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Nota: Este livro foi escaneado e corrigido por Norman Davis Jr., em março/setembro de 2005, para o uso exclusivo de pessoas com alguma deficiencia visual e sua distribuição ao público em geral, bem como para fins comerciais é extritamente proibida pela lei brasileira de direitos autorais. Notas do digitalizador: As notas do livro foram colocadas entre colchetes, para não se confundirem com o texto. Os números estão nos cabeçalhos da página, o que quer dizer que a página corresponde ao número acima dela. Os Pensadores ÉMILE DURKHEIM DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO O SUICÍDIO AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA Seleção de textos de José Arthur Giannotti Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Luz Cary, Margarida Garrido Esteves e J. Vasconcelos Esteves 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP D963d 2.ed. Durkheim, Émile, 1858-1917. Da divisão do trabalho social ; As regras do método sociológico ; O suicídio ; As formas elementares da vida religiosa / Émile Durkheim; seleção de textos de José Arthur Giannotti ; tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura ... [et ai.]. — 2. ed. — São Paulo : Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores) Inclui vida e obra de Durkheim. Bibliografia. 1. Divisão do trabalho 2. Durkheim, Émile, 1858-1917 3. Religião primitiva 4. Sociologia 5. Suicídio I. Giannotti, José Arthur, 1930-II. Título: Da divisão do trabalho social. in. Título: As regras do método sociológico. IV. Título: O suicídio. V. Título: As formas elementares da vida religiosa. VI. Série. 17. e 18.CDD-301 83-0398 18. 17. e 18. 17. e 18. 17. e 18. 17. e 18. -301.045 -301.092 -301.55 -301.58 -364.1522 índices para catálogo sistemático: 1. Divisão do trabalho : Sociologia 301.55 (17. e 18.) 2. Durkheim, Émile : Teorias : Sociologia 301.045 (18.) 3. Religiões primitivas : Sociologia 301.58 (17. e 18.) 4. Sociologia 301 (17. e 18.) 5. Sociólogos : Biografia e obra 301.092 (17. e 18.) 6. Suicídio : Criminologia 364.1522 (17. e 18.) ÉMILE DURKHEIM DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO O SUICÍDIO AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA Seleção de textos de José Arthur Giannotti Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Luz Cary, Margarida Garrido Esteves e J. Vasconcelos Esteves 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA Títulos originais: De la Division du Travail Social Lef Regles de la Melhode Sociologique Lê Suicide Lês Formes Elementaires de la Vie Religieuse 235" Copyright desta edição, Abnl S A Cultural,( São Paulo, 1978 — 2 ' edição 1983 Traduções publicadas sob licença da Editorial Presença Ltda Lisboa (As Regras do Método Sociológico O Suicídio) Direitos exclusivos sobre as demais traduções deste volume Abril S A Cultural , São Paulo Direitos exclusivos sobre "DURKHEIM — Vida e Obra", Abril S A Cultural São Paulo Capa do início do texto com foto de Durkheim DURKHEIM VIDA E OBRA

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Nota: Este livro foi escaneado e corrigido por Norman Davis Jr., em março/setembro de 2005, para o uso exclusivo de pessoas com alguma deficiencia visual e suadistribuição ao público em geral, bem como para fins comerciais é extritamente proibida pela lei brasileira de direitos autorais.

Notas do digitalizador:As notas do livro foram colocadas entre colchetes, para não se confundirem com o texto.Os números estão nos cabeçalhos da página, o que quer dizer que a página corresponde ao número acima dela.

Os PensadoresÉMILE DURKHEIM

DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIALAS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICOO SUICÍDIOAS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSASeleção de textos de José Arthur GiannottiTradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Luz Cary,Margarida Garrido Esteves e J. Vasconcelos Esteves1983 EDITOR: VICTOR CIVITA

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SPD963d2.ed.Durkheim, Émile, 1858-1917.Da divisão do trabalho social ; As regras do método sociológico ; O suicídio ; As formas elementares da vida religiosa / Émile Durkheim; seleção de textos de JoséArthur Giannotti ; tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura ... [et ai.]. — 2. ed. — São Paulo : Abril Cultural, 1983.(Os Pensadores)Inclui vida e obra de Durkheim.Bibliografia.1. Divisão do trabalho 2. Durkheim, Émile, 1858-1917 3. Religião primitiva 4. Sociologia 5. Suicídio I. Giannotti, José Arthur, 1930-II. Título: Da divisão do trabalhosocial. in. Título: As regras do método sociológico. IV. Título: O suicídio. V. Título: As formas elementares da vida religiosa. VI. Série.17. e 18.CDD-30183-039818.17. e 18.17. e 18.17. e 18.17. e 18.-301.045-301.092-301.55-301.58-364.1522índices para catálogo sistemático:1. Divisão do trabalho : Sociologia 301.55 (17. e 18.)2. Durkheim, Émile : Teorias : Sociologia 301.045 (18.)3. Religiões primitivas : Sociologia 301.58 (17. e 18.)4. Sociologia 301 (17. e 18.)5. Sociólogos : Biografia e obra 301.092 (17. e 18.)6. Suicídio : Criminologia 364.1522 (17. e 18.)

ÉMILE DURKHEIM

DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIALAS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICOO SUICÍDIOAS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSASeleção de textos de José Arthur GiannottiTradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Luz Cary,Margarida Garrido Esteves e J. Vasconcelos Esteves1983 EDITOR: VICTOR CIVITA

Títulos originais:De la Division du Travail SocialLef Regles de la Melhode SociologiqueLê Suicide Lês Formes Elementaires de la Vie Religieuse

235"Copyright desta edição, Abnl S A Cultural,( São Paulo, 1978 — 2 ' edição 1983Traduções publicadas sob licença da Editorial Presença Ltda Lisboa (As Regras do Método Sociológico O Suicídio)Direitos exclusivos sobre as demais traduções deste volume Abril S A Cultural , São PauloDireitos exclusivos sobre "DURKHEIM — Vida e Obra", Abril S A Cultural São Paulo

Capa do início do texto com foto de Durkheim

DURKHEIMVIDA E OBRA

Page 2: 116161102 Livro Os Pensadores Emile Durkheim

Consultoria José Arthur Giannotti

VII Émile Durkheim nasceu no seio de uma família de rabinos da Alsácia, na cidade de Épinal, a 15 de abril de 1858. Seus primeiros estudos foram feitos no colégiode Épinal e continuados no Liceu Louis-Le-Grand e na Escola Normal Superior, ambos em Paris. Posteriormente, expressaria desagrado pelo ensino demasiado literárioe pouco científico recebido nessas instituições. Diplomado em 1882, Durkheim lecionou filosofia nos liceus de Sens, Saint-Quentin e Troyes, ao mesmo tempo que seaprofundava no estudo das obras de Herbert Spencer (1820-1903) e Alfred Espinas (1844-1922). Sob a influência de Spencer, Durkheim adquiriu predileção marcada pormodelos biológicos, sempre presentes em seus primeiros trabalhos. O contato pessoal e com a obra de Espinas explica a gênese de uma das idéias centrais de seu pensamento posterior: a de consciência coletiva. A influênciade Espinas explica também sua teoria de que as leis reguladoras da vida social são irredutíveis às de outros domínios, sobretudo às da psicologia. Importância ainda mais decisiva do que o conhecimento de Spencer e Espinas foi "o contato de Durkheim com o laboratório de psicologia experimental fundadopor Wilhelm Wundt (1832-1920), em Leipzig, Alemanha. com Wundt, Durkheim estudou antropologia e psicologia dos povos e resolveu dedicar-se às ciências sociais,concebendo o projeto de transformar a sociologia em ciência autônoma. Em 1887, quando contava vinte e nove anos de idade, Durkheim foi nomeado "encarregado de cursos" na Universidade de Bordéus; pela primeira vez na históriado ensino superior francês, criava-se uma cátedra exclusivamente dedicada à sociologia. A partir do ingresso na Universidade de Bordéus, toda a carreira de Durkheim foi dedicada ao desenvolvimento da sociologia, escrevendo algumas das obrasfundamentais da história dessa disciplina: Elementos de Sociologia (1889), A Divisão do Trabalho Social (1893), As Regras do Método Sociológico (1895), O Suicídio(1897), As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), Educação e Sociologia (1922), Sociologia e Filosofia (1924), A Educação Moral (1925), O Socialismo (1928).Ao lado da redação dessas obras, Durkheim trabalhou pela sociologia no magistério universitário em Paris, a partir de 1902, nas cadeiras

VIIIde educação e de sociologia. Em 1898, quando ainda estava em Bordéus, fundou a revista L'Année Sociologique, na qual foi publicada a maior parte dos trabalhosiniciais da Escola Sociológica Francesa. Ao irromper o conflito europeu de 1914, Durkheim participou ativamente da causa francesa, escrevendo panfletos veementemente nacionalistas. Quando chegavaao fim a Primeira Guerra Mundial, Durkheim faleceu em Paris, no dia 15 de novembro de 1917.

A sociologia como ciência

Pretendendo estabelecer a sociologia como disciplina rigorosamente objetiva, Durkheim opôs-se a todas as orientações que transformavam a investigação socialnuma dedução de fatos particulares a partir de leis supostamente universais como a lei dos três estados de Auguste Comte. Para Durkheim, uma lei desse tipo podeter alguma utilidade para a filosofia da história, mas não tem serventia maior para o estudo dos fatos sociais concretos. A sociologia deveria utilizar uma metodologiacientífica, investigando leis, não generalidades abstratas e sim expressões precisas de relações descobertas entre os diversos grupos sociais. Contudo, seu objetivismonão transforma o social em fato puramente físico. Partindo da exterioridade dos fatos sociais, Durkheim desemboca na compreensão da sociedade como um conjunto deideais, constantemente alimentados pelos homens que fazem parte dela. Dentro desse pressuposto e projeto metodológicos, Durkheim foi levado a investigar a possibilidade de abordar a sociedade como um fato sui generis e, portanto,irredutível a outros. Como resultado, chegou à conceituação de "consciência coletiva", entendida como o sistema das representações coletivas em determinada sociedade.Representações coletivas seriam, por exemplo, a linguagem, ou um grupo de práticas de trabalho, encontradas em certa sociedade. Tais representações coletivasconstituiriam fatos de natureza específica e diferentes dos fenômenos psicológicos individuais. Para Durkheim, as representações coletivas desdobram-se nos aspectosintelectual e emocional e é possível determiná-las de maneira direta e não apenas através dos pensamentos e emoções individuais. O método para conhecimento diretodas representações coletivas utilizaria o exame das expressões permanentes dessas representações, como, por exemplo, os sistemas jurídicos e as obras de arte. Outroprocedimento seria a pesquisa estatística, como o próprio Durkheim realizou, estudando o problema do suicídio, não como fato psicológico individual, mas como "fatosocial". As expectativas de Durkheim em relação à sociologia como disciplina científica eram muito grandes. Acreditava que os valores são em geral determinados pelanatureza particular das sociedades e que, por essa razão, seria possível formular uma ética com base no estudo dessas sociedades. Assim, a sociologia poderia substituira moral, criticando os valores estabelecidos e esforçando-se por afastar tendências novas, possivelmente prejudiciais.

IX Dentro de suas preocupações nesse sentido, Durkheim desenvolveu teorias educacionais, importantes para a história da pedagogia. Para ele, educar um indivíduoé o meio de prepará-lo ou forçá-lo a ser membro de um ou vários grupos sociais. Da mesma forma que cada sociedade tem a moral mais bem adaptada à sua natureza,possui também as instituições pedagógicas supostamente mais convenientes. Elemento especialmente importante dentro das teorias de Durkheim é o conceito de solidariedade social, que o conduziu à distinção dos principais tipos degrupos sociais. A primeira forma de solidariedade seria a solidariedade mecânica, que ocorre nas sociedades onde os indivíduos diferem pouco entre si, partilhandodos mesmos valores e sentimentos. Essas sociedades têm coesão porque seus elementos individuais são similares. A horda e o clã são desse tipo primitivo de sociedade.A segunda forma é a solidariedade orgânica, presente nas sociedades mais complexas que resultam da crescente divisão de trabalho, exigida pelas tarefas econômicas menos simples.

Normalidade e patologia sociais

O estudo das sociedades mais complexas, por sua vez, levou Durkheim às idéias de normalidade e de patologia sociais. A normalidade social é concebida por Durkheim como relativa a determinado tipo de grupos sociais, num certo momento de seu desenvolvimento. Em fases de transiçãode uma sociedade é muito difícil definir o que seja o normal. Ao estudar as formas de patologia social, Durkheim introduziu o conceito de anomia, ou seja, ausênciaou desintegração das normas sociais. A anomia seria característica das sociedades orgânicas desenvolvidas, e seu aparecimento ocorreria quando diversas funções sociaisse tornassem muito tênues ou intermitentes. Como as sociedades mais complexas são baseadas na diferenciação, é necessário que as tarefas individuais correspondama seus desejos e aptidões; como isso nem sempre acontece, os valores ficam enfraquecidos e a sociedade é ameaçada pela desintegração. Preocupado com as conseqüênciaspolíticas e éticas dessa desintegração, resultante da divisão do trabalho social, Durkheim propõe como remédio as formas cooperativistas de produção econômica. Outra contribuição relevante de Durkheim é representada por seus estudos sobre as formas elementares da vida religiosa. Baseando-se na análise do totemismo,Durkheim procura trazer à tona a essência da religião. Esse raciocínio, que consiste em partir de fenômenos elementares para ascender aos mais complexos, é típicode Durkheim. O estudo das religiões tem papel especialmente importante no sistema de Durkheim porque, nele, reaparece o problema do consenso. A sociedade ocidental moderna,racionalista e individualista, necessitaria de crenças comuns que — segundo o autor — não podem mais ser fornecidas pela religião tradicional. Durkheim afirmou tambémque todas as religiões são apenas uma transposição da sociedade para o plano simbólico: através do totem, por exemplo, os homens cultuam apenas a realidade coletivatransfigurada.

Cronologia

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1858 — Nasce Émile Durkheim, a 15 de abril, em Épinal.1859 — Nascimento de Henri Bergson. Publicação de A Origem das Espécies, de Darwin.1870 — A França declara guerra à Prússia.1871 — Sob o assédio das tropas prussianas, cai a Comuna de Paris. O armistício é assinado a 28 de janeiro.1882 — Durkheim é nomeado professor em Sens e em Saint-Quentm. Nasce James Joyce.1883 — Morre, em Londres, Karl Marx. Nascimento de Keynes.1887 — O físico alemão Heinrich Hertz descobre as ondas eletromagnéticas ou ondas hertzianas.1891 — Morte de Rimbaud. Leão XIII promulga a encíclica Rerum Novarum.1895 — Durkheim publica As Regras do Método Sociológico. Em Londres, é editado o terceiro volume de O Capital, de Marx. Morre Engels.1897 — É publicado O Suicídio, de Durkheim.1901 — Surge Os Buddenbrooks — Decadência de uma Família, a principal obra de Thomas Mann.1907 — Bergson publica a Evolução Criadora.1912 — Durkheim publica As Formas Elementares da Vida Religiosa.1913 — Husserl publica Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica,1914 — Deflagra-se a Primeira Guerra Mundial.1917 — A 15 de novembro, Durkheim morre em Paris.

Bibliografia

GIANNOTTI, J. A.: A Sociedade como Técnica da Razão: um Ensaio sobre Durkheim, m Estudos l, Edições C.E.B.R.A.P.ARON R.: Lês Étapes de la Pensée Sociologique, Éditions Gallimard, Paris,1967.AIMARD, G.: Durkheim et la Science Économique. L'Apport de la Sociologie à la Théorie Économique Moderne, Presses Universitaires de France, Paris,1962.ALPERT, H.: Émile Durkheim and his Sociology, Columbia University Press, Nova York, 1962.BOUCLÉ, C.: Bilan de la Sociologie franca/se Contemporaine, Alcan, Paris,1938.DAVY G.: Soc/o/ogues d'Hier et d'Aujourd'hui, Presses Universitaires de France, 1950.DUVIGNAUD J.: Durkheim: sã Vie, son Oeuvre, Presses Universitaires de France, Paris, 1969.GURVITCH, G.: La Vocation Actuelle de la Sociologie, Presses Universitaires de France, Paris, tomo l, 1957, tomo II, 1963.LACOMBE, R.: La Méthode Sociologique de Durkheim, Paris, 1926.PARSONS.T.: The Structure of Social Action, The Free Press, Nova York, 1949.VIALATOUX, J.: De Durkheim à Bergson, Blond et Gay, Paris, 1939. ***

p. 1 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL

Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura

p. 3 PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Algumas observações sobre os argumentos profissionais

Reeditando esta obra, nós nos abstemos de modificá-la em sua economia primeira. Um livro tem uma individualidade que deve ser preservada. Convém deixar-lhea fisionomia sob a qual ele foi conhecido. 1. [ 1 Nós nos limitamos a suprimir da antiga introdução umas trinta páginas que, hoje, nos parecem inúteis. Nós nos explicamos, aliás, sobre esta supressãono próprio lugar onde foi operada. (N do A) ] Mas ele tem uma idéia que foi deixada na penumbra quando da primeira edição, e que nos parece útil melhor distinguir e determinar, porque ela esclarecerácertas partes do presente trabalho e mesmo daqueles que nós publicamosdepois. 2. [ 2. Vide O Suicídio, conclusão (N do A) ] Trata-se do papel que os agrupamentosprofissionais estão destinados a preencher na organização social dos povos contemporâneos. Se primitivamente nós não tocamos neste problema senão por meio de alusões,é que contávamos retomá-lo e dele fazer um estudo especial. Como outras ocupações sobrevieram e nos desviaram desse projeto, e como não vemos quando nos será possível prossegui-lo, queremos aproveitar esta segundaedição para mostrar como esta questão se une ao assunto tratado na continuação da obra, para indicar em que termos ela se põe, e sobretudo para tratar de afastaras razões que impedem ainda muitos espíritos de melhor compreender a sua urgência e importância. Esse será o objetivo deste novo prefácio.

I

Insistimos várias vezes, no decurso deste livro, sobre o estado de anomia jurídica e moral na qual se encontra a vida econômica atualmente. Nesta ordemde funções, com efeito, a moral profissional não existe verdadeiramente senão em estado rudimentar. Há uma moral profissional do advogado e do magistrado, do soldado e do professor, do médico e do padre, etc. Mas, se se tentam fixar em uma linguagem umpouco definida as idéias em curso sobre o que devem ser as relações do empregador com o empregado, do trabalhador com o empreiteiro, dos industriais concorrentesuns com os outros ou com o público, que fórmulas indecisas se obteriam! Algumas generalidades sem precisão sobre a fidelidade e a dedicação que os assalariados detodos os tipos devem àqueles que os empregam, sobre a moderação com a qual esses últimos devem usar a sua preponderância econômica, uma certa reprovação por todaconcorrência muito abertamente desleal, por toda exploração por demais revoltante do consumidor, eis quase tudo o que contém a consciência moral, destas profissões.Além do mais, a maior parte destas prescrições está despojada de todo caráter jurídico; elas não são sancionadas senão pela opinião, não pela lei, e sabe-se quantoa opinião se mostra indulgente com a maneira pela

p. 4qual essas vagas obrigações são realizadas. Os atos mais censuráveis são tão freqüentemente absolvidos pelo sucesso, que o limite entre o que é proibido e o queé permitido, o que é justo e o que não o é, não tem mais nada de fixo. Mas parece poder ser deslocado quase que arbitrariamente pelos indivíduos. Uma moral tão imprecisae tão inconsciente não poderia constituir uma disciplina. Disso resulta que toda esta esfera da vida coletiva está, em grande parte, subtraída à ação moderadorada regra. É a este estado de anomia que devem ser atribuídos, como mostraremos, os conflitos incessantemente renovados e as desordens de todos os tipos dos quais omundo econômico nos dá o triste espetáculo. Porque, como nada contém as forças litigantes e não lhes designa os limites que devem respeitar, elas tendem a se

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desenvolversem limite, e acabam por se chocar umas contra as outras para se recalcarem e se reduzirem mutuamente. Sem dúvida, as mais intensas conseguem muito bem aniquilaras mais fracas ou subordiná-las. Mas, se o vencido pode se resignar por uns tempos a uma subordinação que é coagido a suportar, ele não a consente, e, por conseguinte,ela não poderia constituir um equilíbrio estável. As tréguas impostas pela violência são sempre apenas provisórias e não pacificam os espíritos. As paixões humanasnão cessam senão diante de uma potência moral que respeitem. Se toda autoridade desse tipo faz falta, é a lei do mais forte que reina, e, latente ou agudo, o estadode guerra é necessariamente crônico. Que uma tal anarquia seja um fenômeno mórbido, é evidente, pois que ela vai contra o próprio fim de toda sociedade, que é o de suprimirou ao menos de moderar a guerra entre os homens, subordinando a lei física do mais forte a uma lei mais elevada. Em vão, para justificareste estado de desregramento, faz-se valer que ele favorece o progresso da liberdade individual. Nada é mais falso do que este antagonismo quemuito freqüentemente se tem querido estabelecer entre a autoridade da regra e a liberdade do indivíduo. Muito ao contrário, a liberdade (nósentendemos a liberdade justa, aquela que a sociedade tem o dever de fazer respeitar) é ela própria o produto de uma regulamentação. Eu nãoposso ser livre senão na medida em que outro é impedido de se beneficiar da superioridade física, econômica ou outra da qual dispõe para submeterminha liberdade, e somente a regra social pode pôr obstáculo a esses abusos de poder. Sabe-se agora que regulamentação complicada énecessária para assegurar aos indivíduos a independência econômica sem a qual sua liberdade não é senão nominal. Mas o que faz, hoje em particular, a gravidade excepcional deste estado é o desenvolvimento, desconhecido até então, que tomaram, depois de dois séculosaproximadamente, as funções econômicas. Enquanto que outrora elas não representavam senão um papel secundário, estão agora em primeiro plano. Estamos longe do tempoem que eram desdenhosamente abandonadas às classes inferiores. Diante delas vêem-se mais e mais recuar as funções militares, administrativas, religiosas. Somenteas funções científicas estão em estado de disputar-lhes o lugar; e ainda a ciência atualmente tem prestígio somente na medida em que ela pode servir à prática, istoé, em grande parte, às profissões econômicas. Foi porque se pode, não sem alguma razão, dizer de nossas sociedades que elas são ou tendem a ser essencialmenteindustriais. Uma forma de atividade que tomou um tal lugar no conjunto da vida social não pode evidentemente permanecer até esse ponto desregrada sem que dissoresultem os problemas mais profundos. Isto é uma fonte de desmoralização geral. Pois, precisamente porque as funções econômicas absorvem hoje o maior número de cidadãos, há uma quantidade deindivíduos cuja vida se passa quase que inteiramente no meio industrial e comercial; donde se segue que, como este meio não é senão debilmente impregnado de moralidade,a maior parte de sua existência transcorre fora de toda ação moral. Ora, para que o sentimento do dever se fixe

p. 5fortemente em nós, é preciso que as próprias circunstâncias em que vivemos o tenham perpetuamente em vigilância. Nós não somos naturalmente inclinados a nos incomodare a nos coagir; se, pois, não somos convidados a cada instante a exercer sobre nós esta coação sem a qual não há moral, como teríamos o hábito? Se, nas ocupaçõesque preenchem quase todo o nosso tempo, não seguimos outra regra senão aquela de nosso interesse bem entendido, como teríamos gosto pelo desinteresse, pelo esquecimentopróprio, pelo sacrifício? Assim, a ausência de toda disciplina econômica não pode deixar de estender seus efeitos além do mundo econômico propriamente e de introduzirconsigo, por conseguinte, uma diminuição da moralidade pública. O mal, uma vez constatado, qual é a sua causa e qual pode ser o seu remédio? No corpo da obra, estamos sobretudo interessados em mostrar que a divisão do trabalho não poderia ser disto tornada responsável, como selhe tem injustamente acusado algumas vezes; ela não produz necessariamente a dispersão e a incoerência, mas as funções, quandoestão suficientemente em contato umas com as outras, tendem, elas próprias, a se equilibrar e a se regrar. Mas esta explicação éincompleta. Pois, se é verdade que as funções sociais procuram espontaneamente se adaptar umas às outras contanto que estejamregularmente relacionadas, por outro lado, esse modo de adaptação torna-se uma regra de conduta somente se um grupo o consagra por suaautoridade. Uma regra, com efeito, não é somente uma maneira habitual de agir; é, antes de tudo, uma maneira de agir obrigatória, isto é,subtraída, em alguma medida, ao arbítrio individual. Ora, somente uma sociedade constituída goza da supremacia moral e material que éindispensável para fazer a lei para os indivíduos; pois só a personalidade moral que esteja acima das personalidades particulares é aque forma a coletividade. Somente ela, além disso, tem a continuidade e mesmo a perenidade necessária para manter a regra além das relaçõesefêmeras que a encarnam diariamente. Além disso, seu papel não se limita simplesmente a erigir em preceitos imperativos os resultados mais geraisdos contratos particulares; mas ela intervém de maneira ativa e positiva na formação de toda regra. Logo, ela é o árbitro naturalmente designadopara desempatar os interesses em conflito e para atribuir a cada um os limites que lhe convém. Em seguida, ela é a primeira interessada em quereinem a ordem e a paz; se a anomia é um mal, é antes de tudo porque a sociedade sofre dela, não podendo se privar, para viver, de coesão e deregularidade. Portanto, uma regulamentação moral ou jurídica exprime essencialmente necessidades sociais que a sociedade somente podeconhecer; ela repousa sobre um estado de opinião, e toda opinião é coisa coletiva, produto de uma elaboração coletiva. Para que a anomia tenhafim, é preciso portanto que exista ou que se forme um grupo onde se possa constituir o sistema de regras que faz falta atualmente. Nem a sociedade política em seu conjunto nem o Estado podem evidentemente desempenhar estas funções; a vida econômica, uma vez que é muito especial e seespecializa cada dia mais, foge à sua competência e à sua ação. A atividade de uma profissão não pode ser regulamentada eficazmente senão por um grupo muito próximodesta mesma profissão para conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessidades e para poder seguir todas as suas variações. O único que respondea estas condições é aquele que formaria todos os agentes de uma mesma indústria, reunidos e organizados em um mesmo corpo. É o que se chama a corporação ou o grupoprofissional. Ora, na ordem econômica, o grupo profissional não existe mais do que a moral profissional. Depois que, não sem razão, no século passado se suprimiramas antigas corporações, não se tem realmente feito senão tentativas fragmentárias e incompletas para reconstituí-las sobre novas bases. Sem dúvida, os indivíduosque se dedicam a um

p. 6mesmo ofício têm relações uns com os outros por causa de suas ocupações similares. Sua própria concorrência os põe em contato. Mas essas relações nada têm de regular;elas dependem do acaso dos encontros e têm, mais freqüentemente, um caráter completamente individual. É tal industrial que se encontra em contato com tal outro;não é o corpo industrial de tal ou tal especialidade que se reúne para agir em comum. Excepcionalmente, vêem-se todos os membros de uma mesma profissão se reuniremem congresso para tratar de alguma questão de interesse geral; mas estes congressos duram pouco tempo; não sobrevivem às circunstâncias particulares que os suscitarame, por conseguinte, a vida coletiva da qual eles foram ocasião extingue-se mais ou menos completamente com eles. Os únicos agrupamentos que tiveram uma certa permanência são aqueles que se chamam hoje sindicatos, seja de patrões seja de operários. Seguramente há aíum começo de organização profissional, mas ainda bem disforme e rudimentar. Porque, primeiramente, um sindicato é uma associação privada, sem autoridade legal,desprovido, por conseguinte, de todo poder regulamentar. O seu número é teoricamente ilimitado, até mesmo no interior de uma mesma categoria industrial; e, comocada um deles é independente dos outros, se não se federalizam e não se unificam não há nada neles que exprima uma unidade da profissão em seu conjunto. Enfim, nãosomente os sindicatos de patrões e os sindicatos de empregados são distintos uns dos outros, o que é legítimo e necessário, mas também não há entre eles contatosregulares. Não existe uma organização comum que os aproxime, sem fazê-los perder sua individualidade e onde possam elaborar em comum uma regulamentação que, fixandosuas mútuas reações, se imponha a uns e outros com a mesma autoridade; em conseqüência, é sempre a lei do mais forte que resolve os conflitos, e o estado de guerrasubsiste inteiramente. Salvo aqueles cujos atos provêm da moral comum, patrões e trabalhadores estão, uns em relação aos outros, na mesma situação de dois Estadosautônomos, mas de força desigual. Eles podem, como afazem os povos por intermédio de seus governos, estabelecer contratos entre si. Mas esses contratos exprimemunicamente o estado respectivo das forças econômicas antagônicas, como os tratados que concluem dois beligerantes fazem exprimir apenas o estado respectivo de suasforças militares. Eles consagram um estado de fato; não poderiam fazê-lo um estado de direito. Para que uma moral e um direito profissionais possam estabelecer-se nas diferentes profissões econômicas é preciso, pois, que a corporação, em lugar de permanecerum agregado confuso e sem unidade, se torne, ou antes, retorne a ser um grupo definido, organizado, em uma palavra, uma instituição pública. Mas todo projeto desse

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gênero vem chocar-se com um certo número de prejuízos que convém prevenir ou dissipar. Primeiramente, a corporação tem contra si seu passado histórico. Ela passa, com efeito, por ser estreitamente solidária com nosso antigo regime político,e, por conseguinte, por não poder sobreviver-lhe. Parece que pedir para a indústria e o comércio uma organização corporativa é querer remontar ao curso da história;ora, tais regressões são justamente vistas ou como impossíveis ou como anormais. O argumento seria pertinente se se propusesse ressuscitar artificialmente a velha corporação tal como existia na Idade Média. Mas não é assim que a questãose põe. Não se trata de saber se a instituição medieval pode convir identicamente às nossas sociedades contemporâneas, mas se as necessidades às quais respondianão são as de todos os tempos, embora deva, para satisfazê-las, se transformar segundo os meios. Ora, o que não permite ver nas corporações uma organização temporária, boa somente para uma época e para uma determinada civilização, é ao mesmo tempo sua

p. 7remota antigüidade e a maneira pela qual se desenvolveram na história. Se datavam unicamente da Idade Média, poder-se-ia crer, com efeito, que, nascidas com um sistemapolítico, deviam necessariamente desaparecer com ele. Mas, na realidade, elas têm uma origem bem mais antiga. Em geral, aparecem desde que haja ofícios, quer dizer,desde que a indústria cesse de ser puramente agrícola. Se elas parecem ter permanecido desconhecidas da Grécia, ao menos até a época da conquista romana, é porqueas profissões, sendo lá desprezadas, eram exercidas quase exclusivamente por estrangeiros, e se encontravam por isso mesmo fora da cidade 3. Em Roma, porém, datamao menos dos primeiros tempos da República; uma tradição atribuía a sua criação ao Rei Numa. 4. É verdade que, durante um longo tempo, levaram uma existência muitohumilde, pois os historiadores e os monumentos falam delas raramente; também sabemos muito mal como foram organizadas. Mas, desde a época de Cícero, seu número setornou considerável e começaram a representar um papel. Nessa época, diz Waltzing, "todas as classes de trabalhadores pareciam possuídas pelo desejo de multiplicaras associações profissionais ". O movimento ascensional continuou em seguida, até atingir, sob o Império, "uma extensão que não pôde ser ultrapassada depois, sese levarem em conta as diferenças econômicas". 5. Todas as categorias de operários, que eram extremamente numerosas, acabaram, parece, por se constituir em colégios,e aconteceu o mesmo às pessoas que viviam do comércio. Ao mesmo tempo, o caráter desses agrupamentos modificou-se; eles terminaram por ser verdadeiras engrenagensda administração. Eles preenchiam funções oficiais; cada profissão era vista como um serviço público do qual a corporação correspondente tinha o encargo e a responsabilidadepara com o Estado. 6. [ 3 Vide Herrmann, Compêndio da Antigüidade Grega, 4º vol., 3.a ed.. pág. 398. Às vezes, o artesão era mesmo, em virtude de sua profissão, privado do direitode cidade. (Ibid., pág. 392.) — Resta saber se, na falta de uma organização legal e oficial, não havia uma clandestina. É certo que existiam corporações de comerciantes.(Vide Francotte. A Indústria na Grécia Antiga, t. II, pág. 204 ss.) (N. do A.) 4 Plutarco. Numa, XVII; Plínio, História Natural, XXXIV. É sem duvida uma lenda, mas prova que os romanos viam nas corporações uma de suas mais antigasinstituições. (N. do A.) 5 Estudo Histórico sobre as Corporações Profissionais entre os Romanos, t. I, págs. 56/57. (N. do A.) 6 Alguns historiadores crêem que, desde o princípio, as corporações estiveram relacionadas com o Estado. Mas é bastante certo, em todo caso, que seu caráteroficial foi desenvolvido de outra maneira sob o Império. (N. do A.) ] Isto foi a ruína da instituição. Pois essa dependência frente ao Estado não tardou em degenerar em uma servidão intolerável que os imperadores puderam mantersó pela opressão. Todas as formas de procedimento foram empregadas para impedir os trabalhadores de se esquivarem às pesadas obrigações que resultaram para elesde sua própria profissão; chegou-se até a recorrer ao recrutamento e ao alistamento forçados. Um tal sistema não podia evidentemente durar senão na medida em queo poder político era bastante forte para impor. Foi por isso que não sobreviveu à dissolução do Império. Além disso, as guerras civis e as invasões haviam destruídoo comércio e a indústria; os artesãos se aproveitaram dessas circunstâncias para fugir das vilas e se dispersar nos campos. Assim os primeiros séculos de nossa eraviram produzir-se um fenômeno que deveria repetir-se identicamente no fim do século XVIII: a vida corporativa se extinguiu quase completamente. Foi a custo se delasubsistiram alguns traços na Gália e na Germania, nas cidades de origem romana. Se, portanto, um teórico tivesse, nesse momento, tomado consciência da situação,teria verossimilhantemente concluído, como afizeram mais tarde os economistas, que as corporações não tinham, ou, pelo menos, não tinham

p. 8mais razão de ser, que tinham desaparecido sem remédio, e ele teria sem dúvida como retrógrada e irrealizável toda tentativa para reconstituí-las. Mas os acontecimentosmuito cedo teriam desmentido uma tal profecia. Com efeito, após um eclipse de tempo, as corporações recomeçaram uma nova existência em todas as sociedades européias. Renasceram porvolta do século XI e século XII. Desde então, diz M. Levasseur, "os artesãos começam a sentir a necessidade de se unir e formam suasprimeiras associações". 7. Em todo caso, no século XIII, estão de novo florescentes, e se desenvolvem até o dia em que entram numa novadecadência. Uma instituição tão persistente não poderia depender de uma particularidade contingente e acidental; ainda é bem menos possíveladmitir que ela foi o produto de não sei qual abnegação coletiva. Se desde as origens da cidade até o apogeu do Império, desde a aurora dassociedades cristãs até os tempos modernos, elas foram necessárias, é porque elas respondem a necessidades duráveis e profundas. Sobretudo ofato mesmo de que, após terem desaparecido uma primeira vez, elas se reconstituíram por si mesmas e sob uma nova forma, retira todo o valordo argumento que apresenta sua desaparição violenta no fim do último século como uma prova de que elas não estão mais em harmonia com asnovas condições da existência coletiva. De resto, a necessidade que experimentam hoje todas as grandes sociedades civilizadas de chamá-las àvida é o sintoma mais seguro de que essa supressão radical não foi um remédio, e de que a reforma de Turgot necessitava de uma outra que nãopoderia ser indefinidamente adiada. [ 7 As Classes Operárias na França até a Revolução, I, pág. 194. (N. do A.) ]

