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CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS Cadernos de estudos culturais Campo Grande, MS v. 1 n. 1 p. 1 - 135 jan./jun. 2009

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CADERNOS DE

ESTUDOS CULTURAIS

Cadernos de estudos culturais Campo Grande, MS v. 1 n. 1 p. 1 - 135 jan./jun. 2009

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Reitora Célia Maria da Silva Oliveira Vice-Reitor João Ricardo Filgueiras Tognini

CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS

Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens – Literatura Comparada

Câmara Editorial

Edgar Cézar Nolasco – UFMS – Presidente André Luis Gomes – UnB Biagio D'Angelo – PUC – São Paulo Denilson Lopes Silva – UFRJ Eneida Maria de Souza – UFMG Jaime Ginzburg – USP Maria Adélia Menegazzo – UFMS

Maria Antonieta Pereira – UFMG Paulo Sérgio Nolasco dos Santos – UFGD Rachel Esteves Lima – UFBA Renato Cordeiro Gomes – PUC - Rio Silviano Santiago – UFF Vânia Maria Lescano Guerra – UFMS

Edgar Cézar Nolasco Editor e Presidente da Comissão Organizadora Marcos Antônio Bessa-Oliveira e José Francisco Ferrari Editores Assistentes Comissão Organizadora Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa-Oliveira, Flávio Adriano Nantes Nunes, Marta Francisco Oliveira, Rony Márcio Cardoso Ferreira, Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior, Alice Signorini Feldens, Eusvaldo Rocha Neto, Priscila de Cássia Pinheiro Castilho, Vânia Correia Cafeo, Carlos Vinícius da Silva Figueiredo, Valéria Aparecida Rodrigues, Joana D'arc Mendes Gothchalk, Daniel Rossi, Quelciane Ferreira Marucci, Giselda Paula Tedesco, José Francisco Ferrari, Katiuscia Corrêa Ricardo, Leilane Hardoim Simões, Rafael Cardoso-Ferreira, Gabriela Gusman Barros da Silva, Natália Aparecida Tiezzi Martins dos Santos. Revisão Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa-Oliveira Planejamento Gráfico, Diagramação e capa Marcos Antônio Bessa-Oliveira Sobre a imagem da Capa Fotografia da folha da Mandioca - Manihot esculenta – manipulada digitalmente. Produção Gráfica e Design Lennon Godoi e Marcelo Brown A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do autor. (Lei 9.610, de 19.2.1998). CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SNEL – Sindicato Nacional de editores de livros

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenação de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS. Brasil) _________________________________________________________

Cadernos de estudos culturais. – v. 1, n. 1 (2009)- . Campo Grande, MS. Ed. UFMS, 2009- v. ;25 cm. Semestral ISSN 1984-7785 1 Literatura. – Periódicos. 2. Literatura Comparada – Periódicos. |. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22) 805

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CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS

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Esta é uma publicação que faz parte de um Projeto maior intitulado Culturas locais que, por sua vez, está preso ao NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS.

Apoio: PREAE/UFMS

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Este primeiro número dos Cadernos de Estudos Culturais visa a cumprir os objetivos que fazem parte de seu projeto editorial, entre os quais destaco os mais significativos: 1) dar continuidade às discussões realizadas no espaço da disciplina obrigatória Literatura Comparada: fundamentos, do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens – UFMS; 2) criar um espaço para o debate crítico, tendo por base os ensaios críticos dos intelectuais convidados para participar dos Cadernos; 3) oportunizar os mestrandos, que desenvolvem projetos sobre a cultura local, ou cultura latino-americana, que tornem públicas suas pesquisas acadêmicas; 4) discutir com mais propriedade intelectual a cultura local fronteiriça do Estado de Mato Grosso do Sul (Brasil, Paraguai, Bolívia); 5) incentivar o intercâmbio cultural entre os Estado de Mato Grosso do Sul (Brasil) e seus dois países lindeiros (Paraguai e Bolívia); repensar em conjunto as divergências e convergências instauradas em torno da diversidade cultural que diferencia a cultural local Sul-mato-grossense, assim como em um pseudo-conceito de cultura que quase sempre o Estado quer fazer prevalecer. Para melhor atender aos objetivos que originaram a ideia de os Cadernos, os mesmos são de natureza temática; daí este primeiro número levar a rubrica de Estudos Culturais, justificando, inclusive, o título dos Cadernos. O leitor deste caderno terá a oportunidade de estabelecer redes comparativas e interpretativas entre os ensaios (seguidos de uma Resenha Crítica) que, ao final, lhe proporão mais lucidez crítica sobre o pensamento contemporâneo. Por fim, e o mais importante, agradeço a todos os amigos, professores, críticos, orientandos, intelectuais, que contribuíram para que o Projeto dos Cadernos se tornasse possível.

Edgar Cézar Nolasco

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SUMÁRIO

BUGRES subalternus Edgar Cézar Nolasco .........................................................................................9 - 16

BABEL multiculturalista Eneida Maria de Souza ...................................................................................17 - 29 DO DESCARTE E DA GAMBIARRA - o caminho das coisas Maria Adélia Menegazzo ................................................................................31 - 40

UTOPIA, literatura e ensino Maria Antonieta Pereira .................................................................................41 - 46

ENTRE A LETRA E A ARENA REAL: a Terra de Antonio João Paulo Sérgio Nolasco dos Santos....................................................................47 - 61

OS ESTUDOS CULTURAIS e a crise da universidade moderna Rachel Esteves Lima.........................................................................................63 -72

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BABEL-COSMÓPOLIS: um imperativo digital? Renato Cordeiro Gomes .................................................................................73 - 87

DESTINO: globalização. ATALHO: nacionalismo. RECURSO: cordialidade Silviano Santiago...........................................................................................89 - 104

QUANDO O SUJEITO RESISTE ÀS BALAS PERDIDAS E AOS TIROS CERTEIROS: a insurreição do transgressor Vânia Maria Lescano Guerra & Jefferson Barbosa de Souza .....................105 - 127

HERANÇAS CULTURAIS:

resenha do livro de Silviano Santiago Rony Márcio Cardoso Ferreira & Marcos Antônio Bessa-Oliveira .............129 - 134

SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO Editor, Editores Assistentes & Comissão Organizadora ......................................135

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BUGRES subalternus

Edgar Cézar Nolasco1

Dos rápidos golpes de facão e machadinha vão surgindo da madeira bruta os bugres de Conceição, principal escultora de mato Grosso. Com profunda necessidade de fazê-los para satisfazer sua criatividade e garantir-lhe a sobrevivência, os bugres aparecem, basicamente, com a mesma expressão formal, como madeira única, contida, de transmitir um conhecimento, com a mesma seriedade com que ela prepara a comida ou varre o chão. Evidentemente, o fato não é notado pela artista, que não vê nessas figuras nenhum vestígio de deformação ou de repetição mas, pelo contrário, identifica-se com elas. Como ela os bugres são rudes. Também são as mesmas a pureza e a simplicidade.

Aline Figueiredo. Por uma identidade ameríndia, p. 26.

A escultora Conceição dos Bugres, só pelo fato de ser índia, artista popular e esculpir bugres, já permite toda uma discussão em torno das especificidades de uma cultura local subalternista. O locus geohistórico a partir do qual ela esculpe seus bugres, por sua condição de fronteira e por ser um lugar onde índios habitam, propicia a discussão crítica em torno de uma teoria subalternista, já que o assunto subalternidade demanda uma demarcação territorial específica. Também corrobora a constatação de a artista esculpir seus bugres como forma de “garantir-lhe a sobrevivência”, conforme se lê na epígrafe aposta, ou, como ela mesma dissera em entrevista, “porque preciso, sou pobre”.2

1 Edgar Cézar Nolasco é professor da UFMS. 2 ENTREVISTA (1974) concedida a Aline Figueiredo. In: Por uma identidade ameríndia, p. 26.

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Ao ser perguntada como começou a esculpir seus bugres em madeira, Conceição respondeu; “— antes eu pintava mas não gostava. Um dia, me pus sentada em baixo de uma árvore. Perto de mim tinha uma cepa de mandioca. A cepa da mandioca tinha cara de gente. Pensei em fazer uma pessoa e fiz. Aí a mandioca foi secando e foi ficando parecida com uma cara de velha. Gostei muito, depois eu passei para a madeira.”3 Apesar de sobressair-se da explicação um traço biográfico que explica em parte a gênese de sua produção cultural, tal passagem também não deixa de aludir e de remeter à própria lenda indígena que narra como se deu a descoberta da mandioca. Segundo o General Couto de Magalhães, em O selvagem, essa lenda “conserva a tradição de que o uso da mandioca, que tão importante papel representa na vida dos índios, lhes foi revelado por um modo sobrenatural”.4 A descoberta da mandioca para os índios foi de suma importância, porque é não só o pão do selvagem, como também a substância de que tiram diversos vinhos. Apesar de reconhecer que a lenda pertença mais ao domínio da poesia do que ao da ciência, Couto de Magalhães não se furta ao desejo de inseri-la em O selvagem, por se tratar de “um especimen curioso do producto da imaginação de nossos selvagens”.5 Ressalvadas as diferenças que podem haver, podemos dizer que Conceição vale-se da raiz de mandioca enquanto substância, bem como de sua imaginação natural e esculpe o modelo de sua produção artística que, depois de repassada para a madeira, não só garantiria sua sobrevivência, como também assegurava a ela o lugar de artista popular. Se a cepa da mandioca em seu estado natural tinha “cara de gente”, e se depois de esculpida parecia com uma “cara de velha”, assinala, por sua vez, uma identificação entre a autora Conceição e sua criação, estabelecendo, assim, todo um trabalho de autorretrato de forma especular. Daí podermos dizer, conforme se lê na epígrafe, que ambos são rudes, puros e simples. Em contrapartida, se a escultora não vê em “suas figuras nenhum vestígio de deformação ou de repetição”, a identificação entre ela e seus bugres fala de uma história da qual nenhum crítico, teórico, ou intelectual jamais poderá saber (escutar). Aqui é ilustrativo lembrar do que dissera a índia Rigoberta Menchú em sua afirmação estratégica quando se refere a “toda la verdad de mi pueblo” hay algo que no dice y que nosotros no podemos saber.6

3 Apud Entrevista. In: Por uma identidade ameríndia, p. 26. 4 MAGALHÃES. O selvagem, p. 166. 5 MAGALHAES. O selvagem, p. 166. 6 Cf. BEVERLEY. Subalternidad y representación, p. 59. (“Sigo ocultando lo que yo considero que nadie sabe, ni siquiera um antropólogo, ni um intelectual, por más que tenga muchos libros, no saben distinguir todos nuestros secretos”)

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Antes de voltar a isso, transcrevo a “Lenda da Mani”, que relata como a mandioca fora descoberta pelos índios, conforme se encontra transcrita em O selvagem:

Em tempos idos appareceu gravida a filha de um chefe selvagem, que residia nas immediações do logar em que está hoje a cidade de Santarém. O chefe quis punir, no autor da deshonra de sua filha, a offensa que soffrêra seu orgulho e, para saber quem elle era, empregou debalde rogos, ameaças e por fim castigos severos. Tanto deante dos rogos como deante dos castigos, a moça permaneceu inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com homem algum. O chefe tinha deliberado matal-a, quando lhe appareceu em sonho um homem branco, que lhe disse que não matasse a moça, porque ella effectivamente era innocente e não tinha tido relação com homem. Passados os nove mezes, deu á luz uma menina lindíssima e branca, causando este ultimo facto a surpresa, não só da tribu, como das nações vizinhas, que vieram visitar a creança, para ver aquella nova e desconhecida raça. A creança, que teve o nome de Mani e que andava e falava precocemente, morreu ao cabo de um anno, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor. Foi enterrada dentro da própria casa, onde era descoberta diariamente, sendo também diariamente regada a sua sepultura, segundo o costume do povo. Ao cabo de algum tempo brotou da cova uma planta que, por ser inteiramente desconhecida, deixaram de arrancar. Cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros que comeram os frutos embriagaram-se e este phenomeno, desconhecido dos índios, augmentou-lhes a superstição pela planta. A terra afinal fendeu-se; cavaram-na e julgaram reconhecer no fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim apprenderam a usar da mandioca.7

A lenda, segundo Couto de Magalhães, confirma o fato de que muitas tribos enterram seus mortos dentro da própria casa e fazem-no na esperança de, quando dormirem, serem visitados pela alma daqueles a quem amaram.8 Tal crença demonstra, por sua vez, que os índios acreditam que, além desta vida, existe outra que é continuada pelo ser independente do corpo.9 Conceição dos Bugres, ao ser perguntada sobre religião, respondeu: “— gosto de todas, mas prefiro a espírita. Desde 15 anos eu freqüento centro. Terreiro eu nunca fui, mas deve ser bom”.10 É sabido que a teogonia dos índios assenta-se sobre a idéia capital de que todas as coisas criadas têm mãe. Na verdade, segundo o autor de O selvagem, eles sequer empregam a palavra pai; logo, esta palavra não indica a origem de um homem. Sempre metaforicamente, reportamo-nos para as palavras da escultora, quando comenta sobre a significação que os bugres têm para ela: “— eu me sinto

7 MAGALHÃES. O selvagem, p. 167. 8 Ver MAGALHÃES. O selvagem, p. 165. 9 Cf. MAGALHÃES. O selvagem, p. 165. 10 Apud Entrevista. In: Por uma identidade ameríndia, p. 26.

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muito bem com eles. Sinto gosto e prazer. E parece que eles me adoram. Faço para ter a companhia deles. São alegres. Nunca saíram com cara amarrada, ferruscada. Podem sair feios, mas mansos”.11 Daí podermos dizer que, “dos rápidos golpes de facão e machadinha”, a mãe-índia, dona de casa, artista popular, esculpiu (pariu) seus bugres os quais tratam da sua condição na sociedade letrada e da sua subalternidade cultural. Parodiando a lenda, podemos pensar que a artista Conceição, ao esculpir seus bugres, chamou a atenção não só da “tribo” local, como também das nações vizinhas fronteiriças, que voltaram seu olhar e curiosidade para aquela nova e desconhecida raça. ÍNDIO NÃO É BUGRE

Não veríamos tanto problema se a alcunha de “bugres” para as suas esculturas tivesse partido da própria Conceição dos “bugres”, principalmente porque ela fala de um lugar subalterno específico dentro do contexto da cultura da sociedade hegemônica, branca e letrada. Agora se tal denominação, que é sempre pejorativa, tivesse partido, por exemplo, da crítica ou até mesmo de alguma instituição do Estado, avultar-se-ia em tal rubrica uma peja totalmente negativa, culturalmente falando, na produção artístico-cultural da escultora. E tudo isso porque entendemos que para se falar da subalternidade, bem como dos sujeitos nela implicados, é preciso delimitar o espaço territorialmente falando (o que aqui denominamos de local) e situar o lugar de onde os sujeitos envolvidos, inclusive a crítica, proferem seus discursos, no sentido em que o crítico uruguaio Hugo Achugar defende em Planetas sem boca, apesar de o crítico não partilhar da teoria da subalternidade, pelo menos no âmbito da América Latina.

Nesse sentido, o artigo do índio e advogado Wilson Matos da Silva, intitulado “Nós, os índios não somos bugres!”, publicado no Jornal O Progresso a 6 de janeiro de 2009, ajuda-nos a compreender a confusão pensada que se fizeram em torno dos termos bugre e índio, como se aquele fosse sinonímia perfeita deste. Confusão pensada porque entendemos que a aproximação dos termos deu-se por interesses de classe, políticos, culturais, ou melhor, históricos, atravessados pelo poder, pelo discurso, pelas diferenças, já que aos olhos do civilizado o índio resumia-se a um inculto, um selvático, um não-cristão. Ou seja, mais do que se esboçar daí toda uma noção de forte valor pejorativo, reforçava-se a condição de “nação” subalterna ancestralmente delegada ao povo indígena.

11 Apud Entrevista. In: Por uma identidade ameríndia, p. 26.

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Passamos a resenhar o artigo citado, pela importância e propriedade do mesmo, e começamos pela justificativa que o autor dá por tê-lo escrito: “a forma pela qual a sociedade constrói e reconstrói permanentemente uma imagem negativa de certo grupo, neste caso, os índios, pejorativamente designados pela palavra ‘bugre’, inspirou o sentimento que está na origem deste artigo”.12

A imagem negativa que a sociedade brasileira e, por extensão, a América Latina como um todo, construiu do índio não só mostra o preconceito interno exacerbado entre os povos e suas respectivas culturas, como também, conforme reitera o autor do artigo, desconstrói o enredo da História que se construiu à revelia de todos da América Latina. Ou seja, o que vale para os bugres, como nesta passagem a seguir, não vale necessariamente para os índios: “as realidades regionais do Brasil contemporâneo retratam e refletem elementos da formação de uma história que remete à longínqua Idade Média, aos valores e rituais da igreja Católica de então; aos movimentos heréticos, no século IX na Bulgária e no século VII na Ásia Menor.”13

Sempre com conotação negativa sob a ótica vigente, o termo “bugre”, como sinônimo de índio, “figura como bode expiatório para tudo o que é tido como negativo, indesejável e condenável”.14 Foi assim, aliás, que agiu contra os povos marginalizados, subalternos latino-americanos todo um projeto moderno aqui implantado à revelia das culturas locais. Tendo em pano de fundo esse projeto moderno da América Latina, totalmente hegemônico, visando um “desenvolvimento” econômico a todo custo e de base eminentemente imperialista, logo excludente e dualista desde sempre, entende-se melhor porque, quer seja o Brasil, a América Latina como um todo, e no Estado de Mato Grosso do Sul não foi diferente, a “confusão elaborada” entre os termos “bugres” e índios caiu feito uma luva sobre as nações: de um lado, modernas práticas econômicas e políticas da modernidade que, além de serem as melhores para todos, são também as que reforçaram o poder do Estado-Nação; de outro, teríamos aqueles que seriam os párias dessa sociedade, que trazem a insígnia de “infidelidade moral”, os fora-da-lei, “preguiçosos-vagabundos”, “deficientes-incapazes”, “violentos-vagabundos”, “sem religião”, “não cristãos”. Ou seja, esses marginalizados de Natureza, humilde de natureza, por viverem mais próximos da Natureza (veja a dualidade: dentro x fora, letra do x não-letrado, civilizado x bárbaro, campo-cidade etc) , estão condenados a carregar consigo “todo tipo de

12 SILVA. “Nós, os índios não somos bugres!”, p. 1. 13 SILVA.. “Nós, os índios não somos bugres!, p. 1. 14 SILVA. “Nós, os índios não somos bugres!.

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desvios morais determinados pela história, refletindo ou mesmo resultando numa exclusão social, que ficará mais acentuada com o desenvolvimento do capitalismo e suas exigências”15, conclui Wilson matos da Silva.

Como se vê, isso só reforça que o projeto da modernidade pensado, elaborado e implantado na América Latina trazia desde sua origem a exclusão social sumária do índio, o que, de lá para cá, apenas se agravou até tornar-se, como nos dias de hoje, pelo menos no contexto sul-mato-grossense, uma questão belicosa. Resta-nos perguntar onde ficou a história do povo indígena, e se ele não chegou mesmo a viver uma outra história? O branco, o “civilizado”, o não-bárbaro, com certeza, não viveu a história do índio, porque foi a sua história que imperou aqui. Nesse sentido, o que postulam os estudos subalternos é esclarecedor, já que eles tratam do poder, ou seja, de quem o tem e de quem não o tem, de quem está ganhando e de quem está perdendo. O poder, como se sabe, está diretamente relacionado com a representação: quais representações têm autoridade e podem assegurar a hegemonia, quais não têm autoridade e não podem ser hegemônicas? Somos levados a dizer que a história do índio ainda não existe. Ele teve sua história vilipendiada pelo civilizado (o outro); assim como caçaram dele sua pátria, sua terra, seus direitos, sua voz.

Se o subalterno é sempre aquele que não fala e se fala já não o é, então podemos dizer que o índio ainda é de longe o melhor exemplo de subalternidade que temos, pelo menos nesse arrabalde chamado Mato Grosso do Sul. Se o índio não fala (a nossa língua hegemônica), quem pode falar por ele? Será que o índio “letrado” (advogado) tem o direito de falar pela maioria dos índios não-letrados? De qualquer modo, o índio-advogado fala de um lugar que lhe permite falar com mais propriedade, afinal ele é índio. O que se é preciso saber é que ele fala com base num “letramento” que às vezes pode trazer junto uma ignorância quando se trata da cultura indígena. Ou seja, estamos dizendo que o fato de ser “letrado” pode ser exatamente a pedra no meio do caminho para se compreender melhor uma cultura que não está presa à letra. Mas confessamos que melhor seria se muitos mais índios formados na academia tivessem, porque assim teríamos menos estranhos portas-vozes falando pelos índios por todos os cantos e meios. Nenhum doutor da lei, nenhum crítico renomado ou até mesmo subalterno falariam melhor pelo índio, e pela simples razão de que há algo na cultura dele que é da ordem do interdito e que fica fora, portanto, de qualquer representação. Talvez nós, os do saber acadêmico, estejamos acostumados a ser muito verbal. Nenhum discurso disciplinário, nenhuma prática acadêmica podem captar em essência a representação de uma cultura

15 SILVA. “Nós, os índios não somos bugres!”.

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subalterna; não pelo menos como o saber acadêmico está instituído e institucionalizado na América Latina e veiculado pela crítica e pela teoria vigentes. Todo cuidado que devemos ter é pouco. Porque falar do e sobre o índio pode ser reforçar tão-somente uma negatividade subalterna que impera no discurso e na letra, posto que discurso e letra fazem parte de uma prática acadêmica que não faz outra coisa senão produzir ativamente a subalternidade.

Depois de reiterar que “existe uma imagem central negativa, de acusação, sobre o indígena quando somos tratados como bugres”, Wilson Matos da Silva conclui: “nós os índios não somos coitadinhos; não necessitamos de ‘ajuda’ dos ‘civilizados’; se tem alguém forasteiro neste solo, não somos nós os índios nativos deste chão. Queremos, sim, sermos protagonistas de nossa própria história; queremos respeito com a nossa dignidade!”.16 Querer ser protagonista de sua própria história é tudo o que um povo, uma nação almeja para si, inclusive para ser reconhecida como tal. Ser protagonista é contar a sua história a seu modo, do seu jeito cultural, com sua língua, registrando suas vivências, ganhos e perdas, escavando para si o direito de falar a sua própria voz ao outro.17 Ser protagonista de sua própria história é reivindicar mais do que sua voz, mas o direito de viver, ocupar o seu espaço, seu local-lugar nessa aldeia global humana.

Voltamos agora aos “bugres subalternus” de Conceição dos Bugres, por entender que eles não se prestam tão-somente à apreciação estética, mas também como representações culturais que desarticulam o lugar social que o Estado, assim como os demais discursos dominantes e institucionais, põem aquele sujeito subalterno representado, esculpido no trabalho artístico. O que se disse até aqui, corrobora e endossa esse ponto de vista. Conforme Entrevista anteriormente mencionada, de acordo com Conceição dos Bugres todos seus índios são parecidos e têm a cabeça reta: “são parecidos mas são bem diferentes. Uns olham para cima, outros para baixo. Olham para lados diferentes. São diferentes”.18 Parecidos ou diferentes, todos significam; trazem o sinal da boca, os olhos vazados da “mãe”. Estão todos em posição de sentidos, prestes a romperem o silêncio cristalizado na cultura elitista e na sociedade excludente, como única forma de que o outro escute o seu balbucio (Achugar) e, assim, ocupem seu lugar que não pode ser só mais metafórico, mas real, concreto. Segundo Conceição, a posição de sentido de seus “bugres”, sempre batendo continência a outrem, é uma imposição da

16 SILVA. “Nós, os índios não somos bugres! 17 Ver o nosso ensaio intitulado “O direito ao grito da subalternidade na América latina (no prelo). 18 Apud Entrevista. In: Por uma identidade ameríndia, p. 26.

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madeira, já que “a natureza da madeira é sábia”. Nessa direção ela diz também que “a cera representa a roupa”, já que “antes o bugre andava nu, agora anda vestido”. E conclui: “Natureza é coisa fina. É a mesma coisa que a gente”. Do lugar de onde a índia e artista popular Conceição dos Bugres fala, as coisas e os seres, como a Natureza, têm um significado próprio à sua cultura. A comparação que ela estabelece entre “a gente” e a Natureza é diferente para a cultura “civilizada”. De modo que, olhando de fora, o índio está condenado a pertencer aos “planetas sem boca” de Lacan e tão bem estudados por Achugar em Planetas sem boca. Às vezes o outro, a crítica, prefere entortar o ouvido a escutar o que eles falam entre eles e para o mundo, como assim fazem os “bugres” de Conceição na cultura. A crítica precisa, em todos os sentidos, mais do que desmetaforizar os sentidos impostos às culturas, desnaturalizar o sentido histórico que a constituiu como tal na própria Cultura.

Referências Bibliográficas

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Trad. Marlene Beiza y Sergio Villalobos-Ruminott. Madri: Iberoamericana, Vervuert, 2004.

MAGALHAES, General Couto de. O selvagem. 3ed. Completa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. (Exemplar nº 1850)

NOLASCO, Edgar Cézar. O direito ao grito da subalternidade na América latina (No prelo)

Por uma identidade ameríndia. Catálogo do VI Salão de Artes plásticas de mato Grosso do Sul. Dezembro de 87 a março de 88.

SILVA, Wilson Matos da. “Nós, os índios não somos bugres!”. In: Jornal O Progresso. Dourados (MS), terça-feira, 6 de janeiro de 2009. Opinião, p.1.

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BABEL multiculturalista

Eneida Maria de Souza1

A “torre de Babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução “verdadeira”, uma entre ‘expressão (entre’expression) transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência do constructum.

Jacques Derrida

A primeira motivação para a escolha do tema deste texto foi o filme Babel, de 2006, do diretor mexicano Alejandro González Iñarritu, com roteiro de Guillermo Arriaga. A sensibilidade no tratamento de questões ligadas a diferentes culturas, a montagem simultânea de cenas enfocando quatro países, os dramas das personagens guiados por fios e conexões inusitadas, representam uma das mais originais perguntas feitas ao mundo neste momento pós-11 de setembro. Sem a pretensão de esgotar a leitura do filme por ter escolhido o viés do multiculturalismo e das diversas modalidades assumidas pelos discursos da modernidade, acredito estar contribuindo para a discussão da complexa rede conceitual construída pela crítica cultural ao longo dos últimos anos.

Muito se tem debatido sobre a natureza precária das noções e conceitos já comuns ao vocabulário das ciências humanas, uma vez que esses dependem das mudanças verificadas no mundo, tanto no âmbito 1 Eneida Maria de Souza é professora emérita da UFMG.

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cultural quanto político e econômico. Como exemplo dessa transformação operada nas relações interculturais, o multiculturalismo passou a ser um dos alvos mais atingidos. Isso se deve, principalmente, ao esgotamento dos modelos de reconciliação e aceitação de muitas culturas no interior da nação e à necessidade de substituição do conceito de diferença pelo de desigualdade, com vistas a propiciar um sistema de trocas que não fosse unilateral. Com a globalização tecnológica, quase todo o planeta entrou em interconexão simultânea, criando, assim, novas modalidades de diferenças e desigualdades. O livro de Néstor García Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados, refaz a trajetória dos estudos culturais, desloca conceitos e justifica a troca do termo multicultural pelo de intercultural, por admitir que o primeiro se pauta pela diversidade de culturas, “sublinhando sua diferença e propondo políticas relativas de respeito, que freqüentemente reforçam a segregação”. O segundo termo, intercultural e globalizado, “remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos”.2

Embora esteja de acordo com a proposta de Canclini, ao entender que o multiculturalismo é uma ficção estatal tranqüilizadora, enquanto que o interculturalismo é a proposta de diversidade projetada não a partir do Estado, mas dos próprios atores dos movimentos sociais, retomo o raciocínio de John Beverley, (Subalternidad y representación),3 para quem o termo multiculturalismo pode ser também lido segundo o viés do interculturalismo. O que se conclui é a importância de considerar que os conceitos podem também ser reciclados e revistos com base nas diferentes posições dos teóricos, sem a preocupação meio obsessiva de criar expressões que substituem outras. Acrescentaria que Beverley postula, dentro de sua posição de seguidor da teoria subalterna, que “La posibilidad radical del multiculturalismo reside estrictamente en una insistencia constitutiva en la igualdad social. Para decir esto en otras palabras, la insistencia del subalternismo es más sobre la desigualdad que sobre la diferencia, aunque quiere marcar también la manera en que la diferencia es experimentada como desigualdad”.4 Nesse sentido, ambos defendem os

2 CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Tradução de Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. p. 16-17. 3 BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Madrid: Iberoamericano, 2004, p. 205. 4 Idem, p. 204.

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mesmos princípios. Acrescentaria que as categorias relativas ao povo e à multidão, seja conforme teorização de Ernesto Laclau, La razón populista,5 seja de Paolo Virno Gramatica de la multitud: para una análisis de las formas de vida contemporánea6, tornam-se imprescindíveis para o entendimento da atualização dessa desigualdade no âmbito do próprio sujeito, visto como internamente fissurado e heterogêneo. Trata-se de dimensionar a proliferação de contradições no seio do povo, entendidas como valores positivos no lugar de problemas, tais como falta de educação, cultura da pobreza, etc. Ainda dentro do pensamento de John Beverley, “un nuevo proyecto para ‘cambiar la vida’seria la expresión política de este reconocimiento de la heterogeneidad y incomensurabilidad de lo social, sin sentir la necesidad de resolver las diferencias en una lógica unitaria o transculturadora.”

É comum ainda vincular o multiculturalismo a uma série de desdobramentos das minorias, que vão da emergência de grupos sociais até então invisíveis, como as culturas indígenas na América, aos grupos minoritários que, a partir dos anos 1970, começam a adquirir voz e a buscar maior visibilidade. Problematiza-se, por conseguinte, a dimensão do termo cultura, pela desconfiança de atitudes hegemônicas e estatais, dos gastos preceitos de universalidade e igualdade entre os povos e os cidadãos. O número de migrantes-multidões no mundo aumenta de forma considerável, transformando as metrópoles primeiro-mundistas em verdadeira babel de línguas e de etnias, modificando a geografia das cidades, pelo descentramento contínuo dos lugares, antes distintos e controlados pela senha da inclusão e da exclusão sociais.

O pensamento multiculturalista se inscreve igualmente a partir da dissolução do modelo político do Estado-nação e da desconstrução de parâmetros iluministas legados pela razão moderna. Questiona-se o poder estatal e entra em declínio a hegemonia do pensamento ocidental, um dos responsáveis pela defesa de valores universais de cultura. A soberania das instituições políticas é substituída por um conjunto mais amplo de instituições e de forças sociais. Com a produção de novas tecnologias, da informática e do inevitável crescimento do poder do mercado, se dimensionam as noções de tempo e espaço, assim como das múltiplas feições assumidas pela modernidade. A simultaneidade temporal substitui o tempo teleológico da modernidade, encurtando a distância entre culturas e

5 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005. 6 VIRNO, Paolo. Gramatica de la multitud: para una análisis de las formas de vida contemporánea. Madrid: Traficantes de sueños. 2003.

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deslocando pontos fixos e imutáveis. Cria-se a ilusão de ser o mundo uma grande tela de TV, na qual convivem, de forma harmoniosa ou não, uma infinidade de povos, um sem número de olhares estranhos e espantados. No âmbito das relações culturais, o enfoque se torna mais transnacional do que nacional, não só pelo enfraquecimento da ordem estatal, como pelo fortalecimento de uma política de efeitos. As desigualdades sociais aumentam, embora a hegemonia do econômico se revista do discurso igualitário entre os povos.

A tolerância racial, o respeito às diferenças, o empenho pelo fim de preconceitos entre os pares, a solidariedade como possível saída para os embates das crises pelas quais passam os países são argumentos utilizados pelo discurso político como forma de maquiar o multiculturalismo através do lema da diferença. O pluralismo exige condições rígidas de convivência, negociações e diálogos.

No mesmo diapasão, a equivalência entre identidade e nação é, segundo Jesús Martín-Barbero, no ensaio “Globalización y multiculturalidad”, o que a multiculturalidade da sociedade atual latino-americana faz desmoronar. Por um lado, a globalização diminui o peso dos territórios e dos acontecimentos fundadores que essencializavam o nacional, e, por outro, a revalorização do local redefine a idéia mesma de nação. Não se pode pensar, portanto, que a identidade seja a expressão de uma só cultura homogênea. O monolingüismo e a uniterritorialidade, que a primeira modernização reassumiu da colônia, esconderam a densa multiculturalidade de que está feito o latino-americano e o arbitrário das demarcações que traçaram o nacional. I – MODERNIDADES TARDIAS

O modelo ocidental e eurocêntrico das teorias sobre a modernidade foi, por muito tempo, aceito como único, sem que sua hegemonia fosse contestada. Outras experiências da modernidade deverão ser observadas, considerando não só o descompasso temporal de sua atualização pelas distintas culturas, como as singularidades múltiplas e divergentes dessa vivência dentro das próprias culturas locais. Pensadores do considerado terceiro mundo têm se empenhado em apontar algumas possíveis saídas para sair ou entrar na modernidade, como assim se expressou um deles. Dotados de um pensamento nômade e de experiência vital em permanente deslocamento, esses autores se apropriam da teorização aprendida pelos discursos hegemônicos para desconstruí-los. A maneira pela qual se rompe com teorias da modernidade se justifica pela emergência no entendimento de novas propostas que talvez contribuam para nortear as indagações do presente. Ao termo pós-modernidade, de caráter geral e pertencente ao universo anglo-saxão, são apresentadas outras nomenclaturas, mais

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condizentes com o pensamento e a realidade de cada cultura enfocada. A pós-modernidade, em toda a sua dimensão e abrangência, não poderá ser analisada sem a reflexão das várias vertentes que compõem o pensamento moderno. Os conceitos legados pelas culturas hegemônicas deverão ser revisitados e acompanhar as transformações políticas e culturais do mundo globalizado.

