Jane disse, mal disfarando o nervosismo. Preciso v-la. Diga-lhe que no contarei nada a Alan. Aqui est meu endereo.

Quando j estavam na rua, ele comentou com a voz emocionada: Sabe, Suzanne, agora sinto com mais intensidade o aroma das flores. Parece tolice, mas me lembra o perfume que Jane usava ele riu. Tenho um pressentimento de que ela est em algum lugar aqui perto.

Suzanne sentiu um n na garganta e apertou o brao dele, para lhe transmitir confiana.

Espero que sim. O que planeja fazer amanh?

Um rapaz que conheci na Misso vai me levar at Kowloon e Novos Territrios. H uma chance de que Jane esteja l.

Ento no o verei amanh? Acho melhor decorar meu nmero de telefone, assim poderemos manter contato. E no se preocupe, Jane logo vai aparecer.

Alan apertou-lhe a mo, grato, enquanto repetia o nmero do telefone.

Nem sei o que dizer, Suzanne. Estava to deprimido quando a encontrei hoje de manh. Agora me sinto mais animado, devo isso a voc.

Por incrvel que parea, apesar das atribuies do dia, Suzanne tambm se sentia melhor, mais leve. Assim, decidiu caminhar at a casa de tia Janete, apesar do calor e da longa distncia.

Quanto mais se aproximava das colinas, mais a temperatura se tornava fresca e agradvel. O bom gosto de Raul era realmente indiscutvel. Conseguira aliar o til ao agradvel quando escolheu a casa naquele local, longe do movimento e do barulho do trnsito. Dali se tinha uma vista esplndida da cidade. Enquanto caminhava, perdeu-se em divagaes, ao observar o movimento no porto ao longe.

Reinava um silncio absoluto no jardim quando entrou em casa. No havia ningum vista.

CAPTULO V

Pela milsima vez naquele dia, Suzanne consultou o relgio. medida que o tempo passava, seu nervosismo aumentava. Talvez tivesse sido muito otimista ao esperar que Jane viesse procur-la. Ansiosa, andou de um lado para outro em busca de uma soluo. Tudo o que podia fazer, no momento era esperar. O dia arrastava-se montono. Ela procurou ocupar o tempo lendo, escrevendo cartas. No podia se arriscar a sair e provocar um desencontro. Tinha esperana de que Jane aparecesse. No final da tarde, tia Janete saiu para encontrar alguns amigos. Suzanne viu-se completamente sozinha. J anoitecia quando decidiu ir procura da noiva de Alan. No podia ficar de braos cruzados enquanto ele se debatia procura dela, numa agonia sem fim, se Jane estava to perto. De qualquer forma, precisava, antes de mais nada, falar com ela. Subiu para o quarto correndo, pegou a bolsa e saiu rua.

A brisa estava amena e agradvel quando tomou o nibus para a cidade.

Suspirou, refletindo que a vida podia se tornar complicada com muita facilidade. Numa noite como aquela, enluarada e quente, todos os amantes deviam ser felizes. Precisava encontrar uma maneira de saber por que Jane estava evitando Alan. No queria acreditar que algo realmente srio pudesse impedi-los de serem felizes.

Assim que desceu do nibus, Suzanne ficou parada, tentando identificar o local onde se encontrava. Talvez fosse apenas impresso, mas o lugar lhe parecia completamente estranho. Era provvel que tivesse descido no ponto errado.

As ruas pareciam diferentes, e no tinha certeza da direo que devia seguir para chegar casa de ch. Enormes letreiros luminosos piscavam por toda parte, e os nibus passavam depressa, desaparecendo nas sombras. Quando dois marinheiros espanhis apareceram e comearam a segui-la, fazendo comentrios ousados, Suzanne apressou o passo. As sombras e a insegurana a confundiam ainda mais. Se ao menos recordasse onde ficava a casa de ch!

No passeio com Alan, tinham chegado acidentalmente ao local. Por mais que se esforasse, no conseguia se lembrar de nenhum ponto de referncia, a no ser de uma alameda estreita que conduzia porta de entrada.

Por um instante, parou diante de uma porta semelhante, sem coragem de entrar. A ruazinha parecia muito comprida na escurido da noite. A maior parte das lojas prximas j estava fechada. Por mais que no quisesse admitir, tinha sido imprudente em sair sozinha quela hora. Agora no adiantava se lamentar, agira movida por um impulso e tinha de agentar as conseqncias.

Um comerciante chins saiu de uma das pequenas lojas, carregando uma pilha de caixas, e olhou para Suzanne com uma expresso curiosa. Ela se assustou, recriminando-se por ter medo do homem.

Depois de caminhar mais um pouco, chegou a uma rua com vrios muros altos, que lhe pareceu familiar. A casa de ch tambm tinha muros altos volta do ptio.

Estava certa de que era essa a rua e encaminhou-se resoluta para a porta. Para seu alvio, no estava trancada e abriu com facilidade. Quando deu o primeiro passo, surpreendeu-se ao ver trabalhadores chineses transportando e empilhando caixas dentro do aposento. Por um momento ficou paralisada, com a mo na maaneta, fitando os homens que se voltaram apressadamente.

Apavorada, deu alguns passos para trs e lanou-se numa corrida desenfreada em direo rua e no viu uma caminhonete que se aproximava.

Completamente fora de si pelo pnico, no percebeu o perigo, e literalmente se atirou em direo ao veculo. O motorista ainda tentou diminuir o impacto, mas no pde evitar o atropelamento.

Ela s sentiu o baque, a dureza do cho, e uma escurido que se fechou sua volta.

Os trs dias seguintes foram algo semelhante a um pesadelo.

Ao acordar, piscou vrias vezes para ter certeza de que continuava viva, de que estava mesmo num hospital. Mal podia mover a cabea, que latejava. Quando tentou se virar, constatou que tambm o corpo todo doa.

Tinha tido muita sorte: seus ferimentos no passavam de equimoses e um ombro deslocado, segundo o mdico Podia ter sido muito pior se a caminhonete no tivesse diminudo antes de atingi-la.

Durante todo o tempo que esteve no hospital, tia Janete foi muito atenciosa, cuidando para que se recuperasse o mais rpido possvel. No terceiro dia, o mdico lhe deu alta, recomendando uma srie de precaues. Tia Janete ouviu tudo com um ar preocupado. Um mal-estar apoderou-se de Suzanne. Que desastre! Lamentava profundamente ter causado tanta confuso.

Jamais sentira tanta depresso e desesperana como no dia em que voltou do hospital. Instalada em seu quarto, sob os cuidados redobrados da tia e de Sun Yu-Ren, Suzanne afundou na cama com o olhar perdido. Janete no lhe perguntara o que fora fazer no centro da cidade sozinha quela hora. Esse pormenor s aumentou a sua angstia. Era bvio que todos queriam lhe poupar qualquer tipo de preocupao. Isso s a fazia se sentir pior.

Nunca devia ter aceito o convite para vir a Hong Kong. Come