II

Mas, se toda organização corporativa não é necessariamente um anacronismo histórico, é fundamentado crer que ela seja chamada a desempenhar, nas nossas sociedadescontemporâneas, o papel considerável que nós lhe atribuímos? Porque, se a julgamos indispensável, é por causa não de serviços econômicos que ela poderia prestar,mas da influência moral que poderia ter. O que vemos antes de tudo no grupo profissional é um poder moral capaz, de conter os egoísmos individuais, de manter nocoração dos trabalhadores um sentimento mais vivo de sua solidariedade comum, de impedir a lei do mais forte de se aplicar tão brutalmente às relações industriaise comerciais. Ora, ele não é próprio para um tal papel. Porque nasceu na época dos interesses temporais, parece que pode servir só afins utilitários, e as recordaçõesdeixadas pelas corporações do antigo regime fazem confirmar esta impressão. São facilmente representadas no futuro tais quais foram durante os últimos tempos desua existência, ocupadas antes de tudo em manter ou em aumentar seus privilégios e seus monopólios, e não se vê como preocupações tão estritamente profissionaispoderiam ter uma ação bem favorável sobre a moralidade do corpo ou de seus membros. Mas é preciso se abster de estender a todo o regime corporativo o que pôde ser verdadeiro de algumas corporações e durante um tempo bem curto de seu desenvolvimento.Em vez de ter sido atingido por um tipo de doença moral própria de sua constituição, foi sobretudo um papel moral que desempenhou durante a maior parte de sua história. É isso que é particularmente evidente nas corporações romanas. "As corporações de artesãos ", diz Waltzing, "estavam longe de ter, entre os romanos, um caráterprofissional tão pronunciado quanto na Idade Média: não se encontra entre eles nem regulamentação sobre os métodos, nem aprendizagem imposta, nem monopólio; suafinalidade não era mais do que reunir os fundos necessários para explorar uma indústria". 8.[ 8 Op. cit I, pág 194. (N. do A.) ] Sem dúvida, a

p. 9associação lhes dava mais forças para salvaguardar, se fosse preciso, seus interesses comuns. Mas esse era um dos contragolpes úteis que produzia a instituição;

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essa não era sua razão de ser, a função principal. Antes de tudo, a corporação era um colégio religioso. Cada uma delas tinha seu deus particular, cujo culto, quandohavia os meios, se celebrava em um templo especial. Da mesma forma que cada família tinha seu Lar familiaris, cada cidade seu Genius publicus, cada colégio tinhaseu deus tutelar, Genius collegii. Naturalmente, esse culto profissional era realizado com festas celebradas em comum, com sacrifícios e banquetes. Todo tipo decircunstâncias servia, portanto, de ocasião para alegres assembléias; além do mais, eram feitas freqüentemente distribuições de víveres ou de dinheiro a expensasda comunidade. Pergunta-se se a corporação tinha uma caixa de auxílio, se assistia regularmente a seus membros que se encontravam necessitados, e as opiniões sobreesse ponto são desencontradas. 9. Mas o que retira da discussão uma parte de seu interesse e alcance é que estes banquetes comuns, mais ou menos periódicos, e asdistribuições que os acompanhavam freqüentemente funcionavam como ajuda e tinham por ofício a assistência indireta. De qualquer maneira, osdesafortunados sabiam que podiam contar com esta subvenção dissimulada. — Como corolário desse caráter religioso, o colégio de artesãos era, aomesmo tempo, um colégio funerário. Unidos, como os gentiles, num mesmo culto durante sua vida, os membros da corporação queriam, como aquelestambém, dormir juntos seu último sono. Todas as corporações que eram bastante ricas tinham um columbarium coletivo, onde, quando o colégionão tinha meios para comprar uma propriedade funerária, assegurava ao menos aos seus membros funerais dignos a expensas da caixa comum. [ 9 A maior parte dos historiadores estima que certos colégios pelo menos eram sociedades de mútuos auxílios. (N. do A.) ] Um culto comum, banquetes comuns, festas comuns, um cemitério comum, não são, reunidas em conjunto, todas as características distintivas da organização domésticaentre os romanos? Também se poderia dizer que a corporação romana era uma "grande família". "Nenhumapalavra", diz Waltzing, "indica melhor a natureza das relaçõesque uniam os confrades, e muitos indícios provam que uma grande fraternidade reinava em seu seio." 10. A comunhão de interesses substituía os laços de sangue. "Osmembros se consideravam tão bem como irmãos que, às vezes, davam-se esse nome entre eles." A expressão mais corriqueira era, em verdade, a de sodales; mas essa própriapalavra exprime um parentesco espiritual que implica uma estreita fraternidade. O protetor e a protetora do colégio tomavam o título, freqüentemente, de pai e demãe. "Uma prova do devotamento que os confrades tinham pelo seu colégio são os legados e doações que eles lhes faziam. São também esses monumentos funerários ondelemos: pius in collegio, foí piedoso para com seu colégio, como se dizia pius in suos. 11. Esta vida familiar era tão desenvolvida que M. Boissier faz dela a finalidadeprincipal de todas as corporações romanas. "Mesmo nas corporações operárias", diz ele, "associavam-se antes pelo prazer „ de viver juntos, para achar fora de casadistrações às suas fadigas e aos seus aborrecimentos, para ter uma intimidade menos restrita que a da família, menos extensa que a da cidade, e assim tornara vida mais fácil e mais agradável." 12. [ 10 Op. cit., I, pág. 330. (N. do A.) 11 Op. cit., I, pág, 331. (N. do A.) 12 A Religião Romana, II, págs. 287-288. (N. do A.) ] Como as sociedades cristãs pertenciam a um tipo social muito diferente do da cidade, as corporações da Idade Média não se pareciam exatamente com as corporaçõesromanas. Mas também constituíam para seus membros meios morais. "A corporação",

p. 10diz M. Levasseur, "unia por laços estreitos as pessoas do mesmo ofício. Muito freqüentemente, ela se estabelecia em uma paróquia ou em uma capela particular e sepunha sob a invocação de um santo que se tornava o patrono de toda a comunidade... Era lá que se reunia, que se assistiam em grande cerimônia a missas solenesdepois das quais os membros da confraria iam todos juntos terminar sua jornada por um alegre festim. Por este lado, as corporações da Idade Média se pareciam muitocom aquelas da época romana." 13. A corporação, além disso, consagrava freqüentemente uma parte dos fundos que alimentavam seu orçamento às obras de beneficência.Por outro lado, regras precisas fixavam, para cada ofício, os deveres respectivos dos patrões e dos operários, assim como os deveres dos patrões uns para com osoutros. 14. Há, é verdade, regulamentos que podem não estar de acordo com nossas idéias atuais; mas é segundo a moral dos tempos que é preciso julgá-los, pois éela que eles exprimem. [ 13 Op. cit., I, págs. 217-218. (N. do A.) 14 Op. cit., I. pág. 221 — Vide, sobre o mesmo caráter moral da corporação na Alemanha. Gierke, OCooperativismo Alemão, I. pág. 384; na Inglaterra, Ashley, História das Doutrinas Econômicas, I, pág. 101. (N. do A.) ] O que é incontestável é que são todos inspirados pela preocupação não de tais ou tais interesses individuais, mas do interessecorporativo, bem ou mals compreendido, não importa. Ora, a subordinação da utilidade privada à utilidade comum, qualquer que seja, tem sempre umcaráter moral, pois implica necessariamente algum espírito de sacrifício e de abnegação. Além do mais, muitas dessas prescrições procediam desentimentos morais que são ainda os nossos. O servo estava protegido contra os caprichos do senhor que não podia despedi-lo à vontade. Éverdade que a obrigação era recíproca; mas além de esta reciprocidade ser justa por si própria, ela se justificava melhor ainda por uma sériede importantes privilégios de que gozava então o operário. É assim que era proibido aos senhores frustrá-lo em seu direito ao trabalho,fazendo-se assistir pelos seus vizinhos ou mesmo pelas suas mulheres. Em uma palavra, diz M. Levasseur, "esses regulamentos sobre os aprendizes eos operários estão longe de poderem ser desdenhados pelo historiador e pelo economista. Eles não são obra de um século bárbaro. Têm o cunho daperseverança e de um certo bom senso, que são, sem dúvida alguma, dignos de nota". 15. Enfim, toda uma regulamentação estava destinada a garantira probidade profissional. Todos os tipos de precauções eram tomados para impedir o mercador ou o artesão de enganar o comprador, para obrigá-losa "fazer obra boa e leal". 16. Sem dúvida, houve um momento em que as regras se tornaram inutilmente discordantes quando os mestres sepreocuparam muito mais em salvaguardar seus privilégios do que em velar pela boa reputação da profissão e pela honestidade de seus membros. Masnão há instituição que em um dado momento não degenere, seja porque não sabe mudar a tempo e se imobilizar, seja porque se desenvolve em umsentido unilateral, excedendo em algumas de suas propriedades: o que a torna inábil para fazer os próprios serviços dos quais elatem o encargo. Isso pode ser uma razão para procurar reformá-la, não para declará-la inútil para sempre e destruí-la. [ 15 Op. cit., pág,. 238. (N. do A.) 16 Op. cit., págs. 240-261. (N. do A.) ] De qualquer forma, os fatos que precedem bastam para provar que o grupo profissional não é de modo algum incapaz de exercer uma ação moral. O lugar tão considerávelque a religião tinha na sua vida, tanto em Roma como na Idade Média, põe muito particularmente em evidência a natureza verdadeira de suas funções; pois toda comunidadereligiosa constituía então um meio moral da mesma forma que toda disciplina

p. 11moral tendia forçosamente a tomar uma forma religiosa. E, além disso, este caráter da organização corporativa é devido à ação de causas muito gerais, que se podever atuar em outras circunstâncias. No momento em que, no seio de uma sociedade política, um certo número de indivíduos se encontra tendo em comum idéias, interesses,sentimentos, ocupações que o resto da população não partilha com eles, é inevitável que, sob influência destas semelhanças, atraiam-se uns em direção aos outros,eles se procurem, entrem em relações, se associem, e que assim se forme pouco a pouco um grupo restrito, tendo sua fisionomia especial, no seio da sociedade geral.Mas, uma vez que o grupo esteja formado, desprende-se dele uma vida moral que traz naturalmente a marca das condições particulares nas quais ela foi elaborada. Poisé impossível que homens vivam juntos, estejam regularmente comerciando sem que encontrem o sentimento do todo que eles formam pela sua união, sem que eles se prendama esse todo, se preocupem com seus interesses, e o levem em consideração na sua conduta. Ora, esse apego a alguma coisa que ultrapassa o indivíduo, essa subordinaçãodos interesses particulares ao interesse geral, é a própria fonte de toda atividade moral. Quando esse sentimento se precisar e se determinar, quando, aplicando-seàs circunstâncias mais ordinárias e mais importantes da vida, se traduzir em fórmulas definidas, eis um corpo de regras morais prestes a se constituir. Ao mesmo tempo que esse resultado se produz por si mesmo e pela força das coisas, ele é útil e o sentimento de sua utilidade contribuipara confirmá-lo. A sociedade não é a única interessada em que esses grupos especiais se formem para regulamentar a atividade que sedesenvolve neles e que, de outra forma, tornar se-ia anárquica; o indivíduo, por seu lado, encontra nisso uma fonte de alegrias. Pois a

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anarquia é dolorosa para ele mesmo. Ele também sofre dos conflitos e das desordens que se produzem todas as vezes que as relaçõesinterindividuais não estão submetidas a nenhuma influência reguladora. Não é bom para o homem viver assim em pé de guerra no meio de seuscompanheiros imediatos. Esta sensação de uma hostilidade geral, a desconfiança mútua que dela resulta, a tensão que dela decorre, sãoestados penosos quando são crônicos: se amamos a guerra, amamos também as alegrias da paz, e essas últimas têm um preço tanto maior para oshomens quanto mais profundamente socializados estes forem, isto é (uma vez que as duas palavras são equivalentes), mas profundamentecivilizados. A vida comum é atraente e ao mesmo tempo coercitiva. Sem dúvida, a coação é necessária para conduzir o homem a se ultrapassar asi mesmo, a acrescentar à sua natureza física uma outra natureza; mas, à medida que aprende a apreciar os encantos desta existência nova, eleconstrói a necessidade, e não há nenhuma ordem de atividade onde ele não os procure apaixonadamente. Eis por que quando indivíduos que por tereminteresses comuns se associam, não é somente para defenderem esses interesses, é para se associarem, para não mais se sentirem perdidos emmeio a adversários, para terem o prazer de comungar, de não fazerem senão um com muitos, quer dizer, em definitivo, para levarem em conjuntouma mesma vida moral. A moral doméstica não é formada de outra maneira. Por causa do prestígio que a família conserva aos nossos olhos, parece-nos que, seela foi e se é sempre uma escola de devotamento e de abnegação, a sede por excelência da moralidade, é em virtude de características muitoparticulares das quais ela teria o privilégio e que não se reencontrariam alhures em nenhum grau. É aprazível acreditar-se que hána consangüinidade uma causa excepcionalmente forte de aproximação moral. Mas tivemos freqüentemente a ocasião de mostrar 17 que aconsangüinidade não tem de forma alguma a eficácia extraordinária que

p. 12se lhe atribui. A prova é que num grande número de sociedades os consangüíneos são numerosos no seio da família: o parentesco dito artificial se contrai então comgrande facilidade e tem todos os efeitos do parentesco natural. Inversamente, acontece muito freqüentemente que os consangüíneos muito próximos são moral ou juridicamenteestranhos uns aos outros: é, por exemplo, o caso dos cognados na família romana. A família não deve, então, suas virtudes à unidade de descendência: é simplesmenteum grupo de indivíduos que se aproximam uns dos outros, no seio da sociedade política, por uma comunhão particularmente estreita de idéia, de sentimentos e de interesses. [ 17 Ver especialmente Année Sociologique, I, pág. 331 ss. (N. do A.) ] A consangüinidade pôde facilitar esta aproximação; pois ela tem naturalmente como efeito inclinar as consciências umas para as outras. Mas muitos outrosfatos interferiram: a vizinhança material, a solidariedade de interesses, a necessidade de se unir para lutar contra um perigo comum, ou simplesmente se unir, foramcausas diferentemente fortes de aproximação. Ora, elas não são particulares da família, mas são reencontradas, ainda que sob outras formas, na corporação. Se, pois, oprimeiro desses grupos desempenhou um papel tão considerável na história da humanidade, por que o segundo seria incapaz disso? Sem dúvida, haverásempre entre eles esta diferença: os membros da família põem em comum a totalidade de sua existência, os membros da corporação apenas suaspreocupações profissionais. A família é uma espécie de sociedade completa cuja ação se estende tanto sobre nossa atividade econômicaquanto sobre nossa atividade religiosa, política, científica, etc. Tudo o que fazemos de alguma importância, mesmo fora de casa, nela se faz ecoe provoca reações apropriadas. A esfera de influência da corporação é, em um sentido, mais restrita. É necessário ainda não perder de vista olugar cada vez mais importante que a profissão ocupa na vida à medida que o trabalho mais se divide; pois o campo de cada atividade individualtende mais e mais a se fechar nos limites marcados pelas funções das quais o indivíduo é especialmente encarregado. Além disso, se a ação dafamília se estende, pode ser apenas geral; o detalhe lhe escapa. Enfim e sobretudo, a família, perdendo sua unidade e sua indivisibilidade deoutrora, perdeu ao mesmo tempo uma grande parte de sua eficácia. Como ela se dispersa hoje a cada geração, o homem passa notável parte de sua existência longe de toda influência doméstica. 18. Acorporação não tem essas intermitências, é contínua como a vida. A inferioridade que ela pode apresentar em certos aspectos, em relação àfamília, não é, pois, sem compensação. [ 18 Desenvolvemos esta idéia em O Suicídio, pág. 433. (N. do A.) ] Se acreditamos dever assim aproximar a família e a corporação, não foi simplesmente para estabelecer entre ambas um paraleloinstrutivo, mas é que essas duas instituições não deixam de ter relações de parentesco. É o que mostra particularmente a história das corporaçõesromanas. Vimos, com efeito, que foram formadas sobre o modelo da sociedade doméstica da qual foram primeiramente uma forma nova eampliada. Ora, o grupo profissional não lembraria neste ponto o grupo familiar se não houvesse entre eles algum vínculo de filiação. E, comefeito, a corporação foi, em um sentido, a herdeira da família. Enquanto a indústria é exclusivamente agrícola, ela tem na família e na aldeia,que não passa de uma espécie de grande família, seu órgão imediato, e não lhe é necessário outro. Como a troca não existe ou é poucodesenvolvida, a vida do agricultor não o tira fora do círculo familiar. A atividade econômica não tendo repercussão para fora de casa, a famíliaé suficiente para regulamentá-la e ela própria serve assim de grupo profissional. Não é, porém, mais assim, uma vez que existem ofícios.Pois, para viver de um ofício é necessário haver clientes; e é necessário sair de casa para encontrá-los; é necessário

p. 13sair também para entrar em contato com os concorrentes, lutar contra eles, se entender com eles. De resto, os ofícios supõem mais ou menos diretamente ascidades, e as cidades foram sempre formadas e recrutadas principalmente no meio de imigrantes, quer dizer, de indivíduos que abandonaram seu meio natal. Uma formanova de atividade era, pois, assim constituída e excedia o velho quadro familiar. Para que ela não ficasse em estado desorganizado, era preciso que criasse um quadronovo que lhe fosse próprio; dito de outra maneira, era necessário que um grupo secundário, de um gênero novo, se formasse. Foi assim que a corporação nasceu: elasubstituiu a família no exercício de uma função que era primeiramente doméstica, mas que não podia mais conservar esse caráter. Uma tal origem não permite atribuir-lheesta espécie de amoralidade constitucional que se lhe empresta gratuitamente. Da mesma forma que a família foi o meio no seio do qual se elaboraram a moral e o direitodomésticos, a corporação é o meio natural no seio do qual devem elaborar-se a moral e o direito profissionais.

III

Contudo, para dissipar todas as prevenções, para mostrar bem que o sistema corporativo não é somente uma instituição do passado, seria necessário mostrarquais transformações ele deve e pode sofrer para se adaptar às sociedades modernas; porque é evidente que ele não pode ser hoje o que foi na Idade Média. Para poder tratar esta questão com método, seria necessário estabelecer primeiramente de que maneira o regime corporativo evoluiu nopassado e quais são as causas que determinaram as principais variações que sofreu. Poder-se-ia então prejulgar com alguma certeza o que elepode vir a ser, dadas as condições nas quais as sociedades européias se encontram atualmente. Mas, para isso, seriam necessários estudoscomparativos que não estão feitos e que não podemos fazer durante o percurso. Talvez, entretanto, seja possível perceber desde agora, massomente em linhas gerais, o que foi esse desenvolvimento. Do que precede já resulta que a corporação não foi em Roma o que se tornou mais tarde nas sociedades cristãs. Não difere somente pelo seucaráter mais rigoroso e menos profissional, mas pelo lugar que ocupava na sociedade. Ela foi, com efeito, pelo menos na origem, uma instituiçãoextra-social. O historiador que tenta resolver em seus elementos a organização política dos romanos não encontra, no decurso de suaanálise, nenhum fato que possa adverti-lo da existência das corporações. Elas não entravam, na qualidade de unidades definidas e reconhecidas, naconstituição romana. Em nenhuma das assembléias eleitorais, em nenhuma das reuniões do Exército, os artesãos se reuniam por colégios; em nenhumlugar o grupo profissional tomava parte, como tal, na vida pública, seja diretamente, seja por intermédio de representantes regulares. Quanto aomais, a questão pode ser colocada a propósito de três ou quatro colégios que, acreditamos, podem ser identificados com algumas das centúriasconstituídas por Sérvia Túlio (tignarii, aerarii, tibicines, comicines); 19; o fato ainda está mal estabelecido. 20. E, quanto às outrascorporações, elas estavam certamente fora da organização oficial do povo romano. 21. [ 19 Trad.: carpinteiros, caldeireiros, flautistas, corneteiros. (N. do E.)

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20 Parece mais verossímil que as centúrias assim denominadas não continham todos os carpinteiros, todos os ferreiros, mas somente aquelesque fabricavam ou reparavam as armas e as máquinas de guerra. Denys d'Halicarnasse nos diz formalmente que os operários assim agrupadostinham uma função puramente militar, eis tòn polemón; não eram, pois. colégios propriamente ditos, mas divisões do exército. (N. do A.) 21 Tudo o que dizemos sobre a situação das corporações deixa inteira a questão controvertida de saber se o Estado, desde o começo,interveio na sua formação. Então, mesmo que elas estivessem, desde o princípio, sob a dependência do Estado (o que não parece verossímil),resta que não afetaram a estrutura política. É o que nos importa. (N. do A.) ]

p. 14Esta situação excêntrica, de alguma maneira, se explica pelas próprias condições nas quais elas se formaram. Elas apareceram no momento em que os ofícios começarama se desenvolver. Ora, durante muito tempo, os ofícios foram apenas uma forma acessória e secundária da atividade social dos romanos. Roma era essencialmente umasociedade agrícola e guerreira. Como sociedade agrícola, estava dividida em gentes e em cúrias; a reunião por centúrias refletia de preferência a organização militar.Quanto às funções industriais, eram muito rudimentares para afetar a estrutura política da cidade. 22. Aliás, até uma época muito avançada da história romana, os ofíciosficaram cunhados de um descrédito moral que não lhes permitia ocupar um lugar regular no Estado. Sem dúvida, chegou o tempo em que sua condição social melhorou.-Mas a maneira pela qual foi obtido este melhoramento é significativa. Para chegar afazer respeitar seus interesses e a desempenhar um papel na vida pública, osartesãos tiveram que recorrer a procedimentos irregulares e extralegais. Triunfaram sobre o desprezo de que eram objeto por meio de intrigas, de complôs, de agitaçãoclandestina. 23. Foi a melhor prova de que, por si mesma, a sociedade romana não lhes estava aberta. E se, mais tarde, eles acabaram sendo integrados no Estado parase tornarem as engrenagens da máquina administrativa, esta situação não foi para eles uma conquista gloriosa, mas uma dolorosa dependência: se entraram então noEstado, não foi para aí ocuparem o lugar ao qual seus serviços sociais poderiam dar-lhes o direito, mas simplesmente para poderem ser mais sutilmente fiscalizadospelo poder governamental. "A corporação", diz Levasseur, "vem a ser a cadeia que os torna cativos e que a mão imperial tanto mais comprime quanto mais penoso ounecessário ao Estado era o seu trabalho." 24. [ 22 Descendo se um grau na evolução, sua situação é ainda mais excêntrica. Em Atenas, elas são somente extra-sociais. mas quase extralegais. (N. do A.) 23 Waltzing. op. cií., I, págs. 85 ss. (N. do A.) 24 Op. cií., I,pág. 31 (N. do A.) ] Completamente outro é o seu lugar nas sociedades da Idade Média. Repentinamente, desde que a corporação aparece, ela se apresenta como o quadro normal destaparte da população que estava destinada a desempenhar no Estado um papel tão considerável: a burguesia ou o Terceiro Estado. com efeito, durante muito tempo, burguêse pessoa de ofício não formam senão um. "A burguesia no século XVIII", diz Levasseur, "era exclusivamente composta de pessoas de ofício. A classe dos magistradose dos legisladores começava a custo a se formar; os homens de estudo pertenciam ainda ao clero; o número de rendeiros era muito restrito, porque a propriedade territorialestava quase que toda em mãos de nobres; restava aos plebeus apenas o trabalho da oficina e do balcão. Era pela indústria ou pelo comércio que conquistavam uma posiçãono reino. 25. Aconteceu o mesmo na Alemanha. Burguês e citadino eram termos sinônimos, e,por outro lado, sabemos que as cidades alemãs foram formadas em volta demercados permanentes, abertos por um senhor em um ponto de seu domínio. 26. A população que vinha se agrupar em torno desses mercados e que se tornou a populaçãourbana era, pois, quase exclusivamente composta de artesãos e de mercadores. Tanto a palavra forenses como a mercatores serviam indiferentemente para designar oshabitantes das cidades, e o jus civile ou direito urba.no é freqüentemente chamado jus fori ou direito de mercado. A organização dos ofícios e do comércio parece,portanto, ter sido a organização primitiva da burguesia européia. [ 25 Op. cit., pág. 191.(N.do A.) 26 Ver Riestschel. Markt und Stadt in threm rechthchen Verhaltniss, Leipzig, 1897, passim, e todos os trabalhos de Sohm sohre esse ponto. (N. do A.) ]

p. 15 Também, quando as cidades se libertaram da tutela senhoria!, quando a comuna se formou, o corpo de ofícios, que havia precedido e preparado esse movimento,se tornou a base da constituição comunal. com efeito, "em quase todas as comunas, o sistema político e a eleição dos magistrados são fundados sobre a divisão doscidadãos em corpos de ofícios". 27. Muito freqüentemente votava-se por corpo de profissões, e escolhiamse ao mesmo tempo os chefes da corporação e os da comuna. "Em Amiens,por exemplo, os artesãos se reuniam todos os anos para eleger os prefeitos de cada corporação ou insígnia; os prefeitos eleitos nomeavam em seguida doze magistradosmunicipais, 28, que nomeavam doze outros, e a magistratura apresentava por sua vez aos prefeitos das insígnias três pessoas entre as quais escolhiam o prefeito dacomuna. . . Em algumas cidades, o modo de eleição era ainda mais complicado, mas, em todas, a organização política e municipal era estritamente ligada à organizaçãodo trabalho." 29. Inversamente, ao mesmo tempo que a comuna era um agregado de corpos de ofícios, o corpo de ofícios era uma comuna em miniatura, e por isso mesmofoi o modelo do qual a instituição comunal era forma ampliada e desenvolvida. [ 27 Op. cit., I, pág. 193. (N. do A.) 28 Orig.: Echevin, magistrado municipal antes de 1789. (N. do T.) 29 Ibid., I, pág. 183. (N. do A.) ]

Ora, sabe-se o que foi a comuna na história de nossas sociedades, da qual ela se tornou, com o tempo, a pedra angular. Porque era uma reunião de corporaçõese se formou sobre o tipo da corporação, em última análise, serviu de base a todo sistema político proveniente do movimento comunal. Vê-se que, no percurso, ela cresceusingularmente em importância e dignidade. Enquanto que em Roma ela começou estando quase fora dos quadros normais, serviu, ao contrário, de quadro elementar paranossas sociedades atuais. É uma nova razão para que nos recusemos a vê-la como uma espécie de instituição arcaica, destinada a desaparecer da história. Pois, seno passado o papel que ela desempenhou tornou-se mais vital à medida que o comércio e a indústria se desenvolviam, é completamente inverossímil que os novos progressoseconômicos possam ter por efeito retirar-lhe toda razão de ser. A hipótese contrária pareceria mais justificada. 30. Outros ensinamentos, porém, depreendem-se dorápido quadro que acaba de ser traçado. 30 É verdade que, quando os ofícios se organizam em casta?,, acontece que um lugar aparente na constituição social; é o caso da índia. Mas a casta não émente um grupo familiar e religioso, não um grupo profissional. Cada uma próprio e, como a sociedade está organizada religiosamente, esta religiosidade sãs. atribuia cada casta um lugar determinado no conjunto do sistema social, é nada nessa situação oficial (cf. Bouglé, "Observações sobre um regime de IV). (N. do A.)tomam demasiadamente cedo a corporação. Ela é essencialmente seu grau de religiosidade que depende de causas diversas seu papel econômico não castas", Année Sociologique. ] Primeiramente, ele permite entrever como a corporação caiu provisoriamente em descrédito depois de dois séculos aproximadamente, e, em seguida, como eladeve tornarse para poder retomar sua posição entre nossas instituições públicas. Acaba-se de ver, com efeito, que, sob a forma que ela tinha na Idade Média, estavaestreitamente ligada à organização da comuna. Esta solidariedade ocorreu sem inconvenientes, enquanto os próprios ofícios tiveram um caráter comunal. Enquanto, no princípio, artesãose mercadores tinham mais ou menos exclusivamente por clientes apenas os habitantes da cidade ou dos arredores imediatos, quer dizer, enquanto o mercado era principalmentelocal, o corpo de ofícios, com sua organização municipal, era suficiente para todas as necessidades. Todavia, não foi mais assim desde que a grande indústria nasceu;como ela não tem nada de especialmente urbano, não podia se submeter a um sistema que não havia sido

p. 16feito por ela. Antes de tudo, ela não tem necessariamente seu limite em uma cidade; pode mesmo se estabelecer fora de toda aglomeração rural ou urbana preexistente;procura somente o ponto do território onde ela pode melhor alimentá-lo e de onde pode reinar o mais facilmente possível. Em seguida, seu campo de ação não se limitaa nenhuma região determinada, recruta sua clientela por toda parte. Uma instituição tão inteiramente engajada na comuna como era a velha corporação não podia, pois,

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servir para enquadrar e regulamentar uma forma de atividade coletiva que era também completamente estranha à vida comunal. E, com efeito, desde que a grande indústria apareceu, ela se encontrou naturalmente fora do regime corporativo, e foi isto que fez, aliás, com que os corposde ofícios se esforçassem por todos os meios para impedir seu progresso. Entretanto, não foi por isto libertada de toda regulamentação: durante os primeiros tempos,o Estado desempenhou diretamente para ela um papel análogo àquele que as corporações desempenhavam para o pequeno comércio e para os ofícios urbanos. Ao mesmo tempoque o poder real concedia às manufaturas alguns privilégios, em retorno, ele os submetia ao seu controle, e é isso que indica o título de manufaturas reais que lhesera concedido. Mas sabe-se o quanto o Estado é impróprio para essa função: essa tutela direta não podia, pois, deixar de se tornar compressiva. Ela foi mesmo quaseimpossível a partir do momento em que a grande indústria atingiu um certo grau de desenvolvimento e de diversidade: foi porque os economistas clássicos reclamaram,e com todo direito, a sua supressão. Mas se a corporação, tal qual existia então, não podia se adaptar a esta forma nova da indústria, e se o Estado não podia substituira antiga disciplina corporativa, não se seguia que toda disciplina fosse desde então inútil; restava somente que a antiga corporação devia se transformar, para continuara preencher seu papel nas novas condições da vida econômica. Infelizmente, não teve bastante flexibilidade para se reformar a tempo e foi por isto que foi desfeita. Porque não soube assimilar a vida nova que se manifestava, a sua vida extinguiu-se, e ela se tornou como era na véspera da Revolução, uma espécie de substânciamorta, de corpo estranho que não se mantinha mais no organismo social senão por uma força de inércia. Não é, pois, surpreendente que chegou o momento em que foi violentamenteexpulsa. Mas destruí-la não era um meio de dar satisfação às necessidades que ela não soube satisfazer. E é assim que a questão fica ainda diante de nós, apenasmais aguçada por um século de tentativas e experiências infrutíferas. A obra do sociólogo não é a do homem de Estado. Não vamos, pois, expor em detalhe o que deveria ser esta reforma. Ser-nos-á insuficiente indicar seis princípiosgerais tais quais parecem surgir dos fatos que precedem. O que demonstra antes de tudo a experiência do passado é que os quadros do grupo profissional devem sempre estar em relação com os quadros da vida econômica;é por carecer desta condição que o regime corporativo desapareceu. Uma vez que o mercado, de municipal que era tornou-se nacional e internacional, a corporação devetomar a mesma extensão. Em lugar de ser limitada apenas aos artesãos de uma cidade, deve aumentar de maneira a compreender todos os membros da profissão, dispersossobre toda a extensão do território; 31; pois, em qualquer região que se encontrem, habitando a cidade ou o campo, são todos solidários uns aos outros e participamde uma vida

p. 17comum. Uma vez que esta vida comum é, em certos aspectos, independente de toda determinação territorial, é preciso que se crie um órgão apropriado que a exprimae regularize o seu funcionamento. Em razão das suas dimensões, um tal órgão estaria necessariamente em contato e em relações diretas com o órgão da vida coletiva,pois os acontecimentos bastante importantes para interessar uma categoria de empreendimentos industriais num país têm necessariamente repercussões muito gerais queo Estado não pode perceber; é isto que o leva a intervir. Também não é sem fundamento que o poder real tendeu instintivamente a não deixar fora de sua ação a grandeindústria desde que apareceu. Não era possível que se desinteressasse por uma forma de atividade que pela sua própria natureza é sempre suscetível de afetar o conjuntoda sociedade. Mas esta ação reguladora, se ela é necessária, não deve degenerar em uma estreita subordinação, como aconteceu no século XVII e no século XVIII. Osdois órgãos em relação devem permanecer distintos e autônomos: cada um deles tem suas funções das quais apenas ele pode se incumbir. Se é às assembléias governamentaisque incumbe estabelecer os princípios gerais da legislação industrial, elas são incapazes de diversificá-los segundo as diferentes espécies de indústria. É estadiversificação que constitui a tarefa específica da corporação. 32. Esta organização unitária para o conjunto de um mesmo país não inclui no entanto de forma algumaa formação de órgãos secundários, compreendendo os trabalhadores similares de uma mesma região ou de uma mesma localidade, e cujo papel seria de especializar aindamais a regulamentação profissional segundo as necessidades locais ou regionais. Assim, a vida econômica poderia regulamentar-se e determinar-se sem nada perder desua diversidade. [ 31 Nada temos a dizer da organização internacional que. em decorrência do caráter internacional do mercado, se desenvolveria necessariamente acima destaorganização nacional, pois apenas esta pode constituir atualmente uma instituição jurídica. A primeira, no estado atual do direito europeu, só pode resultar de livres arranjosconcluídos entre corporações nacionais. (N. do A ) 32 Esta especialização apenas poderia fazer-se com a ajuda de assembléias eleitas, encarregadas de representar a corporação. No estado atual da indústria,essas assembléias, assim como os tribunais encarregados de aplicar a regulamentação profissional, deveriam compreender representantes dos empregados e dos empregadores,como já ocorria nos tribunais de prud'hommes;* isto segundo proporções correspondentes à importância respectiva atribuída pela opinião a estes dois fatores da produção.Mas, se é necessário que ambos se encontrem nos conselhos diretores da corporação, não é menos indispensável que na base da organização corporativa eles formem gruposdistintos e independentes, pois seus interesses são freqüentemente rivais e antagônicos. Para que eles possam tomar consciência livremente, é preciso que a tomemseparadamente. Os dois agrupamentos assim constituídos poderiam em seguida designar seus representantes para as assembléias comuns. (N. do A.) »> -PrudTiomme — Membro de um conselho eletivo composto por um número igual de patrões e de operários para julgar ou terminar os conflitos profissionais por via deconciliação. (N. do T.) ] Por isto mesmo, o regime corporativo estaria protegido contra esta tendência ao imobilismo que freqüentemente e justamente se censurou no passado; pois esteera um defeito que pertencia ao caráter estritamente comuna! da corporação. Enquanto estava limitada aos próprios muros da cidade, era inevitável que se tornasse prisioneirada tradição como a própria cidade. Como, num grupo também restrito, as condições da vida são quase invariáveis, o hábito exerce sobre as pessoas e sobre as coisasum império sem equilíbrio, e as próprias novidades acabam sendo temidas. O tradicionalismo das corporações era, pois, um aspecto do tradicionalismo comunal e tinhaas mesmas razões de ser. Depois, uma vez que se tornou inveterado nos costumes, sobreviveu às causas que o originaram e o justificavam primitivamente. Eis por que,quando a concentração material e moral do país e a grande indústria, que foi sua conseqüência, abriram os espíritos a novos desejos, despertaram novas necessidades,introduziram nos gostos e nas modas uma mobilidade até então desconhecida, a corporação, obstinadamente presa aos seus velhos costumes, estava sem condições de respondera essas novas exigências. Mas as corporações nacionais, em razão mesmo de sua dimensão e de sua complexidade, não

p. 18estariam expostas a este perigo. Posto que muitos espíritos diferentes nela estavam em atividade, não se pode estabelecer uma uniformidade estacionaria. Num grupoformado de elementos numerosos e diversos, produzem-se sem cessar remanejameníos que são igualmente fontes de novidades. O equilíbrio de uma tal organização nãoteria pois nada de rígido e, conseqüentemente, encontrar-se-ia em harmonia com o equilíbrio móvel das necessidades e das idéias.É preciso, no entanto, precaver-se de crer que todo o papel da corporação deva consistir em estabelecer regras e em aplicá-las. Sem dúvida, em todo lugar onde seforma um grupo, forma-se também uma disciplina moral. Mas a instituição desta disciplina é apenas uma das numerosas maneiras pelas quais se manifesta toda a atividadecoletiva. Um grupo não é somente uma autoridade moral que rege a vida de seus membros, é também uma fonte de vida sui generis. Dele se desprende um calor que aqueceou reanima os corações, abre-os à simpatia, faz derreter os egoísmos. Assim a família foi no passado a legisladora de um direito e de uma moral cuja severidade iafreqüentemente à extrema rudeza, ao mesmo tempo que foi um meio onde os homens aprenderam pela primeira vez a apreciar as efusões do sentimento. Nós vimos da mesmamaneira como a corporação, tanto em Roma como na Idade Média, despertava essas mesmas necessidades e procurava satisfazê-las. As corporações do futuro terão umacomplexidade de atribuições ainda maior em razão de sua amplitude adquirida. A suas funções propriamente profissionais virão agrupar-se outras que pertencem atualmenteàs comunas ou às sociedades privadas. Tais são as funções de assistência que, para serem bem exercidas, supõem, entre assistentes e assistidos, sentimentos de solidariedade,