No próprio continente as ocorrências culturais e artísticas não se realizam de modo homogêneo. Jesus Martín-Barbero, teórico espanhol radicado na Colômbia, introduz, nos estudos da mídia, uma reflexão original – a modernidade descentrada – que responde pelas várias temporalidades existentes na recepção das culturas hegemônicas por parte das periféricas. Por isso, a referência às modernidades se faz no plural, pela existência de outro estatuto conceitual. O raciocínio pautado pelo princípio da homogeneidade é substituído pelo da heterogeneidade. São alternativas de definição a respeito do termo pós-moderno, ao se pensar na atual situação da cultura na América Latina. A noção de atraso, por exemplo, se desvincula do teor negativo e se impõe como peça integrante da defasagem temporal, do tardio, do sinal de mais das regiões periféricas. A experiência simultânea do tempo não significa que a realidade dos países periféricos seja similar aos outros, o importante é não pensarmos segundo parâmetros causalistas e progressistas. Na perspectiva de Martín-Barbero, a simultaneidade temporal aponta diferenças. E não se pauta por semelhanças que poderiam colocar a poética sincrônica imune a conotações de ordem contextual e histórica. Outras denominações surgem, como as modernidades tardias, com Fredric Jameson (1996), que trabalha com o capitalismo tardio, e Stuart Hall (1998), com as modernidades alternativas e o conceito de modernidades tardias. Outros preferem denominá-las de modernidades periféricas, modernidades livres (at large), segundo o indiano Arjun Appadurai, em seu livro Modernity at large (2001), ou, como Anthony Giddens (1997), modernidades reflexivas.O lugar dos exilados indianos nos Estados Unidos é analisado por Appadurai para explicar o conceito de modernidades livres, ao serem construídas comunidades imaginadas que se identificam pelos meios de comunicação de massa, como o rádio, a televisão, o rádio, o cinema, sem passar pela experiência das modernidades concebidas pelos órgãos oficiais. A passagem referente ao conceito de modernidade descentrada em Martín-Barbero (2002) é a que se segue:

El inacabado projecto de la modernidad no puede entonces separarse tan nítida y limpiamente de la razón que inspira la modernización como pretende Habermas (El discurso filosófico 13 y ss). De ahí que su crisis comporte para la perifería elementos liberadores. Así la posibilidad de afirmar la “no simultaneidad de lo simultáneo ”(Rincón)- la existencia de destiempos con la modernidad que no son pura anacronía sino residuos (en el sentido que esa noción tiene para R. Williams en Marxismo y literatura 144) no integrados de otra economía – que al

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transtornar el orden secuencial del progreso modernizador libera nuestra relación con el pasado, con nuestros diferentes pasados, haciendo del espacio el lugar donde se entrecruzan diversos tiempos históricos, y permitiéndonos así recombinar las memorias y reapropriarnos creativamente de una descentrada modernidad.7

Segundo o teórico, trata-se de uma “descontinuidade de modernidade não-contemporânea”, em que a não contemporaneidade deve ser claramente distinta da idéia de atraso constitutivo, de atraso convertido em chave explicativa da diferença cultural. Seria uma idéia que se manifesta em duas versões, a primeira, apontando que a originalidade dos países latino-americanos, e da América Latina como um todo, dependeu de fatores que se desvinculam da lógica do desenvolvimento capitalista. A segunda, entendendo a modernização como a recuperação do tempo perdido, e portanto identificando o desenvolvimento com o abandono de identidades locais para nos tornarmos modernos. Essa descontinuidade estaria situada em outra chave, ao permitir que se rompa “tanto com um modelo a-histórico e culturalista quanto com o paradigma da racionalidade acumulativa em sua pretensão de unificar e subsumir num só tempo as diferentes temporalidades sócio-históricas”.8 II- BABEL, o filme

Tendo em vista a simultaneidade das cenas montadas no filme Babel, com o objetivo de apresentar a atuação de diferentes personagens em distintos países e culturas, embora estejam ligadas por um acontecimento comum, haveria um conceito único de modernidade que os uniria? Qual o grau de semelhança e de diferença entre distintas feições do moderno vivenciado pelas personagens inseridas na vida urbana do Japão, no deserto de Marrocos, na fronteira entre o México e os Estados Unidos? A constatação de ser a película uma das grandes reflexões sobre a tênue fronteira que separa os povos, os seres humanos, sobre um lance do acaso que irrompe e provoca distúrbios incontroláveis, não estaria aí expressa a idéia de uma modernidade global, totalitária e perversa?

A análise do filme se concentra nas diferentes modalidades do conceito de modernidade, na discussão do multiculturalismo como representação contemporânea dos efeitos que a globalização econômica tem provocado na atualidade diante de países tão diferentes do ponto de vista 7 MARTÍN-BARBERO, Jesús.Globalización y multiculturalidad. MORAÑA, Mabel (Editora). Nuevas perspectivas desde/sobre América Latina: el desafío de los estudios culturales. Santiago: Cuarto propio. 2002. p. 25 8 MARTÍN –BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFMG, 1997. p. 214.

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econômico, social, cultural e político. Autor de Amores brutos, de 2000, e de 21 gramas, de 2003, Alejandro González Iñarritu completa a trilogia, em 2006, com Babel, realizando a película com produção mexicana e norte-americana.

O título do filme remete ao mito bíblico, contido no Gênesis, da torre de Babel. A confusão, gerada pela tentativa dos homens construírem uma torre capaz de alcançar o céu, termina com o impedimento, por deus, de sua construção. A ação, considerada manifestação de soberba da população, resulta no desentendimento entre os homens, que começam, a partir desse momento, a falar idiomas diferentes. O filme trata do tema da incompreensão entre as personagens e entre culturas. Refere-se, ainda, ao sentido intraduzível do título, processo almejado pela política da globalização para facilitar a compreensão entre povos de línguas distintas. Por essa razão, coincide com a fase pré-babel, quando a língua era uma só e todos se entendiam. Ironicamente, o título endossa e nega o tema da incomunicabilidade existente no filme, nega e endossa a sintonia criada com o espectador. Torres de Babel, de Jacques Derrida (2002), discorre sobre a intraduzibilidade do nome, a impossibilidade de tradução. O nome é comentado, parafraseado, mas não traduzido. Outra associação merece ser feita entre o filme e as torres gêmeas de Nova York, abatidas pelos muçulmanos, em 2001, acontecimento responsável pelas mudanças significativas no sistema de controle e policiamento da esfera mundial. As torres de Tóquio, apresentadas como ícones da modernização, se configuram para o espectador como a tentativa de vencer, igualmente, pela tecnologia, a aspiração divina de atingir o céu, de demonstrar poderes e desafios do homem diante da máquina. Do ponto de vista arquitetônico, as torres seriam o simulacro do progresso urbano e comercial estadunidense, entendido como espelho das potências pós-modernas.

A montagem simultânea das cenas segue o modelo dos filmes anteriores, em que se processa a narração fragmentada, ao romper com a cronologia tradicional do discurso cinematográfico: após o anúncio da cena, a apresentação rápida das mesmas, volta-se à elucidação do enredo aí suspenso. As fronteiras fílmicas da montagem são abolidas, sugerindo o movimento rápido e dinâmico das ressonâncias da globalização nos variados países, o corte cinematográfico como apropriação das técnicas de captação de notícias televisivas que se realizam no momento real em que estas acontecem. A visão condensada dos acontecimentos dirige o olhar do espectador para a rapidez com que se transita de um lugar a outro do globo, lugares distanciados geograficamente, mas que se aproximam de forma virtual pela ação da câmera. As peças, ao longo da película, vão-se recompondo, como um quebra-cabeças, um jogo de armar, movidas por um fio invisível que comanda o espetáculo, já com cartas marcadas para o resultado e o final do jogo. Os detalhes que associam as cenas entre si são

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mostradas de forma contrastiva, com o intuito de apontar diferenças de ordem cultural e, ao mesmo tempo, semelhanças de comportamento e desejos inerentes a todo ser humano. No Marrocos, o filho mais novo é o escolhido pelo pai como o mais corajoso e hábil para substituí-lo. É o autor do disparo da espingarda comprada pelo pai de um amigo. Em fase de iniciação sexual, observa, como voyeur, a irmã trocar de roupa, diálogo proibido realizado pela relação esquiva entre olhar e ser olhado. No Japão, a jovem surda-muda ensaia a comunicação difícil com os rapazes pela exibição do corpo, pela experiência das drogas. Em ambas as situações registra-se a incomunicabilidade como tema recorrente, assim como de outras cenas envolvendo outras personagens.

O enredo, de complexa urdidura, pode ser resumido de forma também fragmentada e ser entrecortado por interpretações. A experiência da morte é o tema que congrega todas as cenas. Vivenciada de maneiras diferentes, ela é acompanhada do ritual de iniciação pelo qual as personagens entram no processo de aprendizagem relativa à falta e à morte. Para a atualização desse ritual, situações de perigo, isolamento e sofrimento concorrem para a passagem a outro nível, da criança para o adulto, do celibatário para o casado, da natureza para a cultura, da saída da casa paterna para o mundo. O casal de estadunidenses convive com a proximidade da morte iminente, a perda de sangue, a dor, o alívio do sofrimento pela ação da mulher marroquina, silenciosa e que com o remédio, o fumo, revela saídas alternativas e naturais para a cura e a criação de uma relação de afeto entre as pessoas. O jovem marroquino, ao atingir a estrangeira, é jogado para outro nível de responsabilidade social, confessa ao pai o crime e se esconde dos policiais. A japonesa surda-muda, em fase de iniciação sexual, se entrega ao policial em sua própria casa. Os filhos do casal saem pela primeira vez de casa sem os pais, atravessam a fronteira dos Estados Unidos e entram em contato com os costumes mexicanos durante o casamento do filho da babá, entre eles a degola da galinha, a visão do sangue escorrendo, o convívio com o estranho. E, na volta, a fuga de carro com o sobrinho da babá, pela madrugada, sendo perseguidos pelos guardas e vivenciando a experiência do perigo e da morte. A última imagem das crianças é a do abandono no deserto, na fronteira, entregues ao total desamparo.

A primeira cena do filme, a venda de uma arma por um camponês marroquino, é feita na presença do comprador e dos dois filhos. A arma teria a função de matar os chacais, perigosos adversários das ovelhas. Deflagra os acontecimentos futuros e funciona como elo que interliga as cenas de todo o filme. As quatro narrativas se conjugam, representadas por quatro países, Marrocos, Japão, Estados Unidos e México, e três continentes: América do Norte, África e Ásia. Na primeira cena, a paisagem é o deserto de Marrocos, com suas montanhas e caminhos tortuosos, onde se pratica a pecuária, a criação de ovelhas, atividade passada de pai para filho. O comércio informal

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é operado por uma economia agrária, pela troca de produtos entre os membros da comunidade. A venda da espingarda irá gerar a corrente futura que culminará com a necessidade de descobrir o primeiro proprietário da arma, para se encontrar o autor do crime. O ambiente, despojado e aberto, contrasta com a modernidade excessiva de Tóquio, da metrópole pós-moderna, caracterizada pela alta tecnologia do primeiro mundo. Trata-se de um espaço que escapa da racionalidade moderna, dos domínios específicos do Estado-nação, constituindo-se como lugar vazio, capaz de provocar distúrbios inesperados e metamorfoses.

Nesse deserto ocorre a cena que envolve o casal em viagem de turismo em Marrocos, num ônibus que reúne pessoas de várias nacionalidades. O motivo da viagem é extremamente particular, pois serviria para tentar esquecer o drama do casal pela perda do filho mais novo, embora a depressão da mulher e precariedade higiênica do lugar, aos seus olhos, a impedissem de usufruir o passeio. Inconsolável, não se sente bem em Marrocos, e esse sentimento se manifesta pelo alto grau de incomunicabilidade entre eles. O casal de filhos permanece na Califórnia, sob os cuidados da babá, de origem mexicana, que espera a volta dos patrões para ir ao casamento do filho no México, numa cidade fronteiriça com os Estados Unidos. O filho mais novo da família marroquina, ao demonstrar para o irmão sua habilidade no manejo com a arma, uma espingarda Winchester, atira a esmo e por acaso atinge a mulher. Com a ajuda do empregado do ônibus, consegue-se chegar ao povoado onde mora o ajudante.

Na cidade de Tóquio, com suas torres, prédios iluminados e coloridos, vislumbra-se o espetáculo da cidade pós-moderna, luxuosa, marcada por uma cultura heterogênea e em confronto com os valores tradicionais. O apartamento da jovem surda-muda revela o conforto e a natureza limpa e despojada dos interiores, traços do gosto burguês, do excesso de tecnologia que resulta na carência de adornos e enfeites excessivos. A carência se metaforiza nos comportamentos regrados, nos relacionamentos frágeis e na incomunicabilidade entre pai e filha, acentuada após o suicídio da mãe. A jovem se comunica com os outros através de sinais, da escrita e do corpo. O diálogo um pouco efetivo se dá com o porteiro do prédio, mediador entre o fora e o dentro, entre a esfera semidoméstica e a pública. Este lhe passa os recados e possibilita o encontro entre a jovem, a polícia e o pai. Por um jogo espelhado das histórias, a jovem se expõe sexualmente para os rapazes, num gesto de rebeldia, ironia e afastamento. No caso do encontro com o policial, ao se desnudar, e se entregar a ele, o relacionamento, embora estranho e revelador da falta de entrosamento com outras pessoas de seu meio e idade, responde pelo futuro encontro com o pai. A cena representa, entre outras significações, a condensação da figura do pai na do policial, o que motiva a realização do desejo de se unir ao pai, considerando essa união como forma

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de restaurar o equilíbrio familiar e social. Em Marrocos, a promiscuidade familiar incita o desejo sexual entre irmãos e acende, de forma natural, a sexualidade reprimida, demonstrando a necessidade de romper fronteiras de ordem familiar. Este núcleo se mostra tão fechado, em virtude das poucas opções de conhecimento do outro, que incita à relação incestuosa, o reforço da concepção tradicional de família. Espelhadas igualmente são as situações de perda entre o casal de americanos, ou seja, a perda do filho, e a jovem japonesa, a perda da mãe.

Na Califórnia, outra cena: a babá dos filhos do casal, que se prepara para ir ao casamento do filho no México. Decide levar as crianças à festa, na impossibilidade de deixá-las com alguém, e em virtude da permanência dos patrões em Marrocos. O ritual do casamento, de natureza festiva se associa ainda ao ritual de passagem, não só do ponto de vista das crianças, mas em relação aos noivos. A passagem de um estado civil para outro é comemorada com festa e música, com a presença de amigos e familiares. É o coroamento da concepção de família nos moldes tradicionais. Percebe-se a cena por meio não da economia afetiva, mas do excesso, representado pelo grande número de parentes, de alegria e descompromisso com as ações. O sinal mais evidente do desvio de função relativo aos objetos se verifica no gesto do sobrinho da babá, ao lançar, como sinal de congraçamento, tiros para o alto. Mas a atitude aleatória assumida pelos jovens no deserto resulta em tragédia, pois o disparo em direção ao ônibus de turistas atinge um deles. Na cena mexicana, acredita-se ainda na integração familiar como sustento para a preservação dos valores tradicionais de união e solidariedade. A necessidade de integração da família irá funcionar, no final do filme, como saída um tanto provisória imposta pela incomunicabilidade vivida pelas personagens.

Na busca pelo proprietário da arma cujo disparo atingiu a mulher, policiais procuram o pai da jovem japonesa. Doada pelo japonês em viagem turística ao Marrocos ao seu guia, este a vende aos pais dos meninos. Na busca em Marrocos pelos criminosos, o jovem confessa ter sido ele o autor dos tiros. No final, a embaixada dos Estados Unidos resgata o casal e a mulher se salva. O possível ato de terrorismo cometido em Marrocos é desfeito pela confissão do jovem que, de mãos erguidas, num gesto de clemência e desespero, admite ter sido ele o autor do disparo.

O drama vivido pelas personagens retoma o drama existencial e político contemporâneo, no qual o acaso é o deflagrador dos acontecimentos, no lugar de uma ação premeditada e objetiva. O acaso, as coincidências e a impossibilidade de controle das situações traduzem a imprevisibilidade da sociedade contemporânea. Aquilo que não se pode prever. Assim, quanto mais controle estatal, mais se constata a presença das linhas de fuga, da inserção do outro no sistema. O sentimento de culpa, mesmo tendo sido assumido pelo jovem, deixa de ser um dado a ser

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considerado pelo espectador, da mesma forma que o autor do crime não é o primeiro possuidor da arma, uma vez que se dissolve a idéia de relação entre o crime e o proprietário da arma, pelo descontrole que o objeto e a sua trajetória acarretam. A arma entra no sistema simbólico e abstrato das trocas. Rompe-se com a relação de causa-efeito, em virtude de não existir uma causa premeditada do crime. Os proprietários da arma e os autores do crime perdem a função a eles atribuída. Essa responsabilidade é parte do sistema, com sua perversidade e o caráter aleatório das ações, atitudes próprias do descontrole que se processa em cadeia. A gratuidade das ações provoca o efeito dominó, o efeito bola de neve, à semelhança do processo de globalização, onde uma ação acontece em determinado país e ecoa nos outros de forma imediata. Tiros trocados entre a família de Marrocos e os policiais entram no processo de descontrole e começam a liquidar inocentes. As invasões dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque confirmam essa gratuidade das ações, o jogo perverso que desloca a culpa do sistema político hegemônico para as sociedades consideradas atrasadas e movidas pela irracionalidade.

As situações de total impotência diante das leis são vivenciadas pela babá mexicana, presa na fronteira do México com os Estados Unidos por estar ilegalmente no país, e pelo autor dos disparos, no Marrocos. A babá, em plena zona desértica, reduplica a função da patroa, ao perder as crianças que estavam sob sua guarda, perde o emprego e a possível cidadania americana. O espaço da punição é o deserto mexicano-estadunidense, fronteira que marca o signo da indecisão e do heterogêneo. Entendido como espaço de exceção, de perigo, de diferença em relação aos espaços urbanos, a fronteira separa territórios, apresentando-se como espaço livre para se cumprir qualquer tipo de lei. Em ambos os lugares, o deserto marroquino e o de fronteira, cria-se um estado de exceção – a vida nua, segundo interpretação de Giorgio Agamben, o homo sacer – situação quando o criminoso não tem com o que defender e é julgado sem escrúpulos, por não ter igualmente direito de defesa. Quando julgado por um delito, o homem sacro pode ser morto sem que isso constitua um homicídio, ou execução, ou condenação. Campos de concentração, prisioneiros acusados de terem realizado ações terroristas, infrações às leis de imigração, todas essas situações são interpretadas como perigosas e duvidosas. Ao serem envolvidas nessas tramas, as pessoas perdem tudo, ficando à mercê de qualquer tipo de lei a ser aí aplicada: “O estado de exceção, logo, não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura topológica complexa, em que não só a exceção é a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro. É justamente

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nesta zona topológica de indistinção, que deveria permanecer oculta aos olhos da justiça, que nós devemos tentar em disso fixar o olhar”.9

As observações finais desta análise são dirigidas ao encontro das personagens que se unem pelo afeto, pela criação de um elo comum que rompe com o comportamento usual, reintegra o relacionamento e desconstrói imposições de âmbito racional e distanciado. A mulher se entrega ao marido num gesto afetivo quando é por ele ajudada a fazer as necessidades fisiológicas. Ou quando o seu sofrimento físico é aliviado pelas artes da mulher marroquina, aproximação que se realiza pela aspiração do fumo, da substância por ela preparada. A união da família de origem marroquina se realiza, ironicamente, pela dor da morte do filho mais velho, obrigando o outro a se confessar. O encontro no alto da varanda do apartamento, em Tóquio, da jovem com o pai, com vista para a paisagem noturna e iluminada, sugere o início da conquista desse afeto perdido. São os descompassos da modernização conservadora e desenfreada, apresentados nas suas inúmeras dimensões e diferenças, o preço a pagar pela perda de valores humanitários, submersos na guerra cotidiana do trabalho e da racionalidade. Babel representa cenas alegóricas que remetem tanto para as desigualdades e descompassos entre os povos quanto para a imagem do acaso como estratégia para a dominação do mundo pelos países que ainda impõem seu poder hegemônico diante dos países periféricos. Nações que, contudo, se desintegram e se fragmentam na luta pelo domínio cego das demais.

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DO DESCARTE

E DA GAMBIARRA

– o caminho das coisas

Maria Adélia Menegazzo1

Queremos antes de tudo aparelhos que funcionem, que assegurem uma boa qualidade de conforto, de durabilidade, de operatividade.

Gilles Lipovetsky2

Tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social.

Hélio Oiticica3

A la dirección única de la imagen concertada, se oponem las maneras distintas de imaginar totalidades no clausuradas, sentidos no satisfechos. Desde estas perspectivas puede el enigma del arte constituir una zona de resistencia contra el esteticismo promovido pela rentabilidad compulsiva de la globalización y la trivialidade de la cultura del espectáculo.

Tício Escobar4

Imagens: um cilindro rola por uma esteira improvisada de madeira até bater em uma lata sobre a qual está colada uma garrafa, com fita adesiva, na

1 Maria Adélia Menegazzo é professora da UFMS. 2 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. 2008, p. 174. 3 OITICICA, Hélio. Apud. LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra. 4 ESCOBAR, Ticio. Zonas transitorias: la resistencia del arte. 2008, p. 73

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posição horizontal; o choque do cilindro na lata provoca a inclinação da garrafa que despeja um líquido em um copo colocado na extremidade de uma pequena gangorra feita com um pedaço de madeira em cuja outra extremidade se encontra uma vela acesa; o copo, agora cheio, desce e provoca a subida da vela que acende um pavio preso ao cabo de uma broxa de pintura colocada em pé, de onde sai outro pavio em cuja extremidade um pneu está amarrado; a queima do pavio solta o pneu que desce por uma tábua de madeira que lhe serve de rampa, adquirindo velocidade suficiente para subir uma outra tábua, que está apoiada em um tambor; o pneu desce do outro lado e corre em direção a uma rampa mais baixa, apoiada sobre um cilindro menor; em seguida, o pneu corre para uma escada aberta, ligeiramente inclinada para frente, amarrada nas duas extremidades com cordas que estão fixadas em uma outra tábua de madeira na posição vertical, afixada também sobre uma tábua apoiada em um pedaço de cano; o pneu corre, bate na tábua em pé provocando a queda da escada que bate na tábua que está sobre o cano, fazendo com que role e bata em um tambor, sobre o qual encontra-se um carrinho feito com quatro rodas adaptadas sobre um pedaço de madeira, em cuja ponta encontra-se novamente uma vela acesa; o carrinho desce do tambor, corre sobre um trilho que bate num toco onde se encontra uma grade de arame fino com um trançado de barbante por cima, que se incendeia e acende um outro pavio que pende de um suporte mais alto; em seguida...

Essa cadeia de acontecimentos é a tentativa de descrição de uma mínima parte dos dez minutos de duração do vídeo Der Lauf der Dinge (The way things go) ou The amazing chain reaction, produzido em 1987, pelos artistas suíços Peter Fischli e David Weiss, que mostra como podem funcionar os produtos do descarte da cadeia de produção e consumo de uma sociedade como a nossa. Coisas muito desgastadas pelo uso como pneus, pedaços de madeira, arames, estopas ganham uma funcionalidade próxima do maravilhoso, se pensadas numa estrutura de correlação e provocação entre os elementos dessa cadeia. Notamos, assombrados, o caminho das coisas desde que se considere a sua funcionalidade e, neste caso, uma indiscutível ironia sobre a funcionalidade do que já não teria função. Clutter follows function?

Tendo esse objeto como ponto de partida, buscamos pensar formas da arte contemporânea que se constroem a partir de rupturas na cadeia de produção capitalista, onde o produto acabado e a qualidade desse acabamento têm o mesmo valor. Pensadas na perspectiva da efemeridade, tais formas desafiam as técnicas restauradoras, os conceitos de originalidade e de permanência da obra de arte. Como uma amazing chain, as coisas descartadas vão tomando o lugar do bem acabado, do clean high tech, e se apresentando cada vez mais envolvidas em um circuito que tem tudo para ser negado pela sociedade de consumo e midiática, onde o valor resulta

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geralmente da velocidade da informação associada à alta tecnologia e ao bom acabamento do produto.

Ressalte-se que tomamos como norte, o pensamento de Giulio Carlo Argan5 ao afirmar que o que se verifica na obra de arte não é a conformidade a uma dada cultura, nem a sua superação, mas uma estrutura cultural específica, justamente aquela que permite que os valores sejam captados, não na dimensão sem tempo do pensamento abstrato, mas na do presente absoluto, da percepção. A RETOMADA DO NOVO

O efêmero, o contingente, o circunstancial, que em meados do século XIX eram vistos por Baudelaire como categorias da modernidade, ainda que valendo apenas a metade da arte, também hoje são elementos que dirigem a produção e o consumo dos objetos. Se naquela época o poeta das maléficas flores associava tais categorias à moda, no famoso ensaio O pintor da vida moderna6, pouco difere, no limite, a realidade atual, descrita por Lipovetsky nos seguintes termos:

A lei é inexorável: uma firma que não cria regularmente novos modelos perde em força e penetração no mercado e enfraquece sua marca de qualidade numa sociedade em que a opinião espontânea dos consumidores é a de que, por natureza, o novo é superior ao antigo. Os progressos da ciência, a lógica da concorrência, mas também o gosto dominante pelas novidades concorrem para o estabelecimento de uma ordem econômica organizada como a moda. (2008, p.160)

O que vemos é, então, uma retomada da categoria do “novo”, enquanto aperfeiçoamento técnico/tecnológico, nos mesmos moldes iniciais do movimento moderno, nas primeiras décadas do século XX. Porém, não se trata apenas da utilização do novo para a estetização do cotidiano, explícita, por exemplo, nos ideais da Bauhaus, mas de uma funcionalidade radical, na época, talvez melhor expressa na proposta form follows function de Louis Sullivan7.

5 ARGAN, Giulio Carlo. A Historia da arte como história da cidade. Trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 260. 6 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: _____. Poesia e prosa. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 859 7 Louis Sullivan (1856-1924) foi um dos primeiros arquitetos modernistas de tendência funcionalista.

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O retorno do novo como novidade estética transformou-se, na leitura de Harold Rosenberg8, na “tradição do novo”. Não se associa à funcionalidade ou ao bom acabamento, mas atende à necessidade de transformação e mudança constantes do ideário moderno vanguardista e assimilado em igual velocidade. No entanto, seria um equívoco pensar a inexistência de conflitos ou resistências. Fosse assim, não haveria o espaço da arte contemporânea, que continuaria a ser moderna.

É novamente Lipovetsky quem esclarece a situação: Nossa sociedade não é dominada pela lógica kitsch da mediocridade e da banalidade. O que faz a diferença é cada vez menos a elegância formal e cada vez mais as performances técnicas, a qualidade dos materiais, o conforto, a sofisticação dos equipamentos. O estilo original não é mais produto do luxo, todos os produtos são doravante repensados tendo em vista uma aparência sedutora, a oposição modelo/série turvou-se, perdeu seu caráter hierárquico e ostentatório. (2008, P.163)

No entanto, seria leviano afirmar que esteja em curso uma homogeneização dos produtos, mas sim uma diferença de graus de sofisticação, que se faz sutilmente através de uma política do design. Do mesmo modo, não se trata de consumir produtos enquanto símbolos de uma classe social e econômica, mas, antes, de satisfação pessoal e individual.

A leitura da sociedade contemporânea desse ponto de vista incita a arte a buscar formas eficientes para se contrapor como objeto cultural à cultura que ela estabelece. Num contexto mais amplo das tendências da arte, poderíamos pensar em uma genealogia que vem da pop arte que, retomando Duchamp, investiu duramente contra a possibilidade de diferenciação ou, ainda, de identificação entre os objetos de arte e as “meras coisas reais”, para usarmos a expressão de Arthur Danto9, com todas as dificuldades que tal discussão acarreta. Além disso, naquele momento da pop, o mercado da arte muda de Paris para Nova York, permitindo definitivamente o estilhaçamento dos valores novecentistas residuais. Sem fronteiras nacionais estabelecidas, o centro novaiorquino não permite mais uma escritura linear da História da Arte. Tudo acontece ao mesmo tempo: objetos, formas e práticas em tensão permanente.

8 ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo: Perspectiva, 1976 9 DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar comum. 2005, p. 33ss.

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Delineia-se o que Ronaldo Brito chama o “Outro Novo” 10. Para o crítico, o objeto de arte contemporânea está em constante conflito com o próprio sistema que o engendra:

Seus procedimentos seriam ‘industriais’, sofisticados raciocínios produtivos, ainda irrealizados. E que, astuciosamente, aparecem no real como se fossem irrealizáveis. A afirmação de uma inteligência atópica, sem recuperação possível pelo espaço da dominação onde se exerce, confere à arte um poder negativo específico – pensar o impensável, fabricar o infabricável, ainda que o faça nos limites regulados pela própria realidade, no terreno espiritualizado da ‘criação’. Assim, a arte contemporânea perfaz-se enquanto arte, constrói ilusões de verdade e destrói as ilusões da Verdade11.

Fica claro, desse modo, que o objeto da arte contemporânea encontra-se em permanente crise, questionando valores estabelecidos. A proposta dos artistas Fischli e Weiss está ancorada, por exemplo, concomitantemente na precisão do “relógio suíço” e na inventividade própria daquilo que aparentemente não funciona e que, no Brasil, chamamos gambiarra. A confluência dessas duas possibilidades eleva objetos comuns à categoria estética. Neste caso, caberia indagar também sobre a natureza da obra de arte contemporânea, quando se torna evidente a sua exclusão do mercado? DO DESCARTE E DA GAMBIARRA

Pensando a era do descarte, na perspectiva apontada por Lipovetsky, concretizam-se vertentes na arte contemporânea que trabalham em várias frentes com produtos considerados inúteis ou obsoletos. Mas não seria ainda o caso de indagar sobre a natureza da obra de arte. O efeito de precariedade e provisoriedade, de acumulação e acaso remete o observador, em alguns casos, à habilidade artesanal de que o artista pode se valer para a construção de sua obra. Na contramão da arte high tech, ou mesmo do minimalismo em sua vertente mais “menos”, o artista El Anatsui, natural de Gana e professor de artes na University of Nigéria, constrói sua poética a partir da reutilização de matérias como madeira, metal, vidro. Na 52ª Bienal de Veneza (2007), mantas de grandes dimensões, remetendo aos multicoloridos

10 BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). In: BASBAUM, Ricardo. (org.) Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções e estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 202-215 11 BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). In: BASBAUM, Ricardo. (org.) Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções e estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 215.

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tecidos próprios da cultura africana ou a exemplares das tapeçarias medievais, foram colocadas entre as colunas do Arsenale.

A matéria de que são feitos estes tecidos implica a transformação do já utilizado: latas de refrigerantes e/ou tampas de garrafas processadas manualmente a ponto de serem recortadas, dobradas, amassadas em pequenas unidades, ligadas por um pedaço de arame. O resultado é uma obra na qual o limite entre arte e artesanato se extingue. A leitura fácil de uma crítica ao acúmulo de lixo própria da sociedade de consumo é despotencializada pela desfunção implícita na obra de arte resultante. Remete para a leitura alegorizante que reverencia ironicamente os grandes mantos, expressão do consumo de enlatados.

Por outro lado, como pensar que o muro de uma loja comercial de São Luís do Maranhão possa ser exposto em uma Bienal de São Paulo? Em 2000, o muro, além de remeter à memória afetiva individual do artista Marepe, viajou na carroceria de um caminhão, retomando o caminho do “pau-de-arara” e a experiência de migração do homem nordestino para o Sul do Brasil. Não apenas o muro, mas também o gesto de recortar literalmente um pedaço da história pessoal do artista ressignifica o objeto investindo-o de valores estéticos e poéticos, para além do gosto individual.

A artista brasileira Rivane Neuenschwander se abre para a criação de um sistema temporal, fazendo um trabalho de garimpagem do que é jogado nas ruas, principalmente papéis. O discurso do lixo pode ser encontrado em Calendário achado (Julho) (2001-2002), em que 31 mesas de alumínio simulam a grade do calendário do mês de julho, contendo, sobre cada uma delas, uma coleção de papéis impressos e manuscritos colhidos na rua, exibindo o número equivalente a um dia do mês para cada uma das mesas. De acordo com o texto de Rodrigo Moura, curador da exposição no Museu da Pampulha, “A obra revela um procedimento conceitual rigoroso e obsessivo a serviço da vontade de recompor os fragmentos de um sistema de tempo”. Nesta recomposição, uma sucessão de acontecimentos “descartados” é reunida e, nesta fragmentação, aparentemente sem sentido, podem ser articuladas novas narrativas, novas temporalidades.

Já na Torre de Babel, de Cildo Meireles, o processo de empilhamento de 900 rádios, grande parte fora de linha, sintonizados em estações de diferentes línguas, num certo sentido recicla tanto a prática da audiência quanto a da recepção da informação. Ao mesmo tempo expõe a multiplicidade lingüística, o aspecto ininteligível da sobreposição sonora como coisas próprias do nosso tempo, destruindo o caráter alegórico da Torre, hoje, torre de informação globalizada.

Se pensarmos apenas na vertente “gambiarra”, de acordo com Ricardo Rosas, o artista contemporâneo estaria se apropriando de uma “prática endêmica” na cultura brasileira, anunciando fenômenos que habitam o

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imaginário popular nas ruas das nossas cidades, não importando o seu tamanho:

A gambiarra é, sem duvida, uma prática política. Tal política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou ferramenta de suporte para ele), mas porque a prática da gambiarra implica uma afirmação política. E, conscientemente ou não, em muitos momentos, a gambiarra pode negar a lógica produtiva capitalista, sanar uma falta, uma deficiência, uma precariedade, reinventar a produção, utopicamente vislumbrar um novo mundo, uma revolução, ou simplesmente tentar curar certas feridas abertas do sistema, trazer conflito ou voz a quem são negados. A gambiarra é ela mesma uma voz, um grito de liberdade, de protesto ou simplesmente, de existência, de afirmação de uma criatividade inata.12

Para Lisette Lagnado, o discurso da gambiarra vem ocupando espaço e ressaltando seu acento político e estético. Assim, “gambiarra, tomado como conceito, envolve transgressão, fraude, tunga - sem jamais abdicar de uma ordem, porém de uma ordem muito simples13”. Há ainda uma tendência a associar a gambiarra à bricolagem, mas o que se percebe é que ela vai além da engenhosidade bem comportada do bricoleur.

Essa articulação de coisas banidas do sistema funcional (sobretudo no âmbito da habitação e do vestuário) talvez seja um dos artifícios mais recorrentes. Mas cada urgência é uma nova urgência, pronta a determinar a invenção de seus elementos, diria o artista. Sucatas e utensílios domésticos ganham lugar privilegiado nessa fábrica, com soluções construtivas referentes à cor e geometria14

As fotos de Cao Guimarães, da série Gambiarra, são exemplos para a reflexão do nosso trabalho: um limão transformado em cinzeiro displicentemente deixado sobre um cobertor; um sutiã, cuja alça arrebentada foi consertada com um clipe, ou, ainda, um dado calculadamente colocado sobre o braço de um toca discos de vinil, indicando que, na sua ausência, seria impossível ouvir a música.

Nessa perspectiva, Paulo Nenflídio15 constrói suas máquinas sonoras. No momento em que se tem à disposição a mais alta

12 ROSAS, Ricardo. Gambiarra – alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante. In: Caderno Videobrasil. Vol.2, n. 2. 2006, p. 47. O texto de Rosas é um dos poucos que tratam dessa poética. 13 LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra. Revista Trópico. Disponível em http://p.php.uol.br/tropico/html/textos/1693. l. shl. Acesso em 27/12/2008. 14 LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra. Revista Trópico. Disponível em http://p.php.uol.br/tropico/html/textos/1693.l.shl. Acesso em 27/12/2008. 15 paulonenflidio.vilabol.uol.com.br/

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tecnologia dos aparelhos sonoros, Nenflídio resgata a habilidade de fabricar instrumentos, combinando conhecimentos de eletrônica, música e artes, em materiais como madeira, conduites, PVC, fita isolante, criando novos “instrumentos”, categorizados como low tech. Assim, é possível a existência de um “Telembaum telegráfico”, um “Realejo Heavy Metal”, ou uma indescritível “Bicicleta Maracatu”.

Pode-se observar também que a obra dos artistas aqui apresentados permite associar a gambiarra e o descarte a propostas de sustentabilidade, mote freqüente nas poéticas contemporâneas. Para além de meros exercícios de contestação e ativismo, segundo Hans Dielman16, os artistas contribuem para a configuração de três categorias de reflexividade e de reflexão sobre o mundo a sua volta: “descolamento”, “apoderamento” (empowerment) e “encantamento”. Descolamento implica quebra de rotinas, ruptura na visão de mundo estabelecida; apoderamento significa a consciência de que as pessoas podem controlar a própria vida e mudá-la e encantamento é o processo de empatia que se pode criar entre os sentimentos subjetivos e a realidade objetiva.

A arte pode se posicionar como um elemento de interrupção na experiência da sociedade midiática e suas tecnologias, provocando uma outra leitura, pelo avesso, talvez, porém eficaz como forma de reflexão. Assim, embora pareça um contra-senso qualquer tentativa de sistematizar a prática artística contemporânea, é possível fazer referência a determinados aspectos que vêm chamando atenção nos estudos sobre cultura.

O primeiro deles é, sem dúvida, o aspecto político de afirmação da arte pela negação do sistema que tem sido a tônica dos artistas aqui mencionados, entre muitos outros. Diante da necessidade de substituição constante de produtos para um mercado cada vez mais voraz, a mercantilização cultural sofre duro golpe quando confrontada pelas vertentes da gambiarra e do descarte. Há, indubitavelmente, uma oposição irônica diante da forma fácil e leve das imagens da mídia ou, ainda, da arte cujo modelo vem do centro e aceita o formato esteticista dos mercados transnacionais. A ênfase recai, então, no entrelugar capaz de conter estratégias mais radicais de percepção do real.