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uma certa homogeneidade intelectual e moral como facilmente produz a prática de uma mesma profissão. Muitas obras educativas (ensinamentos técnicos, ensinamentosde adultos, etc.) parecem igualmente dever encontrar na corporação seu meio natural. É o mesmo que uma certa vida estética; pois parece conforme à natureza das coisasque esta forma nobre do jogo e da recreação se desenvolva lado a lado com a vida séria à qual ela deve servir como contrapeso e reparação. De fato, vêem-se já agorasindicatos que são ao mesmo tempo sociedades de auxílios mútuos, outros que fundam casas comuns onde são organizados cursos, concertos, representações dramáticas.A atividade corporativa pode, pois, se exercer sob as formas mais variadas.Há mesmo motivo de supor que a corporação está destinada a se tornar a base ou uma das bases essenciais de nossa organização política. Vimos, com efeito, que, seela começa primeiramente por ser exterior ao sistema social, tende a engajar-se nele mais e mais profundamente à medida que a vida econômica se desenvolve. Tudopermite, pois, prever que, o progresso continuando no mesmo sentido, ela deverá tomar na sociedade um lugar cada vez mais central e mais preponderante. Ela foi outroraa divisão elementar da organização comunal. Agora que a comuna, de organismo autônomo que foi no passado, se perdeu no Estado como o mercado municipal no mercadonacional, não é legítimo pensar que a corporação deveria também sofrer uma transformação correspondente e se tornar a divisão elementar do Estado, a unidade políticafundamental? A sociedade, em lugar de permanecer o que é ainda hoje, um agregado de distritos territoriais justapostos, tornar-se-ia um vasto sistema de corporaçõesnacionais. É um pedido feito por toda parte que os colégios eleitorais sejam formados por profissões e não por circunscrições territoriais e é certo que, desta forma,as assembléias políticas exprimiriam mais exatamente a diversidade dos interesses sociais e suas relações; seriam um resumo mais fiel da vida social et^seu conjunto.Mas dizer que o país, para tomar consciência de si mesmo, deve se agrupar pbr profissões não é reconhecer que a profissão organizada ou a corporação deveria sero órgão essencial da vida pública?

p. 19Assim seria preenchida a grave lacuna que assinalamos mais adiante na estrutura das sociedades européias, da nossa em particular. Ver-se-á, com efeito, como, àmedida que se avança na história, a organização que tem por base agrupamentos territoriais (aldeia ou cidade, distrito, província, etc.) vai cada vez mais desaparecendo.Sem dúvida, cada um de nós pertence a uma comuna, a um departamento, mas os laços que nos unem se tornam cada dia mais frágeis e mais frouxos. Essas divisões geográficassão na maioria das vezes artificiais e não despertam mais em nós sentimentos profundos. O espírito provincial desapareceu para sempre; o patriotismo de paróquiase tornou um arcaísmo que não se pode restaurar à vontade. Os negócios municipais ou departamentais não nos tocam e não nos apaixonam mais senão na medida em quecoincidam com nossos negócios profissionais. Nossa atividade se estende além desses grupos muito estreitos para ela, e, por outro lado, uma boa parte do que nelesse passa nos deixa indiferentes. Produziu-se como que um enfraquecimento espontâneo da velha estrutura social. Ora. não é possível que esta organização interna desapareçasem que nada tome seu lugar. Uma sociedade composta por uma poeira infinita de indivíduos desorganizados, que um Estado hipertrofiado se esforça por encerrar e conter,constitui uma verdadeira monstruosidade sociológica. Pois a atividade coletiva é sempre muito complexa para poder ser expressa por um único órgão do Estado; alémdo mais, o Estado está muito longe dos indivíduos, tem com eles relações muito exteriores e muito intermitentes para que lhe seja possível penetrar profundamentenas consciências individuais e socializá-las interiormente. Eis por que, lá onde ele é o único meio onde os homens podem formar-se para a prática da vida comum,é inevitável que eles se desliguem dele, que se separem uns dos outros, e que, na mesma medida, a sociedade se desagregue. Uma nação só pode se manter se, entreo Estado e os particulares, se intercalar toda uma série de grupos secundários que sejam bastante próximos dos indivíduos para atraí-los com força à sua esferade ação e encadeá-los assim na torrente geral da vida social. Acabamos de mostrar como os grupos profissionais estão aptos para preencher este papel e que tudo defato se destina a isso. Concebe-se logo quanto importa que, sobretudo na ordem econômica, se libertem deste estado de inconsistência e desorganização onde ficaramdurante um século, dado que as profissões deste tipo absorvem hoje a maior parte das forças coletivas. 33. [ 33. Não queremos dizer, aliás, que as circunscrições territoriais estão destinadas a desaparecer completamente, mas apenas que passarão para o segundo plano. As instituiçõesantigas não se apagam jamais diante das instituições novas ao ponto de não deixarem mais vestígios. Elas persistem, não apenas por sobrevivência, mas porque persistetambém algo das necessidades às quais elas correspondiam. A vizinhança material sempre constituirá um elo entre os homens; em conseqüência, a organização políticae social com base territorial certamente subsistirá. Ela apenas não terá mais sua atual preponderância, precisamente porque este elo perdeu sua força. Quanto aomais. mostramos mais acima que mesmo na base da corporação se encontrarão sempre divisas geográficas. Além do mais, entre as diversas corporações de uma mesma localidadeou de uma mesma região, haverá necessariamente relações especiais de solidariedade que reclamarão sempre uma organização apropriada. (N. do A.) 3 O Suicídio,págs. 434 ss. (N. do A.) ]

Talvez pudéssemos nas devidas condições explicar melhor agora as conclusões às quais chegamos no ali de nosso livro sobre O Suicídio.3 4 Nós já apresentávamos aliuma forte organização corporativa como um meio de remediar a inquietação da qual o aumento do suicídio, aliado, aliás, a muitos outros sintomas, atesta a existência.Alguns críticos acharam que o remédio não era proporcional à extensão do mal. Enganaram-se, porém, sobre a verdadeira natureza da corporação, sobre o lugar que lhepertence no conjunto de nossa vida coletiva e sobre a grave anomalia que resultou de sua desaparição. Viram ali apenas uma associação utilitária da qual todo o efeitoseria manejar melhor

p. 20os interesses econômicos, sendo que na realidade ela deveria ser o elemento essencial de nossa estrutura social. A ausência de toda instituição corporativacria, pois, na organização de um povo como o nosso, um vazio do qual é difícil exagerar a importância. É todo um sistema de órgãos necessários ao funcionamento normalda vida comum que nos faz falta. Um tal vício de constituição não é evidentemente um mal local, limitado a uma região da sociedade; é uma doença totius substantiaeque afeta todo o organismo e, por conseguinte, a empresa que terá por objetivo pôr aí um fim não pode deixar de produzir conseqüências as mais extensas. É à saúdegeral do corpo social que isso interessa.Isto não é dizer, todavia, que a corporação é um tipo de panacéia que possa servir para tudo. A crise da qual sofremos não tem uma só e única causa. Para que elacesse, não é suficiente que uma regulamentação qualquer se estabeleça onde é necessária; é preciso, além do mais, que ela seja o que deve ser, quer dizer, justa.Ora, assim como diremos mais adiante, "enquanto houver ricos e pobres de nascimento, não se terá contrato justo ", nem uma justa distribuição de condições sociais.Mas, se a reforma corporativa não dispensa outras, ela é a condição primeira de sua eficácia. Imaginemos, com efeito, que esteja enfim realizada a condição primordialda justiça ideal; suponhamos que os homens entrem na vida de um estado de perfeita igualdade econômica, isto é, que a riqueza tenha cessado completamente de serhereditária. Os problemas em meio aos quais nos debatemos não estariam resolvidos por isto. com efeito, haverá sempre um aparelho econômico e diversos agentes quecolaborarão para seu funcionamento; será preciso, pois, determinar seus direitos e seus deveres, e isto para cada tipo de indústria. Será preciso que em cada profissãose constitua um corpo de regras que fixe a quantidade do trabalho, a justa remuneração dos diferentes funcionários, seu dever frente aos outros e frente à comunidade,etc. Estar-se-á, não menos que atualmente, diante de uma tábua rasa. Porque a riqueza não se transmitirá mais segundo os mesmos princípios de hoje, o estado de anarquianão terá desaparecido, pois ele não consiste apenas no fato de as coisas estarem aqui mais do que ali, em tais mãos mais do que em outras, mas em que a atividade,da qual estas coisas são a ocasião ou instrumento, não está regulamentada; e ela não se regulamentará por encantamento assim que for útil, se as forças necessáriaspara instituir esta regulamentação não forem previamente suscitadas e organizadas.Há mais: novas dificuldades surgiriam então e permaneceriam insolúveis sem uma organização corporativa. Até o presente, com efeito, era a família que, seja pelainstituição da propriedade coletiva, seja pela instituição da herança, assegurava a continuidade da vida econômica; ou ela possuía e explorava os bens de uma maneiraindivisa, ou, a partir do momento em que o antigo comunismo familiar foi abalado, era ela quem os recebia, representada pelos parentes mais próximos quando da mortedo proprietário.3 5 No primeiro caso, não havia mutação por óbito e as relações das coisas com as pessoas permaneciam o que eram sem mesmo serem modificadas pelarenovação das gerações; no segundo, a mutação se fazia automaticamente, e não havia momento perceptível onde os bens ficassem vacantes, sem mãos para utilizá-los.Mas, se a sociedade doméstica não deve mais desempenhar este papel, é melhor que um outro órgão social tome seu lugar no exercício desta função necessária. Poishá só um meio para impedir que o funcionamento3 5 É verdade que, ali_onde existe o testamento, o próprio proprietário pode determinar a transmissão de seus bens. Mas o testamento^ apenas a faculdade de derrogarsegundo a regra do direito sucessoral; é esta regra que é a norma segundo a qual se fazem estas transmissões. Estas derrogações, aliás, são geralmente limita das

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e são sempre a exceção (N. do A.)

p. 21das coisas seja periodicamente suspenso: que um grupo, perpétuo como a família, ou ele mesmo os possua e explore, ou os receba, por ocasião de cada óbito, para remetê-los,se possível, a algum outro detentor individual que os valorize. Mas dissemos e tornamos a dizer quanto o Estado é pouco afeito a essas tarefas econômicas, muitoespeciais para ele. Há, pois, apenas o grupo profissional que pode desempenhá-las utilmente. Ele corresponde, com efeito, às duas condições necessárias: está interessadotão de perto na vida econômica que sente todas as suas necessidades, ao mesmo tempo que tem uma perenidade pelo menos igual à da família. Mas, para ter este oficio,ainda é preciso que ele exista e que tenha tomado bastante consistência e maturidade para estar à altura do papel novo e complexo de que será incumbido.Se, pois, o problema da corporação não é o único que se impõe à atenção pública, não existe certamente outro que seja mais urgente, visto os outros não poderem serabordados enquanto ele não for resolvido. Nenhuma modificação um pouco importante poderá ser introduzida na ordem jurídica se não se começa por criar o órgão necessáriopara a instituição do novo direito. Eis por que é vão deter-se em procurar, com muita precisão o que deverá ser esse direito; pois, no estado atual de nossos conhecimentoscientíficos não podemos antecipá-lo senão por aproximações grosseiras e sempre duvidosas. O que importa é pôr logo mãos à obra, estabelecendo as forças morais que,sozinhas, poderão determiná-lo, realizando-o!

p. 23 LIVRO I

A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO

CAPÍTULO I

Método para determinar esta função

A palavra função é empregada de duas maneiras muito diferentes. Designa ora um sistema de movimentos vitais, abstração feita de suas conseqüências, ora a relaçãode correspondência que existe entre estes movimentos e algumas necessidades do organismo. É assim que se fala da função de digestão, de respiração, etc.; mas diz-setambém que a digestão tem por função presidir à incorporação no organismo de substâncias líquidas ou sólidas destinadas a reparar suas perdas; que a respiração tempor função introduzir nos tecidos do animal o gás necessário à manutenção da vida, etc. É nesta segunda acepção que entendemos a palavra. Perguntar-se qual é a funçãoda divisão do trabalho, portanto, é procurar a qual necessidade ela corresponde; quando resolvermos esta questão, poderemos ver se esta necessidade é da mesma naturezaque aquelas às quais correspondem outras regras de conduta cujo caráter moral não^é discutido.Se escolhemos este termo, foi porque qualquer outro seria inexato ou equívoco. Não podemos empregar o termo fim ou objetivo e falar da finalidade da divisão do trabalho,porque isto seria supor que a divisão do trabalho existe em vista de resultados que iremos determinar. O termo resultado ou efeito não nos satisfaria mais, porqueele não desperta nenhuma idéia de correspondência. Ao contrário, a palavra papel ou função tem a grande \antagem de implicar esta idéia, mas sem prejulgar nada sobrea questão de saber como esta correspondência se estabeleceu, se ela resulta de uma adaptação intencional e preconcebida ou de um ajustamento repentino, Ora, o quenos importa é saber se ela existe e em que consiste, não se foi pressentida de antemão nem mesmo se foi sentida ulteriormente.

I

Nada parece mais fácil, à primeira vista, do que determinar o papel da divisão do trabalho. Seus esforços não são conhecidos por todo mundo? Tendo em vista que elaaumenta simultaneamente a força produtiva e a habilidade do trabalhador, ela é a condição necessária do desenvolvimento intelectual e material das sociedades; elaé a fonte da civilização. Por outro lado, como se atribui de bom grado à civilização um valor absoluto, não se tenta nem mesmo procurar uma outra função para adivisão do trabalho.Que ela realmente tenha este resultado, é algo que não se pode pensar em discutir. Mas, se ela não tivesse outro e não servisse para outra coisa, não se teria nenhumarazão para atribuir-lhe um caráter moral.com efeito, os serviços que ela assim presta são completamente estranhos à vida moral ou, pelo menos, têm com ela apenas relações muito indiretas e muito distantes.Menino que hoje esteja muito em voga responder aos libelos de Rousseau por ditirambos em sentido inverso, não está completamente provado que a civilização seja umacoisa

p. 24moral. Para encerrar a questão, não podemos nos referir a análises de conceitos que necessariamente são subjetivas; seria preciso conhecer um fato que pudesse servirpara medir o nível de moralidade média e observar em seguida como ele varia na medida em que a civilização progride. Infelizmente, esta unidade de medida nos falta;mas possuímos uma para a imoralidade coletiva. O número médio dos suicídios, dos crimes de todo tipo, pode com efeito servir para marcar a elevação da imoralidadeem uma dada sociedade. Ora, se fizermos a experiência, ela não redundará em honra para a civilização, pois o número destes fenômenos mórbidos parece crescer na medidaem que as artes, as ciências e a indústria progridem.3 6 Sem dúvida, haveria alguma leviandade em concluir deste fato que a civilização é imoral; mas pelo menospode-se ficar certo de que, se ela tem sobre a vida moral uma influência positiva e favorável, esta é muito fraca.Se, por outro lado, se analisa este complexus mal definido que chamamos civilização, vê-se que os elementos dos quais está composta estão desprovidos de todo carátermoral.Isto é verdadeiro sobretudo para a atividade econômica que acompanha sempre a civilização. Muito longe de ela servir ao progresso da moral, é nos grandes centrosindustriais que os crimes e os suicídios são mais numerosos; em todo caso, é evidente que ela não apresenta os signos exteriores pelos quais se reconhecem os fatosmorais. Substituímos as diligências pelas estradas de ferro, os barcos a vela pelos transatlânticos, as pequenas oficinas pelas manufaturas; todo este desdobramentode atividades é geralmente visto como útil, mas não tem nada de moralmente obrigatório. O artesão, o pequeno industrial, que resistem a esta corrente geral e perseveramobstinadamente em seus modestos empreendimentos, cumprem igualmente bem seu dever como o grande manufatureiro que cobre um país de usinas e reúne sob suas ordenstodo um exército de operários. A consciência moral das nações não se engana nisto: ela prefere um pouco de justiça a todos os aperfeiçoamentos industriais do mundo.Sem dúvida, a atividade industrial não existe sem razão de ser; ela corresponde a necessidades, mas estas necessidades não são morais.com maior razão acontece o mesmo com a arte, que é absolutamente refratária a tudo o que se assemelha a uma obrigação, pois ela é o domínio da liberdade. Ela éum luxo e um adorno que talvez seja bom ter, mas que não se pode ter o dever de adquirir: o que é supérfluo não se impõe. Ao contrário, a moral é o mínimo indispensável,o estrito necessário, pão cotidiano sem o qual as sociedades não podem viver. A arte responde à necessidade que temos de difundir nossa atividade sem fim, pelo prazerde difundi-la, enquanto que a moral nos obriga a seguir uma via determinada em direção a um fim definido: quem diz obrigação diz igualmente constrangimento. Assim,mesmo que possa estar animada por idéias morais ou achar-se misturada à evolução dos fenômenos morais propriamente ditos, a arte não é moral por si mesma. Talveza própria observação estabeleceria que, junto aos indivíduos como nas sociedades, um desenvolvimento intemperante de faculdades estéticas seja um grave sintoma doponto de vista da moralidade.De todos os elementos da civilização, a ciência é o único que, em certas condições, apresenta um caráter moral. com efeito, as sociedades tendem cada vez mais aver como um dever do indivíduo desenvolver sua inteligência, assimilando as verdades científicas que são estabelecidas. Existe desde agora um certo número de

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conhecimentosque devemos todos possuir. Não se é obrigado a jogar-se no grande conflito industrial, não se é3 6 Ver Alexandre von Oettingen, Moralstatistik, Erlangen, 1882, §§ 37 ss. — Tarde, Criminalidade comparada, cap. II (Paris, F. Alcan) (N. do A.)

p. 25obrigado a ser artista, mas agora todo mundo é obrigado a não permanecer ignorante. Esta obrigação é mesmo tão fortemente sentida que, em certas sociedades, nãoapenas é sancionada pela opinião pública como também pela lei. Aliás, não é impossível entrever de onde vem este privilégio especial da ciência. É que a ciêncianão é outra coisa senão a consciência levada ao seu mais alto ponto de claridade. Ora, para que as sociedades possam viver nas condições de existência que lhes sãoagora feitas, é preciso que o campo da consciência, tanto individual quanto social, se estenda e se ilumine. com efeito, como os meios nos quais elas vivem tornam-secada vez mais complexos e, por conseguinte, cada vez mais móveis, para durar é preciso que elas mudem freqüentemente. Por outro lado, quanto mais uma consciênciaé obscura, tanto mais é refratária à mudança, pois não vê com muita rapidez que é preciso mudar, nem em qual sentido é preciso mudar; ao contrário, uma consciênciaesclarecida sabe preparar previamente a maneira de adaptar-se a isto. Eis por que é necessário que a inteligência guiada pela ciência tome uma parte maior no cursoda vida coletiva.Ao menos, a ciência que se requer que todo mundo assim a possua não merece quase ser chamada por este nome. Não é a ciência, é no máximo sua parte comum e a maisgeral. Ela reduz-se, com efeito, a um pequeno número de conhecimentos indispensáveis que são exigidos de todos só porque estão ao alcance de todos. A ciência propriamentedita ultrapassa infinitamente este nível vulgar. Não compreende apenas isto que é vergonhoso ignorar, mas tudo o que é possível saber. Ela não supõe apenas, nosindivíduos que a cultivam, estas faculdades médias que todos os homens possuem, mas disposições especiais. Portanto, sendo acessível somente a uma elite, não é obrigatória;é uma coisa útil e bela, mas não é necessária a tal ponto que a sociedade a reclame imperativamente. É vantajoso estar munido dela; não há nada de imoral em nãoadquiri-la. Ela é um campo de ação que permanece aberto à iniciativa de todos, mas onde ninguém está constrangido a entrar. Não se é obrigado a ser sábio como nãose é obrigado a ser artista. A ciência está, portanto, como a arte e a indústria, fora da moral.3 7Se houve tantas controvérsias sobre o caráter moral da civilização foi porque, freqüentemente, os moralistas não têm critério objetivo para distinguir os fatos moraisdos fatos que não o são. Tem-se o hábito de qualificar de moral tudo o que tem alguma nobreza e algum valor, tudo o que é objeto de aspirações um pouco elevadas,e foi graças a esta extensão abusiva da palavra que se fez a civilização penetrar na moral. Mas não é preciso que o domínio da ética seja tão indeterminado; elecompreende todas as regras de ação que se impõem imperativamente à conduta e às quais está ligada uma sanção, mas não vai mais longe. Por conseguinte, visto nãohaver nada na civilização que apresente este critério da moralidade, ela é moralmente indiferente. Portanto, se a divisão do trabalho não tivesse outro papel alémdo de tornar a civilização possível, participaria da mesma neutralidade moral. ,Foi porque geralmente não se deu outra função à divisão do trabalho que as teorias, que dele foram propostas, são tão inconsistentes. com efeito, supondo que existauma zona neutra em moral, é impossível que a divisão do trabalho faça parte dela.38 Se não é boa, é má; se não é moral, é uma ruína moral. Portanto, se ela não servepara outra coisa, cai-se em insolúveis antinomias, pois as vantagens econômicas que ela apresenta são compensadas por inconvenientes morais e, como é impossívelsubtrair uma da outra3 7 "O caráter essencial do bem comparado ao verdadeiro é portanto o de ser o mado em si mesmo, não tem este caráter." (Janet, Moral, pag. 139.) (N. do A.)38 Pois ela está em antagonismo com a regra moral. (N. do A.)tório. O verdadeiro, to-

p. 26estas duas quantidades heterogêneas e incomparáveis, não se saberia dizer qual das duas leva vantagem sobre a outra, nem, por conseguinte, tomar um partido. Invocar-se-áa primazia da moral para condenar radicalmente a divisão do trabalho. Mas, além desta ultima ratio ser um golpe de Estado científico, a evidente necessidade da especializaçãotorna uma tal posição impossível de sustentar.Há mais: se a divisão do trabalho não preenche outro papel, ela apenas tem caráter moral, mas não se percebe qual razão de ser ela pode ter. Veremos, com efeito,que por si mesma a civilização não tem valor intrínseco e absoluto; o que faz seu valor é que corresponde a certas necessidades. Ora, esta proposição será demonstradamais adiante, estas necessidades são conseqüências da divisão do trabalho. É porque esta não prossegue sem um acréscimo de fadiga que o homem é constrangido a buscar,como aumento da restauração de forças, estes bens da civilização que, de outra forma, seriam para ele sem interesse. Portanto, se a divisão do trabalho não respondessea outras necessidades além daquelas, não teria outra função que a de atenuar os efeitos que ela própria produz, que a de curar as feridas que ela mesma fez. Nestascondições, poderia ser necessário suportá-la, mas não haveria nenhuma razão de querê-la, porque os serviços que ela prestaria reduzir-se-iam a reparar as perdasque ela causa.Portanto, tudo nos convida a procurar uma outra função para a divisão do trabalho. Alguns fatos de observação corrente vão colocar-nos no caminho da solução.

II

Todo mundo sabe que gostamos de quem se assemelha a nós, de quem pensa e sente como nós. Mas o fenômeno contrário não é menos freqüente. Acontece muitas vezes quenos sentimos atraídos por pessoas que não se nos assemelham, precisamente porque são diferentes. Estes fatos são aparentemente tão contraditórios que, em todos ostempos, os moralistas hesitaram sobre a verdadeira natureza da amizade e- a derivaram ora de uma ora de outra causa. Os gregos já tinham colocado o problema. "Aamizade", diz Aristóteles, "dá lugar a muitas discussões. Segundo uns, consiste em uma certa semelhança e aqueles que se assemelham se amam: daí o provérbio quemse assemelha se reúne e o gaio busca o gaio, e outros ditados similares. Mas, segundo outros, ao contrário, todos aqueles que se parecem são oleiros uns para osoutros. Existem outras explicações buscadas em épocas mais remotas e tomadas da consideração da natureza. Assim, Eurípides diz que a terra ressecada está sequiosade chuva e que o céu sombrio carregado de chuva se precipita com um amoroso furor sobre a terra. Heráclito afirma que se ajusta apenas o que se opõe, que a maisbela harmonia nasce das diferenças, que a discórdia é a lei de todo devir."39O que prova esta oposição das doutrinas è que ambas as amizades existem na natureza. A dessemelhança, como a semelhança, pode ser causa de mútua atração. Entretanto,não são quaisquer dessemelhanças capazes de produzir este efeito. Não encontramos nenhum prazer em ver em outro uma natureza simplesmente diferente da nossa. Ospródigos não procuram a companhia dos avaros, nem os de caráter correto e franco aquela dos hipócritas e dos dissimulados; os espíritos amáveis e doces não sentemnenhum gosto pelos temperamentos duros e malevolentes. Portanto, existem apenas diferenças de um certo gênero que tendem uma para a outra; são aquelas que, ao invésde se oporem e se excluírem, completam-se mutuamente. "Existe", diz M. Bain, "um gênero de dessemelhança que repele, um outro que atrai, um que tende a levar à rivalidade,outro39 Ética a Nicômaco, VIII, I, 1155 a, 32. (N. do A.)

p. 27a conduzir à amizade. . . Se uma (das duas pessoas) possui algo que a outra não tem, mas que ela deseja, existe neste fato o ponto de partida de um charme positivo."40 É assim que o teórico com espírito sagaz e sutil tem freqüentemente uma simpatia toda especial pelos homens práticos, ao sentido correto e às intuições rápidas;o tímido, pelas pessoas decididas e resolutas; o fraco, pelo forte, e reciprocamente. Por mais ricamente dotados que sejamos, sempre nos falta alguma coisa, os melhoresdentre nós têm o sentimento de sua insuficiência. É porque buscamos em nossos amigos as qualidades das quais carecemos, pois, unindo-nos a eles, participamos dealguma maneira da sua natureza e nos sentimos então menos incompletos. Formam-se assim pequenas associações de amigos onde cada um tem seu papel conforme o seu caráter,-onde

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há uma verdadeira troca de serviços. Um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa, e é esta partilha de funções, ou, para empregar a expressão consagrada,esta divisão do trabalho que determina estas relações de amizade. Assim, somos conduzidos a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Neste caso, com efeito, os serviços econômicos que ela pode prestar são poucacoisaao lado do efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade. De qualquer maneira que esteresultado seja obtido, é ela que suscita estas sociedades de amigos e ela os marca com seu cunho.A história da sociedade conjugal nos oferece do mesmo fenômeno um exemplo mais admirável ainda.Sem dúvida, a atração sexual só se faz sentir entre indivíduos da mesma espécie e o amor supõe geralmente uma certa harmonia de pensamentos e sentimentos. Não émenos verdade que o que dá a esta inclinação seu caráter específico e o que produz sua particular energia não é a semelhança, mas a dessemelhança das naturezas queele une. É porque o homem e a mulher diferem um do outro que se procuram com paixão. Entretanto, como no caso precedente, não é um contraste puro e simples quefaz eclodir estes sentimentos recíprocos: apenas diferenças que se supõem e se completam podem ter esta virtude. com efeito, o homem e a mulher isolados um do outrosão somente partes diferentes de um mesmo todo concreto que eles formam unindo-se. Em outros termos, é a divisão do trabalho sexual que é a fonte da solidariedadeconjugal e eis por que os psicólogos observaram corretamente que a separação dos sexos tinha sido um acontecimento capital na evolução dos sentimentos; ela tornoupossível talvez a mais forte de todas as inclinações desinteressadas.Há mais. A divisão do trabalho sexual é suscetível de mais ou de menos; ela pode ou não versar apenas sobre os órgãos sexuais e alguns caracteres secundários quedeles dependem, ou, ao contrário, estender-se a todas as funções orgânicas e sociais. Ora, pode-se ver na história que ela se desenvolveu exatamente no mesmo sentidoe da mesma maneira que a solidariedade conjugal. Quanto mais voltamos ao passado, tanto mais ela se reduz a pouca coisa. A mulher destes tempos distantes não era de maneira alguma a criatura frágil quese tornou com o progresso da moralidade. Ossadas pré-históricas testemunham que a diferença entre a força do homem e a da mulher era relativamente muito menor doque é hoje.4. Ainda agora, na infância e até a puberdade, o esqueleto dos dois sexos não difere de um modo apreciável: seus traços são sobretudo femininos. Se se admite queo desenvolvimento do indivíduo reproduz resumidamente o da espécie, tem-se o direito de conjeturar que aEmoções e Vontade, trad. fr., Paris, F. Alcan, pág. 135. (N. do A.) Topinard, Antropologia, pág. 146. (N. do A.)

p. 28mesma homogeneidade se encontrava no começo da evolução humana e de ver na forma feminina uma imagem aproximada do que era originalmente este tipo único e comumdo qual a variedade masculina se desprendeu pouco a pouco. Viajantes narram-nos, aliás, que, em um certo número de tribos da América do Sul, o homem e a mulher apresentamna estrutura e aspecto geral uma semelhança maior do que se vê em outros lugares. 42 Enfim, o Dr. Lebon pôde estabelecer diretamente e com uma precisão matemáticaesta semelhança original dos dois sexos para o órgão eminente da vida física e psíquica, o cérebro. Comparando um grande número de crânios, escolhidos em raçase sociedades diferentes, chegou à conclusão seguinte: "O volume do crânio do homem e da mulher, mesmo quando se comparam pessoas de igual idade, estatura e pesoiguais, apresenta diferenças consideráveis em favor do homem e esta desigualdade vai igualmente crescendo com a civilização, de maneira que, do ponto de vista damassa do cérebro e, por conseguinte, da inteligência, a mulher tende a diferenciar-se cada vez mais do homem. A diferença que existe, por exemplo, entre a médiados crânios dos parisienses é quase o dobro daquela observada entre os crânios masculinos e femininos do antigo Egito." 43 Sobre este ponto, um antropólogo alemão,M. Bischoff, chegou aos mesmos resultados. 4 4 Estas semelhanças anatômicas são acompanhadas de semelhanças funcionais. Nestas mesmas sociedades, com efeito, as funções femininas não se distinguem claramentedas funções masculinas; mas os dois sexos levam quase a mesma existência. Existe ainda agora um número muito grande de povos selvagens onde a mulher toma parte navida política. É o que se observou notadamente nas tribos indígenas da América, como os iroqueses, os natchez,4 5 no Havaí onde a mulher participa de mil maneirasda vida dos homens,4 6 na Nova Zelândia, em Samoa. Igualmente, vêem-se com freqüência mulheres acompanharem os homens na guerra, excitá-los ao combate e mesmo tomarparte nele de uma maneira muito ativa. Em Cuba, no Daomé, são tão guerreiras quanto os homens e lutam ao lado deles 4 7. Um dos atributos hoje distintivos da mulher,a doçura, não parece ter-lhe pertencido primitivamente. Já em certas espécies de animais a fêmea faz-se notar antes pelo caráter contrário.Ora, nestes mesmos povos, o casamento está num estado completamente rudimentar. É mesmo verossímil, senão absolutamente demonstrado, que houve uma época na históriada família onde não havia casamento; faziam-se e desfaziam-se à vontade as relações sexuais sem que nenhuma obrigação jurídica ligasse os pares. Em todo caso, conhecemosum tipo familiar que é relativamente próximo de nós 4S e em que o casamento ainda está no estado de germe indistinto: é a família materna. As relações da mãe comsuas crianças são aqui muito definidas, mas as de dois esposos são muito vagas. Elas podem cessar desde que as partes o queiram, ou ainda se realizam apenas porum tempo limitado. 49 A fidelidade conjugal aqui não é ainda exigida. O casamento, ou o que42 Ver Spencer, Ensaios Científicos, trad. fr., Paris, F. Alcan, pág. 300 — Waitz, em sua Antropologia dos Povos Primitivos, 1. 76, narra muitos fatos do mesmo gênero.(N. do A.) "3 O Homem e as Sociedades, II, pág. 154. (N. do A.)4 O Peso do Cérebro do Homem, um Estudo, Bonn, 1880. (N. do A.)5 Waitz, Antropologia, in, págs. 101-102. (N. do A.)6 Waitz, op. ei/., VI, pág. 121. (N. do A.) -i7 Spencer, Sociologia, tr. fr., Paris, F. Alcan, in, pág. 391. (N. do A.)A família materna certamente existiu entre os germanos. — V. Dargun, Mutterrecht und Raubehe im Germanischen Rechte, Breslau, 1883. (N. do A.)Vide particularmente Smith, Casamento e Relação Familiar na Arábia Antiga, Cambridge, 1885, pág.67. (N. do A.)

p. 29se chama assim, consiste unicamente em obrigações de extensão restrita, e, freqüentemente, de curta duração, que ligam o marido aos pais da mulher; portanto, elereduz-se a pouca coisa. Ora, em uma dada sociedade o conjunto destas regras jurídicas que constituem o casamento somente simboliza o estado da solidariedade conjugal.Se esta é muito forte, os elos que unem os esposos são numerosos e complexos e, por conseguinte, a regulamentação matrimonial, que tem por objeto defini-los, é muitodesenvolvida. Se, ao contrário, a sociedade conjugal carece de coesão, se as relações do homem e da mulher são instáveis e intermitentes, ela não pode tomar umaforma bem determinada e, conseqüentemente, o casamento reduz-se a um pequeno número de regras sem rigor e sem precisão. O estado do casamento nas sociedades ondeos dois sexos são fracamente diferenciados testemunha portanto que a própria solidariedade conjugal é muito fraca.Ao contrário, na medida em que se avança rumo aos tempos modernos, vê-se o casamento desenvolver-se. A rede de elos que ele cria estende-se cada vez mais, as obrigaçõesque ele sanciona multiplicam-se. As condições nas quais ele pode ser concluído, aquelas nas quais ele pode ser dissolvido delimitam-se com uma precisão crescente,assim como os efeitos desta dissolução. O dever de fidelidade se organiza; primeiramente imposto apenas à mulher, mais tarde torna-se recíproco. Quando o dote aparece,regras muito complexas vêm fixar os direitos respectivos de cada esposo sobre sua própria fortuna e sobre a do outro. Aliás, é suficiente dar uma olhada nos códigospara ver que lugar importante neles ocupa o casamento. A união dos dois esposos deixou de ser efêmera; não é mais um contato exterior, passageiro e parcial, masuma associação íntima, durável, muitas vezes indissolúvel de duas existências inteiras.Ora, é certo que, ao mesmo tempo, o trabalho sexual dividiu-se cada vez mais. Limitado primeiramente apenas às funções sexuais, estendeu-se pouco a pouco a váriasoutras. Há muito tempo a mulher retirou-se da guerra, dos negócios públicos, há muito tempo sua vida concentrou-se totalmente no interior da família. Depois, seupapel não fez senão especializar-se mais. Hoje, nos povos cultivados, a mulher leva uma existência completamente diferente daquela do homem. Dir-se-ia que as duasgrandes funções da vida psíquica como que se dissociaram, que um dos sexos açambarcou as funções afetivas e o outro as funções intelectuais. Vendo, em certas classes,

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as mulheres se ocuparem de arte e de literatura como os homens, poder-se-ia crer, é verdade, que as ocupações dos dois sexos tendem a voltar a ser homogêneas. Mas,mesmo nesta esfera de ação, a mulher traz sua natureza própria e seu papel permanece muito especial, muito diferente daquele dos homens. Além do mais, se as artese as letras começam a tornar-se coisas femininas, o outro sexo parece abandoná-las para dedicar-se mais especialmente à ciência. Portanto, este retorno à homogeneidadeprimitiva poderia bem ser o começo de uma nova diferenciação. Ademais, estas diferenças funcionais tornam-se materialmente sensíveis pelas diferenças morfológicasque determinaram. Não apenas a estatura, o peso, as formas gerais são muito dessemelhantes no homem e na mulher, mas o Dr. Lebon demonstrou, como vimos, que como progresso da civilização o cérebro dos dois sexos diferencia se cada vez mais. Segundo este observador, o distanciamento progressivo seria devido, simultaneamente,ao desenvolvimento considerável dos crânios masculinos e a um estacionamento ou mesmo a uma regressão dos crânios femininos. "Agora", diz ele, "que a média dos crâniosparisienses masculinos os coloca entre os maiores crânios conhecidos, a média dos crânios parisienses femininos os coloca entre os menores crânios observados, bemabaixo do crânio das chinesas e um pouco acima do crânio das mulheres da Nova Caledônia." 5050 Op. cit., pág. 154. (N. do A.)

p. 30Em todos estes exemplos, o mais notável efeito da divisão do trabalho não é que aumenta o rendimento das funções divididas, mas que as torna solidárias. Seu papelem todos estes casos não é simplesmente embelezar ou melhorar as sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem ela, não existiriam. Fazei regrediralém de um certo ponto a divisão do trabalho sexual, e a sociedade conjugal esvanece-se para deixar subsistir apenas relações sexuais eminentemente efêmeras; semesmo os sexos não tivessem se separado completamente, toda uma forma da vida social não teria nascido. É possível que a utilidade econômica da divisão do trabalhovalha para alguma coisa neste resultado, mas, em todo caso, ele ultrapassa infinitamente a esfera dos interesses puramente econômicos; pois ele consiste no estabelecimentode uma ordem social e moral sui generis. Indivíduos que sem isso seriam independentes estão ligados uns aos outros; ao invés de se desenvolverem separadamente, elesconjugam seus esforços; são solidários e de uma solidariedade que não age apenas nos curtos instantes em que os serviços se trocam, mas que se estende bem além.A solidariedade conjugal, por exemplo, tal como existe hoje nos povos mais cultivados, não faz sentir sua ação em cada momento e em todos os detalhes da vida? Poroutro lado, estas sociedades que a divisão do trabalho cria não podem deixar de carregar sua marca. Visto terem elas esta origem especial, não podem assemelhar-seàquelas que a atração do semelhante pelo semelhante determina; devem ser constituídas de uma outra maneira, repousar sobre outras bases, apelar para outros sentimentos.Se freqüentemente se fez consistir apenas na troca as relações sociais oriundas da divisão do trabalho, foi por se ter desconhecido o que a troca implica e o quedela resulta. A troca supõe que dois seres dependam mutuamente um do outro, pois ambos são incompletos, e não faz senão traduzir exteriormente esta mútua dependência.Portanto, ela é a expressão superficial de um estado interno e mais profundo. Precisamente porque este estado é constante, suscita todo um mecanismo de imagens quefunciona com uma continuidade que a troca não tem. A imagem daquele que nos completa torna-se em nós mesmos inseparável da nossa, não apenas porque aí está freqüentementeassociada, mas sobretudo porque ela é seu complemento natural: torna-se, portanto, parte integrante e permanente de nossa consciência, a tal ponto que não podemosmais passar sem ela e procuramos tudo o que pode aumentar-lhe a energia. Por este motivo amamos a sociedade daquele que ela representa, porque a presença do objetoque ela exprime, fazendo-o passar para o estado de percepção atual, lhe dá mais realce. Ao contrário, sofremos por causa de todas as circunstâncias que, como o distanciamentoou a morte, podem ter por efeito impedir o retorno ou diminuir sua vivacidade.Por mais breve que seja esta análise, é suficiente para mostrar que este mecanismo não é idêntico àquele que serve de base aos sentimentos de simpatia dos quaisa semelhança é a fonte. Sem dúvida, aqui não pode jamais haver solidariedade entre o outro e nós a não ser que a imagem do outro se una à nossa. Mas, quando a uniãoresulta da semelhança das duas imagens, consiste em uma aglutinação. As duas representações tornam-se solidárias porque, sendo indistintas, totalmente ou em parte,confundem-se e não fazem mais senão uma, e são solidárias só na medida em que se confundem. Ao contrário, no caso da divisão do trabalho, estão fora uma da outrae estão ligadas apenas porque são distintas. Portanto, os sentimentos não poderiam ser os mesmos nos dois casos, nem as relações sociais que derivam.Assim, somos conduzidos a perguntar-nos se a divisão do trabalho não desempenharia o mesmo papel nos grupos mais extensos, se, nas sociedades contemporâneas ondeela tomou o desenvolvimento que sabemos, não teria por função integrar o corpo

p. 31social, assegurar sua unidade. É legítimo supor que os fatos que acabamos de observar se reproduzam aqui, mas com mais amplidão; que também estas grandes sociedadespolíticas podem manter-se em equilíbrio só graças à especialização das tarefas; que a divisão do trabalho é a fonte, senão única, pelo menos principal da solidariedadesocial. Já Comte se tinha colocado sob este ponto de vista. De todos os sociólogos que conhecemos, ele foi o primeiro que tinha assinalado na divisão do trabalhooutra coisa além de um fenômeno puramente econômico. Ele viu ali a "condição mais essencial da vida social", contanto que se a conceba "em toda a sua extensão racional,quer dizer, que se a aplique ao conjunto de quaisquer de nossas diversas operações, em lugar de limitá-la, como é muito comum, a simples usos materiais". Consideradasob este aspecto, diz ele, "conduz imediatamente a considerar não apenas os indivíduos e as classes, mas também, sob muitos aspectos, os diferentes povos como participandosimultaneamente, segundo um modo próprio e um grau especial, exatamente determinado, numa obra imensa e comum cujo inevitável desenvolvimento gradual liga, aliás,também os cooperadores atuais à série de quaisquer de seus predecessores e mesmo à série de seus diversos sucessores. É, portanto, a repartição contínua dos diferentestrabalhos humanos que constitui principalmente a solidariedade social e que se torna a causa elementar da extensão e da complicação crescente do organismo social".51Se esta hipótese fosse demonstrada, a divisão do trabalho desempenharia um papel muito mais importante do que aquele que se lhe atribui ordinariamente. Ela não serviriaapenas para dotar nossas sociedades de um luxo, invejável talvez, mas supérfluo; ela seria uma condição de sua existência. É por ela, ou pelo menos é sobretudo porela, que estaria assegurada sua coesão; é ela que determinaria os traços essenciais de sua constituição. Por isto mesmo, embora ainda não estejamos em condição deresolver a questão com rigor, pode-se entretanto entrever desde agora que, se tal é realmente a função da divisão do trabalho, ela deve ter um caráter moral, poisas necessidades de ordem, de harmonia, de solidariedade social geralmente passam por morais.Mas, antes de examinar se esta opinião comum está fundada, é preciso verificar a hipótese que acabamos de lançar sobre o papel da divisão do trabalho. Vejamos se,com efeito, nas sociedades em que vivemos é dela que deriva essencialmente a solidariedade social.

III

Mas, como proceder a esta verificação? Não temos simplesmente que investigar se, nestes tipos de sociedade, existe uma solidariedade social que vem da divisão do trabalho. É uma verdade evidente,visto que a divisão do trabalho aqui está muito desenvolvida e produz a solidariedade. Mas é preciso sobretudo determinar em que medida a solidariedade que ela produzcontribui para a integração geral da sociedade: pois é apenas então que saberemos até que ponto é necessária, se é um fator essencial da coesão social, ou, ao contrário,se é só uma condição acessória e secundária. Para responder a esta questão é preciso, portanto, comparar este elo social aos outros, a fim de medir a parte que lhecabe no efeito total, e para isto é indispensável começar por classificar as diferentes espécies de solidariedade social.A solidariedade social, porém, é um fenômeno completamente moral que, por si mesmo, não se presta à observação exata nem sobretudo à medida. Para proceder tanto5' Curso de Filosofia Positiva, IV, pág. 425. — Encontram se idéias análogas em Schaeffle, Baú undLeben dês sozialen Koerpers, ll,passim, e Clement, Ciência Social,I, pág. 235 ss. (N. do A.)

p. 32a esta classificação quanto a esta comparação, é preciso substituir o fato interno que nos escapa por um fato exterior que o simbolize, e estudar o primeiro atravésdo segundo.Este símbolo visível é o direito. com efeito, lá onde a solidariedade social existe, malgrado seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de pura potência,

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mas manifesta sua presença por efeitos sensíveis. Ali onde ela é forte, inclina fortemente os homens uns em direção aos outros, coloca-os freqüentemente em contato,multiplica as ocasiões de relacionamento. Falando exatamente, no ponto a que chegamos é difícil dizer se foi ela que produziu estes fenômenos ou, ao contrário, seela resulta deles; se os homens se aproximam porque é enérgica ou se é enérgica porque eles se aproximaram uns dos outros. Mas não é necessário para o momento elucidara questão, é suficiente constatar que estas duas ordens de fatos estão ligadas e variam no mesmo tempo e no mesmo sentido. Quanto mais os membros de uma sociedadesão solidários, tanto mais mantêm relações diversas, seja uns com os outros, seja com o grupo tomado coletivamente: pois, se seus encontros fossem raros, dependeriamuns dos outros apenas de uma maneira intermitente e fraca. Por outro lado, o número destas relações é necessariamente proporcional àquele das regras jurídicas queas determinam. com efeito, a vida social, em todas as partes em que ela existe de uma maneira durável, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a organizar-se;o direito não é outra coisa senão esta organização mesma, no que ela tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode se desenvolver numponto sem que a vida jurídica se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedadesessenciais da solidariedade social.Poder-se-ia objetar, é verdade, que as relações sociais podem fixar-se sem tomar por isto uma forma jurídica. Existem algumas cuja regulamentação não chega a estegrau de consolidação e de precisão; não permanecem indeterminadas por isto, mas, ao invés de serem reguladas pelo direito, elas o são pelos costumes. O direito reflete,portanto, só uma parte da vida social e, por conseguinte, nos fornece apenas dados incompletos para resolver o problema. Há mais: acontece freqüentemente que oscostumes não estão de acordo com o direito; diz-se constantemente que eles temperam seus rigores, corrigem seus excessos formalistas, algumas vezes diz-se mesmoque eles são animados de um espírito completamente diferente. Não poderia então ocorrer que eles manifestem outros tipos de solidariedade social que aqueles queexprime o direito positivo?Mas esta oposição é feita unicamente em circunstâncias completamente excepcionais. Por isso, é preciso que o direito não corresponda mais ao estado presente da sociedadee que, entretanto, se mantenha, sem razão de ser, pela força do hábito. Neste caso, com efeito, as relações novas que se estabelecem, apesar dele, não deixam dese organizar; pois elas não podem subsistir sem procurar se consolidar. Apenas, como elas estão em conflito com o antigo direito que persiste, não ultrapassam oestádio dos costumes e não chegam a penetrar na vida jurídica propriamente dita. É assim que o antagonismo explode. Mas ele pode se produzir somente nos casos rarose patológicos, que não podem durar sem perigo. Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, ao contrário, são a sua base. Acontece, é verdade, que sobreesta base nada se constrói. Pode haver relações sociais que comportem apenas esta regulamentação difusa que vem dos costumes; mas é que elas carecem de importânciae continuidade, salvo, bem entendido, os casos anormais mencionados. Portanto, se podem existir tipos de solidariedade social que os costumes são os únicos a manifestar,são certamente muito secundários; ao contrário, o direito reproduz todos aqueles que são essenciais, e estes são os únicos que temos necessidade de conhecer.

p. 33Ir-se-á mais longe e sustentar-se-á que a solidariedade social não está inteiramente em suas manifestações sensíveis; que estas a exprimem só em parte e imperfeitamente;que além do direito e dos costumes há o estado interno de onde ela deriva e que, para conhecê-la verdadeiramente, é preciso atingi-la em si mesma e sem intermediário?— Mas não podemos conhecer cientificamente as causas senão pelos efeitos que produzem, e, para melhor determinar sua natureza, a ciência apenas escolhe, entre estesresultados, os mais objetivos e que se prestam melhor para medida. Ela estuda o calor através das variações de volume que produzem nos corpos as mudanças de temperatura,a eletricidade através de seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento. Por que a solidariedade social seria uma exceção?Que subsiste dela, aliás, uma vez que se a despojou de suas formas sociais? O que lhe dá suas características específicas é a natureza do grupo do qual ela asseguraa unidade; é por isso que ela varia segundo os tipos sociais. Ela não é a mesma no seio da família e na sociedade política; não estamos ligados à nossa pátria comoo romano à cidade ou o germano à sua tribo. Mas, porque estas diferenças dependem de causas sociais, só podemos apreendê-las através das diferenças que apresentamos efeitos sociais da solidariedade. Portanto, se negligenciamos estas últimas, todas as variedades tornam-se indiscerníveis e podemos perceber apenas o que é comuma todas, a saber, a tendência geral à sociabilidade, tendência que é sempre e em toda parte a mesma e não está ligada a nenhum tipo social em particular. Mas esteresíduo é apenas uma abstração; pois a sociabilidade em si não está em parte alguma. O que existe e vive realmente são as formas particulares da solidariedade, asolidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, a de ontem, a de hoje, etc. Cada uma tem sua natureza própria; em conseqüência,estas generalidades poderiam em todo caso dar somente uma explicação bem incompleta do fenômeno, porque necessariamente deixam escapar o que há de concreto e vivo.Portanto, o estudo da solidariedade pertence à sociologia. É um fato social que se pode conhecer bem só por intermédio de seus efeitos sociais. Se tantos moralistase psicólogos puderam tratar a questão sem seguir este método, é porque contornaram a dificuldade. Eliminaram do fenômeno tudo o que há de mais social para dele reterapenas o germe psicológico do qual ele é o desenvolvimento. É certo, com efeito, que a solidariedade, mesmo sendo um fato social de suma importância, depende denosso organismo individual. Para que ela possa existir, é preciso que nossa constituição física e psíquica a comporte. A rigor, portanto, podemos contentar-nos emestudá-la sob este aspecto. Mas, neste caso, vemos unicamente a parte mais indistinta e menos especial; não é nem mesmo ela propriamente falando, mas antes o quea torna possível.Este estudo abstrato não poderia ainda ser muito fecundo em resultados. Pois, enquanto permanece no estado de simples predisposição de nossa natureza psíquica, asolidariedade é algo muito indefinido para que se possa facilmente atingi-la. É uma virtualidade intangível que não oferece chance à observação. Para que ela tomeuma forma apreensível, é preciso que algumas conseqüências sociais a traduzam para o exterior. Além do mais, mesmo neste estado de indeterminação, ela depende decondições sociais que a explicam e das quais, por conseguinte, não pode ser separada. Por isso, é muito raro que a estas análises de pura psicologia não se encontremmisturadas algumas considerações sociológicas. Por exemplo, dizemos algumas palavras da influência do estado gregário sobre a formação do estado social em geral;52ou então indicamos rapidamente as principais relações sociais das quais a sociabilidade depende da maneira mais aparente.53 Sem dúvida, estas considerações complementares,introduzidas sem método,

52 barn, Emoções e Vontade, pág. 117 ss. Paris, F. Alcan. (N. do A.)53 Spencer, Princípios de Psicologia, VIII parte, cap. 5, Paris, F. Alcan. (N. do A.)

p. 34a título de exemplos e segundo os acasos da sugestão, não poderiam ser suficientes para elucidar muito a natureza social da solidariedade. Demonstram, pelo menos,que o ponto de vista sociológico se impõe mesmo aos psicólogos.Portanto, nosso método está completamente traçado. Visto que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, precisamos apenas classificar as diferentesespécies de direito para buscar em seguida quais são as diferentes espécies de solidariedade social que a elas correspondem. É provável, desde já, que exista umaque simbolize esta solidariedade especial da qual a divisão do trabalho é a causa. Isto feito, para medir a parte desta última, será suficiente comparar o númerodas regras jurídicas que a exprimem com o volume total do direito.Para este trabalho não podemos nos servir das distinções usuais dos jurisconsultos. Imaginadas para a prática, podem ser muito cômodas sob este ponto de vista, masa ciência não pode contentar-se com estas classificações empíricas e inexatas. A mais difundida é aquela que divide o direito em direito público e em direito privado;o primeiro deve regular as relações do indivíduo com o Estado; o segundo, aquelas dos indivíduos entre si. Mas, quando se tenta analisar os conceitos de perto,a linha de demarcação, que parecia tão clara à primeira vista, se apaga. Todo direito é privado, no sentido de que sempre e em toda parte se trata de indivíduose suas ações; mas, sobretudo, todo direito é público, no sentido de que é uma função social e de que todos os indivíduos são, se bem que sob diversos títulos, funcionáriosda sociedade. As funções maritais, paternais, etc., são delimitadas e organizadas como as funções ministeriais e legislativas, não sendo sem razão que o direitoromano qualificava a tutela de munuspublicum. Por outro lado, o que é o Estado? Onde começa e onde acaba? Sabe-se quanto esta questão é controvertida; não é científicofazer repousar uma classificação fundamental sobre uma noção tão obscura e mal analisada.Para proceder metodicamente, precisamos encontrar alguma característica que, sendo essencial aos fenômenos jurídicos, seja suscetível de variar quando eles variam.Ora, todo preceito de direito pode ser definido: uma regra de conduta sancionada. Por outro lado, é evidente que as sanções mudam segundo a gravidade atribuída aospreceitos, o lugar que ocupam na consciência pública, o papel que desempenham na sociedade. Portanto, convém classificar as regras jurídicas segundo as diferentessanções a elas vinculadas.

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Existem dois tipos. Umas consistem essencialmente numa dor, ou, pelo menos, numa diminuição infligida ao agente; têm por objeto atingi-lo em sua fortuna, ou em suahonra, ou em sua vida, ou em sua liberdade, privá-lo de algo que ele desfruta. Diz-se que são repressivas; é o caso do direito penal. É verdade que aquelas ligadasàs regras puramente morais têm o mesmo caráter: apenas são distribuídas de uma maneira mais difusa por todos indistintamente, enquanto que as do direito penal sãoaplicadas pelo intermediário de um órgão definido; são organizadas. Quanto ao outro tipo, ela não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste somentena restituição das coisas nas devidas condições, no restabelecimento das relações perturbadas sob sua forma normal, quer o ato incriminado seja reconduzido à forçaao tipo do qual foi desviado, quer seja anulado, isto é, privado de todo valor social. Portanto, devemos dividir as regras jurídicas em duas grandes espécies, segundotenham sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal; a segunda o direito civil, o direito comercial,o direito processual, o direito administrativo e constitucional, abstração feita das regras penais que podem aí encontrar-se.Procuremos agora a que tipo de solidariedade social corresponde cada uma destas espécies.

p. 35CAPITULO II

Solidariedade mecânica ou por similitude

I

O elo de solidariedade social ao qual corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime; chamamos por este nome todo ato que, em qualquergrau, determina contra seu autor esta reação característica chamada pena. Buscar qual é este elo é, portanto, perguntar-se qual é a causa da pena, ou, mais claramente,em que consiste essencialmente o crime.Existem sem dúvida crimes de espécies diferentes; mas, entre todas estas espécies, há, não menos seguramente, algo de comum. O que o prova é que a reação que elesdeterminam por parte da sociedade, a saber, a pena, é, salvo diferenças de grau, sempre e em toda parte a mesma. A unidade do efeito revela a unidade da causa. Nãoapenas entre todos os crimes previstos pela legislação de uma única e mesma sociedade, mas entre todos aqueles que foram ou que são reconhecidos e punidos nos diferentestipos sociais, existem seguramente semelhanças essenciais. Por mais diferentes que pareçam à primeira vista, é impossível que os atos assim qualificados não tenhamalgum fundamento comum. Pois em toda parte afetam da mesma maneira a consciência moral das nações e produzem em toda parte a mesma conseqüência. Todos são crimes,isto é, atos reprimidos por castigos definidos. Ora, as propriedades essenciais de uma coisa são aquelas que se observam em toda parte em que esta coisa existe eque pertencem só a ela. Portanto, se queremos saber em que consiste essencialmente o crime, é preciso depreender os traços que são idênticos em todas as variedadescriminológicas dos diferentes tipos sociais. Não existe nenhum que possa ser negligenciado. As concepções jurídicas das sociedades mais inferiores não são menosdignas de interesse que aquelas das sociedades mais avançadas; elas são fatos não menos instrutivos. Fazer abstração deles seria expormo-nos a ver a essência docrime ali onde ela não está. O biólogo teria dado uma definição muito inexata dos fenômenos vitais se tivesse desenhado a observação dos seres monocelulares; pois,apenas da contemplação dos organismos e sobretudo dos organismos superiores, teria concluído falsamente que a vida consiste essencialmente na organização.O meio de encontrar este elemento permanente e geral não é evidentemente enumerar os atos que foram, em todos os tempos e em todos os lugares, qualificados comocrimes, para observar as características que apresentam. Pois, se, o que quer que se tenha dito, existem ações que foram universalmente vistas como criminosas, elassão a minoria ínfima e, por conseguinte, um tal método só nos poderia dar uma noção singularmente truncada do fenômeno, porque se aplicaria somente às exceções.54 Estas variações do55 Foi, entretanto, este método que seguiu M Garofalo Sem dúvida, parece renunciar a ele quando reco nhece a impossibilidade de lavrar uma lista de fatos universalmentepunidos (Crimmologia, pág. 5), o que, aliás, é excessivo Mas finalmente retorna a ele porque, em suma, o crime natural é para ele aquele que con-

p. 36direito repressivo provam ao mesmo tempo que esta característica constante não poderia encontrar-se entre as propriedades intrínsecas dos atos impostos ou proibidospor regras penais, porque eles apresentam uma tal diversidade, mas nas relações que eles mantêm com alguma condição que lhes é exterior.Acreditou-se encontrar esta relação num tipo de antagonismo entre estas ações e os grandes interesses sociais, e se disse que as regras penais enunciavam para cadatipo social as condições fundamentais da vida coletiva. Sua autoridade viria, pois, de sua necessidade; por outro lado, como estas necessidades variam com as sociedades,explicar-se-ia assim a variabilidade do direito repressivo. Mas já nos explicamos sobre este ponto. Além de uma tal teoria fazer com que o cálculo e a reflexãoocupem um lugar muito grande na direção da evolução social, há uma variedade de atos que foram e ainda são vistos como criminosos, sem que, por si mesmos, sejamnocivos à sociedade. O fato de tocar um objeto tabu, um animal ou um homem impuro ou consagrado, de deixar apagar o fogo sagrado, de comer certas carnes, de nãoimolar sobre o túmulo dos pais o sacrifício tradicional, de não pronunciar exatamente a fórmula ritual, de não celebrar certas festas, etc., pôde alguma vez constituirum perigo social? Sabe-se, entretanto, que lugar ocupa no direito repressivo de muitos povos a regulamentação do rito, da etiqueta, do cerimonial, das práticas religiosas.É preciso apenas abrir o Pentateuco para se convencer disto e, como estes fatos se encontram normalmente em certas espécies sociais, é impossível ver aí simplesanomalias e casos patológicos que se tem o direito de negligenciar.Mesmo que o ato seja certamente nocivo à sociedade, é preciso que o grau de nocividade que apresenta esteja regularmente em relação com a intensidade da repressãoque o atinge. No direito penal dos povos mais civilizados, o assassínio é universalmente visto como o maior dos crimes. Entretanto, uma crise econômica, uma quebrana bolsa, mesmo uma falência podem desorganizar muito mais gravemente o corpo social do que um homicídio isolado. Sem dúvida, o assassínio é sempre um mal, mas nadaprova que seja o maior mal. Que é um homem a menos na sociedade? Que é uma célula a menos no organismo? Diz-se que a segurança geral estaria ameaçada para o futurose o ato permanecesse impune; mas que se observe a importância deste perigo, por mais real que seja, e a da pena: a desproporção é flagrante. Enfim, os exemplosque acabamos de citar mostram que um ato pode ser desastroso para a sociedade sem sofrer a menor repressão. Esta definição do crime é, pois, de qualquer maneira,inadequada.Dir-se-á, modificando-a, que os atos criminosos são aqueles que parecem nocivos à sociedade que os reprime; que as regras penais exprimem, não as condições essenciaisà vida social, mas as que parecem tais ao grupo que as observa? Tal explicação, porém, não explica nada; pois não nos faz compreender por que, num número tão grandede traria os sentimentos que em toda parte são a base do direito penal, isto é, a parte invariável do sentido moral e aquele apenas. Mas, por que o crime que contrariaalgum sentimento particular de certos tipos sociais seria menos crime que os outros? M. Garofalo é assim levado a recusar o caráter de crime a atos que foram universalmentereconhecidos como criminosos em certas espécies sociais, e, por conseguinte, a estreitar artificialmente os quadros da criminalidade. Resulta disto que sua noçãodo crime é singularmente incompleta. Também é vaga, pois o autor não insere em suas comparações todos os tipos sociais, mas exclui um grande número que trata deanormais. Pode-se dizer que um fato social é anormal em relação ao tipo da espécie, mas uma espécie não poderia ser anormal. Juntas, as duas palavras desafinam.Por mais interessante que seja o esforço de M. Garofalo para chegar a uma noção científica do delito, não o faz todavia com um método suficientemente preciso eexato. É o que mostra a expressão delito natural que usa. Todos os delitos não seriam naturais? É provável que exista aí um retorno da doutrina de Spender, paraquem a vida social é verdadeiramente natural só nas sociedades industriais. Infelizmente, nada é mais falso. (N. do A.).

p. 37casos, as sociedades se enganaram e impuseram práticas que, por elas mesmas, não eram nem mesmo úteis. Definitivamente, esta pretensa solução do problema reduz-sea um verdadeiro truísmo; pois, se as sociedades obrigam assim cada indivíduo a obedecer a estas regras, é evidentemente porque estimam, com ou sem razão, que estaobediência regular e pontual lhes é indispensável; é porque disto fazem questão energicamente. Portanto, é como se disséssemos que as sociedades julgam as regrasnecessárias porque elas as julgam necessárias. O que nos seria preciso dizer é por que elas as julgam assim. Se este sentimento tivesse sua causa na necessidade

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objetiva das prescrições penais ou, pelo menos, na sua utilidade, isto seria uma explicação. Mas é contraditada pelos fatos; a questão permanece inteira.Entretanto, esta última teoria não é sem algum fundamento; é com razão que ela busca em certos estados do sujeito as condições constitutivas da criminalidade. comefeito, a única característica comum a todos os crimes é que eles consistem — salvo algumas exceções aparentes que serão examinadas mais adiante — em atos universalmentereprovados pelos membros de cada sociedade. Pergunta-se hoje se esta reprovação é racional e se não seria mais sábio ver no crime uma doença ou um erro. Mas nãovamos entrar nestas discussões; procuramos determinar o que é ou foi, não o que deve ser. Ora, a realidade do fato que acabamos de estabelecer não é contestável;quer dizer, . o crime fere sentimentos que, para um mesmo tipo social, se encontram em todas as consciências sãs. A iNão é possível determinar de outra maneira a natureza destes sentimentos, definilos em função de seus objetos particulares; pois estes objetos variaram infinitamentee podem variar ainda. 5 5 Hoje, são os sentimentos altruísticos que apresentam esta caracte-- rística da maneira mais marcada; mas houve uma época, muito próxima à nossa, onde os sentimentos religiosos, domésticos e mil outros sentimentos tradicionais tinhamexatamente os mesmos efeitos. Agora ainda, é preciso que a simpatia negativa por outro seja, como o quer M. Garofalo, a única a produzir este resultado. Mesmo emtempo de paz não temos pelo homem que trai sua pátria pelo menos tanta aversão como pelo ladrão e pelo escroque? Nos países em que o sentimento monárquico aindaestá vivo, os crimes de lesa-majestade não despertam uma indignação geral? Nos países democráticos, as injúrias dirigidas ao povo não desencadeiam as mesmas cóleras?Não se poderia, pois, enumerar uma lista dos sentimentos cuja violação constitui o ato criminoso; distinguem-se dos outros apenas por um traço: são comuns à grandemédia dos indivíduos da mesma sociedade. Igualmente, as regras que proíbem estes atos e o direito penal sanciona são as únicas às quais o famoso axioma jurídiconinguém pode ignorar a lei se aplica sem ficção. Como estão gravadas em todas as consciências, todo mundo as conhece e sente que são fundadas. Isto é verdadeiropelo menos quanto ao estado normal. Se existem adultos que ignoram estas regras fundamentais ou não reconhecem sua autoridade, uma tal ignorância ou uma tal indocilidadesão sintomas irrecusáveis de perversão patológica; ou então, se ocorre que uma disposição penal se mantenha algum tempo, se bem que seja contestada por todos, égraças a um concurso de circunstâncias excepcionais, por conseguinte, anormais, e jamais um tal estado de coisas pode durar.É isto que explica a maneira particular pela qual o direito penal se codifica.Todo direito escrito tem um duplo objeto: prescrever certas obrigações, definir assanções que5 * Não vemos qual razão científica M. Garofalo tem para dizer que os sentimentos morais atualmente adquiridos pela parte civilizada da humanidade constituem umamoral "não suscetível de perda, mas de um desenvolvimento sempre crescente" (pág. 9). O que permite marcar assim um limite às mudanças que se farão num sentido ounoutro? (N. do A.)

p. 38a isto estão ligadas. No direito civil, e mais geralmente em toda espécie de direito com sanções restitutivas, o legislador aborda e resolve separadamente estesdois problemas. Determina primeiramente a obrigação com toda a precisão possível, e é apenas em seguida que diz a maneira pela qual deve ser sancionada. Por exemplo,no capítulo de nosso Código Civil consagrado aos deveres respectivos dos esposos, estes direitos e estas obrigações são enunciados de uma maneira positiva; mas nadaaqui é dito do que acontece quando estes deveres são violados por uma parte ou outra. É preciso buscar esta sanção em outro lugar. Algumas vezes está mesmo completamentesubentendida. Assim, o artigo 214 do Código Civil ordena à mulher habitar com seu marido: disto se deduz que o marido pode forçá-la a reintegrar o domicílio conjugal,mas esta sanção não é em parte alguma formalmente indicada. O direito penal, ao contrário, promulga apenas sanções, mas não diz nada das obrigações às quais elasse relacionam. Não manda respeitar a vida do outro, mas condenar à morte o assassino. Não diz primeiramente, como faz o direito civil: "Eis o dever", mas. imediatamente:"Eis a pena". Sem dúvida, se a ação é punida, é porque é contrária a uma regra obrigatória; mas esta regra não é expressamente formulada. Para isto pode haver sóuma razão: a regra é conhecida e aceita por todos. Quando um direito costumeiro passa ao estado de direito escrito e se codifica, é porque questões litigiosas reclamamuma solução mais definida; se o costume continuasse a funcionar silenciosamente, sem despertar discussões nem dificuldades, não haveria razão para que se transformasse.O motivo de o direito penal se codificar só para estabelecer uma escala graduada de penas é porque apenas estas estão sujeitas a dúvida. Inversamente, se as regrascuja pena pune a violação não têm necessidade de receber uma expressão jurídica, é porque não são objeto de nenhuma contestação, é porque todos sentem sua autoridade. 56.É verdade que, algumas vezes, o Pentateuco não promulga sanções, se bem que, como o veremos, quase contenha só disposições penais. É o caso dos dez mandamentos,tais como se encontram formulados no capítulo 20 do Êxodo e no capítulo 5 do Deuteronômio. Mas o Pentateuco, embora faça o ofício de código, não é, entretanto, umcódigo propriamente dito. Não tem por objetivo reunir em um sistema único e precisar em vista da prática regras penais seguidas pelo povo hebreu; é mesmo tão poucouma codificação que as diferentes partes de que está composto parecem não ter sido redigidas na mesma época. É antes de tudo um resumo das tradições de todo tipopelas quais os judeus se explicavam a si mesmos e à sua maneira a gênese do mundo, sua sociedade, suas principais práticas sociais. Portanto, se enuncia alguns deveresque certamente eram sancionados por penas, isto não representa que fossem ignorados ou desconhecidos dos hebreus nem que fosse necessário revela Io a eles; ao contrário,porque o livro é apenas um tecido de lendas nacionais, pode-se estar seguro que tudo o que ele contém estava escrito em todas as consciências. Mas é que se tratavaessencialmente de reproduzir, fixando-as, as crenças populares sobre a origem destes preceitos sobre as circunstâncias históricas nas quais tinham sido promulgados,sobre as fontes de sua autoridade; ora, deste ponto de vista, a determinação da pena torna-se algo acessório.5 7É pela mesma razão que o funcionamento da justiça repressiva tende sempre a permanecer mais ou menos difuso. Em tipos sociais muito diferentes, ela não se exercepelo órgão de um magistrado especial, mas a sociedade inteira dele participa em maior ou5 6 Cf. Binding, As Normas e Sua Transgressão, Leipzig, 1872,1, pág. 6. (N. do A.)5 ' As únicas exceções verdadeiras a esta particularidade do direito penal produzem se quando é um ato da autoridade pública que cria o delito. Neste caso, o deveré geralmente definido independentemente da sanção; mais longe dar se-á conta da causa desta exceção. (N. do A.)

p. 39menor medida. Nas sociedades primitivas, onde, como o veremos, o direito é inteiro penal, é a assembléia do povo que faz a justiça. É o caso dos antigos germanos.5S Em Roma, enquanto que os negócios civis incumbiam ao pretor, os casos criminais eram julgados pelo povo, primeiramente pelas assembléias curiais e em seguida,a partir da Lei das Doze Tábuas, pelas assembléias centuriais; até o fim da República, se bem que ele delegou seus poderes a comissões permanentes, permaneceu emprincípio o juiz supremo para estes tipos de processos. 59 Em Atenas, sob a legislação de Sólon, a jurisdição criminal pertencia em parte aos heliaía, grande colégioque, nominalmente, compreendia todos os cidadãos acima de trinta anos. 80 Enfim, entre as nações germano-latinas, a sociedade intervém no exercício destas mesmasfunções, representada pelo júri. O estado de difusão em que se encontra assim esta parte do poder judiciário seria inexplicável se as regras das quais ele asseguraa observação e, por conseguinte, os sentimentos aos quais estas regras correspondem não fossem imanentes a todas as consciências. É verdade que, em outros casos,ele é detido por uma classe privilegiada ou por magistrados particulares. Mas estes fatos não diminuem o valor demonstrativo do que precede, pois, pelo fato de ossentimentos coletivos não reagirem mais senão através de certos intermediários, não se segue que tenham cessado de ser coletivos para se localizarem num número restritode consciências. Esta delegação, porém, pode ser devida à multiplicidade maior dos negó-• cios que acarreta a instituição de funcionários especiais, bem como à grande importância tomada por certos personagens ou certas classes e que faz delas os intérpretesautorizados dos sentimentos coletivos.Todavia, não se definiu o crime quando se disse que consiste numa ofensa aos sentimentos coletivos; pois existem entre estes últimos alguns que podem ser ofendidossem que haja crime. Assim, o incesto é objeto de uma aversão muito geral, e, entretanto, é uma ação simplesmente imoral. Ocorre o mesmo com as faltas à honra sexualque comete a mulher fora do estado de casamento, pelo fato de alienar totalmente sua liberdade nas mãos de outro ou de aceitar de outro uma tal alienação. Os sentimentoscoletivos aos quais corresponde o crime devem, portanto, se singularizar dos outros por alguma propriedade distintiva: devem ter uma certa intensidade média. Estãogravados em todas as consciências; aliás fortemente gravados. Não são de forma alguma veleidades hesitantes e superficiais, mas emoções e tendências que estão fortementeenraizadas em nós. O que o prova é a extrema lentidão com que o direito penal evolui. Não apenas se modifica mais lentamente que os costumes, mas é a parte do direitopositivo mais refratária a mudança. Que se observe, por exemplo, o que fez a legislação desde o começo do século nas diferentes esferas da vida jurídica; as inovações

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nas matérias de direito penal são extremamente raras e restritas, enquanto que, ao contrário, uma variedade de disposições novas foi introduzida no direito civil,no direito comercial, no direito administrativo e constitucional. Que se compare o direito penal, tal como a Lei das Doze Tábuas fixou-o em Roma, com o estado emque se encontra na época clássica; as mudanças constatadas são muito poucas ao lado daquelas que sofreu o direito civil durante o mesmo tempo. Desde a época dasDoze Tábuas, diz Mainz, os principais crimes e delitos estão constituídos: "Durante dez gerações, o catálogo dos crimes públicos foi aumentado apenas por algumasleis que punem o peculato, a briga e talvez o plagium ".61 Quanto aos delitos58 Tácito, Germania, cap. XII. (N. do A.)59 Cf. Walter, História do Processo Civil e do Direito Criminal entre os Romanos, trad. fr., § 829; Rein, Direito Criminal dos Romanos, pág. 63. (N. do A.)60 Cf. Gilbert, Handbuch der Griechischen Staatsalterthümer, Leipzig, 1881,1, pág. 138. (N. do A.)6' Esboço histórico do direito criminal da antiga Roma, in Nouyelle Revue Historique du Droit et Étranger, 1882, págs. 24 e 27. (N. do A.)