Para o crítico paraguaio Tício Escobar, é preciso conservar uma zona intermediária que, mesmo não sendo totalmente autônoma, seja capaz de conservar atritos, obscuridades e dobras:

16 DIELMAN, Hans. Sustentabilidade como inspiração para a arte. In: Caderno videobrasil. Vol.2, nº 2, 2006, p. 119-133.

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El esteticismo indolente del mercado anega todo el campo de la sensibilidad y termina anulando la especificidad de la experiência estética (a mayor extensión de la belleza, menor intensidade suya: se todo es arte, nada es arte; es decír, se todo está estetizado nada lo está com la suficiente fuerza como para provocar experiências artísticas). Se requiere, entonces, outro local para el arte. Pero si este sale del círculo consagrado por la forma y alumbrado por el aura, se disuelve em la realidad extra-muros: es tragado por contenidos informes que no pueden ser reducidos (2008, p.68)

Neste sentido, pode-se compreender o descarte e a gambiarra como propostas poéticas críticas frente ao esteticismo midiático e globalizado.

O mundo contemporâneo cria, cada vez mais, necessidades e expectativas fundamentadas em uma sociedade na qual tudo está obscenamente exposto, onde o êxtase da comunicação17 transforma a vida num grande espetáculo controlado remotamente, criando famosos de 15 minutos e mitos de imbecilidade; possibilita também a sua (re)produção virtual, indo desde a simples interação em tempo real de sujeitos muito distantes até a imersão do indivíduo na realidade criada. Seria de se indagar sobre as possibilidades de intervenção do discurso artístico quando sua opção fica à margem dessa realidade?

Talvez algumas respostas estejam no paradoxo construído a partir das epígrafes com as quais iniciamos o nosso texto. Se Lipovetsky descreve com precisão em sua obra a sociedade contemporânea como o “império do efêmero” e como a “era do vazio”, em que medida o grito guerreiro de Oiticica pode ser assumido pelo artista contemporâneo? Não sem razão, Lisette Lagnado vê no autor dos parangolés a origem crítica da gambiarra. O inconformismo cultural, político, ético e social de Hélio Oiticica rebate a aceitação melancólica e opaca da mercantilização cultural indiscriminada.

A desrazão implícita no excesso evidenciado pela poética do descarte é assim questionada e, se como afirma Tício Escobar, definindo com lucidez suas “zonas transitórias”, amplia seu discurso crítico pela América Latina como um todo, o enigma da arte implícito nessas zonas cria sua própria zona de resistência.

Enfim, podemos pensar no papel que as obras aqui descritas desempenham em nossa sociedade. Aquilo que pode ser lido como a ineficiência de uma linguagem, posto que não se revela à primeira leitura, pode também ser visto como um elogio do mal acabado, o caminho das coisas descartadas, que por sua vez não é recebido ou mesmo percebido como obra de arte. A certeza de que esse elogio é necessário, de que ele é capaz de operar transformações na recepção do objeto passa pela relação da 17 Cf. BAUDRILLARD, Jean. Él éxtasis de la comunicación. In: FOSTER, Hal (org.). La posmodernidad. Barcelona, Kairós, 1986, p. 187-198.

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arte com o mercado globalizado. Afinal, não “queremos antes de tudo aparelhos que funcionem, que assegurem uma boa qualidade de conforto, de durabilidade, de operatividade”, ainda que mal acabados?

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UTOPIA, literatura e ensino

Maria Antonieta Pereira1

É entre os letrados que se escolhem os embaixadores, os padres, os traníboras e o príncipe, chamado antigamente barzame e hoje ádemo.

Thomas Morus

Em 1997, coloquei essa epígrafe na minha tese de doutorado que analisava o romance A cidade ausente, do argentino Ricardo Piglia. Naquele momento, eu analisava como o romance de Piglia trabalha com a idéia de uma cidade utópica, que é/não é Buenos Aires, a qual congrega o passado, o presente e o futuro na medida em que;

a) reúne literaturas de várias procedências (Ulisses, de James Joyce; Museo de la novela de la Eterna, de Macedonio Fernandez; o “Aleph”, de Jorge Luis Borges) e assim reativa uma memórica cultural de alto poder ficcional;

b) interfere no tempo presente por meio de um narrador que, abrindo espaço para outras vozes narrativas, atua como um contador de histórias (um griot, um pajé), que narra para nós (personagens do presente marcados por várias narrativas do passado), as questões da vida contemporânea (perda da memória cultural, revolução tecnológica em curso, diversidade cultural) que não conseguimos entender sem o concurso da literatura;

c) inventa o leitor/escritor do futuro que, sendo uma mistura de homem e máquina, revela-se como um cyborg, um replicante que vê o mundo com a sensibilidade de máquinas humanizadas que aspiram à condição de humanos.

1 Maria Antonieta Pereira é professora da UFMG.

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A palavra utopia vem do grego ou (não) + tópos (lugar) e significa, portanto, um não-lugar, um lugar que não existe. Em nossa memória de leitores ocidentais, essa palavra está muito marcada pela obra homônima de Thomas Morus que descreve um país ideal onde tudo estaria organizado da melhor forma possível para a felicidade completa de sua população. Além de Morus, outros utopistas idealizaram espaços dessa natureza. Um deles, Francis Bacon, que era político, filósofo e ensaísta, investiu tanto nessa perspectiva que acabou fundando a ciência moderna, já que conseguiu articular empirismo e metodologia científica. Outro importante utopista foi Tommaso Campanella que, na qualidade de filósofo renascentista italiano, poeta e teólogo dominicano, escreveu seu projeto de sociedade ideal em A cidade do sol. Em sua perfeição, esse agrupamento humano funcionava como uma avançada democracia lingüística já que “os alfabetos das diversas nações [apareciam], igualmente, ao lado do alfabeto da Cidade do Sol.” Esse incessante processo tradutório transformava a cidade imaginada por Campanella numa espécie de anti-Babel que permitia o compartilhamento do significado das palavras e das coisas.

A palavra utopia pode remeter também ao ato de projeção de um futuro ideal e, ao mesmo tempo, pode significar quimera, fantasia, concepção irrealizável. Além disso, a utopia pode assumir várias formas, que incluem desde a idéia de fantasmagoria (que pode ser um cenário fantástico de figuras e luzes ou mesmo o processo de evocação de visões) até a experiência do sonho, seja ele uma fantasia noturna inconsciente ou a dinâmica da criação literária que pode ser diurna e precisar de olhos abertos. Aplicada à história, a utopia pode ser entendida como ucronia: reconstrução da história segundo um rumo que ela poderia ter tomado ou aquilo que não se situa em nenhum tempo, que nunca se realizou. Utopia também nomeia o mito, compreendido como narrativa fabulosa transmitida pela tradição e referente a deuses que encarnam simbolicamente as forças da natureza e certos aspectos da condição humana (narração de tempos fabulosos ou heróicos). Representada, muitas vezes, pela quimera (monstro fabuloso com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão), a utopia pode assumir a conotação negativa de uma fantasia totalmente absurdoa. No que se refere aos gêneros literários, a utopia remete ao processo de fabulação típico de romances, novelas e mesmo de narrações históricas em versos. E finalmente, a utopia também pode ser pensada como uma teoria, no sentido de significar especulação, ação de olhar algo, hipótese, suposição, conjecturas. ENSINAR A UTOPIA

Na minha tese de doutorado, também trabalhei com a idéia de hipertexto, cuja noção básica muito se aproxima do conceito de utopia enquanto uma anti-Babel contemporânea. Noutras palavras, enquanto na

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Babel tradicional há não só diferenças mas também uma divergência radical entre as línguas – já que as traduções são impossíveis – numa perspectiva hipertextual, as diferenças não criam pares fortemente excludentes e, por isso, estabelecem outras possibilidades de atritos e negociações do sentido porque redes de redes semânticas vão se desconstruindo e reconstruindo mutuamente.

A partir da ferramenta lingüística do hipertexto – que muito me auxiliou na análise das intrincadas redes narrativas de Ricardo Piglia – comecei a perceber a validade das teorias de rede seja como recurso analítico, seja como princípio organizador de práticas concretas. Naquele momento, eu orientava um grupo de alunos numa pesquisa de Iniciação Científica intitulada “A tela e o texto: literatura e trocas culturais no Cone Sul”. Essas discussões levaram a tantas atividades de ensino e extensão na Região Metropolitana de Belo Horizonte que, aos poucos, congregamos outros estudantes da FALE, professores de redes públicas e privadas, líderes comunitários, bibliotecários, artistas, produtores culturais etc. Assim nasceu o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto que, desde 1998, tem despendido um considerável esforço para desenvolver projetos de reflexão (pesquisa teórica e bibliográfica) e planos de ação concreta na sociedade (atividades de ensino/extensão e pesquisa aplicada). Todo esse trabalho foi se concentrando, ao longo dos anos, num saber-fazer que sempre buscou a ampliação dos níveis de leitura da população culturalmente excluída. Por isso, o Programa desenvolveu várias propostas pedagógicas que realizam uma leitura inter-relacional de telas e textos, tentando acionar a grande rede sociocultural do Brasil que sempre articula o texto impresso às telas do cinema, da televisão, do computador e do celular.

Evidentemente, as ações do Programa partem da realidade dos enormes contingentes de brasileiros excluídos da leitura de textos escritos em Língua Portuguesa e dos baixos níveis de desempenho lingüístico daqueles que são considerados alfabetizados e, muitas vezes, letrados. Felizmente, começam a tomar corpo certas políticas públicas de leitura que prometem alterar o cenário da formação de leitores no país. Nesse contexto, destacam-se as metas do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) para 2008, as quais prevêem, dentre outros tópicos:

● aumentar o índice nacional de leitura em 50% (de 1,8 para 2,7 livros por habitante/ano); ● elevar o índice de empréstimos de livros em bibliotecas (sobre o total de livros lidos no país) de 8% para 14%; ● aumentar em 10% o índice per capita de livros não-didáticos adquiridos (de 0,66% per capita para 0,72% por ano); ● elevar em 10% o número de livrarias (de 1.500 para 1.650). Essa estatística mostra como os educadores ainda têm pela frente uma

longa trajetória a ser percorrida, no sentido de colaborar para ampliar os

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níveis de letramento do Brasil. Por outro lado, o país apresenta uma forte cultura audiovisual, com destaque para o consumo de programas de TV e um crescente uso de computadores e celulares. A própria Literatura Brasileira — que sempre circulou amplamente no interior da elite letrada — tem sido veiculada para a grande massa por meio de recursos do cinema, da televisão e da própria Música Popular Brasileira.

Como exemplo de filmes, seriados e minisséries que divulgam a Literatura Brasileira, poderíamos citar O tempo e o vento, Sítio do pica-pau amarelo, Mad Maria, O auto da compadecida, Agosto, O sorriso do lagarto, A grande arte, Memórias póstumas, A chuva nos telhados antigos, Françoise, O bloqueio, Rua da amargura etc. etc. As obras de Luiz Vilela, Murilo Rubião, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, para citar apenas alguns de nossos grandes escritores, estão sendo focadas constantemente pelas câmeras brasileiras. Nossa novela de televisão tem como estrutura básica o romance-folhetim do século XIX. Poetas consagrados, como Augusto de Campos e Arnaldo Antunes, produzem videopoemas para serem lidos nas telas da TV ou do computador. Compositores de letras de música, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, favorecem a elevação do nível cultural dos brasileiros quando lhes oferecem poemas musicados de rara qualidade artística que circulam pelos mais populares programas de rádio e também pelas produções televisivas e cinematográficas.

Nesse cenário, o Programa A tela e o texto busca ampliar e aprofundar os níveis de leitura de educadores e educandos, explorando as possibilidades de alguns elementos típicos de nosso tempo, a saber: • a revolução mundial da informática; • a forte cultura televisiva do Brasil; • a tradição cinematográfica da população de Belo Horizonte; • as experiências contemporâneas de jovens videomakers mineiros; • as propostas educacionais transdisciplinares.

Na tentativa de contribuir para melhorar os níveis de leitura do Brasil contemporâneo, o Programa busca desenvolver pesquisas que abordem:

1. as relações entre telas e textos, construindo uma rede conceitual que examine os recursos motores, lingüísticos, neurológicos e culturais empregados na leitura de letras e imagens;

2. as competências e habilidades exigidas para a leitura das telas (cinema, TV, computador) e dos textos (literatura, ciência, tecnologia, mídia);

3. os pontos de confluência e divergência entre tais competências e habilidades, tendo como hipótese a possibilidade

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de sua transferência de um campo a outro (do texto à tela e vice-versa);

4. a formação de leitores críticos de telas e textos em vários níveis (leitura formal e informal; leitura escolar, profissional ou de entretenimento; leitura de ficção e não-ficção), numa perspectiva transdisciplinar.

Para atingir suas metas, o Programa organiza-se em setores, que atuam como nódulos de sua rede interna e como sensores que captam as demandas das grandes redes sociais externas e, ao mesmo tempo, provocam interfaces entre telas e textos. Atualmente, o Programa conta com 11 projetos de formação de leitores e educadores, a saber:

1. LEITURA PARA TODOS – divulgação da Literatura Brasileira nos ônibus e no metrô de Belo Horizonte, por meio de lâminas afixadas nas cadeiras;

2. MOSTRAS E ESTUDOS AUDIOVISUAIS – exibição da produção audiovisual mineira, amazônica e latino-americana (documentário, ficção, animação, experimental e videopoema) tendo já realizado 9 Mostras e várias re-edições, em espaços culturais do centro e das periferias de Belo Horizonte;

3. BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS – fundação e/ou assessoria de bibliotecas comunitárias na Região Metropolitana, incluindo cursos de capacitação de bibliotecários, auxiliares de bibliotecas, professores e agentes culturais;

4. LETRAMENTO LITERÁRIO INFANTO-JUVENIL – participação no projeto Escola Integrada da Prefeitura de Belo Horizonte, que atende a crianças em situação de risco (convênio PROEX/UFMG);

5. LINHA EDITORIAL – difusão da Literatura Brasileira, por meio de textos breves do passado e do presente, com a edição de livros de bolso a baixo custo (vendidos a R$1,99), para atender à população da periferia de Belo Horizonte. O projeto também edita livros no formato padrão com resultados de pesquisas que atendem aos educadores;

6. FÓRUM DE ENSINO DE LEITURA – evento quinzenal realizado na Faculdade de Letras, que debate pesquisas e temas relativos à formação de leitores;

7. REVISTA txt – revista eletrônica, editada semestralmente desde 2005, auxiliada por conselho editorial internacional, que divulga leituras e pesquisas transdisciplinares de telas e textos;

8. CAPACITAÇÃO DE EDUCADORES – projeto permanente de capacitação de profissionais da educação

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(professores, líderes comunitários, agentes culturais, bibliotecários etc.) por meio de cursos, palestras e eventos pedagógicos, atualmente, trabalhando na assessoria das Secretarias de Educação de Belo Horizonte e Timóteo;

9. ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E INCLUSÃO DIGITAL – realização de projetos que atendem a jovens e adultos com alto nível de exclusão social, propiciando-lhes alfabetização, letramento e noções básicas de computação;

10. PROJETO VERDE – promoção de ações internas e externas ao Programa, no sentido de construção de uma ética do gênero humano que envolva o respeito e o cuidado para com todas as formas de vida na Terra, favorecendo as práticas vegetarianas e veganas, o protagonismo individual, a participação comunitária e o pertencimento à espécie humana;

11. NOVAS HISTÓRIAS – preparação de educadores sociais que sejam capazes de atender às populações acolhidas em abrigos de Belo Horizonte, no sentido de elevar seu nível de letramento e sua competência profissional.

Atuando em parceria com vários órgãos públicos e privados da Região Metropolitana de Belo Horizonte, o Programa já teve muitos de seus projetos contemplados por leis de incentivo à cultura. Além disso, seu projeto Leitura para todos recebeu em 2007 o maior prêmio nacional de fomento à leitura, o VIVALEITURA, patrocinado por MEC, MINC, OEI e Fundação Santillana. Disposto a colaborar para elevar os níveis de leitura do país, o Programa A tela e o texto interage fortemente com instâncias de ensino formais e informais, circulando entre universidade, sociedade e comunidades locais, aprendendo e ensinando. Desses encontros e dessas trocas, sempre nascem novas redes de sentido e novas opções pedagógicas.

Retomando o início de nosso diálogo neste texto, poderíamos pensar em como a fabricação cotidiana da utopia – esse não-lugar que nos desterritorializa de nós mesmos e nos remete para o outro – é capaz de estimular a inteligência coletiva que, por sua vez, pode ruminar idéias, construir opções e nos permitir a experimentação de outras propostas de texto e de vida. Presididos pela literatura, essa quimera que vem alimentando a humanidade ao longo dos séculos, nós, os educadores, vamos construindo novos espaços de sonho e desejo, porque estamos inconformados com o mundo. Porque podemos sonhar de olhos abertos e, de fantasia em fantasia, ir modificando as formas de viver. Porque sabemos que, nas cidades do sol que imaginamos, também somos apenas outras formas do sonhar.

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ENTRE A LETRA E A ARENA REAL: a Terra de Antonio João

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos1

TERRAS E GENTES

É preciso que este texto comece com uma autocitação, de palestra que proferi há dez anos atrás, em Seminário Internacional2, recuperando inclusive sua nota de rodapé:

A morte do índio Marçal de Souza, ilustre representante das questões indigenistas, e que a cada dia faz acrescer mais uma às inúmeras páginas sobre o seu assassinato, talvez seja a pedra no meio do caminho de uma das mais atuais dilacerações da região sul-mato-grossense: o suicídio (?), o quase extermínio da população indígena local, que foi, diga-se de passagem, objeto da Exposição de Blanche Torres, na Câmara Municipal de Dourados, em 16/12/1998, sobre o título Omano che Retame, ou seja morte na minha aldeia.3

Publicado em 1999, em anais do Seminário “Culturas, contextos, discursos: limiares críticos no comparatismo”, o ensaio visava a delinear algumas das manifestações artísticas e culturais que compõem o macrotexto cultural do Estado de MS, com seus componentes de formação discursiva e identitária, refletindo sobre a travessia dos signos do universo socioeconômico e a constituição da identidade, na tessitura da representação

1 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos é professor da UFGD. 2 Cf. SANTOS. Um outdoor invisível: imagens do Pantanal sul-mato-grossense. In: CARVALHAL, 1999, p. 175-183. 3 Sobre as circunstâncias da morte do índio Marçal de Souza, que teve repercussão nacional e internacional, cf. TETILA, 1994, 122p.

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cultural da região Centro-Sul do estado e da grande Dourados, especialmente.

Dez anos depois, dentro desta perspectiva, a citação acima retorna com todo o teor de conflito, de crônica de morte anunciada, de revolvimento de questões nunca resolvidas nem esquecidas, e que reacendem hoje os ânimos e ocupam largos espaços nas diversas mídias, na pauta do estado-nação e no dia a dia dos indivíduos, com um impacto muito maior e redobrado pela força e potência dos dez anos, que recobriram de tinta, tanto os sentidos da citação quanto com muito sangue a história recente, trágica, dos povos indígenas no Estado de MS.

Contrastando com a “letra” do Hino do estado, as de várias músicas regionais sul-mato-grossenses, ao mesmo tempo em que retratam, evocam nossa herança pantaneira, nossa história e tradição de povos indígenas (nação guaicuru), atravessados por rica cultura fronteiriça, lindeira com um país de cultura tradicional espanhola, como é o Paraguai, uma cultura que se forma à sombra da história local, e, portanto, com fortes traços de mestiçagem e hibridismo. Seja nas letras de Almir Sater, “Sonhos guaranis” e “Quyquyho”, por exemplo, seja na letra de “Quanta gente”, esta do compositor Zé Du, ou ainda na de “Paiaguás”, dentre outras, a representação da identidade cultural mostra-se como um tecido dilacerado, multifacetado – corpo despedaçado: Quanta gente, tanta /De pioneira coragem /Que te buscou, “Terra Santa” /Com festa e dor na bagagem /Quem foi que expulsou o índio/ Quem lutou com o Paraguai /Quem derrubou a mata /Quem cultivou Cultivar /Quem “ganhou” latifúndio /Quem veio pra trabalhar /Viu tanto trecho de “Campo Grande” /Grande de admirar /Quem não te viu “Bonito”/ As águas claras de um rio /Um peixe, um tucano, uma onça /Tatu onde é que tu tá /Tanta gente, quanta /Hoje sabe da história tanta / Vivida neste teu solo.4

Essas “letras”, emblematizadoras das outras escrituras, diferentes da do Hino, desvelam escaramuças, trapaças e carborteirices, que as Letras, representadas pela “cidade letrada”, trataram de reluzir com palavras “douradas”, idealizadoras e pela romantização do índio, desde a formação do estado: Limitando qual novo colosso / O ocidente do imenso Brasil /Eis aqui sempre em flor, Mato Grosso / Nosso berço glorioso e gentil / Eis as terras das minas faiscantes / El dourado como outros não há / Que o valor de imortais bandeirantes / Conquistou o feroz paiaguás / Salve terra de amor, terra de ouro / Que sonhara Moreira Cabral/ [...]. Assim, à Letra do Hino corresponderia todo o processo de construção das narrativas que “inventaram” o Novo Mundo, criando o que resultou, através do processo 4 Zé Du. “Quanta gente”. In: Documentário da Cultura e da Arte Sul-mato-grossense. Filme. 1 Cd-rom.

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histórico do descobrimento e colonização, na formação da idéia de nação e de “cidade letrada”, como relata Ángel Rama em livro indispensável para a análise das microrregiões culturais na América Latina e o conseqüente apagamento das margens da nação. ESCRITURAS E TRAPAÇAS

Em ensaio que discute as teorias da transculturação e o papel da classe letrada como fundamentos da constituição da idéia de nação, Rachel Lima demonstra, veemente e desalentadoramente, que as visitas do homem branco, civilizado, às Reservas Indígenas, resultam fadadas ao insucesso, pois que o gesto (auto)etnográfico finda testemunhando os impasses da representação do Outro, da alteridade, principalmente quando se trata da inócua tarefa e desejo de recuperação da própria voz indígena:

A impossibilidade de se produzir um relato capaz de garantir a bio-grafia do indivíduo ou da coletividade, a ausência de condições que restituam a integridade dos fatos acontecidos e da cultura de um povo, fazem com que a etno-ficção acabe se transformando em “autoficção”, ou talvez em “auto-etnografia”, num movimento que registra a inviabilidade de construção de uma obra capaz de romper com a parcialidade de todo e qualquer saber. (LIMA, 2008, p. 114).

Assim, conclui a ensaísta notando a complexidade da questão e o sentimento melancólico subjacente a nossa constante insistência na “representação da impossibilidade da representação”. Ao que restaria, após aprofundada análise da ensaísta, apenas o nosso “deleite”, conjugado pela ineficiência dos meios e inoperância da classe letrada, através de uma enunciação incapaz de resolver o que acontece hoje, por exemplo, no espaço da aldeia indígena de Dourados-MS, onde os resíduos da nação são bem representados pelas “crianças subnutridas das tribos da cidade de Dourados, restando-lhes continuar nos entregando seus corpos, suas vidas, para o bem da literatura.” (LIMA, 2008, p.115).

Com efeito, ao lermos hoje O Estado de S. Paulo5, que celebra os 100 anos do antropólogo maior, não cessa aquele sentimento de melancolia diante de todo empreendimento no contato com os índios. Lévi Strauss desembarcara, em 1935, no Porto de Santos, para estudar as populações indígenas do Brasil, e a partir daí inicia-se na etnografia, viajando ao Paraná e Goiás e em curta expedição etnográfica ao Pantanal e Cuiabá, pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Em 1938, lecionando sociologia na USP, realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, seguindo, assim, as rotas das grandes expedições etnográficas (séc. XIX e XX), 5 O Estado de S. Paulo. São Paulo, 23 nov. 2008. Lévi-Strauss – 100 anos. Caderno 2, Cultura, p. 4 a 11 e 14.

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utilizando como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia “desbravado” este “velho oeste” brasileiro há 25 anos atrás.6

Com o insuportável agravamento da questão indígena, situações de conflito e litígios que se tornam uma constante, agudizados principalmente pelas condições de miserabilidade, entre outros fatores, aqui presentes nas aldeias da região da Grande Dourados, no Centro-Sul do MS, o assunto tornou-se objeto de interesse cotidiano, de debates acalorados, que refletem nosso imaginário estampado nas páginas dos jornais do Estado e em faixas exibidas em frente de prédios e residências da cidade. Essas faixas, em letras garrafais e tinta preta, ao mesmo tempo que divulgam o slogan “Produção sim - Demarcação não”, denunciam, na sua ostensiva presença pelas ruas de Dourados, a cidade de Antônio João, a existência de uma ferida nunca cicatrizada, além de refletirem o perverso jogo de forças desiguais, de uma economia de mercado neoliberal, onde muitos são convidados e poucos escolhidos. Fora a tentativa, ainda ingloriosa, dos antropólogos da FUNAI, era de se esperar, também, uma participação maciça e mais ativa das diversas áreas do conhecimento – além dos arqueólogos, dos historiadores, da crítica cultural e de lingüistas –, hoje comprometidas com a perspectiva interdisciplinar, com a transdisciplinaridade. Num contexto de pós-disciplinaridade, a tarefa da reflexão e análise, ao envolver as mais diversas áreas do conhecimento e o uso de fontes e metodologias mais abrangentes possível, deve visar conhecer o processo histórico da sociedade com a qual o investigador estiver trabalhando.7 No espaço da crítica cultural, por exemplo, cresce em importância a abordagem que teóricos e professores universitários, sobretudo da área de literatura comparada e dos estudos culturais, realizam a partir da abertura de questões disciplinares e da “transformação de um sistema disciplinar para o pós-disciplinar, no qual é possível conviver com a diluição dos campos de saber.”, como enfatiza a autora de “Crítica cultural em ritmo latino” (SOUZA, 2005, p.242).

Em 1979, em substituição ao já criado estado de MS, o movimento cultural denominado Unidade Guaicuru, que já vinha sendo construído com base na história dos índios guaicuru - os índios cavaleiros de Mato Grosso -, tinha por objetivo promover o gentílico “guaicuru” para os nascidos no estado. Como carro-chefe, à frente do movimento ia o artista plástico Henrique Spengler que, aproveitando os ícones e cores da arte kadwéu como elementos constituintes do seu trabalho, se autodenominou um guaicuru

6 Cf. “Trópico da saudade”, de Marcelo Fortaleza FLORES. In: O Estado de S. Paulo. 23/11/2008. 7 Cf. LUFT et al. Línguas indígenas: a questão puri-coroado.

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legítimo; como se num ato de troca de vestuário, o artista, representando os cidadãos da região, pudesse elaborar o trans / vestimento, a trans / versão da representação, então legitimada pelo simples desfilar dos pressupostos ícones de identidade sul-mato-grossense. Não se observou aí que a própria nação guaicuru representava-se por várias tribos e diferentes práticas culturais, conseqüentemente, praticando “entre si profundas divergências culturais.” (FIGUEIREDO Apud ZILIANI, 2000, p. 62).

Nos meses que se seguiram à instalação do governo do estado, recém criado, o conjunto musical Grupo Acaba, incorporando elementos pantaneiros – índio, fazendeiro, vaqueiro, fauna, flora –, numa iconografia encomiástica desses valores, chegaram a andar “em caravanas com o governador e seus secretários e assessores”, o que, segundo Ziliani, constituiu uma “verdadeira cruzada fundadora de um novo tempo.” (ZILIANI, 2000, p.76). O que se desprende dessas atitudes, no conjunto das ações “orientadas” com vistas a pôr em agenciamento uma linguagem, um discurso sobre a representação, é a inadequação dessas ações mediante o imenso “painel de registro das contradições de Mato Grosso do Sul”, como observou a professora Maria da Glória Sá Rosa, com sua fina percepção da cultura (SÁ ROSA Apud ZILIANI, 2000, p. 77).

De outro lado, na literatura regional, em um de seus textos mais amplamente conhecido e explorado, “Genocíndio”, o autor propõe uma vigorosa denúncia da condição de expropriação e espoliação a que tem sido submetido o índio e sua cultura em toda a região sul do Estado. “Genocíndio”, poema-apólogo do quase extermínio da população indígena local, ao lado do poema “Índia velha”, outro símbolo do clamor indígena, tornam patente a metáfora do “corpo despedaçado”, na medida em que a representação do regional constrói-se sobre os signos do arcaico e do moderno: de um lado, o universo indígena, sofredor do processo de aculturação, de outro, o mundo urbano criado pelo homem branco. (PERENTEL, 1999, p.20). Neste nível, o poema “Genocíndio” compõe-se de um outro texto cujos sentidos entranham-se na análise do próprio poema: “a poesia é suja de som? De sonhos / de sangue de signos. / (...) a poesia lê o mundo / inventa outros / mofa nas gavetas / arranha paredes / perturba a ordem pública / e protesta nas praças pela paz”.8 Como se lê nestes outros versos, pelos quais o poeta é nacionalmente conhecido: “poesia não compra sapato mas como andar sem poesia?”. O conjunto da obra, e o próprio título Margem de papel, deixa-se indexar ostensivamente sob os restos, as margens e as multifaces do conturbado solo que constitui a representação cultural: ou seja, o corpo despedaçado do texto, na sua matriz 8 Cf. MARINHO, E. Margem de papel (1994). Também “Teré”(2002), em Cd-room, é um disco em que MARINHO homenageia a cultura e as Aldeias Indígenas de Dourados-MS.

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representativa, atua sobre o emaranhamento da problemática identidade versus representação, e o texto acaba atuando, ainda, como margem de papel, e da folha, indicando o macrotexto sócio-político-cultural que compõe a região – o entorno do Pantanal mato-grossense. Aliás, o próprio processo de reduplicação de um único tema, o “genocíndio”, evidencia deslocamentos agenciadores de possibilidades plásticas, na medida em que os dois textos escritos sob um mesmo título – Genocíndio – desdobram o eixo temporal em sua simultaneidade de passado e presente. Da perspectiva do autor, poeta-artista-ator, o refrão “tem pão velho?” – ato performático de crianças indígenas batendo palmas nos portões –, que se repete ao longo das seis partes do poema, dramatizando a dilaceração do elemento indígena, finda, no segundo texto e segunda versão de “Genocíndio”, absorvido plenamente pela matriz poética, lírica do poema que, agora, encerra em si o espaço e o tempo da sua representação, no qual a temática da realidade, o elemento indígena potencializado já pelo paratexto-título, permite-se ler na própria materialidade do ser poético, uma vez que “a poesia é suja de sangue e de signos”. CENAS DIÁRIAS DE UMA GUERRA ENTRE IRMÃOS

Dos mais importantes jornais diários, impressos, no Estado de MS, três deles têm mantido, nos últimos anos, uma pauta constante sobre a questão indígena e, grosso modo, sobre as Reservas Indígenas de Dourados. Com uma intensidade assim, é da ordem do cotidiano acompanharmos tanto as festividades envolvendo o povo indígena, como as festividades dos nossos vizinhos paraguaios, que celebram o fato de Asunción ser eleita, pelo Bureau Internacional de Capitais Culturais, a Capital Americana da Cultura e referência cultural das Américas, para o ano de 2009. Refletindo este clima de celebração, as obras do artista plástico Oséias Leivas Silva busca “inspiração nas aldeias”, realizando através de seu trabalho a construção de um roteiro e mapeamento das etnias indígenas brasileiras, desde o Sul até a região amazônica. Cuja idéia inicial, segunda o artista: “é realizar uma expedição que estamos chamando provisoriamente de Exposição Etnias do Brasil Ancestral, com a proposta de captar dados e informações para montar um panorama atual dos costumes, tradições e maneiras de viver de nossos povos indígenas.” (O Progresso, 23/08/08). As obras de Oséias têm o rosto como foco de abordagem que visa a retratar: “Só a parte do rosto é importante. É nele que está a representação verdadeira de cada ser. [...] Porque são o homem e sua história o que mais me fascina; nenhum homem está mais ligado à terra do que o índio e ninguém a compreenderá melhor”, escreve o artista em sua entrevista a “O Progresso”. Ainda, sobre as festividades no meio indígena, lê-se também a promoção de desfiles de “meninas índias na passarela”, num prolongamento das propagandas acerca

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da beleza, da exploração e da atração infanto-juvenis, como freqüentemente acontece, alardeando-se concursos e passarelas de meninas-crianças. (O Progresso, 26/08/05).

Entre uma cena e outra, assistimos à repetição do drama dos irmãos “brasiguaios”. A República do Paraguai, nosso país vizinho, acolheu expressivas levas de brasileiros da fronteira, sem mencionar o trânsito livre de indígenas que vão e vêm, naturalmente, como resultado da nossa condição de fronteira viva com o Paraguai. A onda de xenofobia cresce, pois que o número de 400 mil brasileiros no Paraguai, que só perde em número de imigrantes brasileiros para os Estados Unidos, é pauta a ser considerada pelo Mercado Comum do Sul (Mercosul) e pela instalação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), pois, como observa um dos nossos parlamentares “milhares de brasileiros que optaram por morar, trabalhar, investir e criar suas famílias no Paraguai, estão sendo tratados como inimigos do povo paraguaio.” (O Progresso, 19/11/08).

Ao lado disso tudo, um clima geral de animosidade se acirra no embate da movimentação indígena e na resposta belicosa dos produtores da região do Centro-Sul do estado. Uma crônica tão extensa que inclui desde o papel da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), a intervenção do Ministério Público Federal em constantes negociações, ambos arrastando uma tentativa de solução sempre adiada, presa nos meandros da burocracia do Estado e na ação reativa dos produtores que temem pela real e iminente invasão de suas terras. Desde que a Funai editou as portarias para identificar e demarcar terras indígenas em 26 municípios do estado, com os antropólogos iniciando as atividades inerentes ao seu ofício, a arena dos embates verbais, da rivalidade entre poderes, incluindo o Sindicato Rural de Dourados, a Famasul (Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul) e a atuação representativa do Governo do Estado, com a sinalização de que um terço do mapa do estado sombreado como terra a ser “demarcada”, tudo isso carregou água para o moinho/propaganda/ideológico da “produção” como atividade inamovível dentro do processo histórico, daí resultando o slogan “Produção sim / Demarcação não” – que virou faixa afixada nas ruas de Dourados e que continua a provocar os ânimos entre as partes, incluindo, inusitadamente, a manifestação do Bispo Diocesano de Dourados. O presidente da Famasul acusa a Funai de estar tentando fugir do debate sobre a demarcação das terras indígenas. (Correio do Estado, 04/09/08). O Bispo de Dourados, reunido com mais de 300 produtores, preocupado com os boatos sobre o apoio da Santa Igreja às portarias, veio a público colocar sob suspeita a atuação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ONG ligada à CNBB, que lhe parecia estar mais a serviço dos interesses do próprio Cimi do que a serviço de Deus. Apesar de diferentes organizações sociais do Estado, entre elas a Comissão Pastoral da Terra, O Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza, a Central Única dos Trabalhadores e o

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CIMI terem decidido apoiar as portarias da Funai, o “Bispo orienta os fiéis para que não assinem documento do Cimi por demarcação”, critica o radicalismo, mas defende o direito do Cimi se manifestar, por entender tratar-se de um “movimento social que não pode ser demonizado porque também desenvolve ações positivas em favor dos nossos irmãos índios.”. Mas, antes o Bispo enfatizara: “Não concordo que se faça justiça aos direitos dos índios, com a injustiça sobre os direitos dos produtores”. (O Progresso, 15/09/08). Ainda, falando para os produtores rurais, é interessante verificar como o Bispo demonstra notável conhecimento da situação e do propalado apoio da CNBB às portarias da Funai: “Ante as perplexidades suscitadas pela notícia, a Diocese de Dourados, em cujo território vivem aproximadamente 35.000 índios, radicados em 21 dos 36 municípios que a compõem, sentiu-se na obrigação de esclarecer a opinião pública.”, explicou. (Idem).