p. 40privados, reconheceram-se dois novos: a rapina (actio bonorum vi raptorum) e o dano causado injustamente (damnum injuria datum). Encontra-se o mesmo fato em todaparte. Nas sociedades inferiores, o direito, como o veremos, é quase que exclusivamente penal; é também muito estacionário. De uma maneira geral, o direito religiosoé sempre repressivo: é essencialmente conservador. Esta fixidez do direito penal testemunha a força de resistência dos sentimentos coletivos aos quais ele corresponde.Inversamente, a maior plasticidade das regras puramente morais e a rapidez relativa de sua evolução demonstram a menor energia dos sentimentos que estão em sua base;ou foram mais recentemente adquiridos e ainda não tiveram tempo de penetrar profundamente nas consciências, ou estão prestes a perder raiz e sobem do fundo paraa superfície.Uma última adição é ainda necessária para que nossa definição seja exata. Se, em geral, os sentimentos protegem sanções simplesmente morais, isto é, difusas, sãomenos intensos e menos solidamente organizados do que aqueles que protegem penas propriamente ditas; existem, todavia, exceções. Assim, não há nenhuma razão paraadmitir que a piedade filial média ou mesmo as formas elementares da compaixão pelas misérias mais aparentes sejam hoje sentimentos mais superficiais que o respeitopela propriedade ou pela autoridade pública; entretanto, o mau filho e o egoísta mesmo o mais endurecido não são tratados como criminosos. Portanto, não é suficienteque os sentimentos sejam fortes, é preciso que sejam precisos. com efeito, cada um deles é relativo a uma prática bem definida. Esta prática pode ser simples oucomplexa, positiva ou negativa, isto é, consistir em uma ação ou em uma abstenção, mas é sempre determinada. Trata-se de fazer ou não fazer isto ou aquilo, de nãomatar, de não ferir, de pronunciar tal fórmula, de realizar tal rito, etc. Ao contrário, os sentimentos como o amor filial ou a caridade são aspirações vagas paraobjetivos muito gerais. Também as regras penais são notáveis por sua claridade e sua precisão, enquanto que as regras puramente morais têm geralmente algo de flutuante.Sua natureza indecisa faz mesmo com que, freqüentemente, seja difícil dar-lhes uma fórmula fixa. Podemos dizer, de uma maneira muito geral, que se deve trabalhar,ter piedade do outro, etc.; mas não podemos fixar de que maneira nem em que medida. Por conseguinte, aqui há lugar para variações e nuanças. Ao contrário, porqueos sentimentos que encarnam as regras penais são determinados, têm maior uniformidade; como não podem ser compreendidos de diferentes maneiras, são em toda parteos mesmos.O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; poderemos chamá-lo:a consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é, por definição, difusa em toda extensão da sociedade; mas não deixa de tercaracteres específicos que fazem dela uma realidade distinta. com efeito, é independente das condições particulares em que os indivíduos estão colocados; eles passam,ela permanece. É a mesma no norte e no sul, nas grandes e pequenas cidades, nas diferentes profissões. Da mesma forma, não muda a cada geração, mas, ao contrário,liga umas às outras as gerações sucessivas. Portanto, é completamente diversa das consciências particulares, se bem que se realize somente entre indivíduos. Elaé o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de desenvolvimento, tudo como os tipos individuais, emborade uma outra maneira. com razão, pois, tem o direito de ser designada por uma palavra especial. Aquela que empregamos mais acima não está, é verdade, isenta deambigüidades. Como os termos coletivo e social são freqüentemente tomados um pelo outro, é-se induzido a crer que a consciência coletiva é toda a consciência social,isto é, estende-se tão longe quanto a vida psíquica da

p. 41sociedade, sendo que, sobretudo nas sociedades superiores, ela é só uma parte muito restrita. As funções judiciárias, governamentais, científicas, industriais, emuma palavra, todas as funções especiais são de ordem psíquica, visto consistirem em sistemas de representações e de ações: entretanto, estão evidentemente fora daconsciência comum. Para evitar uma confusão 6Z que foi cometida, o melhor seria talvez criar uma expressão técnica quê designasse especialmente o conjunto das similitudessociais. Todavia, como o emprego de uma palavra nova, quando não é absolutamente necessária, não se apresenta livre de inconvenientes, manteremos a expressão maishabitual de consciência coletiva ou comum, mas lembrando-nos sempre do sentido estrito no qual a empregamos.Podemos, pois, resumindo a análise que precede, dizer que um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva. 6 3A letra desta proposição quase não é contestada, mas se lhe atribui ordinariamente um sentido muito diferente daquele que ela deve ter. É entendida como se exprimissenão a propriedade essencial do crime, mas uma de suas repercussões. Sabe-se que ele fere sentimentos muito gerais e muito enérgicos; acredita-se, porém, que estageneralidade e esta energia provêm da natureza criminosa do ato que, por conseguinte, permanece inteiro para se definir. Não se contesta que todo delito seja universalmentereprovado, mas admite-se que a reprovação, da qual ele é objeto, resulta de sua delituosidade. Todavia, fica-se em seguida muito embaraçado para dizer em que consisteesta delituosidade. Numa imoralidade particularmente grave? Eu o consinto; mas é responder à questão pela questão e colocar uma palavra no lugar de outra; pois trata-sede saber precisamente o que é imoralidade e, sobretudo, esta imoralidade particular que a sociedade reprime por meio de penas organizadas e que constitui a criminalidade.Evidentemente ela não pode vir senão de uma ou várias características comuns a todas as variedades criminológicas; ora, a única que satisfaz esta condição é a oposiçãoque existe entre o crime, qualquer que seja, e certos sentimentos coletivos. É, pois, esta oposição que faz o crime, em vez de derivar dele. Em outros termos, nãoé preciso dizer que um ato fere a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque fere a consciência comum. Não o reprovamos porque é um crime,mas é um crime porque o reprovamos. Quanto à natureza intrínseca destes sentimentos, é impossível especificá-la; eles têm os objetos mais diversos e não se poderiadar uma forma única. Não se pode dizer que eles se relacionam nem aos interesses vitais da sociedade nem a um mínimo de justiça; todas estas definições são inadequadas.Mas, apenas porque um sentimento, quaisquer que sejam sua origem e seu fim, encontra-se em todas as consciências com um certo grau de força e de precisão, todoato que o fira é um crime. A psicologia contemporânea retorna cada vez mais à idéia de Espinosa segundo a qual as coisas são boas porque as amamos e não que as amemospor serem boas. O primitivo é a tendência, a inclinação; o prazer e a dor são apenas fatos derivados. Acontece o mesmo na vida social. Um ato é socialmente mau porqueé repelido pela sociedade. Mas, dir-se-á, não existem sentimentos coletivos que resultem do prazer ou da dor que a sociedade experimenta ao contato de seus objetos?Sem dúvida, mas eles não têm todos esta origem. Muitos, senão a maior62 A confusão não é sem perigo. Assim, pergunta se algumas vezes se a consciência individual varia ou não como a consciência coletiva; tudo depende do sentido quese dá à palavra. Se representa similitudes sociais, a relação de variação é inversa, nós o veremos; se designa toda a vida psíquica da sociedade, a relação é direta.Portanto, é preciso distinguir. (N. do A.)63 Não entramos na questão de saber se a consciência coletiva é uma consciência como a do indivíduo. Por esta palavra designamos simplesmente o conjunto das similitudessociais, sem prejulgar a categoria pela qual este sistema de fenômenos deve ser definido. (N. do A.)

p. 42parte, derivam de causas completamente diferentes. Tudo o que determina a atividade a tomar uma forma determinada pode originar hábitos dos quais resultam tendênciasque desde então é preciso satisfazer. Além do mais, são estas últimas tendências que, sozinhas, são verdadeiramente fundamentais. As outras são formas especiaise melhor determinadas; pois, para encantar-se com tal ou tal objeto, é preciso que a sensibilidade coletiva já esteja constituída de maneira a poder apreciá-lo.Se os sentimentos correspondentes são abolidos, o ato mais funesto à sociedade poderá ser não apenas tolerado, mas honrado e proposto como exemplo. O prazer é incapaz

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de criar por si só uma inclinação; pode apenas ligá-la àqueles que existem com tal ou tal fim particular, contanto que este esteja em relação com sua naturezainicial.Entretanto, existem casos em que a explicação precedente não parece explicar-se. Existem atos que são mais severamente reprimidos do que fortemente reprovados pelaopinião. Assim, a coalizão dos funcionários, a invasão das autoridades judiciárias pelas autoridades administrativas, das funções religiosas pelas funções civis,são objeto de uma repressão que não está em proporção com a indignação que elas suscitam nas consciências. A subtração de dinheiro público deixa-nos muito indiferentese entretanto é punida com castigos muito elevados. Acontece mesmo que o ato punido não fira diretamente nenhum sentimento coletivo; não há nada em nós que protestecontra o fato de pescar ou caçar em épocas proibidas ou de fazer passar viaturas muito pesadas sobre a via pública. Entretanto, não há nenhuma razão para separarcompletamente estes delitos dos outros; toda distinção radical 6 4 seria arbitrária, porque apresentam todos, em diferentes graus, o mesmo critério externo. Semdúvida, em nenhum destes exemplos a pena parece injusta; se não é repugnada pela opinião pública, esta, abandonada a si mesma, ou não a reclamaria ou mostrar-seia menos exigente. É porque, em todos os casos deste gênero, a delituosidade não deriva, ou não deriva inteiramente da vivacidade dos sentimentos coletivos que sãoofendidos, mas tem uma outra causa.com efeito, é certo que. uma vez instituído um poder governamental, ele tem por si mesmo muita força para ligar espontaneamente a certas regras de conduta uma sançãopenal. É capaz, por sua ação própria, de criar certos delitos ou de agravar o valor criminológico de outros. Também, todos os atos que acabamos de citar apresentama característica comum de serem dirigidos contra algum dos órgãos diretores da vida social. Precisa-se, pois, admitir que existem dois gêneros de crimes dependentesde duas causas diferentes? Não se poderia permanecer com uma tal hipótese. Por mais numerosas que sejam suas variedades, o crime é em toda parte essencialmenteo mesmo, porque determina em toda parte o mesmo efeito, a saber, a pena, que. se pode ser mais ou menos intensa, não muda de natureza por isso. Ora, um mesmo fatonão pode ter duas causas, a menos que esta dualidade seja só aparente e que no fundo as causas sejam apenas uma. O poder de reação próprio ao Estado deve portantoser da mesma natureza que o difuso na sociedade.E, com efeito, de onde ele viria? Da gravidade dos interesses que gere o Estado e que precisam ser protegidos de uma maneira toda particular? Mas sabemos que aúnica lesão de interesses, mesmo grave, não é suficiente para determinar a reação penal; é preciso ainda que seja sentida de uma certa maneira. De onde vem, aliás,que o menor dano causado ao órgão governamental seja punido, quando desordens muito mais terríveis em64 É preciso apenas ver como M. Garofalo distingue o que ele chama os verdadeiros crimes dos outros, segundo uma apreciação pessoal que não repousa sobre nenhumcaráter objetivo. (N. do A.)

p. 43outros órgãos sociais são reparadas apenas civilmente? A menor infração à polícia rodoviária é castigada com uma multa; a violação, mesmo repetida, dos contratos,a falta constante de probidade nas relações econômicas obrigam só à reparação do prejuízo. Sem dúvida, o aparelho de direção desempenha um papel eminente na vidasocial, mas existem outros cujo interesse não deixa de ser vital e cujo funcionamento não é entretanto assegurado desta maneira. Se o 'cérebro tem sua importância,o estômago também é essencial, as doenças de um como as do outro são ameaças à vida. Por que este privilégio atribuído ao que se chama às vezes de cérebro social?A dificuldade resolve-se facilmente se observamos que, em toda parte onde um poder diretor se estabelece, sua primeira e principal função é fazer respeitar as crenças,as tradições, as práticas coletivas, isto é, defender a consciência comum contra todos os inimigos internos e externos. Assim ele se torna seu símbolo, a expressãoviva aos olhos de todos. Também a vida que está nela comunica-se a ele, como as afinidades de idéias se comunicam às palavras que as representam, e eis aí como eleadquire uma característica que o coloca fora de comparação. Ele não é mais uma função social mais ou menos importante, é o tipo coletivo encarnado. Ele participa,pois, da autoridade que este último exerce sobre as consciências e é de lá que lhe vem sua força. Uma vez que esta força se constituiu sem libertar-se da fonte daqual ela decorre e onde continua a se alimentar, ela torna-se entretanto um fator autônomo da vida social, capaz de produzir espontaneamente movimentos própriosque nenhuma impulsão externa determina, precisamente por causa desta supremacia que ela conquistou. Como, por outro lado, ela é apenas uma derivação da força queé imanente à consciência comum, tem necessariamente as mesmas propriedades e reage da mesma maneira, mesmo quando esta última não reage de maneira completamenteuníssona. Portanto, ela repele toda força antagônica como faria a alma difusa da sociedade, mesmo que esta não sinta este antagonismo ou não o sinta tão vivamente,quer dizer, ela marca como crimes atos que a ferem sem entretanto ferir com o mesmo grau os sentimentos coletivos. Mas é destes últimos que ela recebe toda a energiaque lhe permite criar crimes e delitos. Além de ela não poder vir de outro lugar e entretanto não poder vir de nada, os fatos seguintes, que serão amplamente desenvolvidosem toda a seqüência desta obra, confirmam esta explicação. A extensão da ação que o órgão governamental exerce sobre o número e sobre a qualificação dos atos criminososdepende da força que encerra. Esta por sua vez pode ser medida seja pela extensão da autoridade que ela exerce sobre os cidadãos, seja pelo grau da gravidade reconhecidonos crimes dirigidos contra ela. Ora, veremos que é nas sociedades inferiores que esta autoridade é maior e esta gravidade mais elevada, e, por outro lado, é nestesmesmos tipos sociais que a consciência coletiva tem mais potência. 6 5É, pois, sempre a esta última que é preciso retornar; é dela que, direta ou indiretamente, decorre toda a criminalidade. O crime não é apenas a lesão de interessesmesmo graves, é uma ofensa contra uma autoridade de alguma forma transcendente. Ora, experimentalmente, não há força moral superior ao indivíduo, salvo a força coletiva.Existe, aliás, uma maneira de controlar o resultado a que chegamos. O que caracteriza o crime é que ele determina a pena. Portanto, se nossa definição do crime éexata, ela deve dar conta de todas as características da pena. Vamos proceder a esta verificação.Mas antes é preciso estabelecer quais são estas características.6 5 Aliás, quando a multa é toda a pena, como ela é apenas uma reparação cujo montante é fixo, o ato está nos limites do direito penal e do direito restitutivo.(N. do A.)

p. 44 II

Em primeiro lugar, a pena consiste numa reação passional. Esta característica é tanto mais aparente quanto menos cultivadas são as sociedades. com efeito, os povosprimitivos punem por punir, fazem sofrer o culpado unicamente por fazê-lo sofrer e sem esperar, para si mesmos, nenhuma vantagem do sofrimento que lhe impõem. Oque o prova é que não procuram castigar nem justa nem utilmente, mas apenas castigar. É assim que castigam os animais que cometeram o ato reprovado 6 6 ou mesmoos seres inanimados que foram seu instrumento passivo. 6 7 Quando a pena é aplicada a pessoas, estende-se freqüentemente bem além do culpado e atinge inocentes,sua mulher, seus filhos, seus vizinhos, etc. 6B É porque a paixão, que é a alma da pena, só pára uma vez esgotada. Portanto, se, quando ela destruiu aquele que asuscitou o mais imediatamente, lhe restam forças, estende-se mais longe de uma maneira completamente mecânica. Mesmo quando é bastante moderada para prender-se sóao culpado, ela faz sentir sua presença pela tendência que tem em ultrapassar em gravidade o ato contra o qual reage. É daí que provêm os refinamentos de dor acrescentadosao último suplício. Ainda em Roma, o ladrão devia não apenas devolver o objeto roubado, mas ainda pagar uma multa do dobro ou quádruplo do preço. Aliás, a pena tãogeral de talião não é uma satis| facão concedida à paixão da vingança?Mas, hoje, diz-se, a pena mudou de natureza; não é mais para vingar-se que a sociedade castiga, é para defender-se. A dor que ela inflige é apenas um instrumentometódico de proteção. Ela pune, não porque o castigo lhe ofereça por ele mesmo alguma satisfação, mas a fim de que o temor da pena paralise as más vontades. Nãoé mais a cólera mas a-previsão refletida que determina a repressão. As observações precedentes não poderiam, pois, ser generalizadas: concerniriam só à forma primitivada pena e não poderiam ser estendidas à sua forma atual.Mas, para que se tenha o direito de distinguir tão radicalmente estes dois tipos de penas, não é bastante constatar que são empregadas em vista de fins diferentes.A natureza de uma prática não muda necessariamente porque as intenções conscientes daqueles que a aplicam modificam-se. Ela podia, com efeito, desempenhar já omesmo papel que antes, mas sem que isto se percebesse. Neste caso, por que se transformaria apenas pelo fato de que se dá conta de maneira melhor dos efeitos queela produz? Ela se adapta às novas condições de existência que lhe são assim feitas sem mudanças essenciais. É o que ocorre com a pena.com efeito, é um erro acreditar que a vingança seja apenas uma inútil crueldade. É bem possível que ela mesma consista numa reação mecânica e sem fim, num movimento

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passional e ininteligente, numa necessidade irracional de destruir; mas, de fato, o que ela tende a destruir era para nós uma ameaça. Ela constitui, portanto, narealidade, um verdadeiro ato de defesa, se bem que instintivo e irrefletido. Nós só nos vingamos daquilo que nos fez mal, e o que nos fez mal é sempre um perigo.O instinto de vingança é em suma o instinto de conservação exasperado pelo perigo. Assim, não é preciso que a vingança tenha tido na história da humanidade o papelnegativo e estéril que se lhe atribui. É uma arma defensiva que tem seu preço; unicamente, é uma arma grosseira. Como ela não tem consciência dos serviços que prestaautomaticamente, não pode regrar-se conseqüentemente; mas difunde-se um pouco ao acaso, à mercê das causas cegas que a66 Vide É* 21, 28; Lev 20, 16. (N. do A.)6 7 Por exemplo, a faca que serviu para perpetrar o assassinato. — Ver Post, Baunsteinejíir eine allgememe Rechtswissenschaft, I, págs. 230-231. (N. do A.) '68 Ver Êx 20, 4 e 5; Dt 12, 12-13; Thonissen, Estudos de História do Direito Criminal, I, págs. 170 e 178 ss. (N. do A.)

p. 45impelem e sem que nada modere sua exaltação. Hoje, como conhecemos mais o fim a atingir, sabemos utilizar melhor os meios de que dispomos; protegemo-nos com maismétodo e, por conseguinte, mais eficazmente. Mas, desde o princípio, o resultado era obtido, se bem que de uma maneira mais imperfeita. Entre a pena de agora e ade antes não existe, pois, um abismo e, por conseguinte, não era necessário que a primeira se tornasse outra coisa senão ela mesma para acomodar-se ao papel quedesempenha em nossas sociedades civilizadas. Toda diferença vem do fato de ela produzir seus efeitos com mais consciência do que faz. Ora, embora a consciênciaindividual ou social não seja desprovida de influência sobre a realidade que ela ilumina, não tem o poder de mudar sua natureza. A estrutura interna dos fenômenospermanece a mesma, sejam conscientes ou não. Podemos, pois, esperar que os elementos essenciais da pena sejam os mesmos de antes.E com efeito a pena permaneceu, pelo menos em parte, uma obra de vingança. Dizse que não fazemos sofrer o culpado apenas por fazê-lo sofrer; não é menos verdadeiroque achamos justo que ele sofra. Talvez não tenhamos razão; mas não é isto que está em questão. Procuramos no momento definir a pena tal como é ou foi, não comodeve ser. Ora, a expressão vindita pública, que retorna incessantemente nos tribunais, não é uma expressão vã. Supondo que a pena possa realmente servir para proteger-nosno futuro, estimamos que deva ser, antes de tudo, uma expiação do passado. O que o prova são as precauções minuciosas que tomamos para proporcioná-la tão exatamentequanto possível à gravidade do crime; elas seriam inexplicáveis se acreditássemos que o culpado deve sofrer porque fez o mal e na mesma medida. com efeito, estagraduação não seria necessária se a pena fosse só um meio de defesa. Sem dúvida, haveria perigo para a sociedade se os atentados mais graves fossem assimilados asimples delitos; mas não poderia haver senão vantagem, na maior parte dos casos, se os segundos fossem assimilados aos primeiros. Contra um inimigo, não se saberiademais tomar precauções. Dir-se-á que os autores dos menores delitos têm naturezas menos perversas e que, para neutralizar seus maus instintos, são suficientes penasmais fracas? Mas, se suas inclinações são menos viciosas, não são por isto menos intensas. Os ladrões estão tão fortemente inclinados ao roubo quanto os assassinosao homicídio; a resistência que oferecem os primeiros não é inferior à dos segundos, e, por conseguinte, para triunfar, dever-se-ia recorrer aos mesmos meios. Se,como se disse, se tratasse apenas de recalcar uma força nociva por uma força contrária, a intensidade da segunda deveria ser unicamente medida segundo a intensidadeda primeira, sem que a qualidade desta entrasse em consideração. A escala penal deveria, pois, compreender apenas um pequeno número de graus; a pena deveria variarna medida em que o criminoso fosse mais ou menos endurecido, não segundo a natureza do ato criminoso. Um ladrão incorrigível seria tratado como um assassino incorrigível.Ora, de fato, mesmo quando estivesse verificado que um culpada é definitivamente incurável, sentir-nos-íamos ainda preocupados em não aplicar-lhe um castigo excessivo.É a prova de que permanecemos fiéis ao princípio de talião, se bem que o entendamos em um sentido mais elevado que antes. Não medimos mais de uma maneira tão materiale grosseira nem a extensão da falta nem a do castigo; mas pensamos sempre que deve haver uma equação entre estes dois termos, tenhamos ou não proveito em estabeleceresta balança. Portanto, a pena permaneceu para nós o que era para nossos pais. Ela é ainda um ato de vingança porque é uma expiação. O que nós vingamos, o que ocriminoso expia, é o ultraje feito à moral.Existe sobretudo uma pena em que este caráter passional está mais manifesto: é a vergonha que acompanha a maior parte das penas e que cresce com elas. Freqüentemente,ela não serve para nada. Para que aviltar um homem que não deve mais viver na

p. 46sociedade de seus semelhantes e que provou abundantemente pela sua conduta que as ameaças mais terríveis não eram suficientes para intimidá-lo? Compreende-se o aviltamentoquando não há outra pena ou como complemento de uma pena material muito fraca; caso contrário, ela é ambígua. Pode-se mesmo dizer que a sociedade recorre aos castigoslegais só quando os outros são insuficientes; mas então por que mantê-los? São um tipo de suplício suplementar e sem finalidade, ou que não pode ter outra causasenão a necessidade de compensar o mal pelo mal. São um produto de sentimentos instintivos, irresistíveis, que freqüentemente se estendem a inocentes; é assim queo lugar do crime, os instrumentos que lhe serviram, os pais do culpado participam às vezes do opróbrio com o qual castigamos este último. Ora, as causas que determinamesta repressão difusa são também as da repressão organizada que acompanha a primeira. Aliás, é suficiente ver nos tribunais como a pena funciona para reconhecerque seu motor é completamente passional; pois é às paixões que se dirigem o magistrado que acusa e o advogado que defende. Este procura excitar a simpatia pelo culpado,aquele procura despertar os sentimentos sociais que o ato criminoso feriu, sendo sob a influência destas paixões contrárias que o juiz se pronuncia.Assim, a natureza da pena não mudou essencialmente. Tudo o que se pode dizer é que a necessidade de vingança está hoje mais bem dirigida do que antes. O espíritode previsão que se despertou não deixa mais o campo tão livre à ação cega da paixão; ele a contém em certos limites, opõe-se às violências absurdas, às destruiçõessem razão de ser. Mais esclarecida, difunde-se menos ao acaso; não se a vê mais, mesmo para satisfazer-se, voltar-se contra inocentes. Mas ela ainda permanece aalma da penalidade. Podemos dizer, pois, que a pena consiste em uma reação passional de intensidade graduada. 69Mas de onde emana esta reação? Do indivíduo ou da sociedade?Todos sabem que é a sociedade que pune; mas poderia acontecer que não fosse por sua conta. O que coloca fora de dúvida o caráter social da pena é que, uma vez pronunciada,pode ser sustada só pelo governo, em nome da sociedade. Se ela fosse uma satisfação concedida aos particulares, estes seriam sempre senhores de perdoá-la: não seconcebe um privilégio imposto e ao qual o beneficiário não pode renunciar. Se é apenas a sociedade que dispõe a repressão, é porque está atingida quando os indivíduostambém o são, e é o atentado dirigido contra ela que é reprimido pela pena.Entretanto, podem-se citar casos em que a execução da pena depende da vontade dos particulares. Em Roma, alguns delitos eram punidos com uma multa em benefícioda parte lesada, que podia renunciar a ela ou fazê-la objeto de uma transação: era o roubo não manifesto, a rapina, a injúria, o dano causado injustamente.70 Essesdelitos, chamados privados (delicia privata), opunham-se aos crimes propriamente ditos cuja repressão era exigida em nome da cidade. Encontra-se a mesma distinçãona Grécia e entre os hebreus. 71 Nos povos primitivos a pena parece ser algumas vezes algo ainda mais privado, como tende a prová-lo o uso da vendetta. Essas sociedadessão compostas de agrega-69 É, aliás, o que reconhecem aqueles mesmos que acham ininteligível a idéia de expiação; pois sua conclusão é que, para ser posta em harmonia com a sua doutrina,a concepção tradicional da pena deveria ser totalmente transformada e reformada inteiramente. É porque repousa e sempre repousou sobre o princípio que eles combatem(Vide Fouillée, Ciência Social, pág. 307 ss.). (N. do A.)7 º Rein, op. ca., pág. 111. (N. do A.)71 Entre os judeus, o roubo, a violação de depósito, o abuso de confiança, os golpes eram tratados como delitos privados. (N. do A.)

p. 47dos elementares de natureza quase familiar que são comodamente designados pelo nome de clãs. Assim que um atentado é cometido por um ou vários membros de um clãcontra um outro, é este último que pune a ofensa que sofreu.7 2 O que acresce ainda, pelo menos aparentemente, a importância desses fatos do ponto de vista da doutrina

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é que freqüentemente se sustentou que a vendetta tinha sido primitivamente a única forma da pena: esta teria, pois, consistido primeiramente em atos de vingançaprivada. Mas, então, se a sociedade está hoje armada com o direito de punir, isso pode ocorrer, ao que parece, apenas em virtude de um tipo de delegação dos indivíduos.Ela não é senão sua mandatária. São os interesses deles que ela gere em seu lugar, provavelmente porque os gere melhor, mas não os seus próprios. No princípio, vingavam-sepor si mesmos; agora é ela que os vinga; mas, como o direito penal não pode ter mudado de natureza em decorrência dessas simples transferências, ele não teria, pois,nada de propriamente social. Se a sociedade parece aí desempenhar um papel preponderante, é somente como substituta dos indivíduos.Mas, por mais difundida que seja essa teoria, é contrária aos fatos mais bem estabelecidos. Não se pode citar uma única sociedade em que a vendetta tenha sido aforma primitiva da pena. Muito pelo contrário, é certo que o direito penal na origem era essencialmente religioso. Esse é um fato evidente para a índia, para a Judéia,porque aí o direito que era praticado era tido como revelado.73 No Egito, os dez livros de Hermes, que continham o direito criminal com todas as outras leis relativasao governo do Estado, eram chamados sacerdotais, e Élien afirma que em toda a antigüidade os padres egípcios exerceram o poder judiciário.7 4 Acontecia o mesmo naantiga Germânia.7 5 Na Grécia, a justiça era considerada como uma emanação de Júpiter e o sentimento como uma vingança do deus.7 6 Em Roma, as origens religiosasdo direito penal são tornadas manifestas por velhas tradições,7 7 por práticas arcaicas que subsistiram tardiamente e pela própria terminologia jurídica.78 Ora,a religião é uma coisa essencialmente social. Longe de perseguir apenas fins individuais, exerce sobre o indivíduo um constrangimento perene. Ela o obriga a práticasque o pressionam, a sacrifícios, pequenos ou grandes, que lhe custam. Ele deve tomar dos seus bens as oferendas que deve apresentar à divindade, deve tomar do tempodo seu trabalho ou de suas distrações os momentos necessários à realização dos ritos; deve impor-se todo tipo de privação que lhe é ordenado, renunciar mesmo à vidase os deuses o ordenam. A vida religiosa é inteiramente feita de abnegação e de desinteresse. Portanto, se o direito criminal é primitivamente um direito religioso,pode-se estar certo de que os interesses aos quais ele serve são sociais. São as ofensas à sociedade que os deuses vingam pela pena, e não as dos particulares; ora,as ofensas contra os deuses são ofensas contra a sociedade.Também nas sociedades inferiores os delitos mais numerosos são os que lesam a coisa pública: delitos contra a religião, contra os costumes, contra a autoridade,etc. Basta ver na Bíblia, nas leis de Manou, nos monumentos que nos restam do velho direito72 Ver particularmente Morgan, Sociedade Antiga, Londres, 1870, pág. 56. (N. do A.)73 Na Judéia, os juizes não eram padres, mas todo juiz era o representante de Deus, o homem de Deus (Dt l, 17; Éx 22, 28). Na índia era o rei que julgava, mas essafunção era vista como essencialmente religiosa (Manou, VIII, v. 303-311). (N. do A.)7 * Thonissen, Estudos sobre a História do Direito Criminal, I. pág. 107. (N. do A.)7 5 Zoepfl, História do Direito Alemão, pág. 909. (N. do A.)7 6 "Foi o filho de Saturno", diz Hesíodo, "que deu aos homens a justiça" (Os Trabalhos e os Dias, V, págs.279 e 280, ed. Didot). — "Quando os mortais se entregam às ações viciosas, Júpiter, a distância, lhes infligeum pronto castigo." (Ibid. 266, cf llíada, XVI, pág. 384 ss.) (N. do A.)7 7 Walter, op. cit., § 788. (N. do A.)78 Rem, op. cit., págs. 27-36. (N. do A.) •*-* •

p. 48egípcio, o lugar relativamente pequeno dado às prescrições protetoras dos indivíduos e, ao contrário, o desenvolvimento luxuriante da legislação repressiva sobreas diferentes formas de sacrilégio, sobre a negligência dos diversos deveres religiosos, das exigências do cerimonial, etc.7 9 Ao mesmo tempo, esses crimes são punidosmais severamente. Entre os judeus, os atentados mais abomináveis são os atentados contra a religião.80 Entre os antigos germanos, apenas dois crimes eram punidoscom a morte, segundo Tácito: a traição e a deserção.81 Segundo Confúcio e Meng Tseu, a impiedade é uma falta maior que o assassinato.8 2 No Egito, o menor sacrilégioera punido com a morte.8 3 Em Roma, no cume da escala da criminalidade encontra-se o crimen perduellionis (crime de lesa-majestade).8 4Mas, então, que são essas penas privadas das quais dávamos exemplos acima? Elas têm uma natureza mista e participam simultaneamente da sanção repressiva e da sançãorestitutiva. Assim, o delito privado do direito romano representa um tipo de intermediário entre o crime propriamente dito e a lesão puramente civil. Ela tem traçosde um e de outro, flutuando nos confins dos dois domínios. Ela é um delito no sentido em que a sanção fixada pela lei não consiste simplesmente na restituição sobcondição; o delinqüente não é apenas obrigado a reparar o dano que causou, mas deve algo mais, uma expiação. Entretanto, ele não é completamente um delito, vistoque, se é a sociedade que pronuncia a pena, não é ela que a aplica. Esse é um direito que ela confere à parte lesada, que dispõe dele livremente.e 5 Igualmente,a vendetta é evidentemente um castigo que a sociedade reconhece como legítimo, mas que deixa aos particulares o cuidado de infligiIo. Esses fatos confirmam o quedissemos sobre a natureza da penalidade. Se esse tipo de sanção intermediária é, em parte, uma coisa privada, na mesma medida não é uma pena. O caráter penal é tantomenos pronunciado quanto mais apagado é o caráter social, e inversamente. A vingança privada não pode portanto ser o protótipo da pena; é, ao contrário, apenas umapena imperfeita. Longe de os atentados contra as pessoas terem sido os primeiros a serem reprimidos, na origem estão apenas no limiar do direito penal. Elevaram-sena escala da criminalidade na medida em que a sociedade se inteirou deles completamente, e essa operação, que não descreveremos, não se reduziu simplesmente a umatransferência; ao contrário, a história dessa penalidade é uma seqüência contínua de invasões da sociedade sobre indivíduos, ou antes, sobre os grupos elementaresque ela contém em seu seio, e o resultado dessas invasões é substituir cada vez mais o direito dos particulares pelo da sociedade.8 6Mas as características precedentes pertencem tanto à repressão difusa que segue as ações simplesmente imorais quanto à repressão legal. O que distingue esta últimaé, nós o dissemos, ser organizada; mas em que consiste essa organização?Quando se pensa no direito penal, tal qual funciona em nossas sociedades atuais, representa-se um código em que penas muito definidas estão ligadas a crimes igualmente79 Vide Thonissen,pasíi'm. (N. do A.)80 Munck, Palestina, pág. 216. (N. do A.)8' Germania, XII. (N. do A.)82 Plath, Lei e Direito na Velha China, 1865, págs. 69 e 70. (N. do A.)83 Thonissen, op. cit., I, pág. 145. (N. do A.)84 Walter, op. cit., § 803. (N. do A.)85 Entretanto, o que acentua o caráter penal do delito privado é que implicava infâmia, verdadeira pena pública. (Vide Rein, op. cit., pág. 916, e Bouvy, Sobre aInfâmiano Direito Romano, Paris, 1884, pág. 35.) (N. do A.)86 Em todo caso, é importante observar que a vendetta é algo eminentemente coletivo. Não é o indivíduo que se vinga, mas seu clã; mais tarde é ao clã ou à famíliaque a restituição é paga. (N. do A.)

p. 49definidos. O juiz dispõe de uma certa flexibilidade para aplicar a cada caso particular essas disposições gerais; mas, em suas linhas essenciais, a pena está predeterminadapara cada categoria de atos delituosos. Entretanto, essa organização engenhosa não é constitutiva da pena, pois existem várias sociedades em que essa existe semestar fixada previamente. Há na Bíblia numerosas proibições que são tão imperativas quanto possível e que, entretanto, não são sancionadas por qualquer castigo expressamenteformulado. O caráter penal não é entretanto duvidoso; pois, se os textos se calam sobre a pena, exprimem ao mesmo tempo pelo ato proibido um tal horror que não sepode suspeitar um só instante que tenha ficado impune. Há, pois. toda razão para se acreditar que esse silêncio da lei advém simplesmente do fato de a repressãonão estar determinada. E, com efeito, muitas narrativas do Pentateuco nos ensinam que havia atos cujo teor criminal era incontestado, e cuja penalidade era estabelecidasó pelo juiz que a aplicava. A sociedade sabia perfeitamente que se encontrava em presença de um crime; mas a sanção penal que devia acompanhá-lo não estava aindadefinida.8 7 E mais, mesmo entre as penalidades enunciadas pelo legislador, muitas há que não estão especificadas com precisão. Assim sabemos que havia diferentesmodalidades de suplícios que não eram postos no mesmo nível, e, no entanto, num grande número de casos, os textos só falam da morte de maneira geral, sem dizer queespécie de morte devia ser infligida. Segundo Sumner Maine, dava-se o mesmo na Roma primitiva; os crimina eram julgados diante da assembléia do povo, que fixavasoberanamente a penalidade através de uma lei, ao mesmo tempo que estabelecia a realidade do fato incriminado.88 De resto, mesmo até o século XVI, o princípio geralda penalidade "é que a aplicação dela se deixava ao arbítrio do juiz arbítrio et ojjlcio judieis. . . Somente, ao juiz não é permitido inventar penas além daquelasusuais".89 Outro efeito desse poder do juiz era o de tornar inteiramente dependente de sua apreciação até a qualificação do ato criminal, que, por conseguinte, era