Ainda que longa e fastidiosa a pendenga, que será objeto de debates de antropólogos e articulistas em jornais, incluindo O Estado de S. Paulo, ela continua na ordem do dia e do discurso, sustentando uma discursivização, onde, agora, a 4ª Subseção da Ordem dos Advogados e o Ministério Público Federal fazem reunião, no dia 10/09/08, com setores organizados da sociedade douradense para discutir as portarias editadas pela Funai. Neste dia, o procurador da República permaneceu por quatro horas respondendo perguntas de dirigentes do Sindicato Rural de Dourados e da Federação de agricultura e Pecuária do Estado, além dos representantes de entidades ligadas ao comércio, como CDL, Aced, Sindicom, Acomac, Câmara Municipal, Agraer, Iagro, Ibama e das entidades de classe como Associação dos Engenheiros Agrônomos e do Sindicato dos Contabilistas de Dourados. (O Progresso, 11/09/08). Em seguimento, o Presidente da Funai com o Governador do Estado, em reunião no Palácio, firmam acordo de suspensão das portarias, prometendo que as terras só serão “demarcadas” mediante a garantia de pagamento justo e adequado pelas propriedades, entendendo-se terra nua e benfeitorias. Daí, duas decisões pareceriam pôr fim, senão protelar, a não solução do conflito: além de substituir as portarias publicadas no Diário Oficial da União, no mês de julho, a Instrução Normativa, um texto ainda a ser aprovado pelo governo do Estado, pela União e publicado no Diário Oficial, suspendia os estudos antropológicos nas aldeias da região Sul do Estado, sem prazo para sua retomada. De outro lado, somente será definida qualquer demarcação de terra indígena quando houver previsão no orçamento geral da União para os pagamentos referidos. Enquanto isso, as aldeias de Antonio João, Amambai, Aral Moreira, Bela Vista, Bonito, Caarapó, Caracol, Coronel Sapucaia, Dourados, Douradina, Fátima do Sul, Iguatemi, Japorã, Jardim, Juti, Laguna Carapã, Maracaju, Mundo Novo, Naviraí, Paranhos, Ponta Porã, Porto Murtinho, Rio Brilhante, Sete Quedas, Tacuru e Vicentina serão estudadas para a possível

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ampliação das terras indígenas. (Cf. O Progresso, 17/09/08). Diante do que parecia um sentimento de frustração, o Deputado Pedro Kemp avaliou importante a “desmistificação” das informações de que a Funai visava a desapropriar quase um terço das terras de Mato Grosso do Sul: “O que não é verdade. Também não há intenção da Funai em demarcar áreas contínuas, (...). Acho que para acabar com os conflitos é preciso a demarcação de terras, isso vai ser a garantia de que não haverá mais conflitos no futuro, de que alguém compre terras sem correr o risco de saber lá na frente que a terra é indígena.” (Idem).

Durante todo o mês de novembro, a questão indígena continuou na pauta dos jornais, seja por motivos aparentemente diferentes do foco de tensão, seja tomando o tom de denúncias, como noticiou “O Correio do Estado”, jornal da capital, no dia 13/11/08. Intitulada “Tensão no campo”, matéria com a produtora rural Roseli Maria, da ONG Recovê, acusa ex-guerrilheiros e ONGs internacionais de contribuírem para inflamar o conflito entre produtores rurais e indígenas. Segundo ela, “somos todos vítimas de um sistema que defende o conflito”, e que os índios seriam vítimas da manipulação de ex-guerrilheiros. O sistema de confronto estaria sendo orquestrado a partir da Comissão de Política Indigenista (CNPI), cuja reunião no estado visaria a discutir substitutivos para o Estatuto do índio, com reuniões realizadas em 10 estados brasileiros, mas extrapolando sua missão ao abordar questões como a demarcação das terras indígenas e comprovação da origem do índio como foco da discussão: “Eu tenho a pauta de todas as reuniões e sabemos que questões políticas estão sendo definidas. a minha preocupação é com a falta da participação da sociedade no debate de questões que vão repercutir na vida de todos os brasileiros.” (Idem, p.13). Em sua conclusão, no discurso que fez na Assembléia Legislativa, Roseli afirmou que os produtores não vão entregar suas terras para o confisco: “Nós derramaremos até a o último sangue nosso, mas nós vamos defender o que é nosso”. Na perspectiva de Roseli, a questão indígena resulta em simples ideologização, uma vez que o Governo e as ONGs não se preocupariam com a sociedade produtiva brasileira, nem mesmo com os povos indígenas: “Não podemos entregar nosso Brasil aos guerrilheiros do passado que hoje se postam de heróis”.

Enquanto isso, a questão vai perdendo em qualificação do debate, e desviando seu foco para questões varejistas do problema. No dia 21 de novembro, o líder ruralista de Dourados, Gino José Ferreira, recém eleito vereador, ataca o Presidente da Funai que não vai anular as seis portarias publicadas em julho, e a partir do Sindicato rural de Dourados, convoca os produtores rurais: “Quem tem terra escriturada pelo próprio governo não pode ter a propriedade violada por antropólogos, pela Funai ou por quem quer que seja e vamos bater às portas da Justiça para fazer valer o direito que é assegurado pela Constituição Federal” e lembra que os danos sociais

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causados pelas portarias 788, 789, 790, 791, 792 e 793 editadas pela Funai com o objetivo de realizar estudos antropológicos em 26 municípios de Mato Grosso do Sul são profundos. No seu entender, os problemas vivenciados pelos indígenas da aldeia de Dourados derivam exclusivamente não da falta de terra, mas que sua situação degradante decorre do fato de os índios “ficarem mais de 40 dias sem água por causa de problemas na bomba do poço artesiano”. E que essa falta de água decorre do fato de a Funai gastar milhões de reais dos cofres públicos para bancar os altos salários dos antropólogos que estão à frente dos grupos de trabalho, bem como as mordomias dos seus funcionários. Entretanto, o fato é que as portarias da Funai que estão sendo normalizadas atingirão propriedades rurais em todos aqueles municípios anteriormente mencionados. (O Progresso, 21/11/08).

De fato, duas edições d’ “O Progresso” estampam “Índios prometem bloquear o trânsito” e “Índios recorrem a bebedouro de gado”, informando que os índios consomem água suja de bebedouros de gado de fazendas e que , segundo a Funasa, as quatro bombas colocadas queimaram, deixando as famílias sem água potável. (Cf. O Progresso, 17 e 20/11/08).

Como vemos, parece que saímos de um problema de grande proporção, gigantesco, conflituoso, para cair numa armadilha bem pequena, a falta de água nas aldeias indígenas. Com torneiras secas há mais de dois meses, índios dizem que a Funasa é procurada e não atende reclamações das famílias. “Temos que usar água suja para beber e cozinhar, mas poderíamos buscar água ali se eles (a Funasa) colocassem torneiras nos poços” – justifica a índia guarani Rosalina Sanches. “Os meninos ficam com febre, mas não em outro jeito”, diz a índia caiuá, mãe de cinco crianças. “Fui andando ate a Funai pedir para eles resolverem este problema e eles mandaram procurar a Funasa, mas também não fui atendida, (...). Fui na Prefeitura pedir para mandar um carro-pipa aqui na aldeia e eles disseram que era serviço da Funai e da Funasa, (...). Como não tem outro jeito a gente da esta água para as crianças, e quanto elas ficam doentes, o médico ainda briga com as mães.” (O Progresso, 26/11/08).

Em matéria desta semana, “Índios não estão sem água, diz Funasa”, o coordenador regional da Funasa discorda que os índios estejam sem água há mais de 40 dias e que a bomba foi consertada todas as vezes. No entanto, o capitão da Aldeia ressaltou que os problemas de falta de água na reserva indígena são freqüentes e as reclamações para a construção de um poço para aumentar a demanda não têm sido atendidas. (O Progresso, 25/11/08).

Por fim, a ONG Índias em Ação, cuja diretoria é composta por mulheres índias que têm formação de nível superior, representada pelas etnias terena, caiuas, guarani, kaigang e xavantes, denuncia, em manchete d’ “O Progresso”, de 27/11/08, o descaso nas aldeias de MS. Em suma, elas denunciam o descaso de organismos oficiais como a Funai e a Funasa na atenção básica as famílias que vivem nas aldeias do Estado: “Além de falhar

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na execução dos projetos, esses organismos decidem lá em Brasília o que é melhor para os índios aqui em Dourados e nas demais aldeias de Mato Grosso dd Sul” – reclama a pedagoga Dirce Veron, presidente das Índias em Ação. Nesse entretempo, o presidente do Sindicato Rural, na mesma edição do jornal “O Progresso”, acusa a Funasa pela omissão com os indígenas e pede água nas aldeias, estendendo o problema da falta de água para outras aldeias, e indaga: “Como é possível uma autarquia com um orçamento bilionário permitir que famílias inteiras fiquem sem água potável por semanas.?”

Assim, dificilmente pareceria, a qualquer um de nós, que os dilemas e dilacerações das Reservas Indígenas de MS vêm decrescendo em importância, ao ponto de se resumir a uma bomba de água. DENTRO DA ARENA: os silenciados

O lingüista Rogério Ferreira, professor da UFMS, estudioso de línguas indígenas, bem traduziu a condição de perplexidade e de ambigüidade que caracteriza o lugar desconfortável da testemunha dos debates, dentro de uma arena na qual uma das partes parece condenada ao “silêncio”:

Lendo as reportagens sobre o problema da demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul e em outras localidades, me sinto dividido: de um lado, compreendo alguns agricultores e pecuaristas (os que estão efetivamente produzindo), (...). Por outro lado me solidarizo com a questão indígena, pois os índios foram expurgados de suas terras, sem que pudessem fazer nada, na época em que a lei nada valia para os silvícolas, mas privilegiava o branco. (Diário MS, 09/10/08).

De resto, o artigo expõe, resumidamente, a diatribe e o maniqueísmo que atravessa a questão, lembrando que a Constituição, há pouco aprovada, dá voz ao índio e o que assistimos, hoje, é uma inversão dos eventos nos quais “os proprietários de terras esperneiam com a possibilidade real de demarcação”. De fato, o lema “Produção sim / Demarcação não”, como vimos, revela mais do que um lema, um sujeito de enunciação inscrito em um universo de contradição, dividido e atônito diante de um problema real, a situação dos povos indígenas. Não à toa, tentativas de desqualificação do trabalho de antropólogos e de Ongs e do próprio estado-nação aparecem açodadamente, não com a perspectiva interessada pelo Outro, no caso o índio sem voz, minoria marginalizada, mas também parte constitutiva das margens da nação. O professor Rogério Ferreira, excelente lingüista, tem razão ao desmontar o articulista que assim se refere aos “...ditos antropólogos” e os “ditos estudos filosóficos”, ao argumentar com o ensaio “O lugar do índio”, de Duhan (publicado em Novos Estudos Cebrap, v.1, n.4, 1982 [republicado em “A dinâmica da cultura”, SP:Cosac Naif, 2004], que afirma:

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[...] a questão com a qual deparamos é a de definir um lugar para o índio na sociedade nacional. [...] Nasceu com a formação da colônia e vem sendo recolocado ate hoje, de modo sempre um pouco diferente, mas também sem encontrar nunca uma solução. (Op. cit., p.298).

Diante deste quadro, como pano de fundo, ocorreu a posse do novo presidente do Sindicato Rural de Dourados. É ainda o jornal “O Progresso” que traz excertos do discurso inflamado, pleno de bravatas de um sequioso defensor da propriedade e da Constituição, em matéria intitulada “Zeuli assume defendendo a produção” e subintitulada “Vamos trabalhar para resgatar o respeito com o produtor, pois não somos os bandidos e sim os mocinhos”. Nenhum comentário se acrescentaria. Nem à assim “escritura” deste enunciado discursivo, nem ao nosso próprio comentário. Apenas talvez registrar que se trata do principal sindicato rural do interior do Estado e um dos principais do Centro-Oeste brasileiro9.

Concluindo, retomemos o contraste entre as vozes presentes na arena, da classe letrada /cidade letrada e da cidade mesma, de um lado, e dos sem voz, sem letra expurgados para as margens da nação, nos campos e rincões da pátria, de outro lado. A mesma matéria d’ “O Progresso” traz, emblematicamente, uma parte com o subtítulo “Constituição”, na qual ainda se lê “Zeuli deixou clara sua posição diante da ameaça de demarcação de terras.”; que será o general de todos os produtores na cruzada a favor da produção: “Se o governo federal quer guerra, daremos a ele a guerra que está procurando.” No nosso entender, o foco da questão passa e continua a ser uma querela a entreter o “comboio de cordas”, como diz o poeta, do homem branco na sua insaciável loquacidade – vocábulo erudito e híbrido de loquaz e cidade, representando o poder de falar. Poder de falar que, se de certo modo foi perdido pelos constrangimentos próprios do direito de falar somente enquanto autorizado, ainda constitui privilégio e modus operandi da classe letrada, que tem no cinema, por exemplo, um espaço reservado para exibir uma linguagem “traduzida” e compensatória das suas próprias mazelas e da época. Como assisti hoje, no cinema de Dourados, ao mais que oportuno, excelente, filme “Terra Vermelha”,10 do italiano Marco Bechis, que bem pode ser um estímulo ao debate consciencioso entre todos que habitamos e povoamos a “terra de Antonio João”, o lugar onde ocorreram as locações do filme. De outro lado, também somos constrangidos pela indignidade de falar pelos subalternos que “ainda não podem falar por si”, 9 Cf. Jornal “O Progresso”. 1º/12/08. p. 5. 10 Cf. “O Progresso”. 03/12/2008. Também a Folha de S. Paulo, de 28/11/2008, traz a excelente a matéria “Filme lança olhar ambíguo sobre índios”, noticiando a estréia de “Terra Vermelha”.

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cuja voz permanece como subalterna, e que a autoridade de falar pelo outro tem de ser questionada. Se cresce a consciência de que tudo passa pela democratização do universo social , “tomar consciência do problema já é um passo em direção, talvez, não a uma solução, mas ao menos a uma discussão honesta”, a qual conduz naturalmente à conclusão de que a injustiça social possui duas facetas, uma econômica e outra cultural. O que, segundo Dalcastagnè (2008)11, significa que a luta contra a injustiça inclui tanto a reivindicação pela redistribuição da riqueza como pelo reconhecimento das múltiplas expressões culturais dos grupos subalternos; uma vez que,

As classes populares possuem menor capacidade de acesso a todas as esferas de produção discursiva: estão sub-representadas no parlamento (e na política como um todo), na mídia, no ambiente acadêmico. O que não é uma coincidência, mas um índice poderoso de sua subalternidade. (DALCASTAGNÈ, 2008, p.79).

A esses outros, “Os silenciados”, como bem intitulou seu texto um outro lingüista de Dourados, professor da UFGD, talvez restasse ainda dizer:

E eles estão aí. Todos nós já os vimos perambular pelas ruas, numa esquina, numa praça ou mesmo vagando pelos cantos. Quem são? Não sabemos! De onde vêm? Aonde vão? Julgamos que vêm de fora, de outro lugar, de outro tempo que não mais deveria ser. Foi lhes dado um nome por conta de um desvio. Aparecem em bicicletas velhas, deformadas iguais a eles. Às vezes, em carroças movidas a pangarés ou à inércia, iguais a eles. Muitos vêm andando, com pés no chão, vestindo seus farrapos. Dentre eles, muitos são crianças, achamos, e há também mulheres e homens; sabe-se lá. Outro dia, um mexeu no meu lixo. Não me incomodei. Por que deveria?12

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11 Cf. DALCASTAGNÈ, Regina. Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea, 2008, p. 78-107. 12 Marcos Lúcio Góis. Os silenciados. “O Progresso”. 02/12/08.

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Matéria de Jornal não assinada:

INSPIRAÇÃO nas aldeias. O Progresso. Dourados, MS, 23 ago. 2008.

OAB faz reunião de MPF com entidades. O Progresso. Dourados, MS, 11 set. 2008.

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DOM REDOVINO coloca Cimi sob suspeita. O Progresso Dourados, MS, 15 set. 2008.

FUNAI já admite indenizar terra nua. O Progresso. Dourados, MS, 17 set. 2008.

ASUNCION é eleita Capital da Cultura. O Progresso. Dourados, MS, 31 out.2008.

EX-GUERRILHEIROS manipulam indígenas. Correio do Estado. Campo Grande, MS, 13 nov. 2008.

ÍNDIOS recorrem a bebedouro de gado. O Progresso. Dourados, MS, 17 nov. 2008.

XENOFOBIA contra brasiguaios. O Progresso. Dourados, MS, 19 nov. 2008.

ÍNDIOS prometem bloquear o trânsito. O Progresso. Dourados, MS, 20 nov. 2008

GINO critica Funai e alerta produtor. O Progresso. Dourados, MS, 21 nov. 2008.

ÍNDIOS não estão sem água, diz Funasa. O Progresso. Dourados, MS, 25 nov. 2008.

FUNASA deixa a Aldeia Bororó sem água. O Progresso. Dourados, MS, 26 nov. 2008.

ONG denuncia descaso nas aldeias de MS. O Progresso. Dourados,MS, 27 nov. 2008.

GINO repudia falta de água na Bororó. O Progresso. Dourados,MS, 27 nov. 2008.

ZEULI assume defendendo a produção. O Progresso. Dourados, MS, 1º dez. 2008.

FUNASA verifica falta d’água na aldeia. O Progresso. Dourados, MS, 02/12/2008.

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OS ESTUDOS CULTURAIS e a crise da universidade moderna

Rachel Esteves Lima1

Já pode ser considerada lugar-comum, na atualidade, a defesa da inter, da trans e, até mesmo, da pós-disciplinaridade, nos discursos produzidos pela academia. Entretanto, este posicionamento frente ao trânsito entre os saberes tornou-se hegemônico sem que isso implicasse uma modificação institucional da universidade, que só agora começa a se movimentar para operar, talvez de forma ainda bastante tímida, algumas reestruturações em sua forma de organização. De um modo geral, podemos perceber que a universidade ainda mantém-se presa ao modelo moderno que a inspirou. Num momento em que as pressões pela reforma da universidade se impõem, faz-se necessário debater algumas questões que dizem respeito à atuação político-pedagógica dos profissionais das Letras, de modo a se produzir uma reflexão que enfrente as demandas do presente: Que intelectual é este que tem que responder às exigências, por um lado, de eficiência e especialização, incorporadas pela universidade da excelência, e, por outro, de um mercado voraz por absorver os produtos culturais? Com o processo de massificação do ensino superior, o intelectual pop é o substituto do intelectual público? Os Estudos Culturais constituem um instrumento democrático de abertura à heterogeneidade dos bens simbólicos produzidos pelos diversos atores sociais ou representam uma apropriação populista de tais produções pela academia? A noção de cultura é suficientemente pertinente para se construir uma nova área de saber na universidade brasileira?

1 Rachel Esteves Lima é professora da UFBA.

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Desde meados da década de 1980, os Estudos Culturais têm consistido num espaço a partir do qual a crítica literária brasileira vem buscando sobreviver, na academia, ao processo de transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, segundo as análise empreendidas por Foucault e Deleuze2. Nesse período, de intensos debates, o investimento na análise das representações das minorias foi significativo, o mesmo não ocorrendo, contudo, no que se refere à investigação quanto às condições oferecidas pela universidade para uma atuação pedagógica efetiva e radicalmente democrática. A pouca atenção conferida aos limites impostos pelo modelo sobre o qual se organizou o ensino superior no Brasil à análise das produções simbólicas vê-se agora confrontada com a emergência de uma reforma institucional cujos resultados podem vir a abalar ainda mais a noção de cultura que sustenta os já frágeis muros da universidade moderna. Contribuir para a discussão acerca da virtual persistência de um refúgio ao pensamento é o que nos cabe, no momento, fazer, cientes de que esse debate ainda precisa ser aprofundado em espaços que ultrapassam em muito o limite deste ensaio. O que se apresenta, aqui, portanto, são apenas resultados parciais de um investimento num trabalho de caráter metacrítico, no qual se procura refletir sobre os Estudos Culturais na universidade brasileira, relacionando-os à noção de pós-disciplinaridade, que pode ser instrumentalizada na busca de compreensão tanto da organizaçao dos saberes em nossa área de atuação quanto da adequação do atual modelo da universidade brasileira ao contexto da pós-modernidade. É nesse sentido que se procurou orientar este ensaio, ressalvando-se, contudo, a opção por não abrir totalmente mão da leitura da literatura como um mediador capaz de oferecer uma visão amplificada do tema em questão.

Dentre algumas obras que, na contemporaneidade, assumem como pano de fundo o ambiente acadêmico3, foram escolhidas duas obras nas quais a figuração da universidade e de seus rituais ocupa o primeiro plano, num processo de alegorização que assume um gosto amargo de desencanto, ainda que não totalmente desprovido de humor. Trata-se dos romances Alegres memórias de um cadáver, de Roberto Gomes4, e de Uma aula de matar, de Ana Arruda Callado,5 obra na qual nos deteremos um pouco mais.

2 Cf. DELEUZE, Gilles. Post Scriptum. In: Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226. 3 Cf. REIMÃO, Sandra. Autores vinculam ambiente acadêmico às tramas de mistério. Folha de S. Paulo, 18 nov. 2006. (Caderno Ilustrada). Disponível na internet em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1811200615.htm. Acesso em: 29 mar. 2009. 4 GOMES, Roberto. Alegres memórias de um cadáver. 5 ed. Curitiba: Criar. 2004. 5 CALLADO, Ana Arruda. Uma aula de matar. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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Nos dois livros, a imagem da universidade que é construída pelos autores, ambos professores universitários aposentados, gira em torno da figura da morte, metaforizando-se o processo de ruína e decadência por que passam os nossos templos do saber universal. No primeiro romance, retrata-se um ambiente amesquinhado de rixas insignificantes, boicotes, jogos de cena e disputas entre professores, em plena ditadura militar, contexto no qual até mesmo os fantasmas têm que ser calados à força. No segundo, que se passa na contemporaneidade, pode-se dizer que o mesmo quadro volta a ser reproduzido, ainda que no contexto da universidade do neoliberalismo, no qual o fantasma que retorna é o da própria ditadura, numa cruel analogia em que os procedimentos de leitura e interpretação de textos se cruzam com os instrumentos de investigação policial utilizados para apurar a morte de um professor ironicamente chamado Luiz Borges, às vésperas do concurso que iria prestar para o cargo de titular.

A comparação do trabalho do crítico literário com o do detetive já foi bastante explorada por Ricardo Piglia, e, de fato, diante da narrativa policial de Ana Arruda Callado, nos sentimos tentados a seguir tranqüilamente essa trilha e nos embrenharmos pela floresta de signos construída pelo romance, reafirmando o paradigma indiciário (ou, em alguns casos, até mesmo o judiciário), amparados pelos recursos oferecidos por uma proposta de leitura de base hermenêutica. No entanto, a associação da análise de textos ao controle instituído pelos órgãos de repressão política, presente na obra6, retém nossa atenção e nos coloca frente ao paradoxo que acompanha o exercício de nossa profissão. Torna-se evidente, nesses termos, o conluio entre o saber e o poder, aqui traduzido pela subordinação da arte a um regime de disciplina, através do qual nós, enquanto professores, buscamos transformar nossos alunos em sujeitos críticos.

A possibilidade de se pensar uma saída de um regime de leitura dessa natureza parece ter se apresentado a partir do rompimento das grades curriculares, do desmoronamento dos muros construídos em nossas universidades com o objetivo de evitar a mútua contaminação das disciplinas, da indistinção entre alta e baixa cultura, da quebra da ordem dos sentidos, operados na cena pós-moderna, segundo a teorização de Lyotard e Jameson7. A extensão do processo de industrialização a todas as esferas da sociedade, revertendo a visão determinística que subordinava a cultura aos aspectos político-econômicos, amplia o leque de possibilidades

6 CALLADO, Ana Arruda. Op. cit., p.67. 7 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. José Bragança de Miranda. Lisboa: Gradiva, 1989; JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.

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interpretativas e promove a substituição dos especialistas pelos ecléticos praticantes dos Estudos Culturais. Num certo sentido, talvez se possa dizer que essa nova área, ainda que não devidamente institucionalizada, consiste, durante a fase de transição entre a sociedade disciplinar e a sociedade de controle, num refúgio para resistir ao enclausuramento dos sentidos, implícito no modelo universitário moderno. Sabemos todos, contudo, que o acolhimento dos saberes sujeitados pela academia não se dá de forma isenta de contradições. Afinal, tal processo se opera como resistência ao poder instituído e coloca em risco a posição privilegiada de uma intelligentsia que vem sofrendo dia-a-dia a desvalorização de seu capital simbólico e que tem que competir com uma massa formada por jovens trabalhadores que constituem um assustador exército intelectual de reserva.

A emergência de uma intelectualidade de massa tem sido estudada por Paolo Virno.8 Segundo o autor, na sociedade pós-fordista, ou sociedade do conhecimento, opera-se uma indissociação entre o tempo privado e o tempo gasto com o trabalho no espaço público. A sobreposição do capital a todas as esferas da vida implica a impossibilidade de se construir uma resistência a partir de uma posição de exterioridade em relação ao sistema, uma vez que, na modernidade tardia, mesmo o tempo de lazer e o espaço de trocas afetivas são transformados em força produtiva, o que demanda a imaginação de formas criativas de luta contra a dominação capitalista. Afinal, o advento do “ócio criativo”, ao contrário do que se esperava, talvez venha na verdade a se constituir como uma impossibilidade de se escapar ao sistema de controle do indivíduo pelo capital. Vivemos numa sociedade em que, cada vez mais, “a ciência, a informação, o saber em geral, a comunicação lingüística, se apresentam como o pilar central que sustenta a produção de riqueza”9 e os Estudos Culturais mostram-se exemplares para a análise do trabalho imaterial que alimenta o mercado de bens simbólicos hoje. A atribuição de valor a tudo aquilo que constitui a experiência afetiva do analista da cultura, ou seja, a atenção voltada a objetos que giram em torno de uma existência ordinária, comum, segue a máxima benjaminiana segundo

8 Cf. VIRNO, Paolo. Grammaire de la multitude. Disponível na Internet em http://www.lyber-eclat.net/lyber/virno4/grammaire01.html; “Virtuosité et travail postfordiste”. Disponível na Internet em http://www.samizdat.net/archives/mutants/m_09.html; “Quelques notes à propos du general intellect”; Disponível na Internet em http://multitudes.samizdat.net/article.php3?id_article=476; “Virtuosismo y revolución: notas sobre el concepto de acción política”. Disponível na Internet em http://midiaindependente.org/en/green/2003/09/263887.shtml. Acesso realizado em 29 mar. 2009. 9 VIRNO, Paolo. “Quelques notes à propos du general intellect”. Tradução da autora.

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a qual “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.10

A consolidação dos Estudos Culturais, ainda que dentro de uma estrutura institucional bastante rígida, coincide com a entrada na universidade, a partir dos anos 1960, de um enorme contingente de estudantes e professores cujas experiências estéticas estariam mais próximas do pop do que da tradicional cultura popular. Não obstante, ainda há quem se escandalize com a explicitação aberta do viés subjetivo inerente à eleição de nossos objetos de estudo. É o que se pode depreender do seguinte depoimento de Ítalo Moriconi, o auto-declarado “intelectual pop”:

Tem gente que não gosta, inclusive meus colegas mais tradicionais daqui da Universidade ficaram um pouco ameaçados com esta imagem. Meus alunos começaram a me chamar de intelectual pop porque eu andei aparecendo muito em televisão. E hoje em dia a palavra pop está ligada a visibilidade, a uma pessoa que faz sucesso na mídia, etc. Agora, eu, particularmente, vejo um outro sentido para o pop, e esse eu assumo completamente. Nós, hoje em dia, convivemos com o cinema, o rock, a estrutura do sucesso e da fama, os problemas psicológicos relacionados a isso. Eu acredito que todos estes assuntos podem ser tratados filosófica e teoricamente. Digamos que o material que o teórico da Universidade usa, muitas vezes pode vir da cultura pop. A cultura pop hoje é a Cultura, elas são quase sinônimos. Eu, por exemplo, posso pegar um filme como A cidade dos sonhos e fazer uma análise na minha aula de literatura. Acho que o intelectual pop é isso. Eu já fui uma pessoa que cresceu sob este universo. Sou de uma geração televisual, roqueira, meio pop… Não há como se fazer uma separação então, até porque não há como separar minha vida de professor da minha vida de homem inserido neste contexto. Pra falar a verdade, até me orgulho de ser um intelectual pop.11

Talvez o incômodo maior provocado na comunidade acadêmica pelo posicionamento de Moriconi se deva ao fato de que o crítico deixa de se colocar como um representante da cultura que estaria à margem da academia, para assumir essa mesma cultura como algo que faz parte de sua experiência, algo que o insere numa geração que rompe visceralmente com a distinção entre as diversas esferas que até há pouco tempo hierarquizavam o conceito de cultura. Longe de uma atitude complacente, característica de certas posturas pseudo-democráticas que argumentam em favor dos contatos com a cultura de massas, desde que ela seja considerada um instrumento para a ação pedagógica, Moriconi assume o pertencimento a essa cultura e

10 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7 ed. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1994. (Obras Escolhidas, 1). p.223. 11 MORICONI, Ítalo. Entrevista a Acesso Online – Boletim Informativo da Rede Sirius, v.6, n.41, jan./fev.2004. Disponível na internet em: < http://www2.uerj.br/~rsirius/boletim/entrevistas_07.htm>. Acesso em: 14 abril 2006.

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expressa o reconhecimento de seu valor. Foge, dessa maneira, ao sedutor artifício intelectual que, sob a aparência de resgatar a cultura do “outro”, acaba, de forma populista, instrumentalizando-a para manter-se num lugar ainda relativamente confortável dentro da instituição.

No entanto, esse lugar, ao que parece, não tem como ser garantido por muito tempo. A saída da sociedade disciplinar implica a perda de um sistema de equivalências que construíam, na modernidade, o valor do trabalho baseado na noção de tempo. Num momento em que o tempo é matéria-prima que sobra, a transferência do critério de valor para algo tão abstrato quanto o saber acaba por destruir as hierarquias que, segundo Paolo Virno, garantiam “uma certa visibilidade aos laços sociais, uma comensurabilidade, um sistema de conversibilidades proporcionais”.12 Talvez não seja muito despropositado pensar a situação vivida hoje na universidade e, especialmente, na nossa área, a partir dessas colocações do filósofo. Afinal, o que vem a ser a crítica ao “vale-tudo” dos Estudos Culturais? Não seria um índice dessa impossibilidade de mensurar o valor da obra a partir do critério temporal? Não estaria aí em causa justamente o rompimento de um sistema hierárquico que durante tanto tempo garantiu à obra-de arte uma legitimidade pautada no valor da tradição, constituída a partir de uma garantida cadeia de transmissão tanto do legado dos grandes escritores àqueles de menor prestígio quanto dos ensinamentos dos reconhecidos mestres do ofício da crítica a seus discípulos?

E não seria essa mesma perda do sistema de equivalências que regeria o processo de aposentadoria precoce de professores que, perdendo a noção de hierarquia e de um telos que oriente sua vida profissional, buscam capitalizar o tempo que seria dedicado ao tão esperado ócio criativo, num retorno ao mercado de trabalho, através da competição com os jovens em início de carreira?13

A quebra de hierarquias também constitui o centro da análise de Deleuze sobre a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.14 Segundo o filósofo, a atual organização social prescinde dos panópticos espaços característicos da sociedade disciplinar e os inúmeros processos de reforma implementados a partir da Segunda Guerra Mundial tornam evidente que as instituições disciplinares, que construíam

12 VIRNO, Paolo. “Quelques notes à propos du general intellect”. Tradução da autora. 13 Sintomaticamente, no romance Uma aula de matar (p.54), Esteves, um dos concorrentes do concurso para a vaga de professor titular afirma: “− Você sabe, ser professor titular é o sonho de todo mundo. O melhor salário, muito prestígio. Se eu conseguir a vaga, pretendo me aposentar pouco depois e pegar um bom cargo numa universidade particular.” 14 DELEUZE, Gilles. Op. cit..

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subjetividades a partir de um relativo processo de diferenciação, se encontram em fase de superação. Em seu lugar, surge a sociedade de controle, na qual as subjetividades deixam de ser formadas por um processo de individualização, e passam a ser construídas como uma espécie de “molde autodeformante”, que impede qualquer possibilidade de representação e de construção de identidades relativamente estáveis. Em sua análise, Deleuze utiliza-se justamente da leitura da transformação dos espaços da fábrica e da escola em corporações, nas quais o processo de educação continuada torna evidente a impossibilidade de se terminar uma formação, constituindo o sistema de ensino, antes, um sistema de deformação, cujo princípio se encontra na implementação da remuneração pelo mérito. E quando esse mérito não pode mais ser medido pelo tempo de dedicação ao desenvolvimento do trabalho, quando se quebra a tradicional cadeia de transmissão do saber através da experiência e se aplicam os critérios quantitativos a algo que só poderia ser medido qualitativamente, passamos a viver as contradições que nos últimos anos tem acompanhado a universidade, ao se assumir os critérios contabilistas como base da excelência.

Antes que nos desesperemos por essa condição de servidão universal, tentemos resgatar algumas contribuições de autores que possam nos apresentar uma possibilidade de saída desse sistema de controle. Comecemos com Bill Readings, autor do polêmico livro Universidade sem cultura?, que nos força a enxergar que, paradoxalmente, a emergência dos Estudos Culturais é acompanhada pela perda da função da universidade moderna, justamente organizada em torno da noção de cultura nacional. O surgimento da universidade de excelência teria como pano-de-fundo o declínio do Estado-Nação e a inserção da educação e da pesquisa nas redes globalizadas do capital. Nelas, a produção de um pensamento autônomo, capaz de tudo criticar – inclusive a si mesmo – se mostraria dispensável e, talvez mesmo, indesejável. Sigamos o raciocínio do autor:

Devemos ser claros a respeito de uma coisa: nada intrínseco à natureza da instituição irá consagrar o pensamento ou protegê-lo dos imperatives econômicos – e tal proteção seria, na verdade, altamente indesejável e danosa ao próprio pensamento. Mas, ao mesmo tempo, se o pensar deve permanecer aberto à possibilidade do pensamento, assumindo a si mesmo como indagação, ele não deve procurar ser econômico – ele se insere melhor na economia do desperdício do que na economia restrita do cálculo. O pensamento é trabalho não-produtivo, e por isso ele não figura nas folhas de balanço senão como desperdício. A questão colocada para a Universidade não é como transformá-la em refúgio do

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pensamento, mas como pensar a instituição cujo desenvolvimento tende a tornar o pensamento mais e mais difícil, menos e menos necessário.15

Para Readings, a retomada do pensamento só pode ser vislumbrada se forem abandonadas posturas nostálgicas que insistem em tentar recompor o espaço de atuação do intelectual moderno e que nos impedem de aceitar a necessidade de pragmaticamente habitarmos as ruínas da universidade, construindo nela uma comunidade de pensadores desvinculada da tradição organicista da corporação medieval, não totalmente abandonada em seu formato moderno. Ao invés de considerar a comunidade como um microcosmo do Estado-Nação, o crítico defende a formação de uma comunidade de pesquisa que rompa com a idéia de unidade, identidade e consenso, instaurando-se, antes, o dissenso, a descontinuidade e a inconclusão do processo de aprendizagem. Tal proposição parece ir ao encontro dos últimos escritos de Michel Foucault, que apelam para a formação de comunidades organizadas em torno da amizade, entendida como um processo agonístico de convivência e experimentação. Longe de conceber as relações de amizade como destituídas de hierarquias e de conflitos, Foucault as compreende como “incitação mútua e luta, tratando-se não tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação contínua.16

Até onde nos foi possível seguir o pensamento dos autores aqui apresentados, a mesma proposta de construção de uma linha de fuga ao pacto estabelecido entre o Estado-Nação e o intelectual moderno pode ser vislumbrada nas obras de Michael Hardt, Antonio Negri , André Gorz e Paulo Virno.17 As condições de possibilidade de dar continuidade à resistência ao processo de dominação do mundo pela lógica do capital se encontrariam muito menos na utopia de um retorno ao espaço público tal como configurado pelo paradigma da modernidade, do que no aproveitamento da impossibilidade de representação popular, promovida

15 READINGS, Bill. Universidade sem cultura? Trad. de Ivo Barbieri. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1996. p.63. 16 Apud ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p.168. 17 Além das obras de Virno citadas acima, cf. HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Império. Trad. de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.; HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. O trabalho de Dioniso. Trad. de Marcello Lino. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2003; HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Multidão. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.LAZZARATO, Maurizio, NEGRI, Toni. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001; NEGRI, Toni. 5 lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. GORZ, André. O imaterial: Conhecimento, Valor e Capital. Trad. de Celso Azzan Jr. São Paulo: Annablume, 2005.

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pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Esses autores desenvolvem uma leitura que suplementa a visão de cima produzida por Foucault em relação à questão do biopoder, voltando-se para a análise das perspectivas de liberação abertas pelo advento do Império, a partir do ponto de vista dos setores cujos saberes passam a ser legitimados dentro de tal organização política, econômica e cultural. O descontrole, a indisciplina do povo convertido em uma multidão de marginalizados produzidos no âmbito do Império abriria espaço para um novo tipo de ação política, baseada na indissociação entre teoria e praxis, num processo de desconstrução incessante das categorias com as quais nos habituamos a pensar. Talvez seja nesse sentido que devamos compreender o atual descompasso da universidade em relação aos desejos expressos pelo comportamento e pela ação cultural – e inerentemente política – da juventude. A evasão estudantil, a dificuldade em prender a atenção dos alunos, a recepção distraída e superficial dos conteúdos dos cursos e a multiplicação de carreiras profissionais gestadas fora dos muros da universidade parecem justamente sugerir a impossibilidade do controle de muitos por um. Se assim for, deveremos nos perguntar sobre quem é que de fato encena, na contemporaneidade, um processo de resistência: aqueles que se colocam à frente da defesa dos tradicionais papéis das universidades públicas ou a nova geração de bárbaros que deseja invadir suas estruturas, não para participar passivamente de um processo de inclusão nessas instituições, mas sim para levar o pânico às casamatas em que elas teriam se transformado?18

Pensar a ação política, no regime imperial, só é possível a partir dessa visão agonística, conflitiva, que busque construir entraves, seja através da evasão, seja da invasão, à narrativa policial em que se enredou a universidade. Se pudermos tirar algum ensinamento do romance Uma aula de matar, talvez seja em um desses sentidos. Ao final da intriga, Helena, a mulher que iria concorrer com Borges no concurso para professor titular, aponta para ambas as possibilidades. Citemos um de seus comentários,

18 O termo “casamatas” foi retirado do livro Distúrbio eletrônico, organizado pelo Coletivo Baderna, que as caracteriza como espaços públicos privatizados, nos quais se troca a soberania individual por uma suposta proteção. A universidade, um desses espaços, estaria, segundo esses novos anarquistas, formando uma “elite cultural cúmplice” do Estado-Nação e caberia a uma política cultural de resistência a esse processo promover distúrbios capazes de devolvê-la ao domínio público: “O poder nômade criou pânico nas ruas com suas mitologias de subversão política, deterioração econômica e infecção biológica, o que por sua vez produz uma ideologia de fortificação, e conseqüentemente uma demanda por casamatas. Agora é necessário levar pânico à casamata, perturbando desta forma a ilusão de segurança e não deixando nenhum lugar para se esconderem. O jogo pós-moderno consiste no incitamento ao pânico em toda parte”. Distúrbio eletrônico/Critical art emsemble. Trad. Leila de Souza Mendes. São Paulo: Conrad, 2000. p.37.

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expostos ao final da obra: “− O que me encanta nessa história toda é que, no Brasil, todo mundo conhece todo mundo. Ou melhor, a classe média cabe toda em uma kombi, como se dizia de alguns movimentos politicos. Ou num penico, como prefere um amigo meu gozador.” Não estaria aí representada a necessidade de caminharmos rumo a uma maior democratização de nossa sociedade, através da extensão do ensino superior àqueles que sistematicamente têm sido colocados à sua margem? Não se sugere na passagem que apenas com a ampliação a todos dos direitos à cidadania plena se poderia escapar à busca da chave do enigma policial em que tem consistido nossa existência, numa sociedade de controle?

A outra linha de fuga é proposta quando a mesma personagem desiste de concorrer com Estevão, o carreirista professor que ainda continuava no páreo pelo cargo de titular, e decide se aposentar, recusando-se a tomar parte numa disputa de poder em que muitas vezes aquele que pensa estar no jogo não passa de carta fora do baralho. Ao saber de sua decisão, Ana Lúcia, a diretora do Instituto onde se passa a história, emite um melancólico comentário:

− Todo mundo está indo embora. De uma forma ou de outra. Acho que toda a nossa geração está se aposentando. Vai ser duro acabar a gestão sem os principais professores do Instituto, Helena, mas compreendo e acho que você tem muito o que fazer fora da universidade. Eu, não. Vou para a França reabastecer as baterias para continuar professora. Aí, quem sabe, o Estevão assume a direção, seu velho sonho, e ...19

Para não terminar com a mesma melancolia expressa por esta fala da personagem Ana Lúcia , ressalto aqui as reticências do final do diálogo, como forma de lembrar que, dentro ou fora da universidade, no Brasil ou no exterior, no mundo globalizado, enfim, a história ainda não terminou, cabendo a todos nós dar continuidade ao seu enredo. E para a construção dessa narrativa, talvez o melhor a fazer seja, de imediato, expor, com a maior clareza possível, as posições que cada um de nós, enquanto autores e personagens que atuam no espaço da universidade, desejamos assumir frente às mudanças que ora estão em curso nessa instituição.

19 CALLADO, Ana Arruda. Op. cit., p.151.

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BABEL-COSMÓPOLIS: um imperativo digital?

Renato Cordeiro Gomes1

Já é, certamente, lugar-comum dizer que as imagens e os sentidos da cidade, toda e qualquer, modificam-se no tempo e no espaço, ligadas a contextos históricos e sociais. Nesse sentido, é que se tem dito que pensar a cidade na cultura contemporânea implica lê-la como parte integrante de um sistema comunicacional (PRYSTHON, 2006; MARTÍN-BARBERO, 2004; RESENDE, 2005), o que significa ir além das materialidades, e considerar as representações que se fazem da cidade. Já se disse, há muito, que as cidades são construídas com pedra e carne, mas também com os signos e as linguagens, de modo que as representações passem a ser integrante de um sistema comunicacional (Prysthon, 2006, p.7).

Nessa perspectiva, é que, ao discorrer sobre a vida privada no Brasil, o historiador Nicolau Sevcenko (1998) explora o fluxo de transformações causado pelos novos recursos técnicos que levam a reorientar a percepção humana. Desdobra essa observação geral para apreender o impacto das então novas tecnologias que condicionaram o desenvolvimento da cultura midiática, bem como afetaram as expectativas da sociedade e os projetos de cada indivíduo. Sobre isso, declara:

As novas tecnologias, conquanto envolvam procedimentos e recursos que são postos e operados no espaço público, mas agenciam os desejos e as disposições psíquicas mais íntimas de cada um, influenciando a esfera mais estreita de suas deliberações em âmbito privado e interagindo decisivamente com esta. (p. 520-521).

1 Renato Cordeiro Gomes é professor da PUC-Rio.

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Esse fenômeno liga-se estreitamente à metropolização: o modo pelo qual a experiência de viver nas grandes cidades modernas, planejadas em função dos novos fluxos energéticos e marcadas pela onipresença das novas tecnologias, influencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de disposição dos seus habitantes – assegura esse pesquisador da vida urbana, ao sublinhar as relações entre as novas técnicas, o cinema e as grandes cidades. E cita o historiador da cultura James Donald: “A metrópole moderna e a instituição do cinema surgem praticamente no mesmo momento. Sua justaposição fornece várias chaves sobre a estética pragmática pela qual experimentamos a cidade não apenas como cultura visual, mas acima de tudo como um espaço psíquico” (apud SEVCENKO, 1998, p.522).

Tais características agudizam-se ao correr do século XX e avançam pelo início do XXI. Aí, como afirma Martín-Barbero (2004), a cidade (ele destaca as sociedades latino-americanas que acumulam diversas temporalidades) é caracterizada por uma “heterogeneidade simbólica” e por uma inabarcabilidade, cuja expressão mais concreta se encontra nas mudanças nas formas de experimentar o território e a viver a identidade. Para esse pensador, tais mudanças “se acham, se não determinadas, ao menos fortemente associadas às transformações tecnoperceptivas da comunicação, ao movimento de desterritorialização e internacionalização dos mundos simbólicos e ao deslocamento de fronteiras entre tradições e modernidade, entre o local e o global, entre cultura letrada e cultura audiovisual” (p. 279). Traça com essas assertivas o horizonte contemporâneo em que os processos acelerados de modernização urbana se juntam aos cenários de comunicação que “em seus fluxos e fragmentações, conexões e redes, constroem a cidade virtual” (idem), que convive com a cidade tal qual gerada pela modernidade, a partir da Revolução Industrial, e o que possibilitou avanços tecnológicos.

Esse estado de coisas afeta os regimes de representação da própria cidade, que aciona um significativo arsenal de imagens, símbolos, mitos, metáforas, narrativas, formando um repertório pronto a ser realocado, repetido, na tentativa de construir sentidos para a realidade urbana, enquanto fenômeno moderno e pós-moderno. Dessa maneira tal repertório constitui uma tradição. E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é impregnada por essas imagens que foram inscrevendo-se nessa tradição (em continuidade e transmissibilidade): a representação do objeto cidade é ela própria formatada pelas ações e imaginações dos sujeitos que o percebem, mesmo com concepções distintas de cidade. Quanto mais vemos a cidade moderna em sua “permanente transitoriedade”, para usar a expressão de Karl Schorske (1987), mais a olhamos através de uma série de lentes (mediações).

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A recorrência a determinadas imagens pode significar alguma coisa para além de uma mera referência cultural para representar a cidade, toda e qualquer. Uma dessas recorrências é facilmente verificável em seus múltiplos aspectos presentes nos mais diversos discursos das mídias e das artes. Refiro-me, aqui, à imagem de Babel e sua Torre e suas reedições no século XXI, cenarizada e dramatizada em produtos midiáticos, desde representações da destruição das Twin Towers, da babélica Nova York, até a São Paulo Fashion Week (SPFW) de 2008, passando pelo filme Babel (2006), produção americana dirigida pelo mexicano González Iñárritu.

“Babel do século XXI” é o tema da São Paulo Fashion Week, realizada em janeiro de 2008. A própria cenografia do evento é mais uma vez concebida pela dupla Daniela Thomas e Felipe Tassara, que criaram uma “torre de Babel” no vão livre do prédio da Bienal formada, com o aproveitamento das rampas, por andaimes e com aparelhos de TV e computadores para o público da SPFW.

O tema, que direcionou a cenografia, certamente tem a ver com a moda mundializada de uma economia globalizada, que tenta minimizar as tensões com o local. Uma questão de mercado, enfim (“Só se falou de negócios no 1º. Dia da Fashion Week” é manchete do caderno Cidades, p. C8, do Estado de S. Paulo, de 17/01/2008). Além da moda como negócio, a SPFW pode ser índice de outros fenômenos mais do âmbito cultural, a exemplo da convivência de tendências das mais variadas de estilos, materiais, cores. Pode também apontar para um fenômeno temporal: a fixação de um instante, um presente efêmero que, por sua vez, recicla um passado (a tradição) com que a moda de hoje tenta dialogar, na busca da contemporaneidade estreitamente ligada ao up-to-date da internacionalização das tendências fashion, na tentativa de superar os traços nacionais: a moda firma-se enquanto cosmopolita, urbi et orbe, como o caderno “Ela”, de O Globo (19/01/2008, p.4), se referiu ao Fashion Rio, realizado pouco antes da semana paulista. Parece que o Rio e São Paulo servem apenas como nomes da localização do evento: a Babel fashion é aqui, ou em qualquer lugar. A moda cosmopolita, por razões econômicas e culturais, é, por isso mesmo, babélica, mas tenta ordenar o caos, a desorientação de sentido, a confusão, que caracteriza o mito arcaico, que teima em ser incessantemente atualizado, desde sempre. A ênfase desse mito desde o início da modernidade, quando Babel metaforizou a cidade transformada pela Revolução Industrial e ocupada pela multidão, e a moda ganhou sua feição moderna para atender aos novos consumidores. Desde aí moda e consumo deram-se os braços e foram ganhando os templos das mercadorias: desde as galerias de vidro e ferro (cf. O livro das passagens, de Benjamin), os grandes magazins, as lojas de departamento, até os shopping-centers pós-modernos: são versões sucessivas de um mundo babélico e labiríntico, sem dúvida, unindo o recente contemporâneo (de cada

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momento histórico) e os resíduos do mito arcaico, evocado para nomear o que se quer sempre novo, essa categoria moderna, de que nem o pós-moderno consegue se desvencilhar.

Estranha combinação que une um mito bíblico com a realidade urbana moderna, fadada a ver sua reedição ganhar intensidade ao correr dos séculos XIX e XX: a mesma estranheza já sem a marca do choque moderno e modernista que se pode ver no tema do SPFW – outono-inverno 2008. A Babel da mistura, já ordenada pelo mercado (“Ninguém quer saber de coleção, todo mundo só pergunta de negócios”, declara ao jornal O Estado de São Paulo o estilista Alexandre Herchcovitch), acaba unindo o arcaico e o atualíssimo praticamente sem tensão, nesse presente midiático, que deixa de ser signo do futuro, quem sabe realizando a “Babel feliz”, para se aproveitar a formulação de Roland Barthes (1974, p.36), em contexto bem distinto (seria esta Babel a do consumo e do mundo efêmero da moda?).

A metáfora de Barthes, entretanto, não se inscreve numa tradição que vê Babel como alegoria (ou símbolo) do desafio e da destruição, a partir do caos original do mito bíblico. O mito de Babel (Gen. 11, 1-9) é um acontecimento de disjunção que, em sua estrutura narrativa, é circunstanciado como fenômeno e catástrofe social. A Torre é o símbolo da confusão, e sua construção indica centramento, desafio do homem que se eleva desmesuradamente. Símbolo da empresa orgulhosa e tirânica, sua destruição aponta para o desvio, a dificuldade de comunicação (tema que as narrativas literárias e midiáticas exploram fartamente) e o isolamento como castigo (“Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”, diz a Bíblia); é resultado da explosão da humanidade em frações hostis.

O mito babélico envia à crítica da urbanidade mecânica, da rapidez, do gigantismo crescente (e daí facilmente grudado às representações da cidade moderna). Ilustra a dificuldade de comunicação, o tempo e o espaço esfacelados, mas expressando, igualmente, um empreendimento ligado a um permanente recomeçar. Associa-se, portanto, em sua projeção na metrópole moderna, ao espetáculo disforme da cidade fragmentada, desse universo descontínuo marcado pela falta de medida. Se a dispersão babélica motivou as tentativas de fazer emergir na cidade o diálogo humano como resistência à incompreensão, se o diálogo é o símbolo mais pleno e a justificativa final da vida na cidade – segundo reivindica Mumford (1982, p. 134) –, o caos das metrópoles retoma quase circularmente a Babel mítica.

O mito bíblico torna-se recorrente, enquanto suporte semântico de uma série de produtos midiáticos, que se orientam para uma nova síntese simbólica agregada a essa forma mítica arcaica, com a qual procuram formalizar uma representação da cidade em permanente atualização modernizadora, emblematizada na imagem de um edifício-torre em construção, ou de sua destruição. O cinema é particularmente rico nesse

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sentido, numa tradição que vai de Metropolis (1926), de Fritz Lang, passando por Blade Runner (1982), de Ridley Scott, a Babel (2006), de González Iñárritu, a que podemos juntar Lost in translation (2001) [Encontros e desencontros, título no Brasil], de Sophia Coppola. Esta série midiática pode ser associada a uma outra literária em que podem ser inscritos textos como “O emblema da cidade” (1920), pequena parábola de Kafka, o conto “O edifício” (1965), de mineiro Murilo Rubião (1974), até obras pós-modernas a exemplo da novela City of glass (Cidade de vidro) (1985), da Trilogia de Nova York, de Paul Auster, ou mesmo o romance Cosmópolis (2003), de Don DeLillo.

Tais obras podem remeter ao projeto urbanístico da modernidade e seus mecanismos de controle, ao mesmo tempo em que põem em tela a crise da representação, atrelada à “reorientação simbólica tornada possível pela disjunção entre a base religiosa de um mundo longamente estável e a irrupção desestabilizadora das novas tecnologias, assentadas sobre a aceleração, a fragmentação e a concentração isoladas das grandes cidades” (SEVCENKO, 1992, p.171). Essas novas tecnologias modificam radicalmente a percepção e a sensibilidade urbanas e alteram o imaginário e a subjetividade, na linha demonstrada por Georg Simmel (1987), no ensaio “A metrópole e a vida mental”, de 1902.

A disjunção, que é marca babélica, atrelada ao desenvolvimento das tecnologias, funciona como traço recorrente desses filmes e narrativas citados, permitindo aí perceber, de modo explícito ou implícito, uma questão instigante: como representar a cidade que é Babel, no seu excesso, quando se rompem meios disponíveis para tal? A indagação implica, no mesmo diapasão, um corolário: com que linguagem representá-la, enquanto acontecimento, enquanto desastre, enquanto catástrofe, que remete à destruição? Ou dito de outra forma, como fazê-la significar; ou seja, como interpretá-la para atribuir-lhe sentidos, estendendo o ângulo de visão em direção à modernidade como catástrofe e choque contínuo? Tal cadeia de associações demonstra que as tentativas de representar esses fenômenos afetam a própria ordem da representação.

Exemplo cabal desse impasse que diz respeito à representação e sua impossibilidade, pode ser apreendido justamente em relação ao 11 de Setembro, a destruição das Twin Towers, esse símbolo da Babel pós-moderna, do capitalismo globalizado: as Torres que remetem ao motivo temático do arranha-céu, emblema da arquitetura moderna já cenarizada pelo cinema a partir de Metropolis, o filme expressionista de Fritz Lang. Refiro-me à capa da revista The New Yorker, de 24 de Setembro, intitulada “09/11/01”, de Art Spiegelman. A primeira capa depois dos atentados ocupa-se com aquele impasse: como representar as Torres, frente ao excesso de realidade, ao que não pode ser nomeado, ao que é inimaginável, depois do desaparecimento desse outro símbolo ascensional, que remete a Babel,

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essa moldura arcaica, que sempre freqüentou o imaginário da arquitetura e do urbanismo modernos (COQUELIN, 1982, p. 49). O recurso puramente gráfico aplicava um preto 100% para as silhuetas das duas torres do World Center sobreposto a um preto 90%, sugerindo uma inscrição a indicar o que houvera ali, no agora ground zero, onde em seguida haveria dois focos de luz, mera sugestão, material e simbólica, de que ali, no vazio, uma era fora abalada e de que se estava começando um novo século: a incerteza aberta num presente precário e ao mesmo tempo expansivo.

Outra associação pode ser feita com a participação do cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu do projeto 11’ 09’ 01, realizado em 2002 por Alain Brigad e Jacques Perrin, que buscou diferentes interpretações sobre os atentados de Nova York, reunindo 11 filmes, condicionados simbolicamente pelo frame de duração expresso pelo título do projeto. O diretor mexicano utilizou imagens precárias de baixa qualidade, nas quais somente se distinguiam por pequenos flashes iluminando imagens de pessoas caindo, ou pulando, das torres e o momento do desmoronamento dos edifícios. Tais imagens contrastam com a tela negra, sem luz, a ausência de imagem, que indica a impossibilidade de uma representação numa narrativa linear e causal. Recoloca-se a questão: como representar o irrepresentável? A tentativa recai sobre aquele recurso luz/ausência de luz, imagem/ausência de imagem, coadjuvado por uma espécie de trilha sonora (antes um bruitage), em que se usou áudio de transmissões de rádio e TV, também confusas, mixando fragmentos provenientes de vários países, em línguas diversas, com a reutilização de materiais do jornalismo, mas conferindo-lhes um tratamento que aponta para a incomunicabilidade, como numa Babel de sons e imagens: Babel = a desorientação do sentido. O caos, a destruição dos sentidos, era expresso através do próprio material que compõe uma moldura temporal, preenchida com as imagens deslocadas e o ruído indecifrável das palavras. A disjunção e a fragmentação foram incorporadas à própria estruturação e à própria estética do filme. A única frase de fato compreensível nesse curta, parte de um todo maior, aparecia escrita na tela: “Does God’s light guide us or blind us?” (HENRIQUES, 2005, p. 43-68).

Tanto na capa do periódico novaiorquino quanto no filme de Iñárritu, a impossibilidade da representação e de sentido é colocada em pauta porque há uma comunidade de imaginação, que permite a utilização de símbolos como elementos de legitimação de uma idéia, ao mesmo tempo em que o autor e o leitor compartilham determinada carga emotiva que os afeta e permite circular possíveis sentidos por essa comunidade que é também discursiva.

O projeto 11’ 09’ 01, de que o filme de Iñárritu faz parte, juntou-se a uma série de outros discursos midiáticos ou mesmo ensaísticos, gerando, de certa forma, uma arena discursiva, conotando embate de práticas, valores

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(políticos, éticos, religiosos, estéticos), tensões de vozes e concepções de mundo, provocando o surgimento de novos lugares de enunciação e possibilitando o jogo agônico de discursos e contradiscursos: há de fato a encenação (o espetáculo) de uma guerra de relatos. Fica a pergunta: como narrar/representar aquele tempo presente, aquele acontecimento, aquela catástrofe? Há uma precariedade dos instrumentos para lidar com aquele presente centrado na imagem e nos sentidos de Babel (remetendo ao mito arcaico e sempre atualizado) e que dele se dissemina, mais ou menos, sem controle. Há um presente expandido, em seu excesso, simbolicamente representado pelos escombros, pela poeira – semelhante ao que analisa Raúl Antelo no texto “Maximam, et nullam” (2005, p. 189-190) em relação ao Terremoto de Lisboa de 1755 – ; há um espaço de embate entre ordem e desordem, um espaço de sentido a ser construído, embora haja qualquer coisa que escape. Daí o colocar-se em questão a representação, redundantemente dita no problema: como representar o irrepresentável. Aponta-se para o inefável, para os limites da linguagem: a relação de muitos textos com o evento a que se refere, é de ordem indicial, mais do que representativa.

A imagem orgulhosa das torres gêmeas do World Trade Center indicava a afirmação de valores modernos do progresso, bem como a supremacia da economia capitalista globalizada, sob a hegemonia dos Estados Unidos. Os atentados daquela terça-feira reforçaram o significado mundial da idéia de cidade. Os acontecimentos do 11 de setembro visaram o símbolo central de um certo conceito de civilização: a idéia e a imagem da cidade (COELHO, 2002, p. 45), emblematicamente representada pela torre, que em sua verticalidade ascensional, conotando desafio e poder, é tópico indisfarçável na história da cidade, da cultura e da arte, que recorre a uma forma arcaica (Babel, reafirmamos), obsessão no imaginário urbano. A forma duplicada das Torres, entretanto, significava um ponto final na verticalidade, como ressalta Baudrillard (2003, p. 12), contrastando com o conhecido panorama arquitetônico da cidade. “O fato de que eram duas significa a perda da referência original. Se houvesse apenas uma, o monopólio [sem concorrência] não estaria perfeitamente encarnado. Somente a duplicação do signo acaba realmente com o que ele designa [...] Culminam no exato reflexo uma da outra” – acrescenta o pensador francês, ao ver nas Torres Gêmeas a imagem do sistema (2003, p. 12). A fragmentação concreta, via destruição pelo terrorismo, representa também a fragmentação simbólica desse sistema, e, portanto, de identidades e valores, que a ficção midiática e a literária já vinham explorando havia algum tempo. “Ao atacá-las, os terroristas atingiram o centro nevrálgico do sistema. A violência do global também passa pela arquitetura, pelo horror de viver e de trabalhar nesses sarcófagos de vidro, aço e concreto. O pavor de morrer é aí inseparável do pavor de aí viver. Por isso a contestação dessa violência

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passa também pela destruição dessa arquitetura” (BAUDRILLARD, 2003, p. 13).

As imagens da destruição das torres repetidas fartamente por todos os meios massivos foram, numa primeira impressão, tomadas como imagens ficcionais: “parecia um filme” – dizia a voz corrente dos telespectadores, que, de pronto, duvidavam do que viam. Imediatamente, as imagens do 11 de setembro foram associadas a filmes como Nova York sitiada (1998), escrito por Larry Wright e dirigido por Edward Zwick: “Algumas cenas do filme que conta a história de uma cidade vítima de inimagináveis atentados terroristas, foram literalmente reproduzidas na última terça-feira, quando dois Boeing-767 foram lançados contra a símbolo máximo do capitalismo americano, o World Trade Center”, registra a jornalista Milly Lacombe, na Ilustrada da Folha de S. Paulo, de 14 de setembro de 2001, quando entrevista o roteirista do filme. Depõe Larry Wright: “Assisti à TV em estado de choque. [...] Quando escrevi Nova York sitiada tive o cuidado de não extrapolar muito minha alucinações. Mas, pelo visto, minha imaginação ficou aquém da capacidade desses lunáticos”. Via ele pela TV, naquela manhã, que sua obra de ficção, que lidava com imagens e circunstâncias exageradamente dramáticas e assustadoras, tinha virado realidade da forma mais dramática e surreal possível: “O cenário foi mais apavorante do que o que, sem querer, antecipei”, completa.

Tem-se afirmado que depois dos atentados de 11 de setembro, Nova York foi, de certa forma, obrigada a repensar a sua identidade já múltipla, heterogênea e fragmentada, como qualquer megalópole contemporânea, associada a Babel. A destruição do símbolo duplicado pôs a nu a fragilidade da potência mundial. “Ao mesmo tempo objeto arquitetônico e objeto simbólico, evidentemente que se visou o objeto simbólico; pode-se imaginar que a destruição física acarretou o desabamento simbólico. Mas é o contrário: a agressão simbólica acarretou o desabamento físico” (BAUDRILLARD, 2003, p. 14). Por outro lado, não se pode ignorar o que afetou a população da cidade em seu cotidiano. Ao buscar compreender o fato, o habitante da cidade tomou consciência de que ela ficou destrutível. Não é, entretanto, a primeira vez que essa vulnerabilidade é constatada. A paisagem e as cenas que vimos das torres arruinadas não puderam deixar de lembrar as seqüências mais impressionantes dos grandes filmes de catástrofe, a exemplo de Daylight (1996), de Rob Cohen, como lembra a filósofo esloveno Slovoj Zizek (Mais!, Folha de S. Paulo, de 32 set. 2001).

Aquela antecipação de que fala o roteirista de Nova York sitiada pode ser lida no ensaio de E.B. White (1899-1985), Aqui está Nova York, editado em 1949, na revista The New Yorker, que registra premonitoriamente essa possibilidade, quando a “suspeita da mortalidade” passa fazer parte da cidade que ele associa a uma “ilha da fantasia”. Ressalta, então:

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A cidade, pela primeira vez em sua história, ficou destrutível. Uma simples revoada de aviões pode rapidamente acabar com a ilha da fantasia, queimar as torres, desmoronar as pontes, transformar as galerias do metrô em câmaras letais, cremar milhões. A suspeita da mortalidade faz parte agora de Nova York: no som dos jatos sobre nossas cabeças, nas manchetes pretas da última edição. (WHITE, 2002, p. 52-53).

A recorrentíssima associação de Nova York com Babel pode ser vista como um recurso retórico, funciona, por sua vez, como condicionador de legibilidade. Um fenômeno novo (surpreendente, impensável) requer molduras antigas para ser representado, semelhante ao que Walter Benjamin apontou, ao falar nas representações das cidades modernas (BENJAMIN, 1989, p. 226). Daí, a recorrência de expedientes discursivos que lançam mão desses suportes arcaicos presentes no imaginário em que circulam essas imagens com significado já dado por discursos anteriores (uma tradição), que serão manipulados ideologicamente e a que se agregam elementos do presente expansivo, que se quer interpretar. Parece que há mesmo uma busca de direção nesses movimentos dispersos e destituídos de rumo (= sentido) bem delineado; em meio à dispersão, há uma demanda de direção cumulativa, semelhante ao que Zygmunt Bauman viu nas vanguardas (1998, p. 122). Assim, do terreno físico ao mítico-símbólico, os discursos que buscam representar apontam para os modos pelos quais os homens dele se apropriam como fenômeno cultural e, por isso, como construção de paradigmas de interpretação e existência simbólica

As conseqüências do 11 de Setembro – vemos hoje – foram mais duradouras para a própria noção de catástrofe (SELIGMAN-SILVA, 2000, p. 73-97), que se materializa no próprio real, no cotidiano do século XXI. É nessa clave que a modernidade pode ser lida como cultura da catástrofe e do choque contínuo, que esteticamente vai requerer novos gêneros para representar a experiência do homem moderno, que requer novas respostas artísticas (SCHOLLHAMMER, 2005, p. 57).

Se a catástrofe desse símbolo babélico foi também lida/representada como espetáculo, no sentido que damos hoje ao termo (DEBORD, 1971), foi também visto, ironicamente, como a festa pública (spetaculum), associando um sentido oculto, profundo, um fundamento, com espaço público, oferecendo-o ao espectador, aquele que, colocando-se em um determinado lugar, vê o espetáculo e é capaz de voltar-se para o speculandus – com a acepção de especular, investigar, examinar, vigiar, observar –, operações que se associam à ordem da representação. Nesse especular, o discurso que especula, nem sempre funciona como espelho, que representa o que é oferecido do espetáculo, mas é capaz de pôr em questão a própria representação, examinando os mecanismos da linguagem e os modos do discurso que fundamentam suas possibilidades e seus impasses.

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Enfim, está em jogo a própria ordem do discurso, com suas implicações ideológicas, políticas, religiosas, éticas e estéticas, como os discursos que se produziram sobre as Twin Towers, em seu excesso, podem atestar.

Especular ainda hoje sobre Babel é o que faz Iñárritu em sua produção de 2006, na busca de respostas artísticas que a mídia cinematográfica permite equacionar para o violento mundo deste século XXI, efetivamente inaugurado pela catástrofe do World Trade Center. É o que o cineasta mexicano, com roteiro dele e de outro mexicano, o escritor Guillermo Arriega [os dois se desentenderam justamente por causa da autoria de Babel, depois de uma parceria nos filmes anteriores: Amores brutos (Amores perros, 2001) e 21 gramas (2003)] – fez em seu longa metragem sintomaticamente intitulado Babel, produção americana de 2006. Pode-se até levantar como hipótese que está respondendo à pergunta de Canclini, expandindo-a para além da cidade do México: “O que ocorre quando não se entende o que uma cidade está dizendo, quando esta se converte numa Babel, e a polifonia caótica de suas vozes, seu espaço desmembrado e as experiências disseminadas de seus habitantes diluem o sentido dos discursos globais?” (2006, p. 78).

Pode-se mesmo dizer que a película de 2006 seria uma “Babel do século XXI”, com conotações bem distintas da São Paulo Fashion Week, enquanto drama do mundo contemporâneo. No filme, os conflitos não são neutralizados, mas, pelo contrário, potencializados, num mundo que se tornou uma imensa Babel, em que tudo se conecta, instantâneo. Filme sobre a globalização, choque de culturas, drama multicultural, histórias simultâneas, olhar diferente às barreiras culturais e de linguagem na era da globalização e dificuldades de comunicação foram algumas das expressões dos comentários que circulam pela Internet, ligadas de modo explícito ou implícito ao emblemático título, a menor síntese dos sentidos do filme, atualizando em diferença sentidos herdados de uma longa tradição que remete ao mito bíblico. O título ao mesmo tempo funciona enquanto marca de um produto simbólico e midiático, que ganha legitimidade pela assinatura do diretor (a produção anterior participa dessa instância de autorização) e pelos prêmios que arrebatou pelo mundo, do Oscar, ao Globo de Ouro até o Festival de Cannes, além de muitas indicações a diversas categorias.

Com locações em Ibaragi, Shinjuku e Tóquio, no Japão; El Carrizo e Sonora, no México; Tijuana, na Baja Califórnia, também no México; Ouarzazate e Taguenzalt, no Marrocos, em uma vila bérbere aos pés dos Montes Atlas e construída nas encostas rochosas do vale do rio Draa; e San Diego, na Califórnia, nos EUA, a saga de Babel é filmada em cinco línguas, e daí ser sempre legendado, construindo uma intensa dimensão dramática no uso de liguagens diferentes: o caos babélico da dificuldade de comunicação, da necessidade de tradução, aliás sempre precária, insuficiente, a que se

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juntam outras instâncias da linguagem tais como a violência e sua retórica, os afetos (o choro de vários personagens como a babá mexicana, ou a adolescente japonesa, liga os mundos na narrativa fragmentada e simultânea do filme), a linguagem dos sinais, a das anotações, a retórica da política internacional, o hibridismo da linguagem da fronteira. Instâncias que passam a índices da linguagem na era da globalização, dimensionada dramaticamente em referência às barreiras culturais, a exigir tradução cultural, abrindo espaço de contestação discursiva que se encaminha para um relativismo histórico e cultural em que as tensões entre barbárie e civilização perdem seus valores etnocêntricos (BHABHA, 1998, p. 310-315). Os conflitos que movem a narrativa de Babel são marcados, assim, pela incomunicação, pela intolerância, pela violência, pela disjunção (essa característica já inscrita no mito bíblico), que se ligam a questões do século XXI – tais como os deslocamentos, pelas diásporas e pelo turismo – o atravessamento das fronteiras territoriais e simbólicas, ao mesmo tempo em que são respostas (é típica nesse sentido a história da babá mexicana de volta ao seu país com as duas crianças americanas). Se esses conflitos são abordados em dimensão social e política como González Iñárritu declarou em várias entrevistas, trazem a marca cultural, que, na perspectiva babélica do mundo atual, exige tanto na instância diegética quanto na recepção dos espectadores uma tradução cultural, semelhante ao que Walter Benjamin descreve como a “estrangeiridade das línguas” – aquele problema de representação inato à própria representação, como adverte Bhabha (1998, p. 311-312). A problemática da tradução é mesmo uma das questões articuladas no filme, como também será no babélico filme Lost in translation, de Sophia Coppola. (a respeito da tradução como impasse derivado de Babel, ver Derrida: Torres de Babel, 1998).

Ao articular na própria narrativa diferentes espaços e tempos em simultaneidade, essa obsessão das vanguardas, o filme de Iñarritu perde a dimensão do futuro para atrelar-se ao presente: a narrativa está presa ao agora em que tudo está, ao mesmo tempo conectado e disjuntivo. O que permite a encenação da diferença cultural, que os personagens não entendem em sua totalidade, impedindo a troca inerente à comunicação que se dá em ato, performaticamente. Cabe aqui a formulação de Bhabha (1998) que autoriza dizer-se que os personagens de Babel vivem em numa espécie de exílio: “A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É antes a linguagem in actu (enunciação, posicionalidade). E o signo da tradução conta, ou “canta”, continuamente os diferentes tempos e espaços entre a autoridade cultural e suas políticas performativas” (p. 313).

São justamente as instâncias espaciais (detaque-se a imensa relevância da dimensão territorial da película) e temporais (destaque-se aqui a simultaneidade), que constroem o caos babélico da narrativa. Iñárritu, ao trabalhar o acaso (HENRIQUES, 2005), acredita, na linha da teoria do caos,

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que um acontecimento, por mais prosaico e banal que pareça, sempre integra uma cadeia de causas e conseqüências que se desdobra de maneiras imprevisíveis – em dramas de natureza trágica. Tal tomada de posição indica um modo de narrar, um gesto discursivo e imagético da enunciação para adequar-se à confusão babélica, dramatizada em cinco dias e em quatro núcleos, dois no Marrocos, outro na fronteira México/EUA e outro no Japão.