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ela própria indeterminada.9 ºNão é, pois, na regulamentação da pena que consiste a organização distintiva desse gênero de repressão. Não é tampouco na instituição de um processo criminal; osfatos que acabamos de citar demonstram suficientemente que por muito tempo ela fez falta. A única organização que se encontra por toda parte em que há pena propriamentedita se reduz, pois, ao estabelecimento de um tribunal. De qualquer forma que seja composto, compreenda todo o povo ou somente uma elite, siga ou não um processoregular tanto na instrução do caso quanto na aplicação da pena, pela única razão de que a infração, em vez de ser julgada por cada um, é submetida à apreciação deum corpo constituído, pela única razão de que a reação coletiva tem como intermediário um órgão definido, ela cessa de ser difusa: é organizada. A organização poderáser mais completa, mas desde esse momento ela existe.A pena consiste, pois, essencialmente numa reação passional, de intensidade gradual, que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído sobre aquelesdos seus membros que tenham violado certas regras de conduta.Ora, a definição que demos do crime presta facilmente contas de todos esses caracteres da pena. ,'fí • •8 7 Um homem havia sido encontrado recolhendo lenha no dia de sabbat: "Os que o encontraram conduziram no a Moisés e a Aarão e a toda a assembléia, e puseram-noem prisão, pois não se havia ainda declarado o que se lhe devia fazer "(Num 15, 32-36). — Alhures, trata-se de um homem que havia blasfemado contra o nome de Deus.Os presentes o prendem, mas não sabem como deve ser tratado. Moisés mesmo o ignora e vai consultar o Eterno (Lev 24, 12-16). (N. do A.)88 Direito Antigo, pág. 353. (N. do A.)8 9 Du Boys, História do Direito Criminal dos Povos Modernos, VI, pág. 11. (N. do A.)90 Du Boys, ibid., pág. 14. (N. do A.)

p. 50 III

Todo estado forte da consciência é uma fonte de vida; é um fator essencial de nossa vitalidade geral. Por conseguinte, tudo o que tende a debilitá-la nos diminuie nos deprime; daí resulta uma impressão de desequilíbrio e de mal-estar análoga à impressão que sentimos quando alguma função importante se interrompe ou torna-selenta. É, pois, inevitável que reajamos energicamente contra a causa que nos ameaça de um tal amesquinhamento, que nos esforcemos por afastá-la, a fim de mantera integridade de nossa consciência.No primeiro plano das causas que produzem este resultado é preciso colocar a representação de um estado contrário. Uma representação não é, com efeito, uma simplesimagem da realidade, uma sombra inerte projetada em nós pelas coisas; é uma força que suscita em torno de si todo um turbilhão de fenômenos orgânicos e psíquicos.Não apenas a corrente nervosa que acompanha a ideação se irradia nos centros corticais e em torno do ponto onde nasceu e passa de um plexo ao outro, como tambémressoa nos centros motores onde ela determina movimentos, nos centros sensoriais onde desperta imagens, excita algumas vezes começos de ilusões e pode mesmo afetaraté as funções vegetativas;91 esta ressonância é tanto mais considerável quanto mais intensa é a própria representação, quanto mais desenvolvido é o elemento emocional.Assim, a representação de um sentimento contrário ao nosso age em nós no mesmo sentido e da mesma maneira que o sentimento do qual ela é o substituto; é como seele mesmo tivesse penetrado em nossa consciência. Ela tem, com efeito, as mesmas afinidades, se bem que menos vivas; ela tende a despertar as mesmas idéias, osmesmos movimentos, as mesmas emoções. Ela opõe assim uma resistência ao jogo de nosso sentimento pessoal e, por conseguinte, enfraquece-o, atraindo em uma direçãocontrária toda uma parte de nossa energia. É como se uma força estranha se tivesse introduzido em nós de maneira a desarranjar o livre funcionamento de nossa vidapsíquica. Eis por que uma convicção oposta à nossa não pode se manifestar em nossa presença sem nos perturbar; é porque no mesmo instante ela penetra em nós e, estandoem antagonismo com tudo o que aí encontra, determina verdadeiras desordens. Sem dúvida, enquanto o conflito não explode senão entre idéias abstratas, não tem nadade muito doloroso, porque não tem nada de muito profundo. A região destas idéias é simultaneamente a mais elevada e a mais superficial da consciência e as mudançasque aí ocorrem, não tendo grandes repercussões, nos afetam só fracamente. Mas, quando se trata de uma crença que nos é cara, não permitimos e não podemos permitirque nela se ponha impunemente a mão. Toda ofensa dirigida contra ela suscita uma reação emocional, mais ou menos violenta, que se volta contra o ofensor. Nós nosarrebatamos, nos indignamos contra ele, lhe queremos mal e os sentimentos assim suscitados não podem deixar de traduzir-se por atos; nós fugimos dele, o mantemosa distância, o exilamos de nossa sociedade, etc.Sem dúvida, não pretendemos que toda convicção forte seja necessariamente intolerante; a observação corrente é suficiente para demonstrar o contrário. Mas é queas causas exteriores neutralizam então aquelas das quais acabamos de analisar os efeitos. Por exemplo, pode haver entre os adversários uma simpatia geral que contenhaseu antagonismo e o atenue. Mas é preciso que esta simpatia seja mais forte que esse antagonismo,91 Vide Maudsley, Fisiologia do Espírito, trad. fr., pág 270. (N. do A.)

p. 51pois de outra maneira ela não lhe sobreviveria. Ou os dois partidos em questão renunciam à luta quando é averiguado que ela não pode terminar e eles contentam-seem manter suas situações respectivas, toleram-se mutuamente, não podendo se destruir. A tolerância recíproca que às vezes acaba com as guerras de religião é freqüentementedesta natureza. Em todos esses casos, se seu conflito de sentimentos não engendra suas conseqüências naturais, não c porque ele não as contém, é porque está impedidode produzi-las.Aliás, elas são ao mesmo tempo úteis e necessárias. Além de derivarem das causas que as produzem, elas contribuem para mantê-las. Na realidade, todas essas emoçõesviolentas constituem um apelo a forças suplementares que dão ao sentimento atacado a energia que lhe retira a contradição. Algumas vezes se disse que a cólera erainútil porque era uma paixão destri tiva; mas isto é vê-la apenas por um de seus aspectos. De fato, ela consiste numa superexcitação de forças latentes e disponíveisque auxiliam nosso sentimento pessoal a fazer fa-e aos perigos dando-lhes força. No estado de paz, se podemos falar assim, este não esta suficientemente armado paraa luta; arriscar-se-ia, pois, a sucumbir se reservas passionais não surgissem no momento certo; a cólera é uma mobilização destas reservas. Pode mesmo acontecerque, o auxílio assim evocado ultrapas. sando as necessidades, a discussão tenha como efeito tornar mais firmes nossas convicções, ao invés de abalá-las.Sabe-se que grau de energia podem tomar uma crença ou um sentimento apenas pelo fato de serem sentido > por uma mesma comunidade de homens relacionados uns aos outros;as causas desse fenômeno são hoje bem conhecidas. Assim como estados de consciência contrários enfraquecem-se reciprocamente, estados de consciência idênticos, permutando-se,reforçam-se uns aos outros. Enquanto que os primeiros se subtraem, os segundos se adicionam. Se alguém exprime diante de nós uma idéia que já era nossa, a representaçãoque fazemos dela acrescenta-se à nossa própria idéia, aí se superpõe, confunde-se com ela, comunica-lhe o que ela mesma tem de vitalidade; desta fusão sai uma idéianova que abson e as precedentes, sendo mais viva que cada uma delas tomada isoladamente. Eis por que nas reuniões numerosas uma emoção pode adquirir uma tal violência;pois a vivacidade com a qual ela se reproduz em cada consciência ressoa em todas as outras. Nem mesmo é necessário que experimentemos por nós mesmos, apenas emvirtude de nossa natureza individual, um sentimento coletivo, para que ele tome em nós uma tal intensidade; pois o que nós lhe acrescentamos é, em suma, muito pouco.É suficiente que não sejamos muito refratários para que, penetrando do exterior com a força que traz de suas origens, ele se imponha a nós. Portanto, porque ossentimentos que o crime ofende são, no seio de uma mesma sociedade, os mais universalmente coletivos que existam, porque eles são estados particularmente fortesda consciência comum, é impossível que tolerem a contradição. Sobretudo se esta contradição não é puramente teórica, se ela se afirma n Io apenas por palavras maspor atos, como é então levada ao seu maximum, não podemos deixar de resistir a ela com paixão. Uma simples restituição da ordem perturbada não ooderia ser suficiente;precisamos de uma satisfação mais violenta. A força contra a qual o crime se chocou é muito intensa para reagir com moderação. Aliás, ela não poderia fazê-lo semse enfraquecer, pois é graças à intensidade da reação que volta a dominar-st- e se mantém com o mesmo grau de energia.Pode-se explicar assim uma característica dessa reação que freqüentemente se assinalou como irracional. É certo que no fundo da noção de expiação há a idéia de umasatisfação concedida a alguma potência real ou ideal, que nos é superior. Quando reclamamos a repressão ao crime, não somos nós que queremos pessoalmente nos vingar,mas

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p. 52algo de sagrado que sentimos mais ou menos confusamente fora e acima de nós. Este algo, nós o concebemos de maneiras diferentes segundo os tempos e os meios; àsvezes é uma simples idéia, como a moral, o dever; mais freqüentemente, nós o representamos sob a forma de um ou vários seres concretos: os ancestrais, a divindade.Eis por que o direito penal não apenas é essencialmente religioso na origem, mas ainda guarda sempre uma certa marca de religiosidade: é que os atos que ele castigaparecem ser atentados contra algo de transcedente, ser ou conceito. É por esta mesma razão que nos explicamos a nós mesmos como eles parecem reclamar de nós umasanção superior à simples reparação com que nos contentamos na ordem dos interesses puramente humanos.Seguramente, esta representação é ilusória; em um sentido somos nós que nos vingamos, nós que nos satisfazemos, porque é em nós e apenas em nós que estão os sentimentosofendidos. Mas esta ilusão é necessária. Como, em decorrência de sua origem coletiva, de sua universalidade, de sua permanência na duração, de sua intensidade intrínseca,estes sentimentos têm uma força excepcional, separaram-se radicalmente do resto de nossa consciência cujos estados são mais fracos. Eles nos dominam, têm por assimdizer algo de sobre-humano e, ao mesmo tempo, ligam-nos a objetos que estão fora de nossa vida temporal. Eles nos aparecem, pois, como eco de uma força que nos éestranha e que, além do mais, é superior àquela que somos. Precisamos assim projetá-la fora de nós, relacioná-la a algum objeto exterior; sabemos hoje como se fazemestas alienações da personalidade. Esta miragem é de tal maneira inevitável que, de uma forma ou de outra, se produzirá enquanto houver um sistema repressivo. Pois,para que fosse de outra maneira, seria preciso que houvesse em nós apenas sentimentos coletivos de uma intensidade medíocre, e, neste caso, não haveria mais pena.Diremos que o erro se dissipará por si mesmo assim que os homens dele tiverem tomado consciência? Mas sabemos que o sol é um globo imenso e o vemos sempre como umdisco de algumas polegadas. O entendimento pode ensinar-nos a interpretar nossas sensações; ele não pode mudá-las. De resto, o erro é só parcial. Visto os sentimentosserem coletivos, não é a nós que eles representam, mas à sociedade. Portanto, vingando-os, é a ela e não a nós que vingamos, e, por outro lado, ela é algo superiorao indivíduo. É, pois, inútil ater-se a este caráter quase religioso da expiação para fazer dele um tipo de superfetação parasita. Ao contrário, é um elemento integranteda pena. Sem dúvida, ele exprime sua natureza de uma maneira apenas metafórica, mas a metáfora não está isenta de verdade.Por outro lado, compreende-se que a reação penal não seja uniforme em todos os casos, visto não serem as emoções que a determinam sempre as mesmas. com efeito,são mais ou menos vivas segundo a vivacidade do sentimento ferido e também segundo a gravidade da ofensa sofrida. Um estado forte reage mais que um estado fracoe dois estados de mesma intensidade reagem desigualmente, segundo são mais ou menos violentamente contraditos. Essas variações produzem-se necessariamente, e alémdo mais ajudam, pois é bom que o recurso de forças esteja em relação com a importância do perigo. Muito fraco, ele seria insuficiente; muito forte, seria uma perdainútil. Visto que a gravidade do ato criminoso varia em função dos mesmos fatores, a proporcionalidade que se observa em todas as partes entre o crime e o castigoestabelece-se, pois, com uma espontaneidade mecânica, sem que seja necessário fazer computações engenhosas para calculá-la. O que faz a graduação dos crimes faztambém a das penas; as duas escalas não podem, por conseguinte, deixar de corresponder-se, e esta correspondência, por ser necessária, não deixa de ser ao mesmotempo útil.Quanto ao caráter social desta reação, ele deriva da natureza social dos sentimentos ofendidos. Porque estes se encontram em todas as consciências, a infração cometidasuscita

p. 53em todos aqueles que foram sua testemunha ou que sabem de sua existência uma mesma indignação. Todos são atingidos; por conseguinte, todos resistem ao ataque.A reação não apenas é geral, mas coletiva, o que não é a mesma coisa; ela não se produz isoladamente em cada um, mas com um conjunto e uma unidade, aliás variáveissegundo os casos. com efeito, assim como os sentimentos contrários se repelem, sentimentos semelhantes se atraem, e isto de maneira mais forte quanto mais intensoseles são. Como a contradição é um perigo que os exaspera, amplifica sua força atrativa. Jamais se experimenta tanto a necessidade de rever os compatriotas do quequando se está num país estrangeiro; jamais o crente se sente tão fortemente levado em direção de seus correligionários do que nas épocas de perseguição. Sem dúvida,amamos todo tempo a companhia dos que pensam e sentem como nós; mas é com paixão e não apenas com prazer que os procuramos ao sair de discussões em que nossascrenças comuns foram vivamente combatidas. Portanto, o crime aproxima as consciências honestas e as concentra. Basta ver o que se produz, sobretudo numa pequenacidade, quando um escândalo moral é cometido. Pára-se na rua, fazem-se visitas, promovem-se encontros nos lugares convenientes para falar do acontecimento e indigna-seem comum. De todas essas impressões similares que se trocam, de todas as cóleras que se exprimem, desprende-se uma cólera única, mais ou menos determinada segundoo caso, que é a de todos sem ser a de ninguém em particular. É a cólera pública.Apenas ela, aliás, pode servir para alguma coisa. com efeito, os sentimentos que estão em jogo tiram toda a sua força do fato de serem comuns a todo mundo, sãoenérgicos porque são incontestes. O que faz o respeito particular do qual são objeto é o fato de serem universalmente respeitados. Ora, o crime só é possível seesse respeito não é verdadeiramente universal; por conseguinte, implica que não são absolutamente coletivos e rompe esta unanimidade, fonte de sua autoridade. Portanto,se, quando ele se produz, as consciências que ele fere não se unissem para testemunhar umas às outras que elas permanecem em comunhão, que este caso particular éuma anomalia, não poderiam deixar de ser abaladas com o decorrer do tempo. É preciso que elas se reconfortem e se assegurem mutuamente que estão sempre em uníssono;o único meio para isso é que ajam em comum. Em uma palavra, porque foi a consciência comum que foi atingida, também é preciso que seja ela que resista e, por conseguinte,que a resistência sej& coletiva. Resta dizer por que ela se organiza. / '— —Explicar-se-á esta última característica se se observa que aVepressão organizada não se opõe à repressão difusa, mas distingue-se dela apenas por diferença de grausjaqui a reação tem mais unidade. Ora, a intensidade maior e a natureza mais definida dos sentimentos que a pena vinga dão conta facilmente desta unificação mais perfeita.com efeito, se o estado negado é fraco ou se é apenas negado fracamente, ele pode determinar apenas uma concentração fraca das consciências ultrajadas; ao contrário,se é forte'e se a ofensa é grave, todo o grupo atingido se estreita em face do perigo e se reúne sobre si mesmo, por assim dizer. Não nos contentamos mais em trocarimpressões quando temos ocasião, em aproximar-nos aqui ou ali segundo os acasos ou a maior comodidade dês encontros, mas a emoção que se formou pouco a pouco levaviolentamente uns em direção aos outros todos os que se assemelham e reúne-os num mesmo lugar. Esse estreitamento material do agregado, tornando mais íntima a penetraçãomútua dos espíritos, torna também mais fáceis todos os movimentos do conjunto; as reações emocionais, das quais cada consciência é o teatro, estão, pois, nas maisfavoráveis condições para se unificar. Entretanto, se fossem muito diversas, seja em quantidade, seja em qualidade, seria impossível uma fusão completa entre esseselementos parcialmente heterogêneos e

p. 54irredutíveis. Mas sabemos que os sentimentos que as determinam são muito definidos e, por conseguinte, muito uniformes. Elas participam, pois, da mesma uniformidadeque, por conseguinte, se perdem naturalmente umas nas outras, confundem-se em uma resultante única que lhes serve de substituto e que é exercida não por cada umisoladamente, mas pelo corpo social assim constituído.Muitos fatos tendem a provar que tal foi historicamente a gênese da pena. Sabe-se, com efeito, que na origem era a assembléia do povo inteiro que fazia o papelde tribunal. Reportando-nos aos exemplos que citamos há pouco, tomados ao Pentateuco,9 2 veremos que as coisas se passam como acabamos de escrevê-las. Assim quea notícia do crime se difunde, o povo se reúne e, se bem que a pena não esteja predeterminada, a reação se faz com unidade. Em alguns casos era o próprio povo queexecutava coletivamente a sentença logo após pronunciá-la.93 Depois, ali onde a assembléia se encarnou na pessoa de um chefe, este tornou-se total ou parcialmenteo órgão da reação penal e a organização se dirigia conforme as leis gerais de todo desenvolvimento orgânico.É, pois, a natureza dos sentimentos coletivos que presta contas da pena e, por conseguinte, do crime. Além do mais, vê-se novamente que o poder de reação de quedispõem as funções governamentais, assim que surgiram, é apenas uma emanação do que está difuso na sociedade, pois nasce dela. Um é apenas o reflexo do outro, aextensão do primeiro varia como a do segundo. Acrescentemos, aliás, que a instituição deste poder serve para manter a própria consciência comum. Pois ela se enfraqueceriase o órgão que a representa não participasse do respeito que ela inspira e da autoridade particular que ela exerce. Ora, ele não pode participar disto sem que todosos atos que a ofendem sejam reprimidos e combatidos como aqueles que ofendem a consciência coletiva, e isto mesmo quando ela não está diretamente afetada.

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IV

Assim, a análise da pena confirmou nossa definição do crime. Começamos estabelecendo indutivamente que este consistia essencialmente em um ato contrário aos estadosfortes e definidos da consciência comum; acabamos de ver que todas as características da pena derivam, com efeito, desta natureza do crime. É porque as regras queela sanciona exprimem similitudes sociais mais essenciais.Vê-se assim que espécie de solidariedade o direito penal simboliza. com efeito, todos sabem que há uma coesão social cuja causa está numa certa conformidade detodas as consciências particulares a um tipo comum que não é outra coisa que o tipo psíquico da sociedade. Nestas condições, com efeito, não apenas todos os membrosdo grupo são individualmente atraídos uns pelos outros porque se assemelham, mas estão também ligados à condição de existência deste grupo coletivo, isto é, à sociedadeque formam por sua reunião. Os cidadãos não só se amam e se procuram de preferência aos estrangeiros, mas amam sua pátria, querem-lhe como querem a si mesmos, almejamque dure e progrida, porque, sem ela, existe toda uma parte de sua vida psíquica cujo funcionamento estaria entravado. Inversamente, a sociedade almeja que todosapresentem semelhanças fundamentais, porque isto é uma condição de sua coesão. Existem em nós duas consciências: uma contém apenas estados que são pessoais a cadaum de nós e que nos caracterizam, enquanto que os estados que compreendem a outra são comuns em92 Vide nota supra 87. (N. do A.)93 Vide Thomssen, Estudos, etc , I, págs. 30 e 232. — As testemunhas do crime desempenhavam às vezes 'um papel preponderante na execução. (N. do A.)

p. 55toda sociedade.94 A primeira representa nossa personalidade individual e a constitui; a segunda representa o tipo coletivo, e, por conseguinte, a sociedade sem aqual ele não existiria. Quando é um dos elementos desta última que determina nossa conduta, não é em vista de nosso interesse pessoal que agimos, mas perseguimosfins coletivos. Ora, se bem que distintas, essas duas consciências são ligadas uma à outra, porque em suma são apenas uma, havendo para as duas um mesmo substratoorgânico. São, pois, solidárias. Disto resulta uma solidariedade sui generis que, nascida das semelhanças, liga diretamente o indivíduo à sociedade; no próximo capítulopoderemos mostrar melhor por que temos tenção de chamá-la mecânica. Esta solidariedade não consiste apenas num vínculo geral e indeterminado do indivíduo ao grupo,mas também torna harmônico o detalhe dos movimentos. com efeito, como esses móveis coletivos são em toda parte os mesmos, em toda parte produzem os mesmos efeitos.Por conseguinte, cada vez que eles entram em jogo, as vontades movem-se espontaneamente e com o conjunto no mesmo sentido.É esta solidariedade que exprime o direito repressivo, pelo menos no que ela tem de vital. com efeito, os atos que ele proíbe e qualifica de crimes são de doistipos: ou manifestam diretamente uma diferença muito violenta entre o agente que os realiza e o tipo coletivo, ou ofendem o órgão da consciência comum. Tanto numcaso como no outro, a força atingida pelo crime que o recalca é a mesma; ela é um produto de similitudes sociais mais essenciais, tem por efeito manter a coesãosocial que resulta destas similitudes. É esta força que o direito penal protege contra todo enfraquecimento, exigindo simultaneamente de cada um de nós um mínimode semelhanças sem as quais o indivíduo seria uma ameaça para a unidade do corpo social, e impondo-nos o respeito ao símbolo que exprime e resume essas semelhançasao mesmo tempo que as garante.Explica-se assim por que certos atos foram freqüentemente reputados como criminosos e punidos como tais sem que, por si mesmos, fossem maléficos para a sociedade.com efeito, assim como o tipo individual, o tipo coletivo formou-se sob o império de causas muito diversas e mesmo de encontros fortuitos. Produto do desenvolvimentohistórico, traz a marca das circunstâncias de todo tipo pelas quais a sociedade passou em sua história. Seria, pois, milagroso se tudo o que nele se encontra estivesseajustado a algum fim útil; mas não podem ter-se introduzido aí elementos mais ou menos numerosos que não tenham nenhuma relação com a vrtilidade social. Entre asinclinações, as tendências que o indivíduo recebeu de seus ancestrais ou que formou para si no percurso, certamente muitas ou não servem para nada ou custam maisdo que produzem. Sem dúvida, não poderiam ser nocivas em sua maioria, pois, nestas condições, o ser não poderia viver; mas existem algumas que se mantêm sem serúteis, e mesmo aquelas cujos serviços são incontestáveis freqüentemente têm uma intensidade que não é proporcional à sua utilidade, porque parcialmente ela lhesvem de outras causas. Acontece o mesmo com as paixões coletivas. Todos os atos que as ferem não são perigosos por si mesmos ou, pelo menos, não são tão perigososcomo insinua a sua reprovação. Entretanto, a reprovação de que eles são o objeto não deixa de ter uma razão de ser; pois, qualquer que seja a origem deste sentimento,uma vez que eles fazem parte do tipo coletivo, sobretudo se são seui> elementos essenciais, tudo o que contribui para abalá-los abala simultaneamente a coesão sociale compromete a sociedade. O seu nascimento não foi necessariamente útil; mas. uma vez que duraram, torna-se necessário que persistam malgrado sua irracionali-94 Para simplificar a exposição, supomos que o indivíduo pertence apenas a uma sociedade. De fato fazemos parle de vários grupos e existem em nós várias consciênciascoletivas; mas esta complicação não muda nada em relação ao que estamos prestes a estabelecer. (N. do A.)

p. 56dade. Eis por que, em geral, é bom que os atos que os ofendem não sejam tolerados. Sem dúvida, raciocinando abstratamente pode-se facilmente demonstrar que nãohá razão para que uma sociedade se prive de comer tal ou tal carne por si mesma inofensiva. Mas, uma vez que o horror a este alimento se tornou parte integranteda consciência comum, não pode desaparecer sem que o elo social se afrouxe, e é isto que as consciências sãs obscuramente sentem.9 5Acontece o mesmo com a pena. Embora proceda de uma reação completamente mecânica, de movimentos passionais e em grande parte irrefletidos, não deixa de desempenharum papel útil. Este papel apenas não está ali onde se o vê ordinariamente. Ela não serve, ou não serve senão secundariamente para corrigir o culpado ou intimidarseus imitadores possíveis; sob este duplo ponto de vista, sua eficácia é justamente duvidosa e, em qualquer caso, medíocre. Sua verdadeira função é manter intataa coesão social mantendo toda a vitalidade da consciência comum. Negada tão categoricamente, esta necessariamente perderia sua energia se uma reação emocional dacomunidade não viesse compensar esta perda, resultando disto um afrouxamento da solidariedade social. É preciso, pois, que ela se afirme com brilho no momento emque é contradita, e o único meio de afirmar-se é exprimir a aversão unânime, que o crime continua a inspirar, por um ato autêntico que apenas pode consistir em umador infligida ao agente. Assim, mesmo sendo um produto necessário das causas que a engendram, esta dor não é uma crueldade gratuita. Ela é o signo que atesta queos sentimentos coletivos são sempre coletivos, que a comunhão dos espíritos na mesma fé permanece inteira, e, através disto, ela repara o mal que o crime fez à sociedade.Eis por que se tem razão de dizer que o criminoso deve sofrer na proporção de seu crime, pois as teorias que recusam à pena todo caráter expiatório parecem a tantosespíritos teorias subversivas da ordem social. É que, com efeito, essas dotrinas apenas poderiam ser praticadas em uma sociedade na qual toda consciência comumestivesse quase abolida. Sem esta satisfação necessária, a chamada consciência moral não poderia ser conservada. Poder-se-ia, pois, dizer, sem paradoxo, que o castigoestá destinado a agir sobretudo sobre as pessoas honestas; pois, porque serve para curar as feridas feitas nos sentimentos coletivos, só pode preencher este papelonde estes sentimentos existem na medida em que estão vivos. Sem dúvida, prevenindo entre os espíritos já abalados um novo enfraquecimento da alma coletiva, elepode impedir a multiplicação dos atentados; mas esse resultado, aliás útil, é apenas um contragolpe particular. Numa palavra, para se fazer uma idéia da pena, épreciso reconciliar as duas teorias contrárias que foram dadas; aquela que aí vê uma expiação e aquela que faz da pena uma arma de defesa social. com efeito, écerto que tem por função proteger a sociedade, mas o faz por ser expiatória; por outro lado. se deve ser expiatória, não é porque, em conseqüência de não sei quevirtude mística, a dor resgata a falta, mas porque só pode produzir seu efeito socialmente útil sob esta única condição.9 69 5 Isto não quer dizer que seja preciso conservar uma regra penal porque num dado momento ela correspondeu a algum sentimento coletivo. Ela só tem razão de serse este último ainda está vivo e enérgico. Se ele desapareceu ou se enfraqueceu, nada mais vão e mesmo mais maldoso do que tentar mantê-la artificialmente e pelaforça. Pode mesmo acontecer que seja preciso combater uma prática que foi comum, mas não o é mais e opõe se ao estabelecimento de práticas novas e necessárias. Nãoentraremos, porém, nesta questão de casuística. (N. do A.)9 6 Dizendo que a pena, tal qual é, tem uma razão de ser, não dizemos que seja perfeita e não possa ser melhorada. É evidente, ao contrário, que, sendo produzidaem parte por causas completamente mecânicas, apenas pode ser imperfeitamente ajustada ao seu papel. Trata-se somente de uma justificação em geral. (N. do A.)

p. 57 Resulta deste capítulo que existe uma solidariedade social que provém do fato de que um certo número de estados de consciência é comum a todos os membros deuma

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mesma sociedade. É a ela que o direito repressivo figura materialmente, pelo menos no que ela tem de essencial. A parte que ela tem na integração geral da sociedadedepende evidentemente da maior ou menor extensão da vida social que a consciência comum compreende e regulamenta. Quanto mais existem relações diversas em que estaúltima faz sentir a sua ação, mais também ela cria elos que ligam o indivíduo ao grupo, mais a coesão social deriva completamente desta causa e traz a sua marca.Mas, por outro lado, o próprio número destas relações é proporcional ao de regras repressivas; determinando qual fração do aparelho jurídico representa o direitopenal, mediremos simultaneamente a importância relativa desta solidariedade. É verdade que, procedendo desta maneira, não levaremos em conta certos elementos daconsciência coletiva que, por causa de sua menor energia ou de sua indeterminação, permanecem estranhos ao direito repressivo, rnesmo contribuindo para assegurara harmonia social; são aqueles protegidos por penas simplesmente difusas. Mas acontece o mesmo com as outras partes do direito. Não existe nenhuma que seja completadapor costumes e, como não há razão para supor que a relação entre o direito e os costumes seja diferente nestas diversas esferas, esta eliminação não oferece o riscode alterar os resultados de nossa comparação.

p. 59 CAPITULO III

A solidariedade orgânica ou devida à divisão do trabalho

I

A própria natureza da sanção restituitória é suficiente para mostrar que a solidariedade social à qual corresponde esse direito é de uma espécie completamente outra.O que distingue esta sanção é o fato de não ser expiatória, mas se reduz a uma simples restituição sob condição. Um sofrimento proporcional a seu malfeito não éinfligido àquele que violou o direito ou que o desconheceu: é simplesmente condenado a se submeter a ele. Se já existem fafos consumados, o juiz os estabelece taisquais teriam sido. Ele diz o direito, não diz penas. As perdas e ganhos não têm um caráter penal; são apenas um meio de regredir ao passado para instituí-lo tantoquanto possível, sob sua forma normal. M. Tarde acreditou, é verdade, reencontrar uma espécie de penalidade civil na condenação às custas qm- estão sempre ao encargoda parte derrotada.9 7 Mas, tomada neste sentido, a palavra trm somente um valor metafórico. Para que existisse pena, seria preciso que houvesse pelo menos algumaproporção entre a punição e a falta, e para isto seria necessário que o grau de gravidade dessa última fosse seriamente estabelecido. Ora, de fato, aquele que perdeo processo paga as custas mesmo quando suas intenções tenham sido puras, mesmo quando ele não tenha sido culpado senão por ignorância. As razões desta regra parecen ser completamente diferentes: sendo dado que a justiça não é feita gratuitamente, parece eqüitativo que suas injunções sejam suportadas por aquele que as ocasionou.É posf-ível, no entanto, que a perspectiva dessas despesas detenha o litigante temerário, mas isso não basta para fazer delas uma pena. O receio da ruína, que seguede ordinário a preguiça ou a negligência, pode tornar o negociante ativo e aplicado, e no entanto a ruína não é, no sentido próprio da palavra, a sanção penal desuas faltas.A omissão dessas rej rãs não é nem mesmo punida por uma pena difusa. O litigante que perdeu seu processo não é aviltado, sua honra não fica maculada. Podemos imaginarque estas regras sejam diferentes, sem que isso nos revolte. A idéia de que o homicídio possa ser tolerado nos indigna, mas aceitamos muito bem que o direito sucessorialseja modificado, e muitos chegam a conceber que possa ser suprimido. É ao menos uma questão que não recusamos discutir. Igualmente, admitimos sem problemas que odireito das servidões e dos usufrutos seja organizado de outra maneira, que as obrigações do vendedor e do comprador sejarr determinadas de uma outra maneira, queas funções administrativas sejam distribuídas segundo outros princípios. Como essas prescrições não correspondem em nós a nenhum sentimento, e como geralmente nãoconhecemos cientificamente suas razões de ser, uma vez que esta ciência não foi feita, elas não têm raízes entre a maioria de nós. Sem dúvida há exceções. Não toleramosa idéia de que um9' Tarde, Criminalidade Comparada, pág. 113, Paris, F. Alcan (N. do A.)

p.60compromisso contrário aos costumes ou obtido seja pela violência seja pela fraude possa unir os contratantes. Igualmente, quando a opinião pública se encontra diantede um caso deste gênero, mostra-se menos indiferente do que dizíamos ainda ha pouco e agrava pela sua repreensão a sanção legal. É que os diferentes domínios davida moral não estão radicalmente separados uns dos outros; ao contrário, são contínuos e em seqüência, na entre eles regiões limítrofes onde características diferentesse encontram simultaneamente. Entretanto, a proposição precedente permanece verdadeira na maior parte dos casos É a prova de que as regras de sanção restituitóriaou não fazem absolutamente parte'da consciência coletiva, ou dela são estados frágeis. O direito repressivo corresponde ao coração, centro da consciência comum;as regras puramente morais são dele uma parte já menos central; enfim, o direito restituitório nasce em regiões muito excêntricas para se estender muito além. Quantomais se torna ele mesmo, tanto mais sedistancia. „Aliás essa característica é manifestada pela maneira como funciona. Enquanto que o direito repressivo tende a permanecer difuso na sociedade, o direito restituitóriocria órgãos mais e mais especiais: tribunais consulares, conselhos prud iiommes, tribunais administrativos de todos os tipos. Mesmo em sua parte mais geral, istoe, o direito civil, não entra em exercício senão graças a funcionários particulares: magistrados, advogados etc que se tornaram aptos para esse papel graças a umacultura toda especial.' Mas ainda que essas regras estejam mais ou menos fora da consciência coletiva, não interessam somente aos particulares. Se assim fosse, o direito restituitórionão teria nada em comum com a solidariedade social, pois as relações que ele regulamenta reuniriam os indivíduos uns aos outros, sem ligá-los à sociedade. Seriamsimples jicontecimentos da vida privada, como são. por exemplo, as relações de amizade. E preciso, porém que a sociedade esteja ausente desta esfera da vida jurídica.E verdade que geralmente não intervém por si mesma e por seu próprio movimento; é preciso que seja solicitada pelos interessados. Mas, por ser provocada, sua intervençãonao^deixa de ser a engrenagem essencial no mecanismo, visto ser ela que a faz funcionar. E ela que dita o direito através do órgão de seus representantes.Sustentou-se, entretanto, que esse papel não tinha nada de propriamente social, mas se reduzia ao de conciliador dos interesses privados; que, por conseguinte, todoparticular podia preenchê-lo, e que, se a sociedade dele se encarregou, foi unicamente por razoes de comodidade. Mas nada é mais inexato que fazer da sociedade umaespécie de terceiro árbitro entre as partes. Quando é levada a intervir, não é para fazer acordo entre interesses individuais; não procura qual pode ser a soluçãomais vantajosa para os adversários e não lhes propõe compromissos; mas aplica ao caso particular que lhe e submetido as regras gerais e tradicionais do direito.Ora, o direito é uma coisa primeiramente social, tem um objeto completamente outro que o interesse dos litigantes. O juiz que examina uma demanda de divórcio nãose preocupa em saber se esta separação é verdadeiramente desejável para os esposos, mas se as causas que são invocadas entram em uma das categorias previstas pelalei. . ,Mas para melhor apreciar a importância da ação social, e preciso observa-la não somente no momento em que se aplica a sanção, em que é restabelecida a relação interrompida,mas também quando esta é instituída.com efeito, ela é necessária, quer para fundar, quer para modificar numerosas relações jurídicas que regem esse direito e que o consentimento dos interessados nãobasta nem para criar nem para mudar. Tais são particularmente as que concernem ao estado das pessoas. Embora o casamento seja um contrato, os esposos não podem nemestabelecê-lo nem rescindi-lo a seu bel-prazer. Acontece o mesmo com todas as outras relações

p. 61domésticas e, com mais forte razão, com todas aquelas que o direito administrativo regulamenta. É verdade que as obrigações propriamente contratuais podem serfeitas e desfeitas aoenas pelo acordo das vontades. Mas é necessário não esquecer que, se o contrato tem o poder de ligar, é a sociedade que o comunica. Suponhamosque ela não sancione as obrigações contraídas; estas se tornam simples promessas que têm apenas uma autoridade moral.98 Todo contrato supõe que, atrás das partesque se comprometem, está a sociedade prestes a intervir para fazer respeitar os compromissos que foram tomados; ela também comunica esta força obrigatória só aos

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contratos que têm por si mesmos um valor social, quer dizer, são conformes às regras do direito. Nós veremos que às vezes sua intervenção é ainda mais positiva.Ela está, pois. presente em todas as relações que o diieito restltuitório determina, mesmo naquelas que parecem as mais completamente privadas, e sua presença, pornão ser sentida, pelo menos no estado normal, não é por isto menos essencial."Uma vez que as regras para a sanção restituitória são estranhas à consciência comum, as relações que elas determinam não são aquelas que atingem indistintamentea todos; isto é, elas se estabelecem imediatamente, não entre o indivíduo e a sociedade, mas entre partes restritas e especiais da sociedade que as relações ligamentre si. Mas, por outro lado, uma vez que esta não está ausente, é necessário que ela esteja nisto mais ou menos interessada, que sinta os contragolpes. Então,segundo a vivacidade com que os sente, intervém mais ou menos de perto e mais ou menos ativamente, por intermédio de órgãos especiais encarregados de representá-la.Estas relações são, pois, muito diferentes daquelas que regulamentam o direito repressivo, pois estas ligam diretamente e sem intermediário a consciência particularà consciência coletiva, quer dizer, o indivíduo à sociedade.Mas essas relações podem tomar duas formas muito diferentes: ora são negativas e se icduzem a uma pura abstração, ora são positivas ou de cooperação. Às duas classesde regras que determinam umas e outras correspondem duas espécies de solidariedade social que e necessário distinguir.