Numa síntese bastante redutora da complexidade narrativa, poderíamos dizer com Rodrigo Carreiro:

No país africano, acompanhamos dois garotos pastores de cabras e um casal de turistas americanos. Os meninos, brincando com o rifle que usam para afastar os chacais dos caprinos, atingem sem querer o ônibus onde viajam Richard (Pitt) e Susan (Cate Blanchett). Enquanto isso, nos Estados Unidos, os filhos do casal estão sob os cuidados de Amelia (Adriana Barraza), a babá chicana que precisa dar um jeito de ir ao casamento do filho, do outro lado da fronteira. Em paralelo, “Babel” também enfoca a vida, no Japão, de uma garota surda-muda (Rinko Kikuchi), sofrendo com a solidão a que a adolescência condena as pessoas, algo agravado pela condição médica e por uma tragédia do passado. Num primeiro momento, o filme não esclarece qual a ligação entre a história japonesa e os dramas que se desenrolam em dois desertos, o marroquino e o californiano, mas obviamente existe uma conexão, revelada na segunda metade da trama. (http://www.cineporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=1673; acesso em 27/12/2007)

O acaso de um tiro de rifle que atinge a turista americana leva a conexões com as outras histórias paralelas, tendo justamente a arma (cuja origem está no Japão) como leit-motiv. E todas caminham para a tragédia graças à incapacidade de comunicação, seja política, ou a verbal, ou mesmo a relacionada à deficiência. Na verdade, o filme é sobre aquilo que divide homens, mulheres, nações, países, pais e filhos, no mundo do século XXI, essa Babel globalizada, não uma Babel feliz. Ainda a Babel da desmedida, ainda caos, confusão, desorientação dos sentidos, atomização da comunicação, traços já inscritos no mito bíblico, essa persistente saga do imaginário ocidental. Essa narrativa que Kafka numa pequena parábola, “O emblema da cidade”, escrita em 1920, reinterpreta, re-atualizando-a para a modernidade tomada pela obsessão do progresso, para expor um exercício premonitório, que o filme de González Iñárritu complexifica e que Don DeLillo dramatiza, em Cosmópolis (2003), mistura caótica de todas as culturas, todas as etnias, todas as línguas, num dia da Nova York comandada pela tecnologia das redes comunicacionais.

“O emblema da cidade”, ao retomar o mito da torre de Babel dramatiza um projeto de construção que, pautado por um sistema racionalizado para a produção de signos e de imagens, estabelece hierarquias e conflitos. A torre e a cidade como um fazer sem fim, sempre incompleto, são produtos da racionalidade geradora e atrelam-se ao

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totalitarismo dos planejadores, burocratas e elites corporativas que traçam as normas de controle. A verticalidade da torre expressa o reconhecimento do sem-sentido da construção, marcada com o símbolo da intensidade vertical da cidade como celebração da tecnologia automatizada em relação ao humano (Cf. GOMES, 1994, p.76-89).

A celebração da tecnologia em seu paroxismo é também dramatizada no conto “O edifício”, de Murilo Rubião, e, por sua vez, satirizada pela narrativa de DeLillo, que relata um certo dia de abril de 2000, na vida do multimilionário Eric Michael Packer, 28 anos, dono da Packer Capital, que, preso pelo engarrafamento, é obrigado a passar o dia inteiro dentro de uma limousine, de onde controla os negócios, recebe assessores e tem encontros amorosos. No decorrer do dia, a existência de Eric é gradualmente corroída: suas certezas e valores se revelam vazios, ao mesmo tempo em que o sistema financeiro global é arrastado para uma crise sem precedentes.

A narrativa em forma de fábula sobre uma cosmópolis desumanizada, fruto das tecnologias e do sistema do capitalismo globalizado, atesta as preocupações do autor com as formas de controle que a sociedade moderna impôs aos indivíduos. A cosmópolis, aqui representada por Nova York, literalmente nomeada como Babel, é um submundo urbano, em que as implicações com a tecnocracia, com o capitalismo globalizado e as modificações das relações humanas, vão compor o quadro submetido à paródia e à sátira, para reivindicar, através da própria trama e das reflexões que se tecem nessa trama, a preservação dos valores humanos fundamentais. Esse cosmopolitismo de um centro hegemônico está atrelado ao “imperativo digital” (a imagem é de DeLillo), à tecnologia, que, na Babel que é o século XXI, gera novos modos de simbolização e ritualização dos laços sociais que se tecem pela mediação das redes comunicacionais, do “imperativo digital”, da cibercultura. Babel midiática.

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DESTINO: globalização. ATALHO: nacionalismo. RECURSO: cordialidade

Silviano Santiago1

Le nationalisme et le cosmopolitisme ont toujours fait bon ménage, si paradoxal que cela paraisse ; et depuis Fichte, de nombreux exemples pourraient l’attester. Dans la logique de ce discours ‘capitalistique’ et cosmopolitique, le propre de telle nation ou de tel idiome, ce serait d’être un cap pour l’Europe ; et le propre de l’Europe ce serait, analogiquement, de s’avancer comme un cap pour l’essence universelle de l’humanité. S’avancer, voilà le mot […]. L’Europe se tient pour une avancée – l’avant-garde de la géographie et de l’histoire. Elle s’avance comme une avancée, et à l’autre cessé de faire des avances : pour induire, séduire, produire, conduire, se propager, cultiver, aimer ou violer, coloniser, se coloniser elle-même.

Jacques Derrida, L’autre cap, p. 49/50.

Fascinados pelas experiências e palavras que, nas discussões cotidianas, são recobertas pela dominância do conceito de globalização, ou de mundialização, os artistas e pensadores da arte mais e mais se entregam a críticas à − e a especulações em torno da − monstruosidade que foi o centramento europeu na idéia de universalidade cultural e artística. Dão continuidade ao trabalho de esclarecimento sobre o que vinha e ainda vem sendo entendido por universal – História Universal – desde os tratados filosóficos e estéticos do século 19, evidentemente eurocêntricos.

Em comentário recente a livro de Jacques Derrida, o pensador marroquino Abdesselam Chedaddi perguntava: “Et si l’Europe n’était pas là

1 Silviano Santiago é crítico e escritor.

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où les Européens-européens la placent?” Mais do que a contestação ou a negação da presença e do poder da cultura européia no resto do mundo, a conjunção se e a pergunta traduzem a hipótese de acrescentar novo significado ao adjetivo europeu em virtude da intervenção regional muçulmana – até então silenciosa nos confins do eurocentrismo. A ausência presente dos muçulmanos durante o período colonial gerou inusitadas inscrições da Europa fora do mapa rigorosamente europeu e continua a gerar no atual período pós-colonial. Sendo Chedaddi um derridiano, sua intenção é a de pôr à mostra e operacionalizar um processo inédito de globalização, já que descentrado geográfica e culturalmente do antigo continente – ou da civilização ocidental. Na sua amplitude metafórica, o processo de re-inscrição da Europa em seu lado de fora, na outra margem do Mediterrâneo, seria conduzido ou reconduzido pela experiência cultural e artística que os cidadãos do resto do mundo − nas respectivas nações e regiões − receberam e ainda recebem da experiência européia e de seu descendente direto, os Estados Unidos da América.

A conjunção e a pergunta do ex-colono francês não escamoteiam no porão do mapa-múndi neoliberal as relíquias da monstruosidade perpetrada no resto do mundo pela colonização ocidental, muitas vezes a ferro e fogo. Pelo contrário: as relíquias do colonialismo são contraditoriamente exibidas em penhor de gratidão, cultivadas que foram no terreno da insuficiência relativa, que era e para muitos é o próprio do pensamento crítico não-ocidental.

Mais recentemente, o cineasta chinês Zia Zhangke escreveu e dirigiu o filme The World, cuja ação se passa num parque temático que se encontra a dezesseis quilômetros da cidade de Pequim − the World Park. Por cima das imagens de monumentos grandiosos das civilizações não-asiáticas, como a Torre Eiffel, surge em sobreimpressão a frase: “Você pode conhecer o mundo sem sair de Pequim”. Sendo referida como o centro do mundo, Pequim existe em oposição ao resto do mundo, em que se transforma o Ocidente e sua tradição. Em entrevista, afirmou o cineasta: “World’s Park monuments are meant to satisfy people’s longing for the rest of the world. The park demonstrates the Chinese people’s curiosity about the world and their interest in becoming part of global culture”.

No descentramento global proposto pelo filme, a China vira o centro. No entanto, a curiosidade chinesa não visa a provocar a inveja ou o ódio dos asiáticos pelo resto do mundo, no caso, o Ocidente e as outras grandes civilizações que se lhes escapam no dia a dia insano. Finca pé na originalidade municipal de Pequim, que, ao se tornar simbolicamente centro descentrado do mundo, resolve o problema do turismo externo dos cidadãos chineses pelo recurso ao parque temático passível de ser visitado pelo trem de ferro local. Desde a primeira cena do filme, em que o principal personagem sai gritando por um band-aid, entende-se que o cineasta buscou

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uma solução a curto prazo para a representação dramática duma nova globalização.

À semelhança do que se passa em certa enciclopédia chinesa idealizada por Jorge Luis Borges, a imaginação fértil dos chineses é o motor a transformar os antípodas da Europa em participantes privilegiados daquilo que tradicionalmente não é dado como pertencente a eles, já que na condição de asiáticos se situam no lado de fora do mundo dito civilizado. Pelo uso de maquetes realistas, embora de dimensões pouco atrevidas, o filme chinês diz que o mundo é um só, desde que visto pela curiosidade intelectual chinesa e a imaginação artística do quem é tido como habitante do resto do mundo, ou seja, desde que seja visto de perspectiva universal mais tolerante e de perspectiva municipal menos xenófoba.

Em As palavras e as coisas, Michel Foucault foi sensível ao caráter revolucionário da fértil e iconoclasta imaginação sem limites geográficos de Jorge Luis Borges. A China idealizada pelo argentino − afirma o europeu Foucault − indicia o modo “como o encanto exótico de outro pensamento é o limite do nosso”. Não seria a transgressão da noção de limite, proposta pela enciclopédia de Borges, a melhor metáfora para descrever o Outro-embutido-no-Ocidente, que é hoje a América Latina, e o Ocidente-embutido-no-Outro, tal como na pergunta de Chedaddi ou no filme de Zhangke?

Nos casos acima levantados aquilo que se deu em pequena escala geográfica assume voluntariamente o imenso e poderoso espaço do planeta, isto é, assume o mundo que se lhe escapava em tamanho gigante e o esmagava. O local assume o universal para melhor inscrever o projeto existencial e cultural dos cidadãos e das nações não-ocidentais num mapa-múndi de que foram excluídos pela globalização neoliberal, ocidentalizante. Para tal – é claro – seria indispensável apagar – ainda que de maneira simbólica ou metafórica − os traços autoritários de mão-única da cultura dada como referência e questionar, mas não necessariamente rejeitar ou repudiar, a abrangência sem limite conquistada pela intolerância ocidental. Como parâmetro reflexivo para se compreender o limite ocidental em expansão, o pensador marroquino e o cineasta chinês recorreram à noção de crise, a ser compreendida − como recomenda o paquistanês Kishmore Mahbubani em Can Asians think? − pelo correspondente ideograma chinês. O ideograma combina dois caracteres, que representam respectivamente “perigo” e “oportunidade”. No perigo globalizante nasce a oportunidade da transformação local, podendo o resultado trazer o enriquecimento mútuo.

Do paquistanês – pelo viés da oportunidade como forma de work in progress − é que vem a mais surpreendente nota de otimismo para a compreensão da atual crise da globalização ocidentalizante: “The world will be a much richer place when Western minds stops assuming that Western

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civilization represents the only universal civilization. The only way the Western mind can break out of its mental box is to first conceive of the possibility that the Western mind may also be limited in its own way”.

Portanto, outra pergunta persiste: Será que o Ocidente chegará a conceber seu próprio limite, suas próprias limitações, sem as respostas do resto do mundo que lhe são oferecidas em efervescência, mas a priori encurraladas em perspectivas localistas ou regionais? Ou será que o Ocidente só conceberá o próprio limite e as próprias limitações, se forçado pelas armas militares dos levantes e da subversão, hoje ditas terroristas? Acrescente-se que, quando a idéia de limite surge no interior do pensamento ocidental intolerante, logo é recoberta pela noção de ilusão romântica, quando não é afastada a tal distância, que se torna praticamente invisível.

Levar o Ocidente a se voltar sobre si para que, nos abusos infligidos no passado, se conscientize da monstruosidade e estabeleça algum limite em sua expansão desmedida pelo mapa-múndi, não foi essa a dupla tarefa delegada à etnologia pelo próprio pensamento ocidental? Jacques Derrida escreve que o etnólogo “accueille dans son discours les prémisses de l’ethnocentrisme au moment même où il le dénonce ”. O filósofo franco-argelino acrescenta em outras e mais definitivas palavras: “Il s’agit de poser expressément et systématiquement le problème du statut d’un discours empruntant à un héritage les ressources nécessaires à la déconstruction de cet héritage lui-même”.

*

Minha contenção nesta fala é a de que há na cultura brasileira dos anos 1920 um notável momento histórico, em que um grupo de artistas julgou necessário fazer crer ao resto do mundo que era necessário estabelecer, por retração nacionalista, um limite ao antigo expansionismo bélico e cultural ocidental, agregando à herança positiva da cultura colonizadora o sentido de sua monstruosidade. Pelo recurso à afirmação regional, desconstruíam o que desde a descoberta fora dado como projeto universal de formação educacional e cultural dos habitantes do novo país. Será que diante da ordem de Alto lá! comandada pelos intelectuais e artistas modernistas, a Europa poderia introjetar a monstruosidade passada e, sem rancor e sem esbravejar, estabelecer e assumir seu limite? Será que ela assumiria a própria limitação sem anunciar o fracasso da empreitada regional ou a inevitabilidade de futuros conflitos no plano político e econômico?

Na busca de valores estéticos universais, o artista brasileiro sofria na pele o perigo tanto da imitação silenciosa do europeu quanto da expressão sob a forma de cópia xérox, e, por isso, se aventurava pela oportunidade de manifestar a força criativa (para recorrer aos dois caracteres chineses – perigo e oportunidade − que compõem o ideograma crise). O limite do

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Ocidente foi concebido nos anos 1920 como agigantamento e exorbitância de minúscula e terrível crise local, tendo sido ela representada pela pluralidade das etnias constitutivas da nação brasileira e da identidade de seus legítimos cidadãos.

À semelhança do que ocorreu nos exemplos não-europeus acima, o artista brasileiro, ao querer embutir a identidade nacional no Ocidente, recorreu a um atalho pelo nacional e, algumas vezes, pelo patriótico, como é o caso dos participantes do grupo Nhengaçu Verde Amarelo (1929). A nação não-européia e seus cidadãos tiveram de passar necessariamente por um desvio momentâneo na rota que os levaria a atingir os valores universais ambicionados. Tal como está no filme de Zhangke, o universal é uma maquete cenográfica do Ocidente, é pano de fundo dum drama humano que se dá em descentramento geográfico-cultural. No Brasil e nos anos 1920, o acesso ao universal se deu pela maximização da pluralidade étnica. A interação entre as varias etnias foi reconhecida como forma e força originais − a mestiçagem espontânea.2 Com o correr das décadas, o espontâneo foi concretado e se transformou no pré-fabricado consensual da nacionalidade a construir, mesmo se, na aplicação do molde, se neutralizassem as justas aspirações dos grupos étnicos em recuperação.

Desde que os excessos patrioteiros e ufanistas sejam excluídos e se analise com cuidado o exemplo da geração de 1922, tem-se em mãos uma situação útil para a compreensão da crise por que as distantes civilizações não-ocidentais passam neste momento. Ao mesmo tempo em que se ajustam internamente aos efeitos da globalização ocidentalizante, querem divergir da orientação exclusiva que lhes é ditada pelo lado de fora.

*

2 Recentemente, Caetano Veloso (http://www.youtube.com/watch?v=Crs8R7enWQI) cometeu equívoco ao equacionar a atual atitude política do candidato Barack Obama à tradicional mestiçagem espontânea no Brasil. No caso gringo, o pós-racismo é uma atitude estratégica e política do Partido Democrata (não esteve e nunca estará ancorada numa mestiçagem espontânea do povo norte-americano). Como proposta em campanha presidencial, o pós-racismo só pôde surgir depois de atos revolucionários do Estado inspirados por ativistas não-miscigenados, verdadeiros second class citizens, de que é exemplo maior Martin Luther King. Como atos revolucionários, refiro-me, por exemplo, ao programa “equal opportunity” e o de cotas de ingresso na universidade para negros e latinos. Barack Obama é certamente produto do segundo programa e talvez do primeiro. Nos dias de hoje, o candidato do Partido Republicano diz,, à imitação de Bill Clinton quando apoiava a esposa, que o oponente se vale do “ race card” (do recurso à raça), quando na realidade está se valendo do recurso ao único imenso coração político norte-americano.

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Na década de 1920, os modernistas brasileiros se associaram em movimento vanguardista de grande expressão nacional, ao mesmo tempo em que emprestavam a própria voz ao coro dos que seguiam descontentes com a filiação dos concidadãos aos padrões excludentes administrados pelo ex-colonizador “europeu-europeu”, para retomar a expressão de Chedaddi. A um lento e gradativo processo colonial de formação educacional pela identidade de exilado europeu em terras não-européias, no caso, em terras brasileiras, o artista propunha − pelo atalho da pluralidade étnica e pela mestiçagem espontânea − um processo de descentramento da cultura dominante, que lhe servia de referência.

Pelo atalho oferecido como dom pela história e a economia locais, o artista não abandonava o horizonte anunciado pela vanguarda européia e açambarcava o território e os atores sociais até então não-nomeados, excluídos. Avivava-se o congraçamento da condição pós-colonial com o manancial das culturas indígenas pré-colombianas e das culturas africanas transplantadas ao Brasil pelos navios negreiros. A mera descrição histórica da pluralidade étnica – “flor amorosa de três raças tristes”, para retomar o verso parnasiano de Olavo Bilac – se transforma na condição sine qua non do Manifesto Pau-Brasil (1924) e do Antropófago (1928) As manifestações locais de vanguarda atuam como fator de diferença no mapa-múndi e propõem um modo original de composição artística.

Se a fundação da Universidade de S. Paulo em 1934 é decorrência da “institucionalização do Modernismo”, como querem seus historiadores, a saliência do ensinamento ministrado aos estudantes paulistas pelos jovens professores Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide não é mera coincidência. Ao primeiro dos professores europeus coube a fatia dos habitantes do Novo Mundo antes da descoberta de Cristóvão Colombo − leia-se Tristes tropiques; ao segundo, a fatia dos africanos transplantados como escravos para a lavoura brasileira − leia-se O candomblé da Bahia. A própria formação européia dos professores propunha aos alunos brasileiros o acesso acadêmico à especificidade étnica da jovem nação e à identidade dos concidadãos excluídos da cidadania plena durante o processo de colonização.

Graças ao ensino público em nível universitário, a cultura brasileira se robustecia com o saber europeu que lhe fora − e continuava a ser − oferecido como referência. Ao trazerem para o mapa-múndi da vanguarda artística o habitante não-europeu destituído de suas terras ou usado como mão-de-obra escrava pela colonização lusa, o modernista não só costurava com a linha eurocêntrica as vestimentas de um nacionalismo combatente, como ainda operava um conseqüente processo de descentramento da Europa nos trópicos. A Europa não era apenas posse do europeu-europeu. Na verdade, o mais arriscado da cultura européia se alimenta da decisão de ser

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arma de dois gumes, como o estava sendo desde Montaigne e Jean-Jacques Rousseau, e naquele momento o era nos ensinamentos e pesquisas etnográficos de Lévi-Strauss e Roger Bastide. Às exceções à regra é que se aplica de maneira exemplar uma famosa frase de Jacques Derrida em L’autre cap: “ le propre d’une culture, c’est de n’être point identique à elle-même”.3

*

Estamos em fins de 1924, ou seja, dois anos após a comemoração do centenário da Independência do Brasil. Com exemplos tomados às cartas trocadas entre o paulista Mário de Andrade e o mineiro Carlos Drummond de Andrade, relembremos a materialidade da experiência cidadã do artista brasileiro.

Poucos meses depois de a caravana dos jovens paulistas terem se adentrado pelas cidades históricas de Minas Gerais, a ciceronear o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, que então nos visitava, Drummond passou a corresponder-se com Mário de Andrade. Diante do jovem Carlos Drummond que confessa em carta o desejo de ter nascido em Paris, e não em Itabira do Mato Dentro, diante da inequívoca preferência do mineiro por ser um exilado parisiense em terras brasileiras, Mário decide assumir a condição de mentor. Havia que corrigir a trajetória de jovens como Carlos Drummond que – depois de revolução artística que a Semana de Arte Moderna representou em 1922 − nasciam para a arte brasileira. Na intenção de se apresentar como vanguardista, o jovem mineiro saía na verdade fora de órbita. No dia 24 de novembro daquele ano, escreve a Mário de Andrade:

Tenho uma estima bem medíocre pelo panorama brasileiro. Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe) em Paris. O meio em que vivo é estranho: sou um exilado. E isto não acontece comigo apenas: “Eu sou um exilado, tu és um exilado, ele é um exilado”.

3 Quando escrevia esta palestra, li artigo de Stanley Fish no New York Times (29/8/08). Faz sentido colar este trecho aqui: “But behind the lack of interest in sightseeing is something deeper and more unsettling. When I ask people what they like about traveling, they usually answer, I enjoy encountering different cultures and seeing how other people live. I am perfectly happy with the fact of other cultures, and I certainly hope that those who inhabit them live well; but that’s as far as it goes. By definition, a culture other than yours is one that displays unfamiliar practices, enforces local protocols and insists on its own decorums. Some of them even have different languages and are unhappy if you don’t speak them. To me that all spells discomfort, and I don’t see why I should endure the indignities of airplane travel only to be made uncomfortable once I get where I’m going. As for seeing how other people live, that’s their business, not mine”.

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Onde estava a força do pensamento jovem, sofisticado, inconformista e agressivo do jovem mineiro? Não estava nas cercanias geográficas nem dentro dele. Ela vinha sendo alimentada pela leitura substantiva, em língua francesa, dos clássicos e modernos autores ocidentais. A força estava fora de Minas e do Brasil, em Paris, e é por isso que ele conjugava com elegância e tédio o indicativo presente do verbo ser, acompanhado do predicado um exilado − eu sou um exilado. Somos todos exilados.

Carlos Drummond tinha então 22 anos e talvez seja por isso que possa declarar com cândida sinceridade a fonte da estranheza intelectual e política que experimenta ao viver e ao se ilustrar no habitat que, no entanto, lhe é o próprio. Seu mal-estar existencial e educacional – e obviamente literário − é culpa dos fados. Por terem-no nascer fora do mapa-múndi civilizado, o excluíram do movimento universal das idéias. Ao considerar a geografia provinciana como meio ambiente em nada propício à autêntica criação literária, Drummond julga a nação imoral − deprecia a si mesmo e, por tabela, os concidadãos. Em terra de penitentes, isenta-se do pecado original da mestiçagem espontânea e se confessa pronto para tomar as rédeas da moralidade pública. Dessa forma é que aponta para o nítido e vergonhoso vácuo cultural, onde vegeta o artista brasileiro e, de maneira geral, o cidadão. O antipatriotismo é a tônica. É “um mau cidadão”. O futuro poeta tinha sido obrigado a entrar cultura ocidental adentro pela porta dos fundos do mapa-múndi.

Caso estivesse nos Estados Unidos da América, o jovem Carlos Drummond teria algo a ver com o indígena ou o afro-americano, desprovidos legalmente de direitos e benefícios. Eram considerados como second class citizens, sem acesso ao nacional. A semelhança traz complexidades e tem de ser mais bem trabalhada. Membro da elite rural brasileira e pertencente ao clã dos Andrades, o jovem Carlos Drummond tinha pleno acesso ao nacional, no entanto, se apresentava ao confrade paulista como um second class citizen, sem acesso aos direitos e benefícios do universal. Bem medido e avaliado, o sentimento de desqualificação (cidadã, intelectual, moral, literária...) advinha de experiência concreta − tinha nascido no lado de fora da casa redentora do Ocidente. À semelhança do indígena e do afro-americano, que não tinham direito a assento em restaurante chique e privavam da cozinha ariana pela janelinha de take out orders [comida para viagem], o artista brasileiro não freqüentava as livrarias do Quartier Latin e se alimentava de livros franceses nos caixotes tomados pela maresia da longa viagem marítima.

À semelhança dos insubmissos excluídos pelo sistema social norte-americano, Drummond se alimentava em “quentinhas”. Tinha de contornar o restaurante espiritual pelo exterior, forçar a entrada na Cidade Luz pela porta social e comprar livros em pleno Quartier Latin. Será que algum

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polícia alfandegário não lhe teria barrado a entrada, como ainda acontece atualmente com nossos emigrantes pobres? Ao contrário do second class citizen na América do Norte, o filho de fazendeiro podia dar-se ao luxo de ser voluntarioso, e é por isso que declara seu propósito, generalizando-o para todos os brasileiros de boa-vontade. Seu propósito é programático e político:

O que nós todos queremos (o que, pelo menos, imagino que todos queiram) é obrigar este velho e imoralíssimo Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento universal das idéias.

*

Bem antenado com o ideário das vanguardas européias e com os eventos literários que tinham lugar na Paris em luto pela morte em outubro de Anatole France, Mário de Andrade consegue enquadrar a condição de second class citizen do mundo no rastro dos admiradores do mestre francês. 4 Para tal, deve ter-lhe sido de ajuda a leitura do panfleto que, semanas atrás, os surrealistas tinham redigido coletivamente sob o título de “Un cadavre”,5 e distribuído pela cidade em óbvia manobra de dessacralização do mito Anatole. Competia a ele, Mário, imitar o jovem Louis Aragon que, no panfleto citado, perguntava: “Avez-vous déjà giflé un mort” (Você já deu

4 Uma frase escrita por Drummond − "Devo imenso a Anatole France que me ensinou a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a vida", merece o comentário caústico de Mário: “Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é esse todo o mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim duma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença. Dúvida passiva porque não é aquela dúvida que engendra a curiosidade e a pesquisa, mas a que pergunta: será? irônica e cruza os braços. E o que não é menos pior: é literato puro. Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isso é que esse filho-da-puta fez. Foi grande? Foi. Foi talvez mesmo genial nalgumas páginas. Pouquinhas, graças a Deus. Foi elegante, fino, sutil? Foi, foi, foi. Mas também foi filho-da-puta, porque as grandezas que engendrou não bastam pra pagar um só dos males que fez. Você diz que ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso! se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo pelo Brasil e os brasileiros”. 5 O panfleto de 1924 vem assinado por Philippe Soupault, Paul Eluard, André Breton e Louis Aragon e se encontra na antologia Documents surréalistes, organizada por Maurice Nadeau, (Paris: Seuil, 1948).

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uma bofetada num morto?), e fazer semelhante pergunta ao futuro grande poeta brasileiro. Competia a ele repetir as palavras de André Breton, que cito: “Com [Anatole] France, vai-se embora um pouco do servilismo humano. Que seja de festa o dia em que se enterram a esperteza, o tradicionalismo, o patriotismo, o oportunismo, o cepticismo, o realismo e a falta de coração! [...] Para encerrar o seu cadáver, esvazie-se se se quiser um mostruário do cais que contém esses velhos livros ‘que ele tanto amava’ e que se jogue tudo no rio Sena. É preciso que o morto não levante poeira”.

Mário de Andrade se entrega a formulação de máximas nacionalistas, que desenham uma trajetória intelectual exeqüível a todo jovem brasileiro ilustrado, que se quisesse artista em meio ambiente pouco fértil à criação literária original. Entrando aqui e ali em evidente contradição com as críticas feitas pelos surrealistas a Anatole, escreve ele a Carlos Drummond:

Avanço mesmo que enquanto o brasileiro não se abrasileirar, é um selvagem. Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações. [...] Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo. Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra outra etc. Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. E então seremos universais, porque nacionais.

O filho de fazendeiro, na realidade second class citizen do mundo, tinha antes de assumir o papel e a condição do second class citizen brasileiro, ainda sem acesso aos direitos e benefícios nacionais. O antipatriotismo exigia como antídoto uma reavaliação da pluralidade étnica doméstica e, por isso, ainda que a manter como referência os ideais universalistas sustentados pela Europa, afirmava estrategicamente a devoção à pátria-mãe.

O mentor alimenta o discípulo com paradoxos. Brasileiro citadino que imita ou repete outras civilizações, que não se abrasileira, é o verdadeiro selvagem, já que em sua taba nosso índio é civilizado. Há que tomá-lo como referência. Se formos desavergonhadamente nacionais, seremos universais. Teremos escapado pelo ladrão da fase de mimetismo. Notável é que, no auge da aclimatação da nova arte brasileira aos padrões do universalismo europeu, Mário recorra à necessidade romântica de assumir o lado dito monstruoso da cidadania brasileira. Ele tinha sido responsável pela exclusão do passado pré-colombiano como forma de saber e negava a presença cotidiana dos escravos africanos, então ex-escravos. A pluralidade étnica nos trópicos – veneno instilado pela colonização lusa no período colonial − vira remédio contra o processo por que passava o brasileiro letrado, que tinha optado pela exclusividade do universalismo à l’européenne. No entanto, os autênticos second class citizens brasileiros continuavam sem

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acesso aos direitos e benefícios nacionais e, no entanto, já eram dados como indispensáveis auxiliares dos intelectuais na formulação do acesso do modernista ao universal.

Sem encorajar os excluídos do nacional a se mobilizarem politicamente, mas com a ajuda deles, Mário quis que todos se insurgissem contra o cercado que vinha delimitando o terreno por onde circulavam os habitantes letrados do país. O inconformismo era contraditoriamente otimista, já que visava, em primeiro lugar, a depredar o antipatriotismo de alguns e, em segundo lugar, a negar a falta de auto-estima dos cidadãos. Competia ao jovem artista abrir dois buracos no cercado doméstico da ocidentalização brasileira. O cercado o impedia, por um lado, de ter acesso às nascentes imorredouras da vida selvagem tupiniquim e africana e, por outro lado, de se abeirar com proveito próprio, afirmativo, às nascentes vanguardistas da cultura universal. A noção doméstica de limite, dupla no caso, lhes tinha sido imposta pela expansão da civilização européia nos trópicos. O universal eurocêntrico, por seu turno, não deveria sentir-se alheio ao Brasil. Pelo contrário, ele continuava a se irradiar naturalmente pela nação, já que a elite letrada assumia de bom grado os modelos propostos pela vanguarda artística européia. Garantiam-se a abertura dos buracos e também o cercado.

Os dois buracos abertos no cercado – ao apontar ambos para a subversão de limite doméstico, questionando por sua vez a expansão da colonização européia – comandam o pensamento brasileiro e a arte autenticamente vanguardista que chamaria de avacalhados, tomando o termo de empréstimo a Rogério Sganzerla e O bandido da luz vermelha. Qualifico pensamento e arte de avacalhados, se for verdade que na etimologia do verbo avacalhar, como atesta o dicionário, está a noção de vazio, de vácuo. O avacalhado é o que experimenta o ser humano desprovido, aquele que é falto de recursos para ter acesso ao que ambiciona. O algo que falta – a incorporação ao movimento universal das idéias − é conseqüência dos fados adversos. Mário não deveria enxergar cabotinismo no jovem que lhe dizia ter preferido nascer em Paris. Se a sensação de vácuo não é resultado da vontade política do cidadão, o avacalhado o é, legitimamente.

Dado de presente pela pluralidade étnica da nação e pela mestiçagem espontânea, o atalho nacionalista – tal como foi sendo proposto pelos membros intelectualizados da elite branca – preenchia o vazio, o vácuo, que dimensionava o processo nacional de ajustamento, meramente mimético, aos ideais universalizantes das vanguardas européias. À semelhança do nacionalismo onde é gestada, a avacalhação doméstica sobrepõe uma espécie de ordem fictícia local na desordem concreta que representa a modernização pelo centramento europeu e, posteriormente, norte-americano. Pelo pedido de empréstimo à história nacional de moedas

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destituídas de valor no cotidiano – o indigenismo e o abolicionismo −, ordenavam-se as exigências locais da expressão moderna e original. A história nacional se exprimia por corpos que destoavam, caso apresentados em companhia dos corpos das classes privilegiadas. “Ver com olhos livres”, talvez seja o modo simpático de o artista se compor com a avacalhação. O autêntico second class citizen brasileiro continuava sem acesso ao nacional.

A força nacionalista levava os cidadãos letrados – naturalmente afeitos às indispensáveis formas de liderança local − a se sentirem, no entanto, alimentados por algo que, na verdade, existe aqui sem ter direito de cidadania nas leituras estrangeiras, ou nas discussões delas decorrentes. Válvula de escape para a tensão montante, o nacionalismo levava, quando muito, o vanguardista brasileiro a se sentir, vis-à-vis da cultura de referência européia, o que ele, na condição de second class citizen sem acesso ao universal, se sentia vis-à-vis de seus conterrâneos desprivilegiados pela monstruosidade da colonização. Todos − descendentes de europeus sem acesso ao universal, indígenas e ex-escravos africanos sem acesso ao nacional −, todos na condição de homens partidos expressavam a nacionalidade.

Estariam buscando um modo antropológico de composição da nação, uma recomposição pelo coração nacionalista? Estariam recorrendo ao inexistente sentimento de fraternidade nacional, que brotava na porta dos fundos da vanguarda européia e se espraiava pelo Brasil sob a forma de fraternidade étnica espontânea? Na verdade, recomposição e fraternidade eram duplamente avacalhadas, já que se esfumavam na ambiência política e econômica desordenada e injusta. Constituíam uma pseudo-solidariedade nacional, de que não estava isenta a nota patriarcal − judgmental, para tomar de empréstimo o vocábulo à língua inglesa. Calçada de boas intenções, a avacalhação causou, no entanto, e ainda causa o entorpecimento, o entupimento dos canais de comunicação dos grupos política e economicamente desprivilegiados com a sociedade civil e o Estado. Como cidadão, o artista era um porte-parole simpático à causa que defendia, mas não ao second class citizen que dizia estar representando.

Leia-se o belo “Dois poemas acreanos”, de Mário de Andrade. Fala sobre a experiência do seringueiro na distante Amazônia, sentida pelo coração distante e paulista do poeta. Na segunda parte do poema, sintomaticamente intitulada “Acalanto do seringueiro”,6 lemos: “Companheiro, dorme! / Porém, nunca nos olhamos / Nem ouvimos e nem nunca / Nos ouviremos jamais... / Não sabemos nada um do outro, / Não nos

6 Acalanto, lembre-se, é composição musical baseada nas cantigas de ninar; qualquer cantiga usada para embalar criança.

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veremos jamais!” De que fraternidade, de que solidariedade se fala? Ao ser recoberto pela condição de recurso cultural, apoiado que está no triplé étnico que veio sendo representado desde o século 19 pela noção de mestiçagem espontânea, o nacionalismo sentimental modernista se exprimia alheio ao sangue que corria pelas veias do artista. Era tão abstrato quanto os bons sentimentos cristãos, de que Mário, aliás, é defensor. Passava longe do convívio fraterno propiciado pela etnia comum, e mais longe da solidariedade de natureza biológica. Era simpatia, no sentido grego da palavra.

Como não lembrar a máxima de Benjamin Constant? “La douleur réveille en nous, tantôt ce qu’il y a de plus noble dans notre nature, le courage, tantôt ce qu’il y a de plus tendre, la sympathie et la pitié. Elle nous apprend à lutter pour nous, à sentir pour les autres” (A dor desperta em nós ora o que há de mais nobre em nossa natureza, a coragem, ora o que há de mais terno, a simpatia e a piedade. Ela nos ensina a lutar por nós, a sentir pelos outros). O nacionalismo modernista é figura de aparato e luta, para ficar no campo das flores da retórica que recobrem o mundo do patriotismo sentimental. É idealização.

A pluralidade étnica e a mestiçagem espontânea tornaram o artista brasileiro compatível ao que, culturalmente, lhe faltava. Na avacalhação, o artista não conjugava mais o verbo ser acompanhado do predicado exilado; conjugava antes a geografia de lá acompanhada da geografia ancestral de cá. Isso desde que se atentasse para o fato de que a palavra étnica – no sentido maiormente político que passou a ter depois das lutas dos afro-americanos e dos native Americans nos Estados Unidos a partir da década de 1950 − teria de escorrer pela fraternidade de sangue e ser expressão de um corpo biológico. Só o corpo étnico espontâneo precisa disfarçar-se com vocabulário artístico que se lhe escapa sanguínea e corporalmente.

A válvula de escape nacionalista – apesar de útil em termos de incentivo à criação original e de ajuste às circunstâncias da miserabilidade ambiente às demandas modernizadoras da época – não transformou o artista brasileiro em europeu. Já a compensação pela falta de acesso do artista brasileiro ao “movimento universal das idéias” pode tê-lo tornado um cidadão mais consciente ou, pelo menos, provido de bons sentimentos nacionalistas.