II

A relação negativa que pode servir de tipo às outras é a que une a coisa à pessoa.As coisas, com efeito, fazem parte da sociedade assim como as pessoas, e nela desempenham um papel específico; também é necessário que suas relações com o organismosocial sejam determinadas. Pode-se então dizer que há uma solidariedade das coisas cuja natureza é bastante especial para se traduzir exteriormente por conseqüênciasjurídicas de um caráter muito particular.Os jurisconsultos, com efeito, distinguem duas espécies de direitos: dão a uns o nome de reais, aos outros o de pessoais. O direito de propriedade, a hipoteca pertencemà primeira espécie, o direito de crédito à segunda. O que caracteriza os direitos reais é o faio de apenas eles darem origem a um direito de preferência e de continuidade.Neste caso, o direito que tenho sobre a coisa exclui qualquer outro que viria estabelecer-se após o meu. Se, por exemplo, um bem foi sucessivamente hipotecado adois credores, a segunda hipoteca não pode em nada restringir os direitos da primeira. Por outro lado, se meu devedor vender a coisa sobre a qual tenho um direitode hipoteca, este não é lesado em98 E ainda esta autoridade moral provém dos costumes, quer dizer, da sociedade. (N. do A.)99 Devemos nos deter aqui a essas indicações gerais, comuns a todas as formas do direito restitmtório. (N. do A.)

p. 62nada, mas o terceiro comprador é obrigado ou a me pagar, ou a perder aquilo que adquiriu. Ora, para que isto seja assim, é necessário que o vínculo de direito unadiretamente, e sem o intermédio de nenhuma outra pessoa, esta coisa determinada à minha personalidade jurídica. Esta situação privilegiada é, pois, a conseqüênciada solidariedade própria às coisas. Ao contrário, quando o direito é pessoal, a pessoa que é obrigada perante mim pode, contraindo novas obrigações, dar-me co-credorescujo direito é igual ao meu, e, embora eu tenha por garantia todos os bens de meu devedor, se ele os vender, deixam de ser minha garantia saindo de seu patrimônio.A razão disso é que não há uma relação especial entre esses bens e eu mas entre a pessoa de seu proprietário e minha própria pessoa.1 ººVê-se em que consiste esta solidariedade real: liga diretamente as coisas às pessoas, mas não as pessoas entre si. A rigor, pode-se exercer um direito real acreditando-sesozinho no mundo, fazendo abstração dos outros homens. Por conseguinte, como é somente por intermédio de pessoas que as coisas são integradas na sociedade, a solidariedadeque resulta desta integração é completamente negativa. Ela não faz com que as vontades se movam para fins comuns, mas apenas com que as coisas gravitem em ordemao redor das vontades. Porque os direitos reais são assim delimitados, não entram em conflito; tenta-se evitar as hostilidades, mas não há concurso ativo, não háconsensus. Suponha-se um tal acordo tão perfeito quanto possível; a sociedade em que ele reina — se reina sozinho — parecerá uma imensa constelação onde cada astrose move em sua órbita sem perturbar os movimentos dos astros vizinhos. Uma tal solidariedade não faz assim dos elementos que ela aproxima um todo capaz de agir comoum conjunto; não contribui em nada para a unidade do corpo social.Segundo o que precede, é fácil determinar qual é a parte do direito restituitório à qual corresponde esta solidariedade: é o conjunto dos direitos reais. Ora, daprópria definição que foi dada resulta que o direito de propriedade é seu tipo mais perfeito. De fato, a relação mais completa que possa existir entre uma coisae uma pessoa é aquela que coloca a primeira sob a inteira dependência da segunda. Esta relação é muito complexa, os diversos elementos de que está formada podemtornar-se o objeto de vários direitos reais secundários, como o usufruto, os aluguéis, a posse e a habitação. Em suma, pode-se dizer que os direitos reais compreendemo direito de propriedade sob suas diversas formas (propriedade literária, artística, industrial, mobiliária, imobiliária) e suas diferentes modalidades, tais comoas regulamenta o segundo livro de nosso Código Civil. Fora deste livro, nosso direito reconhece ainda quatro outros direitos reais, mas que são apenas auxiliarese substitutos eventuais de direitos pessoais: a garantia, a anticrese, o privilégio e a hipoteca (art. 2 071-2 203). Convém acrescentar a isto tudo o que é relativoao direito sucessoral, ao direito de testar e, por conseguinte, à ausência, visto que quando é declarada ela cria um tipo de sucessão provisória. com efeito, aherança é uma coisa ou um conjunto de coisas sobre as quais os herdeiros e os legatários têm um direito real, quer seja este adquirido ipsofaclo pelo óbito do proprietário,quer ele se abra após um ato judiciário, como acontece para os herdeiros indiretos e legatários particulares. Em todos estes casos, a relação jurídica é diretamenteestabelecida, não entre duas pessoas, mas entre uma pessoa e uma coisa. Acontece o mesmo com a doação testamentária que é apenas o exercício do direito real queo proprietário tem sobre os seus bens, ou pelo menos sobre a porção aqui disponível. .J100 Algumas vezes já se disse que as qualidades de pai, de filho, etc. eram o objeto de direitos reais (vide Ortolan, Institutos, I, pág. 660). Mas estas qualidadessão apenas símbolos abstratos de direitos diversos, uns reais (por exemplo, o direito do pai sobre a fortuna dos filhos menores), outros pessoais. (N. do A.)

p. 63Mas existem relações entre pessoas que, por não serem reais, são todavia tão negativas quanto as precedentes e exprimem uma solidariedade da mesma natureza.Em primeiro lugar estão as ocasionadas pelo exercício do direito real propriamente dito. É inevitável que o funcionamento destas últimas leve, às vezes, as própriaspessoas de seus detentores a se defrontarem. Por exemplo, quando uma coisa vem acrescentar-se a outra, o proprietário daquela reputada como principal torna-se simultaneamenteproprietário da segunda: ele apenas "deve pagar ao outro o valor da coisa que foi unida" (art. 566). Esta obrigação é evidentemente pessoal. Igualmente, todo proprietáriode um muro médio que quer aumentá-lo deve pagar ao co-proprietário a indenização da despesa (art. 658). Um legatário particular é obrigado a dirigir-se ao legatáriouniversal para obter a liberação da coisa legada, embora tenha um direito sobre esta desde a morte do signatário do testamento (art. l 014). Mas a solidariedadeque estas relações exprimem não difere daquela que acabamos de falar: apenas se estabelecem para reparar ou prevenir uma lesão. Se o detentor de cada direito realpudesse sempre exercê-lo sem jamais ultrapassar seus limites, cada um permanecendo sozinho, não haveria nenhum comércio jurídico. Mas, de fato, acontece constantementeque estes diferentes direitos são de tal forma emaranhados uns nos outros que não se pode valorizar um sem invadir aqueles que o limitam. Aqui, a coisa à qual tenhoum direito está nas mãos de um outro; é o que acontece com os legados. Aliás, não posso desfrutar de meu direito sem prejudicar o de outro; é o caso de certas servidões.As relações são, pois, necessárias para reparar o prejuízo, se está consumado, ou para impedi-lo; mas elas nada têm de positivo. Elas não fazem convergir as pessoasque colocam em contato, não supõem nenhuma cooperação; mas restauram simplesmente ou mantêm, nas condições novas que se produziram, esta solidariedade negativa daqual as circunstâncias vieram perturbar o funcionamento. Longe de unir, elas surgem apenas para separar melhor o que se uniu pela força das coisas, para restabeleceros limites que foram violados e recolocar cada um em sua esfera própria. São tão idênticas às relações da coisa com a pessoa, que os redatores do Código não lhesderam nenhum lugar à parte, mas trataram-nas ao mesmo tempo que os direitos reais.Enfim, as obrigações que nascem do delito e do quase delito têm exatamente o mesmo caráter.101 com efeito, obrigam cada um a reparar o dano que causou com suafalta aos interesses legítimos de outro. Elas são pois pessoais; mas a solidariedade à qual correspondem é evidentemente toda negativa, visto consistir não em servir,mas em não prejudicar. O elo do qual elas sancionam a ruptura é completamente exterior. Toda a diferença que existe entre estas relações e as precedentes é que,num caso, a ruptura provém de uma falta e, no outro, de circunstâncias determinadas e previstas pela lei. Mas a ordem perturbada é a mesma; resulta, não de uma convergência,

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mas de uma abstenção.102 Aliás, os direitos cuja lesão dá origem a estas obrigações são reais; pois sou proprietário de meu corpo, de minha saúde, de minha honra,de minha reputação, ao mesmo título e da mesma maneira que coisas materiais a mim submetidas.Em resumo, as regras referentes aos direitos reais e às relações pessoais que se estabelecem por ocasião desses direitos formam um sistema definido que tem por funçãonão a de ligar entre si partes diferentes da sociedade mas, ao contrário, colocá-las exteriores101 Art 1382 86 do Código Civil — Poder se iam acrescentar os artigos sobre a repetição irregular. (N. do A )102 O contratante que não cumpre seus compromissos também deve indenizar a outra parte. Mas, neste caso, as perdas e danos servem de sanção a um elo positivo. Nãoé por ter prejudicado que o violador do contrato paga, mas por não ter eletuado a prestação prometida. (N. do A.)

p. 64umas às outras, marcar nitidamente as barreiras que as separam. Elas não correspondem, pois, a um elo social positivo; a própria expressão de solidariedade negativada qual nos servimos não é perfeitamente exata. Não é uma solidariedade verdadeira, tendo uma existência própria e uma natuieza especial, mas antes o lado negativode toda espécie de solidariedade. A primeira condição para que um todo seja coerente é que as partes que o compõem náo se choquem em movimentos discordantes. Masesse acordo externo não faz a coesão, ao contrário, a supõe. A solidariedade negativa apenas é possível onde existe uma outra, de natureza positiva, da qual é simultaneamentea resultante e a condição.com efeito, o direito dos indivíduos, tanto sobre si mesmos como sobre as coisas, só pode ser determinado graças a compromissos e a concessões mútuas; pois tudoque é concedido a uns é necessariamente abandonado pelos outros. Foi dito algumas vezes que se podia deduzir a extensão normal do desenvolvimento do indivíduo sejado conceito de personalidade humana (Kant), seja da noção de organismo individual (Spencer). Isso é possível, embora o rigor desses raciocínios seja muito contestável.Em todo caso. é certo que, na realidade histórica, não foi sobre essas considerações abstratas que a ordem moral se fundou. De fato, para que o homem tenha reconhecidodireitos a outrem, não apenas na lógica mas na prática da vida, foi preciso que consentisse em limitar os seus e, por conseguinte, esta limitação mútua só pôde serfeita num espírito de entendimento e de concórdia. Ora, supondo-se uma multidão de indivíduos sem laços prévios entre si, que razão poderia levá-los a esses sacrifíciosrecíprocos? A necessidade de viver em paz? Mas a paz por si mesma não é mais desejável que a guerra. Esta tem seus pesos e suas vantagens. Não houve povos, não háem todos os tempos indivíduos dos quais ela é a paixão? Os instintos a que ela responde não são menos fortes do que aqueles que a paz satisfaz. Sem dúvida, a fadigapode durante algum tempo pôr fim às hostilidades, mas essa simples trégua não pode ser mais durável do que a lassidão temporária que a determina. com mais razãoacontece o mesmo com os desfechos devidos apenas ao triunfo da força. São tão provisóiios e precários quanto os tratados que põem fim às guerras internacionais.Os homens apenas precisam da paz na medida em que já estão unidos por algum elo de sociabilidade. Neste caso, os sentimentos que os inclinam uns para os outros moderamnaturalmente as exaltações do egoísmo, e, por outro lado, a sociedade que os envolve, podendo viver apenas sob a condição de não ser a cada instante sacudida porconflitos, pesa com toda a força sobre eles para obrigá-los a fazer as concessões necessárias. É verdade que se vêem algumas vezes sociedades independentes entenderem-separa determinar a extensão dos seus direitos respectivos sobre as coisas, isto é, sobre seus territórios. Mas a extrema instabilidade dessas lelações é a melhorprova de que a solidariedade negativa não é por si só suficiente. Hoje, se entre os povos cultivados ela parece ter mais força, se esta parte do direito internacionalque regula aquilo que se poderia chamar de direitos reais das sociedades européias tem talvez mais autoridade do que antes, é porque as diferentes nações da Europatambém são muito menos independentes umas das outras; é porque, em certos aspectos, todas fazem parte de uma mesma sociedade, ainda incoerente, é verdade, mas quetoma cada vez mais consciência de si. O que se chama de equilíbrio europeu é um começo da organização dessa sociedade.É costume distinguir com cuidado a justiça da caridade, isto é, o simples respeito dos direitos de outrem, de todo ato que ultrapasse esta virtude puramente negativa.Vêem-se estes dois tipos de prática como duas camadas independentes da moral: a justiça por si só formaria suas bases fundamentais; a caridade seria seu coroamento.A distinção é tão radical que, segundo os partidários de uma certa moral, apenas a justiça seria necessária para o bom funcionamento da vida social; o desinteresseseria apenas

p. 65uma virtude privada que e bom para o particular perseguir, mas que a sociedade pode muito bem dispensar. Muitos vêem com inquietude a sua intervenção na vida pública.Vê-se, pelo que precede, como essa concepção concorda pouco com os fatos. Na realidade, para que os homens reconheçam e garantam mutuamente seus direitos, é precisoprimeiramente que se amem, que, por uma razão qualquer, se apeguem uns aos outros e a uma mesma sociedade da qual façam parte. A justiça plena de caridade, ou, pararetomar nossas expressões, a solidariedade negativa é uma emanação de uma outra solidariedade de natureza positiva: é a repercussão, na esfera dos direitos reais,de sentimentos sociais que vêm de uma outra fonte. Ela não tem, pois, nada de específico, mas é o acompanhamento necessário de toda espécie de solidariedade. Encontra-senecessariamente em toda parte onde os homens vivem uma vida comum, resulte esta da divisão do trabalho social ou da atração do semelhante pelo semelhante.

III

Se do direito restituitório separamos as regras que foram mencionadas, o que permanece constitui um sistema não menos definido, que compreende o direito doméstico,o direito contratual, o direilo comercial, o direito de processos, o direito administrativo e constitucional. As relações que aqui são reguladas são de naturezatotalmente diferente das precedentes; exprimem um concurso positivo, uma cooperação que deriva essencialmente da divisão do trabalho.As questões que o direito doméstico resolve podem ser reduzidas aos dois tipos seguintes:1º Quem é o encarregado das diferentes funções domésticas? Quem e esposo, pai, filho legítimo, tutor, etc.?2º Qual é o tipo noimal dessas funções e das suas relações?É à primeira dessas questões que respondem as disposições que determinam as qualidades e as condições referidas para contratar casamento, as formalidades necessáriaspara que o casamento seja válido, as condições da filiação legítima, natural, adotiva, a maneira pela qual o tutor deve ser escolhido, etc.Ao contrário, a segunda questão é resolvida pelos capítulos sobre os direitos e os deveres respectivos dos esposos, sobre o estado de suas relações em caso de divórcio,anulação de casamento, separação de corpos e bens, sobre o poder paterno, sobre os efeitos da adoção, sobre a administração do tutor e suas relações com o pupile,sobre o papel do conselho de família frente ao primeiro e ao segundo, sobre o papel dos pais nos casos de interdição e de conselho judiciário. *• ' *Portanto, esta parte do direito civil tem por objetivo determinar a maneira pela qual se distribuem as diferentes funções familiares e o que devem ser em suas relaçõesmútuas; é dizer que ele exprime a solidariedade particular que une entre si os membros da família em decorrência da divisão do trabalho doméstico. É verdade quenão se está habituado a enfocar a família sob este aspecto; acredita-se freqüentemente que o que faz a sua coesão é exclusivamente a comunidade dos sentimentos edas crenças. com efeito, existem tantas coisas comuns entre os membros do grupo familiar que o caráter especial das tarefas atribuídas a cada um deles escapa-nosfreqüentemente; por causa disto dizia A. Comte: a união doméstica exclui "todo pensamento de cooperação direta e contínua para uma meta qualquer".1 º3 Mas a organizaçãojurídica da família, da qual lembramos sumariamente as linhas essenciais, demonstra a realidade dessas diferenças funcionais e sua importância. A históna da família,a partir de sua origem, é apenas um movimentoCurso de Filosofia Positiva, IV, pág. 419. (N. do A.)

p. 66ininterrupto de dissociação no decorrer do qual estas diversas funções, primeiramente indivisas e confundidas umas nas outras, separaram-se pouco a pouco, constituíram-seà parte, repartidas entre os diferentes parentes segundo seu sexo, idade, relações de dependência, de maneira a fazer de cada um deles um funcionário especial dasociedade doméstica. Longe de ser apenas um fenômeno acessório e secundário, esta divisão do tra balho familiar domina, ao contrário, todo o desenvolvimento da família.

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A relação da divisão do trabalho com o direito contratual não é menos acusada.com efeito, o contrato é, por excelência, a expressão jurídica da cooperação. Existem, é verdade, os contratos ditos de beneficência, aos quais apenas uma das partesestá vinculada. Se dou a outrem algo sem condições, se me obrigo gratuitamente a um depósito ou a um mandato, resultam para mim obrigações precisas e determinadas.Entretanto, não existe concorrência propriamente dita entre os contratantes, visto não haver obrigações senão de um lado. Todavia, a cooperação não está ausentedo fenômeno, é apenas gratuita ou unilateral. O que é, por exemplo, a doação, senão uma permuta sem obrigações recíprocas? Esses tipos de contratos são portantoapenas uma variedade dos contratos verdadeiramente cooperativos.Aliás, são muito raros; pois é apenas excepcionalmente que os atos de benfeitoria se incluem na regulamentação legal. Quanto aos outros contratos, que são a imensamaioria, as obrigações às quais eles dão origem são correlativas, ou de obrigações recíprocas, ou de prestações já efetuadas. O compromisso de uma parte resultaou do compromisso assumido pela outra ou de um serviço já prestado por esta última. Ora, esta reciprocidade apenas é possível onde há cooperação e esta, por suavez, depende da divisão do trabalho. com efeito, cooperar é dividir uma tarefa comum. Se esta é dividida em tarefas qualitativamente similares, embora indispensáveisumas às outras, há divisão do trabalho simples ou do primeiro grau. Se elas são de natureza diferente, há divisão do trabalho composta, especialização propriamentedita.Esta última forma de cooperação é, aliás, aquela que sobretudo se exprime mais geralmente no contrato. O único que tem uma outra significação é o contrato de sociedadee, talvez, também o contrato de casamento enquanto determina a parte contributiva dos esposos a expensas do casal. Para que isto seja assim, é preciso ainda queo contrato de sociedade coloque todos os associados no rnesmo nível, que suas contribuições sejam idênticas, que suas funções sejam as mesmas, e este é um caso quejamais surge exatamente nas relações matrimoniais, em decorrência da divisão do trabalho conjugal. Frente a estas espécies raras, que se coloque a multiplicidadedos contratos que têm por objetivo ajustar umas às outras funções especiais e diferentes: contratos entre comprador e vendedor, contratos de troca, contratos entreempresários e operários;, entre o locatário da coisa e o locador, entre o que empresta e o que toma emprestado, entre o depositário e o depositante, entre o hoteleiroe o viajante, entre o mandatário e o mandante, entre o credor e a caução do devedor, etc. De uma maneira geral, o contrato é o símbolo da troca; assim, M. Spencerpôde qualificar, não sem justeza, de contrato fisiológico a troca de materiais que se faz a cada instante entre os diferentes órgãos do corpo vivo. 1º4 Ora, éclaro que a troca supõe sempre alguma divisão do trabalho mais ou menos desenvolvida. É verdade que os contratos que acabamos de citar têm ainda um caráter um poucogeral. Mas não se pode esquecer que o direito figura apenas os contornos gerais, as grandes linhas das relações sociais, aquelas que se encontram identicamente nasdiferentes esferas da vida coletiva. Igualmente, cada um desses tipos de contratos supõe uma variedade de outros mais particulares, dos quais é como que o selo comume simultaneamente104 Bases da Moral Evoluciomsta, pág. 124, Paris. (N. do A.)

p. 67o regulador, mas onde as relações se estabelecem entre funções mais especiais. Portanto, malgrado a simplicidade relativa desse esquema, seria suficiente para manifestara extrema complexidade dos fatos que resume. ^ • '•- .t tAliás, esta especialização das funções aparece mais imediatamente no Código de Comércio que regulamenta sobretudo os contratos especiais de comércio: contratos entreo comissionário e o comitente, entre o almocreve e o expedidor, entre o portador da letra de troca e o sacador, entre o proprietário do navio e seus credores, entreo primeiro e o segundo capitão e o pessoal das máquinas, entre o fretado e o fretador, entre o que empresta e o que toma emprestado, entre o segurador e o segurado.Portanto, ainda aqui há uma grande distância entre a generalidade relativa das prescrições jurídicas e a diversidade das funções particulares das quais elas regulamas relações, como o prova o lugar importante dado ao direito consuetudinário no direito comercial.Quando o Código de Comércio não regulamenta contratos propriamente ditos, determina o que devem ser certas funções especiais, como a do agente de troca, do corretor,do capitão, do juiz comissário em caso de falência, a fim de assegurar a solidariedade de todas as partes do aparelho comercial.O direito processual — trate-se de processo criminal, civil ou comercial — desem penha o mesmo papel no aparelho judiciário. As sanções das regras jurídicas de todaespécie só podem ser aplicadas pelo concurso de um certo número de funções, funções de magistrados, de defensores, de advogados, de jurados, de promotores e advogadosde defesa, etc.; o processo fixa a maneira pela qual devem entrar em cena e em relações. Ele di? o que devem ser e qual a parte de cada uma na vida geral do órgão.Parece-nos que, em uma classificação racional das regras jurídicas, o direito processual deveria ser considerado como uma variedade do direito administrativo: nãovemos qual diferença radical separa a administração da justiça do restante da administração. O que quer que seja desta visão, o direito administrativo propriamentedito regulamenta as funções mal definidas que são chamadas administrativas.1 º5 assim como o precedente o fez para as funções judiciárias. Ele determina seu tiponormal e suas relações, seja umas com as outras, seja com as funções difusas da sociedade; seria preciso apenas separar dele um certo número de regras que geralmentesão classificadas sob esta rubrica, embo rã tenham um caráter penal.1 º6 Enfim, o direito constitucional faz a mesma coisa para as funções governamentais. ,.,-..

Espantar-se á talvez em ver reunidos numa mesma classe o direito administrativo e político e o que é ordinariamente chamado de direito privado. Mas este relacionamentose impõe quando se toma por base da classificação a natureza das sanções; e não nos parece ser possível tomar uma outra quando se quer proceder cientificamente.Além do mais, para separar completamente estes dois tipos de direito, seria preciso admitir que há verdadeiramente um direito privado, sendo que acreditamos quetodo direito é público, porque todo direito é social. Todas as funções da sociedade são sociais, como todas as funções do organismo são orgânicas. As funções econômicastêm este caráter como as outras. Aliás, mesmo entre as mais difusas, não existe nenhuma que não esteja mais ou menos submetida à ação do aparelho governamental.Portanto, deste ponto de vista, em ré elas há apenas diferenças de graus.10 5 Mantemos a expressão empiegada correntemente; mas precisaria ser definida e não estamos cm condi cão de fazê Io Parece nos. grosso modo, que estas funções sãoimediatamente colocadas sob a ação dos centros governamentais. Mas muitas distinções seriam necessárias. (N. do A.)10 b E também aquelas que concernem aos direitos reais das pessoas morais da ordem administrativa, pois as lelações que elas determinam são negativas. (N. do A.)

´p. 68Resumindo, as relações que o direito cooperativo regula com sanções constitutivas e a solidariedade por elas expressa resultam da divisão do trabalho social. Poroutro lado, explica-se por que, em geral, as relações cooperativas não comportam outras sanções. com efeito, é da natureza das tarefas especiais escapar à açãoda consciência coletiva; pois, para que uma coisa seja objeto de sentimentos comuns, a primeira condição é» que ela seja comum, isto é, que esteja presente em todasas consciências e que todas possam representá-la de um único e mesmo ponto de vista. Sem dúvida, enquanto as funções têm uma certa generalidade, todos podem teralgum sentimento: mas, quanto mais elas se especializam, mais também se circunscreve o número daqueles que têm consciência de cada uma delas; cada vez mais, porconseguinte, elas transbordam a consciência comum. As regras que as determinam não podem, pois, ter esta força superior, esta autoridade transcendente que, quandoela é ofendida, reclama uma expiação. É igualmente da opinião que lhes vem sua autoridade, assim como a das regras penais, mas de uma opinião localizada em regiõesrestritas da sociedade.Além do mais, mesmo nos círculos especiais em que se aplicam e onde, por conseguinte, são representadas pelos espíritos, não correspondem a sentimentos muito vivos,nem mesmo a alguma espécie de estado emocional. Pois, como elas fixam a maneira pela qual as diferentes funções devem concorrer nas diversas combinações de circunstânciasque se podem apresentar, os objetos aos quais elas se relacionam não estão sempre presentes às consciências. Não se tem sempre que administrar uma tutela, uma curatela,"'º7 nem exercer seus direitos de credor ou de comprador, etc., nem, sobretudo, exercê-los em tal ou qual condição. Ora, os estados de consciência são fortes na medidaem que são permanentes. A violação dessas regras não atinge, pois, em suas partes vivas, nem a alma comum da sociedade nem mesmo, pelo menos em geral, a dos gruposespeciais, não podendo por conseguinte determinar senão uma reação muito moderada. Tudo o que precisamos é que as funções concorram de uma maneira regular; portanto,se esta regularidade é abalada, é suficiente que seja restabelecida. Isso não é dizer, seguramente, que o desenvolvimento da divisão do trabalho não possa repercutirno direito penal. Existem, já o sabemos, funções administrativas e governamentais das quais algumas relações são reguladas pelo direito repressivo, por causa docaráter particular do órgão da consciência comum e de tudo que a ele se relaciona. Em outros casos, ainda, os elos de solidariedade que unem certas funções sociaispodem ser tais que de sua ruptura resultem repercussões demasiadamente gerais para suscitar uma reação penal. Mas, pela razão que dissemos, esses contragolpes sãoexcepcionais.

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Definitivamente, esse direito desempenha na sociedade um papel análogo ao do sistema nervoso no organismo. Este tem como tarefa regular as diferentes funções docorpo, de maneira a fazê-las trabalhar harmonicamente: exprime assim, naturalmente, o estado de concentração a que chegou o organismo, em decorrência da divisãodo trabalho fisiológico. Igualmente, nas diferentes etapas da escala animal, pode-se medir o grau desta concentração segundo o desenvolvimento do sistema nervoso.É dizer que se pode igualmente medir o grau de concentração ao qual chegou uma sociedade em decorrência da divisão do trabalho social, segundo o desenvolvimentodo direito cooperativo com sanções restituitórias. Prevêem-se todos os serviços que esse critério nos prestará.

IV

Porque a solidariedade negativa não produz por si mesma nenhuma integração e porque, aliás, não tem nada de específico, reconheceremos apenas dois tipos de solidariedadepositiva, discriminados com as características seguintes:1º 7 Eis por que o direito que regula as relações das funções domésticas não é penal, embora essas funções sejam bastante gerais. (N. do A.)

p. 691º A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade, porque depende das partes que a compõem.

2º A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No primeiro caso, o que se designa por este nome é um conjunto mais ou menos organizado de crençase de sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o tipo coletivo. Ao contrário, a sociedade à qual somos solidários no segundo caso é um sistema de funçõesdiferentes e especiais que unem relações definidas. Aliás, estas duas sociedades são apenas uma. São duas faces de uma única e mesma realidade, mas que precisamser distinguidas.3º Desta segunda diferença decorre uma terceira, que nos vai permitir caracterizar e nomear estes dois tipos de solidariedade.A primeira só pode ser forte na medida em que as idéias e as tendências comuns a todos os membros da sociedade ultrapassam em número e em intensidade as que pertencempessoalmente a cada um deles. É tanto mais enérgica quanto este excedente é mais considerado. Ora, o que faz nossa personalidade é o que cada um de nós tem de próprioe de característico, é o que o distingue dos outros. Portanto, esta solidariedade apenas pode crescer na razão inversa da personalidade. Existe em cada uma de nossasconsciências, nós o dissemos, duas consciências: uma é comum com o nosso grupo inteiro e, por conseguinte, não somos nós mesmos, mas a sociedade inteira vivendoe agindo dentro de nós. A outra representa, ao contrário, o que temos de pessoal e distinto, o que faz de nós um indivíduo.108 A solidariedade que deriva das semelhançasestá em seu maximum quando a consciência coletiva recobre exatamente nossa consciência total e coincide em todos os pontos com ela: mas, neste momento, nossa individualidadeé nula. Ela só pode nascer se a comunidade ocupa menos lugar em nós. Existem aí duas forças contrárias, uma centnpeta e outra centrifuga, que não podem crescer aomesmo tempo. Não podemos desenvolver-nos simultaneamente em dois sentidos tão opostos. Se temos uma viva inclinação a pensar e agir por nós mesmos, não podemos estarfortemente inclinados a pensar e a agir como os outros. Se o ideal é fazei-se uma fisionomia própria e pessoal, não poderia ser o de assemelhar-se a todos. Alémdo mais, no momento em que a solidariedade exerce a sua ação, nossa personalidade se esvai, pode-se dizer, por defini cão; pois não somos mais nós mesmos, mas oser coletivo.As moléculas sociais, que apenas dessa maneira seriam coerentes, só poderiam pois mover-se com o conjunto na medida em que não têm movimentos próprios, como o fazemas moléculas dos corpos inorgânicos. É por isso que propomos chamar mecânica essa espécie de solidariedade. Esta palavra não significa que seja produzida por meiosmecânicos e artificialmente. Chamamo la assim apenas pela analogia com a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos, em oposição àquela que faz a unidadedos corpos vivos. O que completa para justificar esta denominação é o fato de o elo que une assim o indivíduo à sociedade ser completamente análogo àquele que ligaa coisa à pessoa. A consciência individual, considerada sob este aspecto, é uma simples dependência do tipo coletivo, que segue todos os seus movimentos, assim comoo objeto possuído segue aqueles que lhe imprime seu proprietário. Nas sociedades em que esta solidariedade é muito desenvolvida, o indivíduo não se pertence, nóso veremos mais adiante; ele é literalmente uma coisa da qual a sociedade dispõe. Igualmente, nesses mesmos tipos sociais, os direitos pessoais não se distinguemainda dos direitos reais.É completamente diferente a solidariedade produzida pela divisão do trabalho. Enquanto a precedente implica que os indivíduos se assemelhem, esta supõe que difiram108 Entretanto, essas duas consciências não são regiões geograficamente distintas de nós mesmos, mas penetram se por todos os» lados. (N. do A.)

p. 70uns dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida pela personalidade coletiva. A segunda é apenas possível se cadaum tem uma esfera de ação que lhe é própria, por conseguinte, uma personalidade. É preciso, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciênciaindividual, para que aí se estabeleçam estas funções especiais que ela não pode regulamentar; quanto mais extensa esta região, tanto mais forte é a coesão resultantedesta solidariedade. Por outro lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido é o trabalho, e, além disto, a atividade de cadaum é tanto mais pessoal quanto mais especializada. Sem dúvida, por mais circunscrita que seja, não é jamais completamente original; mesmo no exercício de nossa profissão,conformamo-nos a usos, a práticas que nos são comuns com toda a nossa corporação. Mas, mesmo nesse caso, o jugo que sofremos é menos pesado do que quando a sociedadeinteira pesa sobre nós, e deixa muito mais lugar à livre ação de nossa iniciativa. Portanto, aqui a individualidade do todo cresce ao mesmo tempo que a das partes;a sociedade torna-se mais capaz de mover-se como conjunto, ao mesmo tempo que cada um de seus elementos tem mais movimentos próprios. Esta solidariedade assemelha-seàquela que se observa nos animais superiores. Cada órgão aqui tem sua fisionomia especial, sua autonomia e, entretanto, a unidade do organismo é tanto maior quantomais marcada é a individuação das partes. Em razão desta analogia, propomos chamar orgânica a solidariedade devida à divisão do trabalho. Ao mesmo tempo, este capítuloe o precedente nos fornecem os meios de calcular a parte que cabe a cada um desses elos sociais no resultado total e comum que concorrem a produzir por vias diferentes.Sabemos sob quais formas exteriores se simbolizam estes dois tipos de solidariedade, isto é, qual corpo de regras jurídicas corresponde a cada um deles. Por conseguinte,para conhecer sua importância respectiva num tipo social dado, é suficiente comparar a extensão respectiva dos dois tipos de direitos que os exprimem, porque o direitovaria sempre como as relações sociais que regula.1 º9109 Para precisar as idéias, desenvolvemos no quadro seguinte a classificação das regras jurídicas, implicitamente encerrada neste capítulo e no precedente:

I — Regras com sanção repressiva organizada. II — Regras com sanções restituitórias determinando:Relaçõesnegativasou de abstençãoRelações positivas ou de coo peraçãoDa coisa com a pessoa., Das pessoas entre si.Entre as funções domésticas./ Entre as funções econômicas difusas.Das funções administrativas.Das funções go\ vernamentais.«Direito de propriedade sob suas diversas formas (mobiliária, imobiliária, etc.). \ Modalidades diversas do direito de propriedade

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(servidão, usufruto, etc.).(Determinadas pelo exercício normal dos direitos reais.*) Determinadas pela violação faltosa dos direitos* reais.Relações contratuais em geral. Contratos especiais.Entre si.com as funções governamentais.com as funções difusas da sociedade.i Entre si.• com a^ funções administrativas.• com as funções políticas difusas.(N. do A.)