*

Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro e mais exigente intérprete do modernismo brasileiro da década de 1920. Em 1936 publica o ensaio Raízes do Brasil. Em Sérgio Buarque, o conceito de cordialidade não tem a priori valor social, político ou moral. Tem valor apenas comunitário. Semelhante à simpatia, que ganha corpo bíblico em “Dois poemas

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acreanos”, de Mário de Andrade, a cordialidade ganha sentido pelo significado etimológico. Em virtude da prole equivocada de livros e ensaios que gerou, Sérgio sempre julgou oportuno reafirmar que o conceito é usado “no seu sentido exato e estritamente etimológico”. Cordial tem sua origem mais longínqua em cor(d)-, “coração”, e mais recente no latim medieval, cordialis, que significa “relativo ao coração”. O conceito expressa o transbordamento para a vida comunitária de emoções e sentimentos originados no coração do indivíduo. Ele antecede, portanto, qualquer aplicação social, política ou moral, por esse ou aquele intérprete de Sérgio Buarque. O “conceito”, se o for, precede qualquer decisão de significado.

A cordialidade é afeto, sem direção político-social ou significado mundano preconcebidos. O homem cordial pode trilhar o caminho do bem e o caminho do mal, do amor e da violência. Está equivocado o bom samaritano que avança um único sentido da cordialidade – o do bem −, e o congela como virtude do brasileiro. Está equivocado o perverso que avança um único sentido da cordialidade – o do mal −, e o congela como defeito do brasileiro. Ou melhor, estão corretos à maneira de cada um deles, e não segundo a lição de Sérgio Buarque. Em termos da desconstrução de Jacques Derrida, a cordialidade não é um conceito, é um indecidível. É o vocábulo de sentido ambíguo, que precede toda decisão individual de significado. Repita-se: a cordialidade pode expressar tanto a amizade quanto a inimizade, tanto a concórdia quanto a discórdia. Compete ao usuário definir seu sentido pelo uso que dele faz numa frase.

Ao se considerar a cordialidade como natureza ambivalente da identidade nacional, quer-se dizer que o vocábulo nunca significa apenas polidez, embora tenha, no entanto e paradoxalmente, de significá-la para que haja a possibilidade do bom convívio social entre brasileiros totalmente diferentes e entre brasileiros e estrangeiros que se desconhecem e têm de entrar em contacto diuturno. O Brasil, comunidade nacional e cosmopolita, não pode ser um agrupamento de indivíduos só bondosos ou só ferozes. São bondosos e ferozes. O brasileiro busca a familiaridade entre opostos em casa e no concerto das nações – daí sua contribuição maior à desconstrução da história universal intolerante e eurocêntrica.

O cidadão brasileiro amadurecido pela vanguarda européia foi o ser humano que, ao se significar, buscava um vocábulo que antecedia os opostos − era cordial. Era coração. A máscara da identidade modernista – a da cordialidade − marcava um retorno das tradições familiares, autenticamente brasileiras, ao mundo contemporâneo massificado. Graças a ela o brasileiro moderno podia recarregar as baterias da sobrevivência na metrópole da máquina e das lutas sociais. A cordialidade tinha e ainda tem o estatuto de reserva, no sentido bancário do termo. O brasileiro assina o cheque da cordialidade nos momentos deficitários, de crise.

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Diante dos exemplos de Chedaddi e de Zhangke, englobados estrategicamente por Mahbukani, que propõe como significado para a atual crise na globalização os dois caracteres que compõem o ideograma chinês, seria o caso de se desvencilhar hoje da fraternidade e solidariedade avacalhadas do Modernismo, representadas de maneira simpática, mas irresponsável, pela nossa pluralidade étnica? Não creio. Sem que se afete o significado de cordialidade, tal como proposto por Sérgio Buarque, há, no entanto, que se estabelecer uma diferença de ordem política entre o Brasil dos modernistas e o de hoje, diferença a ser determinada pelo questionamento da noção de mestiçagem espontânea como o pré-fabricado do legitimamente nacional.

Para isso, basta que, frente à realidade histórica representada pelos três autores estrangeiros citados, se invoquem as reações violentas à implantação no Brasil do sistema de “equal opportunity”, ou na universidade brasileira do sistema de cota. Não se trata de imitar. Trata-se antes de não dar continuidade à avacalhação. No questionamento do espontâneo, sairá desfavorecido o artista modernista brasileiro e o universitário de hoje que esconderam e escondem a pluralidade étnica sob a falsa roupagem doméstica de democracia racial espontânea. No entanto, Sérgio Buarque sairá favorecido do paralelo. Foi ele que proporcionou a todos, indistintamente, a criação do indecidível cordialidade e a reflexão sobre a importância dele como mecanismo de compensação e de congraçamento comunitário nos momentos históricos de crise da diferença. Ao apontar para o nacional, o recurso à cordialidade sempre está atento ao bom concerto da nação e desta no conjunto das nações.

No caso dos três autores citados, o clamor contra a monstruosidade da ocidentalização escorre pelo sangue étnico não-ocidental comum e se expressa pela cor da pele, cuja identidade sempre escapou ao expansionismo eurocêntrico. O filósofo, o cineasta e o ensaísta dão voz étnica ao corpo biológico não-ocidental como manifestação sensível e inteligente do desejo de se significarem originalmente no mundo que se globaliza. É ele, o corpo biológico étnico não-ocidental, é ela, a cor da pele não-caucasiana, que estabelecem o limite do expansionismo ocidental, indispensável a qualquer reconfiguração universal e descentrada do mapa-múndi. Os ensaístas e o cineasta citados enxergam o perigo iminente da homogeneização pela intolerância, mas não o rechaçam com armas de fogo. A condição desfavorável (econômica, social, cultural...) os alerta para os concertos e desconcertos domésticos. Nela enxergam a oportunidade para a benéfica e indispensável transformação nacional ou regional. No caso brasileiro, o clamor pela justiça étnica acabou sempre por se destemperar sob o maçarico do pré-fabricado nacional progressista, que se europeizava pelos padrões estritos do arianismo nos trópicos, ou pelo embranquecimento do cidadão de descendência não-ocidental.

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Portanto, as especulações em torno da monstruosidade da globalização naquelas outras regiões do planeta não estão dando origem a um porte-parole que é apenas tradutor do meio ambiente europeizado ou norte-americanizado. Pelo contrário, o nacionalismo é assumido como diferença étnica responsável. Como afirmou Michel Foucault, “o encanto exótico de outro pensamento é o limite do nosso”. Ou como escreveu o poeta Adão Ventura:

para um negro a cor da pele é uma faca que atinge muito mais em cheio o coração.

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QUANDO O SUJEITO RESISTE ÀS BALAS PERDIDAS E AOS TIROS CERTEIROS: a insurreição do transgressor

Vânia Maria Lescano Guerra1 & Jefferson Barbosa de Souza2

A imagem da queda das torres gêmeas americanas povoa ainda o imaginário e a memória discursiva do cidadão telespectador [...] Essa ligação, por sua razão “in-voluntária” de ser, contudo não nos faz pensar que nossas torres, “a inteligência da segurança pública brasileira”, tenham sido destruídas, não a balas perdidas mas a tiros certeiros?

DIANTE DE UMA EMERGÊNCIA

Este ensaio traz em seu bojo reflexões acerca do discurso midiático e o crime organizado. Nossas pontuações sobre o discurso midiático têm sinalizado que a mídia, como simulacro discursivo do Estado moderno, mobiliza, por meio de representações alicerçadas no imaginário social, que “o crime não compensa”; isso porque ela expõe exemplos rarefeitos que funcionam como regularidades legítimas para a generalização dos sentidos atribuídos ao crime e dos sujeitos envolvidos com ele. Trabalhando sobre a espetacularização da informação, a mídia garante tanto a manutenção da sociedade, como também se mantém no atual processo de competição fomentado pela prática mercadológica do capitalismo contemporâneo.

A mídia é uma instituição que se positiva em relação às demais instâncias de poder, por intermédio do direito de expressão que lhe é reconhecido. Entretanto, esse direito de comunicar, como a expressão 1 Vânia Maria Lescano Guerra é professora da UFMS. 2 Jefferson Barbosa de Souza é mestre em Letras pela UFMS.

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máxima da democracia pós-ditatorial brasileira, corrobora a administração do conceito de cidadania, inventada a partir da emancipação do Estado moderno e da constituição “jurídico-política” do sujeito (Castro-Gómez, 2005). Além disso, a mídia atribui a si mesma o compromisso de não só expor a realidade, mas investigá-la, de tal sorte que se torna completamente possível sua relação com o Estado, responsável pela segurança pública, uma vez que se organiza por meio de técnicas jurídicas (código de leis) e/ou órgãos coercitivos, como, por exemplo, a formação dos batalhões de polícia. A transformação dos Estados-Nação e o enriquecimento de determinadas províncias deram início à formação das cidades e a transposição do poder, antes atribuído ao exército, para a polícia, encarregada de vigiar as cidades (Foucault, 1979)3.

Embora essa discussão seja extremamente interessante, o propósito deste trabalho é particularmente de outra natureza. Pretendemos analisar como o sujeito transgressor passa a ocupar um “determinado espaço” no discurso midiático, fornecendo-nos evidências de que sua “disseminação” (Bhabha, 2005) tem a ver com o balbucio que advém das margens da sociedade brasileira, no caso, por meio da figura espetacularizante do sujeito transgressor. O balbucio de um planeta sem boca que não rejeita uma única, autoritária, solitária voz (Achugar, 2004).

No que compete à execução deste trabalho, escolheu-se como acontecimento de estudo publicações, na mídia impressa, especialmente, nas revistas Época, Veja e Caros Amigos, a respeito da ação do PCC (Primeiro Comando da Capital) na sociedade paulistana, durante o Feriado de Dia das Mães, de maio de 2006. Vale constatar que ainda compõe o corpus da pesquisa a primeira edição da revista Veja, de janeiro de 2007. A inclusão dessa edição de Veja, fora do acontecimento considerado, deve-se ao fato de que ela contém em seu âmbito um dossiê sobre como solucionar o crime e, para o bem ou para o mal, ter sido enviada ao senado brasileiro, aos políticos recém empossados nas eleições de 2006. Contudo, salientamos que devido à extensão deste ensaio somente alguns excertos serão mobilizados na análise, posto que nosso objetivo também é contemplar o pronunciamento do PCC na mídia, como materialização de seu balbucio, um diálogo que se constitui inconcluso pois entra na esfera dos direitos e dos anseios.

3 Saliente-se o fato, ainda, de que nessa mesma episteme surgiu, baseado no contrato social – a expressão máxima do Iluminismo francês -, o direito penal, visto que as penas não podiam mais ser aplicadas baseadas na antiga moral cristã – nascia, então, a figura do juiz, a terceira pessoa do processo penal – que no uso de suas atribuições e do código preservava a sociedade das eventuais delinqüências cometidas em virtude do acúmulo de riqueza dos Estados-Nação (Foucault, 2003).

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Por conseguinte, o mirante a partir do qual desenvolvemos nossas considerações analíticas é fornecido pela Análise do Discurso de orientação francesa e pelas críticas contemporâneas elaboradas pelos Estudos Culturais. Consideramos essa articulação pertinente, visto que ela nos propõe outro lugar de investigação sem desconsiderar a relação, no entanto, do lingüístico com o histórico e com o social. 1. A MICROFÍSICA DA VIOLÊNCIA E DO PODER

Arendt (1994) afirma haver uma diferença entre violência e poder. Eles constituem pólos opostos, já que a violência necessita de implementos tecnológicos para existir, enquanto que o poder é da ordem da capacidade de agir em conjunto. A violência, assim entendida, seria a demonstração real da desintegração do poder, ou seja, a singularização da força e do vigor, indo ao encontro da individualização dos movimentos físicos e/ou sociais. Essa fragmentação do poder é, portanto, a evidência narcísica da microfísica do poder. Os grupos e movimentos sociais desvinculados do poder central e decisório do Estado, então, passariam a gerir seu próprio “Estado”: uma espécie de burocratização da vida pública. Ainda segundo Arendt (1994, p. 61), os processos de desintegração dos serviços públicos como a escola e a polícia são acompanhados e acelerados pelo declínio dos vários sistemas de partidos, podendo-se observar "quanto o vigor e a resistência de nossas instituições são destruídos, escoando gota a gota".

A partir dessa reflexão de Arendt, podemos, então, entender que o poder é sempre uma maneira de manter o “corpo social” unido. Esse corpo significa reconhecer que “être membre d’un corp – grand ou petit – entraîne des obligations et avantages qui font partie de sa définition” (Sfez, 2005, p. 14). Indivíduo e corpo social formam então um sistema de cobertura e re-cobertura. O individualismo mostra-se como um anseio que se dispersa da aliança do corpo social. O laço, assim desfeito, é o sintoma particular da resistência, bem como da violência. Em outra medida, gera-se um Estado paralelo ao Estado da governamentalidade, cujas estratégias discursivas permitem que os sujeitos dos grupos (politicamente enlaçados por ideais individualistas) funcionem como resistência por meio da desidentificação com o código que gera, nutre e torna positivo o corpo social.

Assim, a transgressão nasce das cinzas de uma relação de poder, como uma subjetividade invertida, carnavalesca, mitológica4. A transgressão, como fato discursivo, permite estabelecer uma ponte entre o discurso e a exterioridade, ou seja, demonstra, para todos, que há falhas no plano político

4 Nossa referência à mitologia liga-se à figura mitológica da ave que renasce das cinzas, a famosa fênix.

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– e principalmente no simbólico – e administrativo das cidades; que a segurança, numa sociedade aberta, globalizada, é estar exposta aos golpes do destino (Bauman, 2007). Inspirado no anjo de Paul Klee, Walter Benjamin compreende que, como anjos da história, nossos olhos fitam o passado, ao passo que nossas costas se voltam para o futuro. Conquanto o passado sirva de lição aprendida e a qual não se pode reverter, o futuro não se delineia com clareza, é um devir.

Bauman (2007, p. 23) afirma que “a mudança histórica acontece porque os humanos são mortificados e irritados pelo que acham doloroso e desagradável em sua condição, porque não querem que essas condições persistam e porque procuram uma maneira de aliviar e reverter seu sofrimento”. Esse argumento congrega o pensamento de Giddens (2002), já que o projeto da “modernidade tardia” prevê a transformação de políticas emancipatórias em políticas-vida, cujo propósito se destina a libertação de indivíduos e de grupos de situações que comprometem a vida. Esse projeto reflexivo do “eu” torna viável, então, o movimento da história. 1.1. A ESFERA ESCORREGADIA DO PODER NO DISCURSO MIDIÁTICO

Para examinar esse movimento ou ruptura, é preciso refletir sobre o enunciado, que, uma vez dito, materializa o acontecimento da transgressão, isto é, o seu balbucio em meio ao labirinto dos discursos convenientemente evocados pela esfera pública do discurso midiático: A mitificação de criminosos, processo freqüente, é ainda mais compreensível num caso em que o bandido em questão acaba de levar às cordas os que deveriam combatê-lo – para a parte derrotada, exaltar os “superpoderes” do adversário é sempre um jeito de minimizar a própria humilhação. (Veja, 2006, p. 43-4).

Foucault (1979, p. 5) expõe em sua Microfísica do poder que o problema dele não concernia dizer “viva a descontinuidade”, mas que a questão girava em torno da política do enunciado. O que ele insistia em perguntar-se era se esse conjunto de mudanças bruscas na evolução e transformação da imagem continuista não correspondia, de certa maneira, a modificações nas regras de formação dos enunciados tidos como verdadeiros. Ou seja, o seu problema vai ao encontro do que rege os enunciados e como eles constituem um conjunto coeso de proposições aceitáveis.

Assim, observando atentamente esse enunciado supramencionado verifica-se que o objeto central da crítica é a razão política no monopólio de gestão da segurança pública. Contudo, dotado de raízes profundamente históricas, o enunciado transporta o leitor para as passagens mais belas da história, maquiladas com a figura do herói. Mas poderiam, como convém ao

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enunciado formular, “criminosos” ou “bandidos” elevarem-se ao status de heróis?

A figura do herói tem nos romances de cavalaria a imagem do ser do bem, que combate o mal, em prol de uma luta santa, justa. Na Idade Média, o herói é o vassalo (subordinado) do Senhor, que possui o poder sustentado em sua autoridade e na moral religiosa. A coexistência histórica dessa memória com o enunciado perfeitamente materializado permite asseverar que o “herói sem nenhum caráter” também não deixa de ser herói, sobretudo porque, como bom ladrão ou justiceiro, ele está mais próximo do povo e dos anseios minoritários. A sua luta torna-se elemento simbolizador dos anseios públicos. A figura do herói é, no entanto, revestida historicamente de uma aura positiva e santificada. O herói é aquele que elimina os monstros enviados pelos deuses, quando não assim, o herói é aquele que mostra ao vilão a grandeza de seu erro – e aí se investe em toda uma tecnologia da moral -, e é capaz de perdoá-lo, desde que o tenha feito admitir o erro e que ele tenha atestado o seu arrependimento.

Atento à materialidade lingüística, Michel Pêcheux (1990) afirma que o enunciado é possível tornar-se outro diferente de si porque há nele pontos de deriva que o dispersam em relação ao seu efeito material. A metáfora “levar às cordas os que deveriam combatê-lo” atribui ao “bandido” Marcola, líder do grupo, a responsabilidade pela reversibilidade dos poderes. Ora, espera-se sempre, mesmo imaginariamente, que a segurança – a famosa intolerância ao outro e ao diferente, da qual nos fala Rolnik (1992) -, prepondere sobre a violência, porque, entre outros motivos menores, ela é um direito reconhecido pela lei. Sarlo (2006) defende que há no âmbito das sociedades um pacote de (kit) identidades disponíveis que determinam que a violência, embora não seja uma questão de classe, seja atribuída aos sujeitos mantidos fora do epicentro citadino.

As cordas evocadas na materialização do enunciado não somente evocam “as lutas de Box”, mas nos permitem mostrar que o projeto reflexivo da vida na “modernidade tardia” está em vias de realização, mas também a prática discursiva da penitência religiosa, do pagamento dos pecados, como materializa a mesma revista, no lead da reportagem lavrada “Terror em São Paulo”: Como um bandido e seus comparsas conseguiram colocar de joelhos a maior cidade brasileira.

Nesse enunciado ainda figura o tema da submissão, contudo, este, em especial, traz, na sutileza do gesto, a evidência da exclamação da existência de um poder ainda superior. Iniciando pelas relações históricas dos acontecimentos (Foucault, 2006), esse “Terror em São Paulo” de que nos fala a revista não teria seus sítios de significância se não houvesse na história acontecimento que o simbolizasse antes para nós, que já preenchesse de sentido a especificidade desse enunciado. O 11 de setembro

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americano torna-se, portanto, um acontecimento que tem relação direta com a ação do grupo.

Na passagem do lead, pode-se verificar que outra metáfora materializa-se, sob a imagem de “colocar de joelhos”, em que X impõe-se a Y, quando a função enunciativa do enunciado é crítica e, sendo assim, acredita que deveria ser o contrário, ou seja, X se submeter a Y. Outro efeito metafórico, mas no sentido de transferência (Orlandi, 2001), vislumbra-se pela generalização que não permite diferir qual lado do poder realmente se submeteu ao poder do PCC, como se pode verificar pela metonímia “a maior cidade brasileira”. Portanto, a metáfora faz ressignificar: se a maior cidade do país se encontrava de joelhos diante do PCC, o Brasil também estava nas mãos dos transgressores do tráfico, do crime organizado.

Assim, a transgressão surge com a metáfora, que, no dizer de Marchezan (1999), traz a continuidade ou a descontinuidade, cuja demonstração de força vem evidenciar as relações de poder, que dinamizam a sociedade, e são constituídas em plena carnavalização.

Ainda sob o crivo de Veja, em sua reportagem intitulada “O bandido que parou São Paulo”, observamos a descrição de um perfil transgressor:

O homem que comandou a rebelião simultânea de 73 presídios paulistas, provocou uma onda de atentados no estado e, ao que tudo indica, ordenou o cessar-fogo aos seus comparsas depois de 100 horas de terror, não é reconhecido pela justiça como líder de uma facção criminosa. Aos olhos da lei, Marcos Willians Herbas Camacho, o “Macola”, é simplesmente condenado por assalto a bancos.

Inserido no contexto das relações de poder, esse enunciado materializa a situação atual da crise da segurança pública brasileira, tão bem quanto apresenta a precariedade do sistema penal. Esses dois sistemas exteriores determinam as práticas políticas no plano discursivo da mídia e permitem observar a relação da prática discursiva da mídia com o sistema de estruturas (Foucault, 2008) que é necessário atravessar a fim de encontrar, na espessura do acidente, a relação dessas práticas com o discurso.

O enunciado, assim materializado, tem uma relação especial com a memória, especialmente porque ela é ordenada, aqui, pelo jurídico. O jurídico é ainda um sistema de recorrência explícita da mídia, constituindo-se num dispositivo discursivo, cujas linhas de afastamento proporcionam a objetivação do sujeito de que trata a reportagem: “O homem que comandou (...) provocou (...) ordenou (...) Marcos Willians Herbas Camacho...”. Enquanto ocorre a objetivação da transgressão por intermédio dos recursos verbais e a identificação de seu agente, como linha de convergência desse dispositivo cria-se, por sua vez, uma relação de contigüidade com o que é dito, imaginariamente, sobre o grupo na esfera pública e o regime de

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verdade proposto pelo princípio discursivo do dispositivo jurídico: “aos olhos da lei (...) é...”.

Pêcheux (1982, p. 57) afirma que há necessariamente uma relação entre a língua e a discursividade, e que “é esta relação entre língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição de efeitos lingüísticos materiais na história, que constitui o nó central de um trabalho de leitura de arquivo”. Assim, se o discurso jurídico articulado pela revista configura um procedimento de legitimação da verdade, a sua relação com o acontecimento, que atualiza os regimes de enunciação, provoca uma ruptura e distancia-se do “olhar” jurídico. Observando a materialidade, curioso é observar o funcionamento do advérbio modalizador “simplesmente” em “é simplesmente condenado por assalto a bancos”, que tem o efeito de quebra de expectativa do discurso da mídia em relação ao jurídico, insinuando uma identificação diferente da que a justiça atribui a Marcola.

O discurso da mídia, então, representa a transgressão por intermédio da metonímia da liderança/grupo, trazendo para o enunciado a figura de Marcola, a quem se responsabiliza a rebelião em 73 presídios paulistas e o comando de atentados cronometrados em mais de 100 horas de terror. Esses números definem o modo particular com que a lógica matemática funciona no discurso como recurso capaz de expor a proporção da ação liderada pelo PCC, logo, determinando, em números, o espetáculo que constitui essa forma de subjetividade, a transgressora.

Na mídia, há, portanto, em funcionamento um procedimento de interdição descrito por meio dos modos de enunciação. Convém dizer que é necessário à revista excluir as causas, os objetivos, os anseios e as situações que levam um determinado grupo a agir na sociedade, a fim de orientar o discurso em sua ordem de coerência com a exterioridade, e esquivar-se da tolerância ética. Esse limiar, como propulsor da rarefação discursiva e como conseqüência, talvez, da espetacularização midiática, delimita o conjunto do dizível, acessível por meio da memória e do interdiscurso. A partir disso, então, no discurso, tem-se como efeito o sentido da denúncia e como solução a necessidade de maior rigor punitivo aos transgressores.

Dessa maneira, a formação discursiva, como um conjunto de discursos que se costuram por meio de uma regularidade de dispersão (Foucault, 2008), nesse enunciado, apesar de constitui-se de vetores de subjetividade que se diferem em relação à memória e à atualidade posta em jogo pelo dispositivo discursivo da mídia, apresenta uma formação discursiva sobre-determinante. Faz-se mister considerar que o transgressor não é visto como membro social, tampouco como fruto e/ou resistência de um sistema de forças microfisicamente em desequilíbrio. Trata-se, sobretudo, de uma massa carcerária incontrolável.

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Parece haver aqui a incorporação de normas e regimes de conduta moral que discursivamente funcionam regulando o discurso da mídia e identificando a transgressão e seus prováveis integrantes. A transgressão vai adquirindo visibilidade por meio de um sistema de diferenças. Além do crime, do transtorno, das rebeliões, do assalto como elementos constitutivos da transgressão, ela adquire maior significância em sua oposição a um sistema de produção, de ocupação do corpo com o trabalho e com a reflexão (Foucault, 2005). 1.2. O BALBUCIO DO TRANSGRESSOR: o ponto de sublevação da ética da diferença

Nas raras vezes em que o PCC se colocou no lugar de “quem diz” para “ser ouvido” foi entendido como simplesmente chantagista, como se não tivesse algo a reivindicar. De nossa parte, fica escusado que o comunicado transmitido na madrugada do dia 13 de agosto de 2006 tanto podia ser entendido como uma reivindicação, como, pelos métodos empregados para a veiculação do mesmo (seqüestrando um funcionário da emissora responsável pela veiculação do vídeo), uma afronta e uso da violência pela violência. Essa forma “invertida” do poder se manifesta discursivamente no comunicado, deslocando o sujeito do PCC de transgressor a sujeito jurídico, e vice-versa. A utilização de recursos metafóricos, nesse discurso, proporcionou também a evidência dessa ruptura subjetiva, bem como do poder centralizado, antes, somente no Estado. A fim de ouvir esse “balbucio” não teórico, não científico, mantido sobre os escombros do que ainda restou da implosão do Complexo do Carandiru na memória dos brasileiros, dando voz “aos fantasmas” que reclamam o seu espaço, passamos ao exame do comunicado, um balbucio da ética da diferença.

Hugo Achugar (2004), em Planeta sem boca, traz essa questão emergencial de escuta do que é periférico e do que não está na ordem vigente do discurso. Sair da gravidade discursiva dos discursos legitimados já consistia uma tarefa arqueo-genealógica de Foucault. O arquivo reclama, portanto, o balbucio do discurso profundamente rejeitado, mantido sob o silêncio das prateleiras estáveis das bibliotecas ou no reduto dos labirintos intermináveis dos morros e das favelas brasileiras. Compreendemos que (Achugar, 2004, p. 20):

la autoridad determina que no tienen nada que decir o, lo que también es possible, la autoridad carece del instrumento que les permita oir lo que los planetas/la periferia, el margen tiene para decir. Los planetas no hablan. “Sin embargo, seria um error creer que sean todos mudos” [...] “Nosostros los hemos hecho hablar” (Lacan, 358-359). Todavía más: “Sólo se está definitivamente seguro de que los planetas no hablan a partir del momento en que se les há cerrado o pico”... (ibid.). El “cierre del pico”, según Lacan, tiene que ver con Newton y con la producción de “la teoria del campo unificado” (ibid.). ¿La

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obturación teórica de los palnetas? Pero, ¿quién obtura?, ¿Quién hace callar a los planetas? ¿Quién no los escucha?

Gayatri Spivak, segundo Achugar (2004), afirma que o subalterno não pode falar, pois, se falar, já se identifica como subalterno. Embora seja aparentemente verdade o efeito decorrente das práticas discursivas que legitimam àqueles que possuem o direito e a aspiração do dizer na sociedade global, não podemos deixar de questionar o fato de que se o sujeito se pôs a falar, isso não significa que ele esteja somente sob esse efeito rarefeito da subalternidade, mas, muito além disso, que ele pode deslocar-se dessa imagem. O balbucio, para nós, significa a réplica precisa de uma estratégia desestabilizadora, ao mesmo tempo em que identifica aquele que fala com alguém proveniente da margem, e também permite a imbricação de outras identificações, decorrentes da função enunciativa.

O entrecruzar de uma teoria culturalista e de outra discursiva leva-nos a observar que o balbucio pode tornar-se carnaval, inversão de papéis e atribuições de poder. Para Foucault (2006, p. 333), “querer tratar de maneira específica as relações entre tecnologia e genealogia dos saberes não é uma maneira de proibir os outros a analisar domínios vizinhos; é, antes, convida-los a isso”. O discurso é, enquanto manifestação de uma vontade de poder que se apresenta diante dos olhos, política. Assim, trazemos a rasura do balbucio do PCC veiculado na mídia, após o seqüestro de um funcionário da Rede Globo. Por meio de um site de notícias, coletamos o material do comunicado, se bem que ele é veiculado na forma de filme amador que pode ser assistido no site do Youtube, no endereço que segue: http://www.youtube.com/watch?v=bwPHGk0ifb4.

[1] Como integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, venho pelo único meio encontrado por nós para transmitir um comunicado para a sociedade e os governantes. [2] A introdução do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003, no interior da fase de execução penal, inverte a lógica da execução penal. E coerente com a perspectiva de eliminação e inabilitação dos setores sociais redundantes, leia-se "a clientela do sistema penal", a nova punição disciplinar inaugura novos métodos de custódia e controle da massa carcerária, conferindo à pena de prisão o nítido caráter de castigo cruel. O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o iluminismo e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP. Já em seu primeiro artigo, traça como objetivo do cumprimento da pena a reintegração social do condenado, a qual é indissociável da efetivação da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento de pena em que não haja constância (comitância) dos dois objetivos legais – o castigo e a reintegração social--, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal, em contradição à Constituição Federal. [3] Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido, desumano, no qual sofremos inúmeras humilhações e espancamentos.

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Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei. Se nossos governantes, juizes, desembargadores, senadores, deputados e ministros trabalham em cima da lei, que se faça justiça em cima da injustiça que é o sistema carcerário, sem assistência médica, sem assistência jurídica, sem trabalho, sem escola, enfim, sem nada. Pedimos aos representantes da lei que se faça um mutirão judicial, pois existem muitos sentenciados com situação processual favorável, dentro do princípio da dignidade humana. O sistema penal brasileiro é, na verdade, um verdadeiro depósito humano, onde lá se jogam seres humanos como se fossem animais. O Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional. O Estado Democrático de Direito tem a obrigação e o dever de dar o mínimo de condições de sobrevivência para os sentenciados. Queremos que a lei seja cumprida na sua totalidade. Não queremos obter nenhuma vantagem. Apenas não queremos e não podemos sermos (sic) massacrados e oprimidos. Queremos que: 1 - As providência sejam tomadas, pois não vamos aceitar e não ficaremos de braços cruzados pelo que está acontecendo no sistema carcerário. Deixamos bem claro que nossa luta é contra os governantes e os policiais. E que não mexam com nossas famílias que não mexeremos com as de vocês. A luta é nós e vocês.5

Aqui, estamos diante de um enunciado bem pouco usual. Não é tanto usual, pois não configura uma prática regular de um grupo organizado, como se pode contrapor aos grupos terroristas do Oriente Médio que “assinam” a autoria de seus ataques em vídeos enviados às redes de televisão. Está-se diante de um acontecimento que se relaciona com outra série de acontecimentos. Vamos passo a passo a eles, mas sempre atentos para a estratégia discursiva do sujeito que se dispersa aí, gerando uma tensão entre o discurso do transgressor, da mídia, da constituição, dos Direitos Humanos, do Código Penal, da ética, enfim, uma série aleatória de discursos no arquivo histórico.

Detendo-nos mais especificamente ao enunciado “comunicado”, um misto de abaixo-assinado ou epístola endereçada aos nossos políticos e, ainda, a semiologia do cenário, na qual um porta-voz do grupo lê a transcrição supracitada e mantém em seu poder um funcionário da emissora responsável pela circulação do vídeo na madrugada de 13 de agosto, vemos o desenho nebuloso da transgressão. A nebulosidade não quer dizer aqui um sinônimo de “mau tempo”, mas quer mostrar que as identificações são descontínuas e irregulares, em decorrência da função enunciativa que define o sujeito que pode e deve pronunciar no comunicado.

A função enunciativa, explica Foucault (2008), determina não só as regras subjacentes da formação do enunciado em relação aos discursos, mas 5 Essa transcrição foi obtida a partir da edição on-line do jornal A folha de São Paulo, no seguinte endereço: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u124974.shtml. Acesso: 13 ago. 2006.

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determina, sobretudo, que o sujeito é uma função vazia, vindo a ser preenchida por todo aquele indivíduo que vem satisfazer as regras dessa função. Em outras palavras, para ser sujeito é necessário, antes de tudo, ser preenchido pelas funções e pelas práticas sociais e históricas que determinam as regras legítimas da função enunciativa.

Para ser sujeito do que diz, portanto, é necessário satisfazer certas regras e estabelecer relações entre determinados domínios de saberes. Assim, diante desse “comunicado”, vemos que para o vídeo ser transmitido há uma relação entre o enunciado [1] “Como integrante do Primeiro Comando da Capital” e o seqüestro do funcionário da emissora. As causalidades explicam as circunstâncias que propiciam o balbucio do grupo organizado. O estatuto de pertencimento a um grupo reconhecido pelo poder (“comando”) já antecipa a posição-sujeito que ecoa em [1]: o sujeito transgressor.

Na passagem indicada por [2], o sujeito já não permanece o mesmo. Como sujeito estratégico e de táticas de luta, ele trava luta com as “armas” de que dispõe: as palavras. As palavras da lei, assim, fornecem um terreno de segurança para essa luta entre o sujeito transgressor e os agentes de segurança. O código, assim reverberado, A introdução do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003” [...] “o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o iluminismo e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP, não transplanta mais a face da violência, não condensa mais os gestos sutis de ameaça, mas, sobretudo, coloca o sujeito na ordem do discurso jurídico, no confronto entre as medidas legais. A Lei de Execução Penal, outorgada em 1984, trata-se de um código que normatiza as práticas de gerenciamento e aplicação das penas aos sentenciados, reduzindo a re-inscrição do suplício à cultura dos julgamentos. A introdução do RDD, então, desqualifica a medida da LEP, pois a introdução daquele se dá pelo julgamento enviado pelo Ministério Público a um juiz, o qual decidirá sobre a “periculosidade” do sujeito, a lei de seu aprisionamento no Regime Disciplinar Diferenciado.

Na passagem [3], acontece, então, a quebra do regime enunciativo. Se em [2], a lei expressa sua voz re-cobrindo o perfil estratégico do transgressor, esse mesmo perfil parece surgir novamente em [3]. Nos enunciados: Queremos um sistema carcerário com condições humanas [...] Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei [...] O sistema penal brasileiro é, na verdade, um verdadeiro depósito humano, onde lá se jogam seres humanos como se fossem animais, estamos diante de um sujeito que reivindica o seu lugar, o seu direito, logo, não nos permite estabelecer um ponto fixo de sua identidade. Há, portanto, uma tensão em torno desse balbucio que não significa simplesmente a afirmação de sua subalternidade, mas de sua política, de sua inscrição das práticas jurídicas, como sujeito-de-direito. A ambigüidade e/ou intercambialidade do termo sujeito garante a

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manutenção de dois deslocamentos de forças, uma em relação ao assujeitamento (ser sujeito a...), e outra em relação à afirmação da transformação (ser sujeito de...) (cf. Haroche, 1992).

De modo geral, o posicionamento do sujeito frente às limitações de sua existência (Giddens, 2002) vai conduzir ao que chamamos de ética da diferença. A ética não tem o compromisso de ser o que imaginamos, o bem ou o mal, mas um conjunto de condutas, técnicas e práticas que nos conduzirão à reflexão do acontecimento discursivo e a sua relação maternal com a realidade. Quando se diz O Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional, estamos diante de um acontecimento discursivo que não tem por missão julgar se isso é evidentemente verdade ou falsidade, mas presenciar que há regras específicas para a formação desse enunciado. Trata-se de uma luta de espadas entre os princípios humanísticos da ressocialização e as novas (e por demais antigas) centelhas da jurisdição administrativa moderna, diante dos focos intermináveis de crimes e violência, principalmente em São Paulo.

Os enunciados “Queremos que as providências sejam tomadas [...] Deixamos claro que nossa luta é contra os governantes e os policiais” mostram, por meio de verbos no presente do indicativo e em primeira pessoa do plural, a expressão coletiva de um grupo contra o abuso e/ou falência do sistema penitenciário. Isso nos remete ao pensamento de Foucault (2006, p. 330; grifos dele), quando fala sobre seu projeto metodológico de pesquisa, cuja facilidade é apenas aparente, “conheço um psicanalista que compreende que se afirma a onipotência do poder, quando falamos da presença da presença das relações de poder, pois ele não vê que sua multiplicidade, seu entrecruzamento, sua fragilidade e sua reversibilidade estão ligados à inexistência de um poder onipotente e onisciente”.

Assim, em face desta ação estratégica não conseguimos abarcar a dimensão simbólica que é a identidade. Não se pode correr o risco de defini-la com exatidão, quando a mesma se trata de um processo e se encontra longe de corresponder às perspectivas empiricistas e neo-positivistas que fundamentam a moderna sociologia. Contudo, levantamos os casos nos quais é possível descrever a irrupção de uma outra subjetividade, precisamente quando uma manobra política torna uma lei rigorosa em instrumento de controle da transgressão, visto que os códigos que se destinam a isso (Código Penal) já não são suficientemente toleráveis na atualidade. O que nos resta é refletir agora sobre quais são os meios que a mídia encontra para permanecer no mercado, tendo a função de “denúncia” como o ancoradouro de suas práticas ligadas aos sistemas de repressão. 2. MÍDIA E COMPROMISSO COM O SOCIAL: pedagogia, publicidade ou ambos?

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Embora não seja consensual afirmar que a mídia, como instrumento de intervenção do cotidiano, faz emergir um cenário de debates em torno de políticas voltadas aos cidadãos — de onde surge inclusive o seu caráter de atuação numa “esfera pública” (Maia, 2006) — vale discutir esse preceito tendo em vista um acontecimento espetacular, o qual poderia ser descrito como pedagógico, além de moral. Trata-se do envio e distribuição do primeiro exemplar do ano de 2007 dedicado ao Crime: as raízes, a impunidade, as soluções (edição especial e exclusiva do assinante), ao parlamento brasileiro, cuja tiragem chegou ao número de 1.209.060 exemplares. Esse número vem endossar que “os índices de venda são, em grande parte, a justificativa das atividades das empresas” (Maia, 2006, p. 24), ou seja, um discurso que recobre o discurso de sua prática como instância midiática, “obrigando as mídias a produzir, paralelamente ao discurso de informação, um discurso que justifique sua razão de ser, como se além de dizer, ‘eis o que é preciso saber’, as mídias dissessem o tempo todo: ‘eis porque temos a competência para informar’” (Charaudeau, 2006, p. 34).

Assim, como espaço de debate entre ações do campo político, civil e público, os textos publicados por Veja associam o crime à transgressão, ao tráfico, à corrupção. Entretanto, nosso objetivo circunscreve-se ao domínio das formações discursivas que emprestam aos discursos a sua possibilidade de existência. Desse modo, gostaríamos de abordar como a escrita do acontecimento se repete nessa edição especial da Veja e de que modo ela produz e associa sentidos em relação ao maio de 2006, o acontecimento do PCC na mídia brasileira.

O enunciado que trazemos para análise faz parte da reportagem ... e o Brasil que pune mal (p. 48-9). Essa reportagem traz em seu corpo a seguinte inscrição, (lead), que faz o adentramento ao leitor: “A pretexto de ‘ressocializar’ os presos, benefícios da lei penal alimentam a criminalidade”. A partir dela é possível antecipar quais formações imaginárias alicerçam essa reportagem e qual a posição da revista em face da problematização sobre a qual este trabalho se pauta, isto é, no crivo do acontecimento do PCC na mídia e no do envio desse exemplar da Veja ao senado brasileiro.

A reportagem inicia-se com a descrição de um fato que serve de exemplo para aquilo que ela pretende criticar: os benefícios legais. Fala-se sobre um caso ocorrido em março de 1993, envolvendo um sujeito que foi flagrado na tentativa de roubo em São Paulo, recebendo a condenação de oito anos e dez meses de reclusão. Esse sujeito conseguiu, no entanto, passar para o regime semi-aberto após ter cumprido um sexto da pena e, três anos e meio depois, estava totalmente livre. Nessa seqüência vem o que nos interessa analisar:

(i) Ele foi premiado por um cardápio de benefícios destinado à ressocialização de

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presos, elaborado em 1984 como forma de “modernizar” e “humanizar” leis criminais. Em dezembro do ano passado, Joabe voltou ao crime. Foi autor de um dos atos mais desumanos da história criminal recente (...) ateou fogo em quatro pessoas vivas (...) Não há como saber se Joabe deixaria de praticar o segundo crime se tivesse sido rigorosamente punido pelo primeiro. Mesmo assim, o histórico acima revela o mecanismo pelo qual o sistema brasileiro acaba premiando o criminoso a pretexto de ressocializá-lo. (VEJA, p. 48-9)

E para resolver o problema, Veja propõe: (ii ) Criar juntas técnicas e restabelecer a obrigatoriedade de um exame criminológico para avaliar se o preso tem direito a progressão de pena. Aprovar o projeto de lei que amplia o tempo mínimo de cumprimento de pena para a progressividade de pena. Extinguir a progressão de pena para assaltos cruéis. Reduzir drasticamente o número de indultos. Limitar ao máximo as visitas íntimas. (VEJA, p. 49).

Iniciando a análise pelo papel exercido pela crítica da cultura midiática ao caso de reintegração social da delinqüência, ela parece sugerir que a “dogmática” penal está subordinada ao discurso “político” dominante. Isso nos remete à história da punição (do poder punitivo): na Idade Média, quando não havia o princípio de legalidade, se um indivíduo transgredia um valor da sociedade (se afrontava ao rei e, por extensão, a Deus) era “fadado” a “optar” por viver uma conduta contrária aos mandamentos de Deus. No Iluminismo, vem à tona o “contrato social” (não “divino”): ao transgressor, uma severa pena, capaz de intimidar os demais membros da sociedade (o “exemplo”). Em fins do século XIX e início do século XX (sob a “bandeira” do pensamento positivista), a punição recairá sobre a periculosidade do agente, cabendo ao “direito penal” defender a sociedade e os interesses sociais de um criminoso.

O médico Lombroso concebe, por exemplo, a existência de criminosos natos, o que representa a associação do criminoso a uma patologia, anomalia distinguível por meio de um determinismo biológico (formações ósseas do rosto, da narina, da orelha, da fronte e dos olhos), que, em última esfera, determinava a conduta moral e social do indivíduo (reduto do pensamento antropológico), cabendo medidas terapêuticas para a “cura” dessas anomalias. O jurista Ferri, por seu turno, atribuía a causa do crime ao meio social. Ora, em todos os discursos as causas situam-se no delinqüente.

Hoje, porém, as penas (na verdade, o delito é determinado na/pela lei) ancoram-se na necessidade de estabilizar o sistema social, produzindo-se o respeito ao ordenamento jurídico, por intermédio da medida preventiva da transgressão: se há o desrespeito, aplica-se a pena, de que derivaria a crença na Justiça (na aplicação das leis). Quanto ao “crime”, surge, na “moderna” criminologia, como a única forma que o indivíduo encontraria (em face das

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desigualdades) para solucionar seus problemas “existenciais” (o delito seria, então, preexistente ao sistema penal).

Partindo para o estudo da materialidade lingüística no enunciado (i), constatamos que o exemplo dado pelo locutor da matéria constitui-se em uma estratégia discursiva explícita no discurso da mídia, uma vez que se parte dele para a observação do que acontece no mundo, generalizando uma verdade particular e rarefeita. O exemplo parece colocar em evidência para Veja e seu leitor que o sistema penal não funciona adequadamente. Como modelo, enfim, o exemplo se presta a conduzir e manter a ordem discursiva preponderante. Vejamos como se marca a posição do sujeito que se subleva na materialidade enunciativa.

No início da formulação somos colocados diante de um trabalho de memória, já que, em 1984, instaura-se a Lei de Execução Penal (LEP), que administra as medidas aplicáveis e sua regulamentação em relação aos condenados à prisão. Contudo, o sujeito diz da seguinte forma: “Ele foi premiado por um cardápio de benefícios destinado à ressocialização de presos, elaborado em 1984, como forma de ‘modernizar’ e ‘humanizar’ leis criminais”, em que o ato de “premiar” e os objetos que se associam a ele, “um cardápio de benefícios”, permitem identificar o sujeito da enunciação como desfavorável às iniciativas de ressocialização prisional. A voz que se faz ouvir nesse enunciado, pensando nesses signos evocados, contra-identifica-se com o discurso legal da LEP6, pois, uma vez que esse código normatiza as práticas de gerenciamento das penas a serem aplicadas aos condenados, ele reduz (“drasticamente”) o suplício, que vem incorporar-se novamente à cultura dos julgamentos. Assim, no jogo de sentido entre essas estruturas, o contradiscurso da mídia enfatiza que qualquer medida, que tenha o objetivo de transformar o transgressor em sujeito dócil e ordeiro, não obtém resultado sem a “imposição” de uma força drástica.

Posterior a esse jogo, o sujeito retoma o exemplo, enfatizando que Joabe (seu objeto de exemplificação) voltou ao crime. Interessante é observar o funcionamento da denegação na seguinte passagem: “Não há como saber se Joabe deixaria de praticar o segundo crime se tivesse sido rigorosamente punido pelo primeiro”. Aqui, o sujeito, para não dizer que Joabe realmente deixaria o crime se tivesse sido punido rigorosamente, produz involuntariamente na formulação uma modalização “Não há como saber...” (“é duvidável”, “é improvável”). Nesse excerto, a interdição funciona pela negação, um “ponto de deriva” (Pêcheux, 1990), gerando

6 Em termos jurídicos, tem-se, assim disposto, o “Art. 1º - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL, 1984; grifo nosso).

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nenhuma expectativa quanto ao valor de verdade do enunciado, senão o fato de que poderia ter sido enunciado como uma afirmação (Maingueneau, 1993), e a dúvida interseccionada aí pela negação seja apenas uma resposta a ela. Contudo, a maneira como a prática expositiva é composta permite que seja praticamente inquestionável o efeito de verdade.

Segundo Foucault (2005, p. 9), não se pode nem se deve dizer tudo e em qualquer circunstância. Assim, a produção discursiva é controlada para não fugir de seu próprio controle em afirmações categóricas que não se validam como verdade. O mesmo terá dito Pêcheux (1990), quando discute os dizeres logicamente e não-logicamente estabilizados, entre os quais o discurso midiático, que, como provém do cotidiano e das Ciências Humanas, pertence ao não-logicamente estabilizado e, portanto, sua verdade depende de outros fatores, como instituição, poder, métodos, estratégias.

Prosseguindo a análise, o enunciado subseqüente, por sua vez, insere uma conformidade em relação ao tema da transformação social do sujeito transgressor, por meio do articulador “Mesmo assim”: “Mesmo assim, o histórico acima revela o mecanismo pelo qual o sistema brasileiro acaba premiando o criminoso a pretexto de ressocializá-lo”. Além disso, o exemplo de Joabe, como se lê no recorte, entra no enunciado formando um documento histórico e perpétuo que prova a ineficácia do sistema ressocializador. Em “...o sistema brasileiro acaba premiando o criminoso a pretexto de ressocializá-lo”, o discurso da segurança enviesa o discurso da punição, formando um contradiscurso (Bakhtin, 1988) ao discurso da lei (a LEP, a Constituição7). Assim, o conjunto de representações possíveis diante do impasse entre as formações discursivas que se duelam entre punir e ressocializar é o de que o sistema brasileiro, como um todo, é o produtor das ilegalidades e dos casos mais agudos, como o da transgressão. O fato é que o sujeito, uma vez inserido nesse sistema, passa a funcionar como uma engrenagem deste (Foucault, 1979, p. 134), e a “concubinagem” passa a existir. Exemplo disso são as milícias que se formam nos morros e favelas das cidades.

Passando ao exame da formulação seguinte, ou seja, (ii ), cujo objetivo talvez seria o de propor soluções para o fim da criminalidade e da violência, vejamos, a princípio, os verbos que iniciam cada proposição, a fim de refletir sobre como eles conduzem a minimização da condição humana do encarcerado: “criar”, “restabelecer”, “avaliar”, “aprovar”, “extinguir”, “reduzir”, “limitar”. Percebe-se, à primeira vista, um contraste entre os verbos. Os primeiros reforçam ações positivas, ao passo que os três últimos 7 Na Constituição, diz-se que todos são iguais perante a lei (Art. 5°) e que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (inciso III). (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL, 1988, p. 2).

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fomentam ações negativas. Contudo, o modo como eles estão articulados a outras palavras, formando outros enunciados, modifica-lhes essa evidência. Fala-se em “criar juntas” para julgar alguma coisa; “restabelecer a obrigatoriedade” para examinar e avaliar se o sujeito tem ou não direito à progressão de pena; “aprovar projeto de lei” para aumentar o tempo de pena e impedir progressão; “reduzir drasticamente indultos”, ou seja, eliminar os benefícios; “limitar ao máximo as visitas íntimas” para produzir isolamento e reflexão.

Em (ii ), ao se falar em “criar juntas” para a execução de “exame criminológico”, depreendemos que, assim como dizia Foucault (1979; 2008), as práticas discursivas na sociedade contemporânea ainda passam pela diretriz das concepções modernas e iluministas de “classificação” das penalidades. No auge do humanismo e da modernidade, o sujeito racionalista produziu práticas discursivas associadas ao cientificismo e ao positivismo, contemporâneos aos primeiros Direitos Constitucionais. [8] Sem prolongar essa discussão à exegese desses códigos normativos, queremos dizer que o sujeito que formula aquele enunciado, em (ii ), encontra-se “sujeito” a um saber superior e que necessariamente decide sobre a natureza do delito e a pena a ser aplicada ao transgressor. Trata-se de sua objetivação pelos códigos e pelo saber moderno.

Ora, o infinitivo desses verbos e sua ligação com objetos específicos de controle e de avaliação do sujeito aí delineado como transgressor, permitem asseverar o quanto os regimes de enunciação, ou melhor, o discurso da mídia encontra-se imbuído de desejo e de vontade de poder (Foucault, 2005a), uma vez que se liga ao controle e à disciplina do outro. Logo, essa série de restrições e medidas científicas acaba se tornando o próprio simulacro da violência. O ser humano submetido ao encarceramento não é mais humano?

Diante de nossas considerações analíticas, como podemos compreender o discurso da mídia, pensando, nesse momento, sobre o caso Veja, com a exposição de exemplos e medidas alternativas para a solução do crime? Qual o limite preciso de sua prática, ensinar os meios de combate ao crime organizado ou enfatizar-se qualitativamente, meta-enunciando sobre 8 A transformação dos sistemas penais europeus, segundo Foucault (2003, p. 80-102), baseando-se em Beccaria, Bentham e Brissot, deu-se, de um lado, pela reelaboração teórica da lei penal, o que ocasionou 1) a cisão da lei com a moral e a religião; 2) distinguindo-se das leis natural, religiosa e moral, a lei penal deveria definir aquilo que era nocivo à sociedade; 3) assim, da dedução dos dois primeiros itens, a lei deve dar uma definição clara (objetiva) do crime. Essa prática naturalística associa-se com as classificações feitas nas ciências naturais do século XVIII; na classificação das patologias feita pelas ciências médicas do século XVIII e XIX; e na gramática, com a consolidação das classes de palavras a partir da Gramática de Port-Royal, do século XVIII (FOUCAULT, 2008).

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seu efeito na sociedade brasileira, servindo-se de uma publicidade explícita? Tais questões ficam para a reflexão. Se o que se propõe a mídia é trazer ao leitor informação, parece que essa prática não fica resolvida em relação às outras táticas e estratégias de auto-valoração, publicidade e saber de especialidades que constituem “a cena da enunciação”. O CORPO TRANSGRESSOR RESISTE ÀS BALAS PERDIDAS E AOS TIROS CERTEIROS?

Sem a pretensão de esgotar a análise dos dados selecionados ou de traçar conclusões definitivas, é possível refletir no interior das fronteiras da temática que nos dispusemos a investigar. Assim, não se pretendeu descobrir exclusivamente no fundo dos enunciados o seu sentido e seu deslocamento, mas perceber que a ligação que os torna vizinhos está, muitas vezes, relacionada a saberes que tornam possíveis e não incompatíveis tais relações. As representações que surgem, a partir dessas relações de complementaridade discursiva, permitem a afirmação de que a identidade construída sobre o grupo organizado é regular, reforçando, por meio da língua e dos discursos evocados pela memória discursiva e pelo imaginário coletivo e dos recursos expressivos (como a metáfora, a perífrase, a modalização, os tempos verbais), atributos sociais que geram, circulam e constituem os discursos, que se atualizam diante do acontecimento do crime na sociedade brasileira.

Desse modo, acreditamos tecer-se no discurso da mídia uma verdadeira espécie de pedagogia do crime. Temas e elementos figurantes do discurso midiático, tais como a associação das mortes de equipes de segurança à periculosidade e ao baixo rendimento financeiro do trabalho pela segurança, a relação da formação de uma organização criminosa com a flexibilidade beneficiária do discurso jurídico. Mais do que ensinar, mais que instruir, o discurso da mídia, apesar de constitutivamente heterogêneo, polifônico, irônico, é rarefeito e constrói-se à sombra do discurso universalista dos direitos humanos. A ausência, ou, melhor dizendo, o rastro deixado pelos silenciamentos murmura, no discurso midiático, como a imposição de uma ordem discursiva e prática que deve e precisa ser mantida: a ordem social do bem estar, da inexistência do caos, de que estamos, todos, (numa homogeneidade social) a salvo do perigo e do terror.

Certamente, a memória constituída sobre o terror tem no 11 de setembro (de 2001) um ponto de articulação e atualização. A imagem da queda das torres gêmeas americanas povoa ainda o imaginário e a memória discursiva do cidadão telespectador, e ela é ancorada agora por mais um acontecimento, mais uma ruptura singular que “revira” e “remexe” o arquivo de discursos: o acontecimento do PCC nas páginas da revista. Essa ligação, por sua razão “in-voluntária” de ser, contudo, não nos faz pensar que nossas torres, “a inteligência da segurança pública brasileira”, tenham

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sido destruídas, não a balas perdidas mas a tiros certeiros? O que se faz necessário salientar, no entanto, se refere ao fato de que tomar o acontecimento americano, como forma comparativa, produz efeitos que não são só históricos, mas também espetaculares. A exaltação do espetáculo é o que fundamenta as relações exteriores da cultura da mídia com outras instituições (mercado, política, prisão, escola) e que a permite sobreviver entre elas.

Das reflexões autorizadas pela análise, pode-se extrair com pertinência uma conclusão ao menos “provisória”: quando em jogo a hegemonia de determinados grupos ou projetos políticos, é evidente a construção de representações por parte do veículo. Portanto, a valorização de certas temáticas vem comprovar que a cultura da mídia produz representações que tentam induzir anuência a certas posições políticas, levando os membros da sociedade a ver em certas ideologias “o modo como as coisas são”. E entre as grandes problematizações a serem feitas sobre os mass media, está a relação entre sua natureza pública e a exigência de que seja um lugar de circulação de diferentes saberes sobre os fatos e o mundo. Assim, somente a pluralidade de perspectivas de enunciação pode configurar o midiático como um campo plural e representativo da diversidade social.

Apesar de a mídia, de forma positiva — como ela própria deve acreditar —, representar o PCC de diferentes formas em diferentes veículos de notícia, ela traz na materialidade a ambigüidade da diferença, que consiste em reforçar valores e idéias que resgatam o poder da disciplina e da lei que constituem o conceito de nação moderna (Castro-Gómez, 2005). Acreditamos que, por se tratar de um discurso de ampla circulação, o discurso da mídia é o intermediário do Estado e, por possuir esse espaço, adquire a legitimidade necessária para intervir na realidade social brasileira, polarizando seu poder justamente sobre aqueles que pouco são ouvidos, senão calados por razão de uma imaginação pré-concebida da cidadania.

Discutimos o fato de que, embora a mídia se apresente como instância de denúncia do poder, é inegável que o discurso dela originado exerce um poder de fato sobre a opinião pública. Esse poder advém da possibilidade que a mídia tem de selecionar efeitos discursivos, escolher conteúdos e imagens a serem divulgados, buscando influenciar o público-alvo, além da posição de autoridade que assume ao poder falar e do poder de dizer, que a maioria dos receptores não possui. Assim, o tratamento dado à temática da transgressão, é feito a partir de uma construção selecionada de imagens e de discursos, que exibem algumas facetas da realidade social, construindo a opinião por meio da fragmentação do real. Na perspectiva de conjugar a espessura histórica, o funcionamento lingüístico e as imagens veiculadas pelo discurso midiático, passamos pelo duplo projeto arqueológico e genealógico de Foucault, circunscrito ao exame das condições de produção do discurso das notícias, assim como à investigação dos princípios de

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regularidade lingüística dos enunciados. Mostramos que a mídia constrói todo um universo discursivo em torno da crise da segurança pública e da força do crime organizado no Brasil.

Nesse universo, de um lado estão as imagens que interpelam o leitor pelo sensível, evocando o exílio da segurança de nossos lares, e, de outro, estão os discursos impregnados de uma ideologia presente em vozes autorizadas pelo poder, que se fizeram ouvir em determinados momentos da história deste país. Verificamos que esses discursos chegaram até a contemporaneidade por um trabalho de memória, de interdiscurso, resultados de um complexo de ideologias presentes em conjuntos de práticas discursivas diversas. Os fatores históricos apontados foram determinantes na construção de certas enunciações em torno das identidades transgressoras, editadas pelos mass media na contemporaneidade. Como constatamos, a relação entre os discursos sobre o crime veiculados na mídia, e a construção dos sujeitos sociais são observados no interior das fronteiras de enunciações que perpassam todo o campo social. O lugar da produção, longe de ser pacífico, é um campo fecundo, ativo, de lutas pelo poder, sucessivas disputas e batalhas discursivas pelo controle e domínio dos discursos. Essas práticas são regulamentadas, controladas, submetidas a uma ordem do discurso, que organiza e interdita o que pode e deve ser dito em determinado momento histórico.

Por fim, a partir dos resultados deste trabalho, é possível homologar também que uma ponderação é mais do que necessária em termos de se estabelecer a segurança, visto que “o melhor pode ser inimigo do bom, mas certamente o ‘perfeito’ é um inimigo mortal dos dois” (Bauman, 2003, p.11). E, além disso, escusa-se o fato de que nossa análise poderia levar ao princípio de tudo, com a história da homologação dos Direitos Universais, com a história do surgimento das prisões e/ou da mídia; contudo, o que nos interessou, como pontua, sobretudo, o historiador do presente, foi flagrar o que acontece no “presente” (Quem garante, com toda a certeza, que o crime não possa vir a ser o próximo assunto do “momento” nas páginas das revistas?), pois o que há são coisas repetidamente ditas que não são inteiramente novidades. Pôr-se diante das enunciações do presente é o mesmo que se nos colocássemos à escuta de todas essas coisas ditas costumeiramente e as quais nos são intrínsecas: a descontínua e histórica forma do discurso. O que nos transporta e nos reporta ao enunciado-questão que abre estas considerações finais...

Referências Bibliográficas

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HERANÇAS CULTURAIS: resenha do livro de Silviano Santiago

Rony Márcio Cardoso Ferreira1 & Marcos Antônio Bessa-Oliveira2

A memória domina mais a linguagem — isto é, o extravasamento dos sentimentos em palavras — do que um de nós gosta de acreditar [...]. A memória é mistério e trafega pela linguagem à semelhança do barco a vela pelo mar, impulsionado pelo vento previsível e imprevisível do amanhecer.

Santiago. Heranças, p. 390.

Heranças, último romance do crítico e escritor mineiro Silviano Santiago, trata-se de uma autobiografia do autor/narrador/protagonista Walter, nome este revelado somente nas últimas páginas do romance. “Relato escandalosamente pessoal”, os 33 capítulos são, nada mais nada menos, “cópia ipsis litteris” dos antigos episódios da vida de um canalha rico mineiro, que se mudara para o Rio de Janeiro e resolvera arregaçar “as mangas da velhice” para escrever sua história.

O relato é regado a copos de whisky e concebido por lembranças acionadas pela memória de Walter. Por isso, os fatos são apresentados como flashs cinematográficos, fazendo com que a narrativa se (des)teça entre o ato da escrita — o escritório em Ipanema — e os acontecimentos da vida pregressa do narrador.

Assim, sempre que algum fato é antecipado, caráter que concede à narrativa um fio condutor não-linear, o autor/narrador retoma fatos intermediários antecedentes. Em outras palavras, os fatos são na maioria das 1 Rony Márcio Cardoso Ferreira é graduando do 4º ano do curso de Letras da UFMS. Bolsista de Iniciação Científica – PIBC/CNPq. 2 Marcos Antônio Bessa-Oliveira é graduando do 4º ano do curso de Artes Visuais da UFMS. Bolsista de Iniciação Científica – PIBC/CNPq.

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vezes anunciados antes ou depois da ação fatídica transcrita na narrativa, pois

[…] em relatos como este, apressar significa perder tempo. Depois de a costura ser dada por encerrada, há que retomar o fio da meada, e bordar mais lentamente o tecido. Enfrento o touro dos fatos com as firulas de bom toureiro.3

Ao tecer o “tapete da memória” em que se constitui o livro, Walter faz com que aquele seja formado por fios que entrelaçam passado, presente e futuro. Ou seja, a memória é acionada pelo auto/narrador “velho casmurro e solitário” no presente narrativo do registro do relato e, simultaneamente, apresentada ao leitor em um tempo anterior ao da escrita pelas ações do protagonista “adolescente, inexperiente e fogoso”.

Sinônimo de “tribunal da consciência”, o relato confessional tem ainda a presença de outra memória além da de Walter: a do computador, que armazena o relato já digitado. No escritório do autor/narrador/protagonista haviam dois computadores moderníssimos: o primeiro a serviço profissional de sua empresa de mercado de capitais, o segundo reservado para a digitação do relato qeu resolve dar o nome de Heranças.

No tocante a essa memória do hardware, sobressai-se uma questão de suma importância: a memória do computador funciona como motor agente que aciona a memória de Walter. Isso é comprovável pois todas as manhãs os dedos do autor/narrador encontram-se indispostos para a continuação da empreitada em que se submetera. Quando ligava o computador e este, por meio da tela “azul falso da Microsoft” que dava acesso ao programa de texto, concedia a Walter o contato com relato já armazenado, as mãos e os dedos revigoravam-se recebendo novo ânimo para a leitura dos últimos parágrafos, como se lê a seguir:

Enquanto releio os dez últimos parágrafos do arquivo (nunca me aventuro a um número maior) braços e mãos perdem a modorra matutina. Elas se abrem ao mesmo tempo, e se alongam em dez dedos ágeis de pianista, que se dobram para se apoiarem no teclado, Apresentada pelos painkillers, liberta da dor que aprisiona, as fibras nervosas o desejo de dar continuidade à execução da dolente valsa das ruas, avenidas e praças belo-horizontinas.4

Mesmo sendo escrito às batucadas no teclado de seu computador, o autor/narrador concede a seu relato um ar de manuscrito ou hieróglifo quando traz à tona, em um tom confessional, o passado remoto de sua vida. Para dar crédito aos fatos transcritos, o mesmo diz que não suprimiria nada sobre os acontecimentos vividos e que se isso ocorresse deixaria registrado

3 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 306. 4 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 361.

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“neste exato lugar: algumas passagens foram censuradas pelo autor”. Contudo, logo em seguida, o mesmo brinca com seu “leitor infatigável”, afirmando que por ter deixado tal frase transcrita no registro ele teria sim refugado algumas passagens, pois com se lê:

Caso deixe a frase acima no manuscrito terei legado uma pista e a seguinte certeza: andei censurando minhas palavras. Troco em miúdos a pista e a certeza. Não aceito por escrito a vida tal como a vivi.5

O relato de Walter pode ser ainda tomado como um contraponto das memórias narradas por um dos mais conhecidos narradores da literatura brasileira: Brás Cubas. Enquanto este se propõe a narrar os fatos vividos depois que morre, aquele faz o inverso, põe-se a narrar os fatos de sua vida pregressa em Belo Horizonte, de seu presente Rio de Janeiro e do porvir de sua vida. O primeiro um “defunto autor”, o segundo um “canalha autor” e bem vivo por sinal. Muita das vezes a diferença é o que os aproxima.

Outra questão que nos permite estabelecer relação entre a narrativa de Silviano e a de Machado é o fato de ambas apresentarem um narrador irônico que trava contínuos diálogos com o seu leitor. Fato este que fora anunciado por Silviano em entrevista durante o período no qual escrevia o livro Heranças.

Estou escrevendo um romance de umas trezentas e poucas páginas, Heranças. Algo nele aponta para o romance clássico do século 19, tipo Gustave Flaubert, mas muita coisa nele tem dívida a pagar com os filmes de Almodóvar. Se o narrador-personagem funcionar, será mais um exemplo do bom filho-da-puta da elite brasileira. Em tempos dos clichês do documentário, uma vez mais nado contra-a-corrente. É um romance que requer a ironia do leitor e nenhuma compaixão. Se julgarem que minha nova prosa tem algo a ver com a ironia machadiana, ela ficará toda prosa.6

Depois das malogradas tentativas de Walter entrar em um curso superior, o mesmo decide ir trabalhar no comércio da família, os Armarinhos São José, e logo percebe que sua irmã Filinha, estava a lhe “roubar o lugar de filho macho” da família. Com a morte do pai, Seu Nestor, Walter acreditou que tudo mudaria por ser o único homem da família. Ledo engano, seu nome não fora nem mencionado no testamento deixado pelo pai.

Tempos depois Filinha sofre um acidente automobilístico enquanto viajava para Ouro Preto. Com a morte da irmã, a herança de Seu Nestor não

5 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 110. 6 Silviano Santiago em entrevista exclusiva concedida a Marcelo Barbosa e Kadu Machado In Algo a Dizer. Disponível em: www.algoadizer.com.br – acesso em: 30 de agosto de 2008.

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teria como fazer outro percurso: fora parar nas mãos de Walter. A partir do anúncio de tal morte, o autor/narrador cria um suspense de romance policial, à guisa de Agatha Cristie, a cerca dos motivos do referido acidente, que será revelado somente no último capítulo do livro.

Com as mudanças pelas quais passou a linha de confecções na capital mineira, Walter decide se desfazer da loja para trabalhar no setor imobiliário, da construção civil e, posteriormente, do mercado de capitais. Acompanhando todas essas mutações na vida profissional, vão sendo apresentadas as inúmeras amantes de Walter que pede ao leitor que

[...] não julguem monótona a listagem de amantes e garotas de programa. Se por acaso se assemelha ao catálogo de telefones feminino de sua cidade, a culpa não é minha.7

Conforme o autor/narrador vai contando e transcrevendo seus casos com algumas amantes (Nancy, Denise, Marta, Graziema, Carmem e outras que não menciona nomes) o mesmo afirma que o que ocorre durante a escrita do relato é uma atualização e concretização da “memória amorosa”, “nascida do desejo represado”. Concomitantemente, instaura-se a certeza de que entre amantes, mulheres, abortos e passeios pelos bordéis do Barro Preto, Walter tinha “evitado filhos como a erva daninha”.

Junto a esses fatos promíscuos da vida de Walter evidenciam-se os perfis provisórios que a personalidade do autor/narrador/protagonista assume em particulares situações da narrativa. É como se a figura de Walter e a narrativa fossem se compondo dos paradoxos lançados pelo autor/narrador, pois “este relato parece galinha. De paradoxo em paradoxo, ela enche o papo”.8

Durante a escrita do livro, Walter passa o tempo todo no seu apartamento em Ipanema e como um verdadeiro voyeux, que vê as escondidas, tece reflexões e comentários dos fatos rotineiros da cidade do Rio de Janeiro apreciados através da janela. Desse modo, junto ao enredo do livro interpõe-se também um retrato da antiga capital brasileira, proporcionado pelo contato indireto de Walter com seu mundo presente.

Nas últimas páginas do relato, Walter afirma que seu passado já fora todo transcrito e como poço da memória esvaziara-se; a alternativa era escancarar ao leitor o drama de seu presente no Rio de Janeiro, como se lê:

Não há nada a ser extraído das águas passadas. Esvaziou-se o poço da memória. As águas idas e vividas foram plenamente revividas. Ou melhor, no decorrer dos últimos meses, a água empoçada metamorfoseou-se em frases [...]. Um horror de

7 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 333. 8 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 357.

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capítulos a assustar o menos desavisado dos cristãos. São a cópia perfeita e aperfeiçoada da água que veio jorrando do poço da memória [...]. Exaurida a água do poço que por meses desalterou a sede da imaginação, ofertando-lhe mais e mais frases, meus pensamentos se voltam para a atual mobilidade do corpo e da mente no apartamento da avenida Vieira Souto.9

Como já mencionado, Walter chega ao fim da narrativa sem um herdeiro eleito. Isso o leva à procura de um ex-namorado de sua falecida irmã: Vitorino. Quando aquele encontra este, é apresentado ao leitor e a Vitorino, o real motivo da viagem que Filinha fez para Ouro Preto quando morreu. Tal motivo refere-se ao fato de que a mesma estava grávida e tinha ido contar a notícia para o namorado. Assim, as possíveis teses apresentadas pelo autor/narrador como motivos para a morte da irmã são desbaratadas na antepenúltima página do romance, esclarecendo a trama que prende o leitor.

Apesar de não ter se reproduzido em outro ser humano, Walter acreditava que continuaria vivíssimo dentro dos vermes que se “nutririam dele até a eternidade”. Isso nos leva crer que ainda morto Walter continuaria vivo, imortalizando-se em outro ser não humano. O que o narrador /autor faz é conclamar junto ao leitor a derrocada “da ditadura da morte humana”, pois para ele

Enquanto houver vida no planeta Terra, lá estará — sob a forma monocelular — seu mais orgulhoso e prepotente habitante, o ser humano. Eu, por exemplo, descendente dos Ferreira Ramalho, ou você.10

Relato escrito, missão cumprida. O “escriba de uma vida estava pronto para ser encaixotado em madeira, jogado em um buraco e ser coberto de terra”. Walter não se contentara em escrever seu passado e presente até a beira do túmulo, mas sim ir além, pois “tenho certeza. Absoluta. Não há nada mais fervescente de vida do que os subterrâneos dum cemitério”.11

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Marcelo MACHADO, Kadu. Entrevista exclusiva com Silviano Santiago In Algo a Dizer. Disponível em: www.algoadizer.com.br – acesso em: 30 de agosto de 2008.

CUNHA, Alécio. Silviano Santiago retorna ao romance com Heranças In Plural - Hojeemdia.com.br. Disponível em: http://www.hojeemdia.com.br/v2/index.php?sessao=12&ver=1&noticia=1030 – acesso em: 30 de agosto de 2008.

9 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 361-364. 10 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 299. 11 SANTIAGO. Heranças. 2008, p. 397.

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ESTANTE. Heranças In Jornal O povo – vida & arte. Disponível em: http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/815778.html – acesso em: 30 de agosto de 2008.

FILHO, Antonio Gonçalves. Santiago e seu rei Lear Tapuia In Estadão de hoje – caderno 2. Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080817/not_imp225396,0.php – acesso em: 30 de agosto de 2008.

MOTTA, Leda Tenório da. O pós-moderno de alma mineira In Estadão de hoje – caderno 2. Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080817/not_imp225388,0.php – acesso em: 30 de agosto de 2008.

SANTIAGO, Silviano. Heranças. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 2008.

SOUZA, Eneida Maria de. Análise do documentário Santiago In: Fórum virtual de literatura e teatro – Em cena. Disponível em: http://www.pacc.ufrj.br/literatura/emcena/analise_doc_santiago.php – acesso em: 30 de agosto de 2008.

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SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO

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Informamos que o n. 2 dos Cadernos de Estudos Culturais, a sair no segundo semestre de 2009, cuja temática é Literatura Comparada Hoje, já se encontra em fase de preparação. Para tanto, estudiosos nacionais e internacionais de literatura comparada foram convidados para contribuírem com a temática em pauta. Literatura Comparada Hoje procura sinalizar, primeiro, o lugar da literatura comparada no mundo, enquanto disciplina indisciplinada, por ter privilegiado uma perspectiva de natureza interdisciplinar; e, segundo, refletir acerca do lugar dos Estudos Comparados depois do boom dos Estudos Culturais.

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