***

p. 71AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

Tradução de Margarida Garrido Esteves

p. 73PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Estamos tão pouco habituados a tratar cientificamente os fatos sociais que certas proposições contidas nesta obra correm o risco de surpreender o leitor.No entanto,se existe uma ciência das sociedades, é de desejar que ela não consista simplesmente numa paráfrase dos preconceitos tradicionais, mas nos faça ver as coisas demaneira diferente da sua aparência vulgar; de fato, o objeto de qualquer ciência é fazer descobertas, e toda descoberta desconcerta mais ou menos as opiniões herdadas.Desde que, em sociologia, não se conceda ao senso comum uma autoridade que há muito deixou de possuir nas outras ciências — e que não vemos em que é que se poderiafundamentar —, é dever do estudioso não se deixar intimidar pelos resultados a que conduzem as suas investigações, na condição de elas teiem sido metodicamente conduzidas.Se procurar o paradoxo é apanágio do sofista, não o enfrentar, quando os fatos o impõem, é próprio de um espírito sem coragem ou sem fé na ciência.Infelizmente, é em princípio mais fácil admitir esta regra teoricamente do que aplicá-la com perseverança. Estamos ainda demasiado habituados a equacionar todosestes problemas de acordo com as sugestões do senso comum, para que possamos sem dificuldade mantê-lo afastado das discussões sociológicas. No preciso momento emque julgamos tê-lo abandonado, estamos por vezes a submeter-nos aos seus juízos sem que demos por isso. Nada, para além de uma longa prática especializada, nos podeacautelar contra tais fraquezas. É isto que pedimos ao leitor para não perder de vista. Para ter sempre em mente que os modos de pensar a que está melhoi afeitosão mais contrários do que favoráveis ao estudo científico dos fenômenos sociais e, por conseguinte, que deve acautelarse com as suas primeiras impressões. Se aelas se abandonar sem resistência, arrisca-se a julgar nos sem nos ter compreendido. Assim, poderia acontecer que viesse a acusar-nos de termos querido absoh ero crime, a pretexto de fazermos dele um fenômeno de sociologia normal. No entanto, a objeção seria pueril pois que, se em todas as sociedades é normal a existênciado crime, não é menos normal que ele seja punido. A instituição de um sistema repressivo não é fato menos universal do que a existência de uma criminalidade, nemmenos indispensável à sanidade coletiva. Para que não houvesse crimes seria necessário um nivelamento das consciências individuais, o que, poi razões

mais adiante indicadas, não é possível nem desejável; mas, para que não houvesse repressão, não devia haver homogeneidade moral, o que é irreconciliável com aexistência de uma sociedade. Simplesmente, partindo do fato de que o crime é detestado e detestável, o senso comum conclui, erradamente, que ele poderia muito bemdesapaiecer completamente. com o seu simplismo habitual, não concebe que uma coisa que repugna possa ter qualquer razão para ser útil; no entanto, não há nissocontiadição alguma. Não há no organismo funções repugnantes cujo funcionamento regular é necessário à saúde individual. Não detestamos

p. 74nós o sofrimento e, no entanto, um ser que o não conhecesse não seria um monstro? O caráter normal de uma coisa e o sentimento de afastamento que ela inspirapodem mesmo ser solidários. Se a dor é um fato normal, é-o na condição de não ser amada; se o crime é normal, é-o na condição de ser detestado. 1. O nosso métodonão tem, portanto, nada de revolucionário. É até, num certo sentido, essencialmente conservador, uma vez que considera os fatos sociais como coisas cuja natureza,pormais elástica e maleável que seja, não é, no entanto, modificável à nossa vontade. Muito mais perigosa é a doutrina que vê apenas na sociedade o produto de combinaçõesmentais, que um simples artifício dialético pode, num instante, revolver de uma ponta a outra.Do mesmo modo, uma vez que estamos habituados a imaginar a vida social como o desenvolvimento lógico de conceitos ideais, julgaremos talvez grosseiro um método quefaça depender a evolução coletiva de condições objetivas, definidas no espaço, e não é de todo impossível que sejamos tratados como materialistas. No entanto, poderíamosreivindicar a qualificação contrária. com efeito, não consiste a essência do espiritualismo na idéia de que os fenômenos psíquicos não podem ser imediatamente deduzidosdos fenômenos orgânicos? Ora, o nosso método não é, em parte, mais do que uma aplicação deste princípio aos fatos sociais. Tal como os espiritualistas separam oreino psicológico do reino biológico, nós separamos o primeiro do reino social; e, tal como eles, recusamo-nos a explicar o mais complexo pelo mais simples. Contudo,nem uma nem outra apelação nos convém exatamente; a única que aceitaríamos seria a de racionalista. O nosso principal objetivo, com efeito, é o de estender à condutahumana o racionalismo científico, fazendo ver que, considerado no passado, ele é redutível a relações de causa e efeito que uma operação não menos racional podetransformar seguidamente em regras de ação para o futuro. Aquilo a que se chamou o nosso positivismo é apenas uma conseqüência deste racionalismo.2 Não poderemoscair na tentação de ultrapassar os fatos, quer para os explicar quer para os dirigir no seu curso, salvo na medida em que os supusermos irracionais. Se eles sãointeiramente inteligíveis, então bastam tanto à ciência como à prática: à ciência porque, nesse caso, não há motivo para procurar fora deles próprios as suas razõesde ser; e à prática, porque o seu valor útil é uma destas razões. Parece-nos portanto que, sobretudo nesta época de renascente

misticismo, um tal empreendimento pode e deve ser acolhido sem inquietude e mesmo com simpatia por todos os que, divergindo de nós em alguns pontos, compartilhamconosco a fé no futuro da razão.1 Mas, objetam-nos, se a saúde contém elementos detestáveis, como podemos apresentá-la, tal como o fazemos mais adiante, como o objetivo imediato da conduta? Continuaa não haver nisso qualquer contradição. É freqüente que uma coisa, sendo nociva por algumas das suas conseqüências, seja, por outras, útil e mesmo necessária à vida;ora, se os seus maus efeitos são regularmente neutralizados por uma influência contrária, acontece de fato que ela serve sem prejudicar, continuando no entanto aser detestável, visto não deixar de constituir por si própria um perigo eventual, só conjurado pela ação de uma força antagônica. É o caso do crime: o mal que fazà sociedade é anulado pela pena. se esta funcionar regularmente. Portanto, desde que não produza o mal que implica, sustenta com as condições fundamentais da vidasocial as relações positivas que a seguir veremos. No entanto, como é por existir que, por assim dizer, se pode torná-lo inofensivo, os sentimentos de aversão paracom o crime não deixam de ser fundamentados.

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Quer dizer que não deve ser confundido com a metafísica positiva de Comte e de Spencer.

p. 75PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Quando este livro apareceu pela primeira vez, suscitou controvérsias bastante vivas. \s idéias correntes, como que desconcertadas, resistiram, a princípio,com uma tal energia que, durante algum tempo, foi quase impossível fazermo-nos ouvir. Mesmo sobre os pontos em que nos exprimíramos mais explicitamente, foram-nos atribuídosgratuitamente pontos de vista que nada tinham de comum com os nossos, e houve quem julgasse refutar-nos rebatendo-os. Apesar de termos declarado em muitas ocasiõesque a consciência, tanto a individual como a social, não era para nós nada de substancial mas apenas um conjunto mais ou menos sistematizado de fenômenos sui generis,acusaram-nos de realismo e de ontologismo. Apesar de termos dito expressamente e repetido de todas as maneiras que a vida social era inteiramente feita de representações,acusaram-nos de eliminar o elemento mental da sociologia. Houve mesmo quem chegasse ao ponto de restaurar contra nós processos de discussão que se poderia julgarterem definitivamente desaparecido. Imputaram nos, com efeito, certas opiniões que não havíamos sustentado, torn o pretexto de estarem "de acordo com os nossosprincípios". A experiência provara já, no entanto, todos os perigos deste método que, permitindo construir arbitrariamente os sistemas em discussão, permite tambémdestruí-los sem dificuldade. Julgamos não estarmos a gabar-nos ao dizer que, depois, as resistênciaas foram progressivamente enfraquecendo. Sem dúvida, é-nos ainda contestada mais doque umaproposição. Mas não nos poderíamos queixar ou espantar com essas contestações salutaies; é perfeitamente claro que as nossas fórmulas deverão sofrer remodelaçõesfuturas. Sendo o resumo de uma prática pessoal e, forçosamente, restrita, as fórmulas evoluirão necessariamente à medida que formos adquirindo uma experiência maisextensa e mais profunda da realidade social. Em questões de método, aliás, só é possível fazer-se algo de provisório, já que os métodos mudam à medida que a ciênciaavança. Mas não é menos verdade que, durante estes últimos anos, e a despeito das oposicões, a causa da sociologia objetiva, específica e metódica, tenha ganho terrenosem cessar. A fundação de L'Année Sociologique teve, certamente, bastante influência neste resultado. Abarcando simultameamente todo o domínio da ciência, permitiuassim, melhor do que qualquer outra obra especial, dar a antever o que a sociologia pode e deve alcançar. Revelou-se que ela não estava condenada a permanecer um

mero ramo da filosofia geral e que, por outro lado, podia tomar contato com os detalhes dos fatos sem degenerar em pura erudição. Por isso, nunca será excessivaa homenagem que prestarmos ao ardor e à devoção dos nossos colaboradores; foi graças a eles que esta demonstração pelos fatos pôde ser tentada e pôde prosseguir.No entanto, por muito efetivos que sejam estes progressos, é incontestável que os enganos e as confusões passadas não estão ainda inteiramente dissipados. É esseo motivo

p. 76por que gostaríamos de aproveitar esta segunda edição para juntar algumas explicações a todas quantas já demos, responder a certas críticas e precisar algunsdos pontos focados.

I

A proposição segundo a qual os fatos sociais devem ser tratados como coisas — proposição que se situa na base do nosso método — foi das que provocaram maiscontrovérsias. Houve quem achasse paradoxal e escandaloso que tivéssemos assimilado às realidades do mundo exterior as realidades do mundo social. Trata-se de um singular enganosobre o sentido e o alcance desta assimilação, cujo objetivo não é o de rebaixar as formas superiores do ser até às formas inferiores mas, pelo contrário, é reivindicarpara as primeiras um grau de realidade pelo menos igual ao que é por todos reconhecido às segundas. Não afirmamos, com efeito, que os fatos sociais são coisas materiais,mas sim que são coisas, tal como as materiais, embora de uma outra maneira.Em que consiste, então, uma coisa? A coisa opõe-se à idéia como o que conhecemos do exterior se opõe ao que conhecemos do interior. É coisa todo objeto de conhecimentoque não é naturalmente compenetrável pela inteligência, tudo aquilo de que não podemos ter uma noção adequada por um simples procedimento de análise mental, tudoo que o espírito só consegue compreender na condição de se extroverter por meio de observações e de experimentações, passando progressivamente dos caracteres maisexternos e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos. Tratar certos fatos como coisas não é, portanto, classificá-los numa ou noutracategoria do real: é ter para com eles uma certa atitude mental; é abordar o seu estudo partindo do princípio de que se desconhecem por completo e que as suas propriedadescaracterísticas, tal como as causas de que dependem, não podem ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja.Definida nestes termos, a nossa proposição, longe de constituir um paradoxo, poderia quase passar por um truísmo se não fosse tão freqüentemente ignorada nas ciênciasque tratam do homem, e, sobretudo, na sociologia. com efeito, pode di?er-se, neste senti do, que o objeto de qualquer ciência é uma coisa, salvo, talvez, os objetosmatemáticos, pois, por sermos nós quem os constrói, desde os mais simples aos mais complexos, basta rá, para os conhecermos, que olhemos para dentro de nós mesmose analisemos interiormente o processo

mental de que resultaram. Mas, desde que se trate de fatos propriamente ditos, são para nós, no momento de elaborar a sua ciência, necessariamente desconhecidos,coisas ignoradas, pois as representações que deles fizemos ao longo da vida, tendo sido levadas a cabo sem método e sem crítica, são desprovidas de valor científicoe devem pôr-se de parte. Até mesmo os fatos da psicologia individual apresentam esta característica e devem encarar-se sob este aspecto. Na verdade, ainda que nossejam interiores por definição, a consciência que deles temos não nos revela a sua natureza interna nem a sua gênese. Conhecemo-los até certo ponto, mas de modosemelhante às sensações que nos dão a conhecer o calor ou a luz, o som ou a eletricidade; a consciência dá-nos a seu respeito impressões confusas, passageiras, subjetivas,mas não noções claras e distintas, conceitos explicativos. É este precisamente o motivo por que foi criada neste século uma psicologia objetiva, cuja regra fundamentalé a de estudar os fatos mentais a partir do exterior, isto é, como coisas. Por maioria de razão, o mesmo se deverá aplicar aos fatos sociais, porquanto a consciêncianão poderia ser mais competente para

p. 77os conhecer do que para conhecer os que lhe são próprios 3 — ao que se objetará que, sendo eles obra nossa, não temos mais do que tomar consciência de nós própriospara saber como e com que é que os formamos. Mas, em primeiro lugar, a maior parte das instituições sociais é-nos legada já elaborada pelas gerações anteriores,pelo que não tomamos parte alguma na sua formação e, por conseguinte, não é interrogando-nos que poderemos descobrir as causas que lhes deram origem. Além disso,mesmo que tivéssemos colaborado na sua gênese, seria com dificuldade que entreveríamos, da maneira mais confusa e por vezes a menos exata, as verdadeiras razõesque nos teriam levado a agir e a natureza da nossa ação. Até mesmo quando se trata simplesmente dos nossos empreendimentos privados, sabemos bem mal quais os mobilesrelativamente simples que nos guiam: cremo-nos desinteressados quando agimos como egoístas, julgamos obedecer ao ódio quando cedemos ao amor, e à razão quando somosescravos de preconceitos irracionais, etc. Como poderíamos, então, possuir a faculdade de discernir com mais clareza as causas muito mais complexas de que procedemos empreendimentos da coletividade se. no máximo, cada um de nós toma parte neles apenas numa ínfima parte? Cada um de nós tem uma multidão de colaboradores, e oque se passa nas outras consciências escapa-nos.A nossa regra não implica, portanto, qualquer concepção metafísica, qualquer especulação sobre o mais fundo dos seres. O que ela reclama do sociólogo é que esteadote o estado de espírito em que se colocam os físicos, químicos ou fisiologistas, quando se embrenham numa região ainda inexplorada do seu domínio científico.O sociólogo, ao penetrar no mundo social, precisa ter consciência de que penetra no desconhecido; é preciso que ele se sinta em presença de fatos cujas leis lhe

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são tão insuspeitas como eram as da vida antes da biologia se ter constituído; é preciso que esteja preparado para fazer descobertas que o surpreenderão e o desconcertarão.Ora, falta à sociologia atingir este grau de maturidade intelectual. Enquanto que o estudioso da natureza física tem a viva sensação das resistências que ela lheopõe e da dificuldade que experimenta para triunfar, parece, em boa verdade, que o sociólogo se move no meio de coisas imediatamente transparentes ao espírito, tãogrande é a facilidade com que o vemos resolver as questões mais obscuras.

No estado atual da ciência, não sabemos verdadeiramente o que são sequer as primeiras instituições sociais, como o Estado ou a família, o direito de propriedadeou o contrato, a pena e a responsabilidade; ignoramos quase completamente as causas de que dependem, as funções que desempenham, as leis da sua evolução; mal começamos,nalguns pontos, a entrever algumas luzes. E, no entanto, basta percorrer as obras de sociologia para ver como é rara a consciência desta ignorância e destas dificuldades.Não somente as pessoas se consideram obrigadas a dogmatizar sobre todos os problemas ao mesmo tempo, mas ainda por cima crêem poder, nalgumas páginas ou nalgumasfrases, atingir a própria essência dos fenômenos mais complexos. Tais teorias exprimem, não os fatos, impossíveis de serem esgotados com essa rapidez, rnas a noçãoprévia que deles tem o autor antes da pesquisa. E a idéia que temos das práticas coletivas, do que são ou do que devem ser, é sem dúvida um fator do seu desenvolvimento.Mas esta idéia é em si mesma um fato que, para ser convenientemente determinado, deve, por sua vez, ser estudado a partir do exterior, pois o que importa saber nãoé a maneira como um qualquer pensador analisa uma dada instituição, mas a concepção que dela tem o grupo; esta3 Vê se que, para admitir esta proposição, não é necessário sustentar que a vida social seja constituída por algo mais do que representações; basta estabelecer queas representações, individuais ou coletivas, só podem sei estudadas cientificamente na condição de o serem objetivamente.

p. 78última é, com efeito, a única socialmente eficaz. Ora, ela não pode ser conhecida por simples observação interior, na medida em que não se encontra integralmenteem nenhum de nós; é preciso, portanto, encontrar alguns sinais exteriores que a tornem sensível. Além disso, não nasceu do nada; é um efeito de causas externas queé preciso conhecer para poder apreciar o seu papel no futuro. Faça-se o que se fizer, é sempre necessário recorrer ao mesmo método. i ,

II

Foi discutida uma outra proposição, não menos vivamente do que a anterior, na qual se apresentam os fenômenos sociais como exteriores ao indivíduo. Hoje em dia,admite-se de boa vontade que os fatos da vida individual e da vida coletiva são heterogêneos; pode mesmo dizer-se que se esboça um acordo, se não unânime, pelo menosbastante generalizado, acerca deste ponto. Já não há sociólogos que neguem especificidade à sociologia. Mas, porque a sociedade é composta de indivíduos, 4 pareceao senso comum que a vida social não pode ter outro substrato além da consciência individual; de outro modo, pareceria flutuar, planar no vazio.No entanto, o que se julga tão facilmente inadmissível quando se trata dos fatos sociais é correntemente admitido noutros domínios da natureza. Sempre que um certonúmero de elementos, sejam eles quais forem, ao combinarem-se, e pelo fato de se combinarem, provocam fenômenos novos, é preciso conceber esses fenômenos como resultandonão dos elementos isolados, mas do todo formado pela sua união. A célula viva nada possui para além das partículas minerais, tal como a sociedade nada possui paraalém dos indivíduos; e, no entanto, é evidentemente impossível que os fenômenos característicos da vida residam nos átomos de hidrogênio, de oxigênio, de carbonoe de azoto. Como se poderiam produzir os movimentos vitais no seio de elementos não-vivos? Como se repartiriam as propriedades biológicas entre os elementos? Nãopoderiam encontrar se igualmente em todos, visto não terem a mesma natureza: o carbono não é o azoto e, por conseguinte, não pode assumir as mesmas propriedadesnem desempenhar o mesmo papel. Não é menos inadmissível que cada aspecto da vida, cada uma das suas características principais, se encarne num grupo diferente deátomos. A vida não poderia decompor se deste modo; ela é una e, conseqüentemente, só pode resultar da substância viva na sua totalidade. Reside no todo e não naspartes. Não são as partículas não-vivas que se reproduzem, se alimentam,

isto é, que vivem; é a própria célula, e só ela. E o que dizemos da vida poderia repetir-se para todas as sínteses possíveis. A dureza do bronze não reside no cobre,no estanho ou no chumbo que serviram para o formar, e que são corpos moles e dúcteis, mas sim na sua mistura. A fluidez da água, as suas propriedades alimentarese outras não se encontram nos dois gases que a compõem, mas na substância complexa resultante da sua associação.Apliquemos este princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese sui generis que é uma qualquer sociedade dá origem a fenômenos novos, diferentes dosque ocorrem nas consciências solitárias, é necessário admitir que esses fatos específicos residem na sociedade que os produz e não nas suas partes, quer dizer, nosseus membros. São, portanto, neste sentido, exteriores às consciências individuais consideradas como tais, do mesmo modo que os caracteres distintivos da vida sãoexteriores às substâncias* A proposição só é, aliás, parcialmente exata. Para além dos indivíduos, há as coisas, que são elementos integrantes da sociedade. É apenas verdade que os indivíduossão os seus únicos elementos'vi vos e ativos.

p. 79minerais que formam o ser vivo. Não podemos assimilá-los aos elementos sem nos contradizermos, uma vez que, por definição, supõem algo mais do que está contido nessesmesmos elementos. Está assim justificada a separação que atrás estabelecemos entre psicologia propriamente dita, ou ciência do indivíduo mental, e sociologia. Osfatos sociais não diferem dos fatos psíquicos apenas qualitativamente; têm um outro substrato, não evoluem no mesmo meio, e não dependem das mesmas condições. Istonão significa que não sejam também psíquicos, em certa medida, pelo fato de todos eles consistirem em maneiras de pensar ou de agir. Mas os estados de consciênciacoletiva são de natureza diferente da dos estados de consciência individual; são representações de outro tipo. A mentalidade dos grupos não é a dos particulares;tem as suas leis próprias. As duas ciências, portanto, são tão nitidamente distintas quanto o podem ser duas ciências, quaisquer que sejam as relações existentesentre elas. Todavia, este ponto requer uma distinção que lançará, talvez, alguma luz sobre o debate.Parece-nos pura evidência que a matéria da vida social não se possa explicar por fatos puramente psicológicos, quer dizer, por estados da consciência individual.com efeito, as representações coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo é constituído de mododiferente do indivíduo e as coisas que o afetam são de uma outra natureza. Logo, representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos nem os mesmos objetos nãopoderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a naturezada sociedade e não a dos particulares. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com a sua natureza. Se, por exemplo, ela se concebe como saída de um animalepônimo, é porque forma um desses grupos especiais a que se dá o nome de clãs; e, sempre que esse animal for substituído por um antepassado humano, mas igualmentemítico, significa que o clã mudou de natureza. Se, acima das divindades locais ou familiares, ela imagina outras de que julga depender, quer dizer que os gruposlocais e familiares de que se compõe tendem a concentrar-se e unificar-se, correpondendo o grau de unidade de um panteão religioso ao grau de unidade ati agido nomesmo momento pela sociedade. Se ela condena certos modos de

conduta, é porque entram em choque com alguns dos seus sentimentos fundamentais, sentimentos esses que pertencem à sua constituição, tal como os sentimentos doindivíduo pertencem ao seu temperamento físico e à sua organização mental. Assim, mesmo que a psicologia individual não tivesse já segredos para nós, seria incapazde nos dar a solução de qualquer destes problemas, uma vez que eles se referem a categorias de fatos por ela ignorados.Mas, uma vez reconhecida esta heterogeneidade, poderíamos perguntar se as representações individuais e as representações coletivas não se assemelharão pelofato de serem ambas representações, e se, devido a essas semelhanças, certas leis abstratas não seriam comuns aos dois reinos. Os mitos, as lendas populares, asconcepçõesreligiosas de todas as espécies, as crenças morais, etc. exprimem uma realidade diferente da realidade individual; mas poderia acontecer que o modo como se atraemou repelem, se agregam ou desagregam, fosse independente do seu conteúdo e estivesse apenas ligado à sua qualidade geral de representações. Sendo feitos de um material

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diferente, comportar-seiam nas suas relações mútuas como as sensações, as imagens ou as idéias no indivíduo. Não se poderia pensar, por exemplo, que a contigüidadee a semelhança, os contrastes e os antagonismos lógicos atuam da mesma maneira quaisquer que sejam as coisas representadas? Chega assim a conceber-se a possibilidadede uma psicologia formal que seria

p. 80uma espécie de terreno comum à psicologia individual e à sociologia; e é possivelmente esta consideração que dá origem aos escrúpulos de certos espíritos em distinguirdemasiado nitidamente estas duas ciências. Para falar com todo o rigor, e no estado atual dos nossos conhecimentos, a questão posta nestes termos não poderia ter uma solução categórica. Por um lado,tudo o que sabemos soore o modo como se combinam as idéias individuais reduz-se a algumas proposições muito gerais e muito vagas, a que se chama vulgarmente leisda associaçãodas idéias. E, quanto às leis da ideação coletiva, são ainda mais completamente ignoradas. A psicologia social, que deveria ter por tarefa a sua determinação, limita-sea ser uma designação para toda espécie de generalidades, variadas e imprecisas, sem objeto definido. O que seria necessário procurar, pela comparação dos temas míticos,das lendas e das tradições populares, bem como das línguas, seria o modo como as representações sociais se atraem ou se excluem, se fundem entre si ou se distinguem,etc. Ora, embora o problema merecesse a curiosidade dos investigadores, mal podemos dizer que ele tenha sido abordado; e, enquanto não se tiverem encontrado algumasdessas leis, será evidentemente impossível saber com exatidão se elas repetem ou não as da psicologia individual. No entanto, à falta de uma certeza, é pelo menos provável que, existindo semelhanças entre estas duas espécies de leis, as diferenças entre elas não devamser menosnítidas. Parece com efeito inadmissível que a matéria de que são feitas as representações não tenha influência nos seus modos de combinação. É certo que os psicólogosfalam às vezes das leis da associação de idéias como se fossem as mesmas para todas as espécies de representações individuais. Mas nada é menos verossímil: as imagensnão se compõem entre si como as sensações, nem os conceitos como as imagens. Se a psicologia estivesse mais avançada constataria, certamente, que cada categoriade estados mentais tem as suas leis formais próprias. Assim sendo, deveremos esperar afortiorique as leis correspondentes ao pensamento social sejam específicas,tal como este pensamento o é em si mesmo. Efetivamente, por pouco qae tenhamos contatado com esta ordem de fatos, é difícil não sentir essa especificidade. Nãoé ela, com efeito, quem nos faz parecer tão estranha a maneira especial como as concepções religiosas (coletivas por excelência) se misturam, se separam,

se transformam umas nas outras dando origem a resultantes contraditórias com os produtos vulgares do nosso pensamento privado? Se, como é de presumir, certas leisda mentalidade social lembram efetivamente as que são estabelecidas pelos psicólogos, não quer dizer que as primeiras sejam um simples caso particular das segundas,mas sim que entre umas e outras, embora paralelamente a diferenças substanciais, há semelhanças que abstrativamente se poderão isolar, mas que são ainda ignoradas.Quer dizer: em caso algum a sociologia poderia pura e simplesmente servir-se desta ou daquela proposição da psicologia para a aplicar tal e qual aos fatos sociais.O pensamento coletivo global deve ser estudado, tanto na forma como no conteúdo, por si e em si mesmo, na sua especificidade, deixando para o futuro a tarefa deprocurar em que medida ele se parece com o pensamento dos particulares. Trata-se de um problema que pertence mais ao âmbito da filosofia geral e da lógica abstratado que ao estudo científico dos fatos sociais.5 5 É inútil mostrar como, deste ponto de vista, a necessidade de estudar os fatos a partir do exterior surge ainda mais evidente, visto eles resultarem desínteses que têm lugar fora de nós e das quais não temos sequer a percepção confusa que a consciência nos pode dar dos fenômenos interiores.

p. 81 III

Resta-nos dizer algumas palavras sobre a definição dos fatos sociais dada por nós no primeiro capítulo. Fizemo-los consistir em maneiras de fazer ou pensar, reconhecíveispela particularidade de serem suscetíveis de exercer uma influência coerciva sobre as consciências particulares. Produziu-se a este respeito uma confusão que mereceser apontada. É de tal modo habitual aplicar às coisas da sociologia as formas do pensamento filosófico, que esta nossa definição preliminar foi freqüentemente consideradacomouma espécie de filosofia do fato social, na qual, segundo se disse, explicaríamos os fenômenos sociais pela coação, do mesmo modo que Tarde os explica pela imitação.Não tínhamos tal ambição nem sequer nos ocorrera que no-la pudessem atribuir, tão contrária ela é a qualquer método. O que pretendíamos não era antecipar as conclusõesda ciência por uma visão filosófica mas, simplesmente, indicar quais os sinais exteriores que permitem reconhecer os fatos do domínio da sociologia, a fim de queo estudioso possa aperceberse deles e não os confundir com outros. Tratava-se de delimitar o campo de pesquisas tão corretamente quanto possível, e não de nos embrenharmosnuma espécie de intuição exaustiva. Assim, aceitamos de bom grado as censuras que foram feitas a esta definição por não exprimir todos os caracteres do fato sociale, conseqüentemente, por não ser a única possível. Nada há, com efeito, de inconcebível no fato de ele poder caracterizar-se de várias maneiras diferentes; nãohá qualquer razão para que tenha uma única propriedade distintiva. 6 Tudo o que importa é escolher a que parece melhor para o fim que nos propomos. É mesmo possívelutilizar correntemente vários critérios, de acordo com as circunstâncias. E foi o que nós reconhecemos ser por vezes necessário em sociologia; há casos em que ocaráter coercivo não é facilmente reconhecível (ver pág. 90). Tudo quanto é necessário, desde que se trate de uma definição inicial, é que as características deque nos servimos sejam imediatamente discerníveis e possam ser percebidas antes da pesquisa. Ora, é esta a condição a que não satisfazem as definições que por vezesopuseram à nossa. Disse-se, por exemplo, que o fato social é tudo o que é produzido na e pela sociedade, ou, ainda, o que interessa e afeta o grupo de qualquer modo.Mas não se pode saber se a sociedade é ou não a causa de um fato, ou se esse fato tem efeitos

sociais, a não ser quando a ciência está já avançada. Tais definições não poderiam, portanto, servir para determinar o objeto da investigação no seu começo. Paraas podermos utilizar será preciso que o estudo dos fatos sociais tenha ido já suficientemente longe e, por conseguinte, se tenha descoberto previamente um outromeio de os reconhecer onde quer que se encontrem.A par dos que acharam a nossa definição demasiado estreita, houve também quem a acusasse de ser excessivamente lata e abarcar assim quase todo o real. com efeito,dis- 6 O poder coercivo que lhes atribuímos é em tão fraca medida característico dos fatos sociais que eles podem igualmente apresentai o caráter oposto. Na verdade,apesar das instituições se nos imporem nós amamo-las e conservamo-las; e, apesar de nos constrangerem, lucramos com o seu funcionamento e, até, com esse constrangimento.Tal antítese eqüivale à assinalada pelos moralistas entre as noções de bem e de dever, definidoras de dois aspectos diferentes, mas igualmente reais, da vida moral.Ora, não há talvez práticas coletivas que não exerçam sobre nós esta dupla ação, aliás só contraditória na aparência. Se não as definimos por esse apego que lhestributamos simultaneamente interessado e desinteressado, foi simplesmente pelo fato de ele não se manilestar através de sinais exteriores facilmente perceptíveis.O bem tem algo mais de interno e mais íntimo que o dever, sendo portanto menos compreensível. ]

p. 82disse-se que todo meio físico exerce uma pressão sobre os seres submetidos à sua ação, uma vez que estes são, numa certa medida, obrigados a adaptar-se a ele. Mashá entre estes dois modos de coerção toda a diferença que separa um meio físico de um meio moral. A pressão exercida por um ou mais corpos sobre outros corpos, oumesmosobre as vontades, não é confundível com a exercida pela consciência de um grupo sobre a consciência dos seus membros. O que há de perfeitamente característicona pressão social é o fato de ela se dever, não à rigidez de certos arranjos moleculares, mas ao prestígio de que usufruem certas representações. É verdade que oshábitos individuais ou hereditários têm, sob certos pontos de vista, esta mesma propriedade: dominam-nos, impõem-nos crenças ou práticas. Só que nos dominam a partirdo interior, visto estarem inteiramente em cada um de nós. Pelo contrário, as crenças e as práticas sociais atuam sobre nós a partir do exterior, pelo que o ascendenteexercido por umas e por outras é, no fundo, muito diferente.Não nos devemos espantar, aliás, que outros fenômenos da natureza apresentem, sob outras formas, a característica pela qual definimos os fenômenos sociais. Esta

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similitude decorre simplesmente de tanto uns como outros serem coisas reais, porquanto tudo o que é real se impõe pela sua natureza definida, com a qual é necessáriocontar e que, mesmo quando conseguimos neutralizar, nunca fica completamente vencida. No fundo, é isso o que há de mais essencial na noção de constrangimento social,pois tudo o que ela implica é que as maneiras coletivas de agir ou de pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento, a ela se conformam.São coisas dotadas de existência própria, que o indivíduo encontra completamente formadas e não pode impedir que existam ou fazer com que existam de modo diferente;é obrigado a contar com elas, e é-lhe tanto mais difícil (não dizemos impossível) modificá-las quanto maior for o seu grau de participação na supremacia materiale moral que a sociedade tem sobre os seus membros. O indivíduo desempenha sem dúvida um papel na sua gênese. Mas, para que haja fato social, é necessário que váriosindivíduos tenham, pelo menos, combinado a sua ação e que desta combinação tenha resultado um produto novo. Ora. como esta síntese se processa fora de cada um denós (uma vez que há pluralidade de consciências), ela tem também necessariamente por efeito fixar, instituir fora de nós certas maneiras de agir e certos juízosque não dependem de cada vontade particular. Tal como

fizemos notar, 7, há uma palavra que, desde que se lhe dilate um pouco a acepção vulgar, exprime bastante bem esta maneira de ser muito especial: é a palavra instituição.Pode-se, com efeito, sem desvirtuar o sentido deste termo, chamar instituição a todas as crenças e a todos os modos de conduta instituídos pela coletividade; asociologia pode então ser definida como a ciência das instituições, da sua gênese e do seu funcionamento. 8.Sobre as outras controvérsias suscitadas por esta obra, parece-nos inútil insistir; não abordam nada de essencial. A orientação geral do método não depende dos proces-7 Ver art. "Sociologia", da Grande Enciclopédia, de Fauconnet e Mauss.8 Pelo fato de as crenças e as práticas sociais nos chegarem do exterior, não quer dizer que as recebamos passivamente e sem as submetermos a modificações. Ao pensarmose assimilarmos as instituições coletivas, individualizamo las e incutimos-lhes em maior ou menor grau o nosso cunho pessoal; é por este motivo que, ao pensarmoso mundo sensível, cada um de nós lhe dá um colorido à sua maneira e se adapta de modo dife rente a um mesmo meio físico — razão por que cada indivíduo possui, emcerta medida, a sua moral, a sua religião, a sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de nuanças individuais, o que não impede que ocampo de variações permitidas seja limitado. Este é nulo ou muito restrito no âmbito dos fenômenos religiosos e morais, onde a variação degenera facilmente em crime,e mais vasto no que se refere à vida econômica. Mas, tarde ou cedo, mesmo neste último caso se encontra um limite que não pode ser franqueado.

p. 83sós escolhidos quer para classificar os tipos sociais, quer para distinguir o normal do patológico. Aliás, estas contestações partiram muitas vezes do fato de aspessoas se recusarem a admitir, ou não admitirem sem reservas, o nosso princípio fundamental: a realidade objetiva dos fatos sociais. Tudo repousa, portanto, e finalmente,neste princípio, e tudo a ele retorna. Pareceu nos por isso útil pô-lo uma vez mais em relevo, separando-o de todas as questões secundárias. E estamos certos deque, assegurando-lhe uma tal preponderância, permanecemos fiéis à tradição sociológica; no fundo, é desta concepção que saiu toda a sociologia. Esta ciência, comefeito, só poderia surgir quando se tivesse pressentido que os fenômenos sociais, não sendo materiais, não deixam por isso de ser coisas reais que admitem um estudo.Para ter chegado à conclusão de que se podia investigar a sua natureza era necessário ter compreendido que eles existem de uma forma definida, que possuem uma maneirade ser constante, e uma natureza que não depende do arbítrio individual e de onde derivam relações necessárias. Por isso, a história da sociologia não é mais doque um longo esforço para precisar esta convicção, para a aprofundar, para desenvolver todas as conseqüências que ela implica. Mas, apesar dos grandes progressosque se fizeram neste sentido, veremos no seguimento deste trabalho que restam ainda muitas sobrevivências do postulado antropocêntrico que, aqui como noutros lados,bloqueia o caminho da ciência. Desagrada ao homem ter de renunciar ao poder ilimitado sobre a ordem social que durante muito tempo se lhe atribuiu e, por outro lado,admitindo a existência de forças coletivas, desagrada-lhe a idéia de que está necessariamente condenado a suportá-las sem as poder modificar. É isto que o leva anegá-las. As experiências repetidas ensinaram-lhe em vão que esta força toda-poderosa, na ilusão da qual se mantém com complacência, foi sempre para ele uma causade fraqueza, e que o seu império sobre as coisas só começou realmente a partir do momento em que lhes reconheceu uma natureza própria e se resignou a analisá-laspara saber o que elas são. Expulso de todas as outras ciências, este deplorável preconceito mantém-se pertinazmente na sociologia. Nada há portanto de mais urgentedo que procurar bani-lo definitivamente da nossa ciência; é este o principal objetivo dos nossos esforços.

p. 85 INTRODUÇÃO

Até agora, os sociólogos têm-se preocupado pouco com a caracterização e definição do método que aplicam ao estudo dos fatos sociais. Assim, na obra de Spencer,o problema metodológico é pura e simplesmente esquecido; a Introdução à Ciência Social, cujo título poderia iludir nos, é consagrada a demonstrar as dificuldadese as possibilidades da sociologia, e não a expor os processos de que ela se deve servir. Mill, por sua vez, ocupou-se longamente desta questão, 9 mas limitou-seafazer passar pelo crivo da sua dialética o que Comte dissera a este respeito, sem nada lhe acrescentar de verdadeiramente pessoal. Sobre o assunto, dispomos apenasde um capítulo do Curso de Filosofia Positiva, como único estudo original e importante desta matéria. 10. Esta despreocupação aparente não tem, aliás, nada de surpreendente. com efeito, os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de referir não passaram das generalidadessobre a natureza das sociedades, as relações do reino social e do reino biológico, e a marcha geral do progresso; mas a volumosa sociologia de Spencer tem por únicoobjetivo mostrar como a lei da evolução universal se aplica às sociedades. Ora, para tratar destas questões filosóficas não são precisos processos especiais e complexos,pelo que se contentavam em comparar e pesar os méritos da dedução e da indução, e fazer um inquérito sumário dos recursos mais gerais ao dispor da investigação sociológica.Mas as precauções a tomar na observação dos fatos, a maneira como os principais problemas devem ser colocados, o sentido em que as pesquisas devem ser dirigidas,as práticas especiais que podem permitir lhes o sucesso e as regras que devem presidir à apresentação das provas continuaram indeterminadas. Um feliz conjunto de circunstâncias, à frente das quais é justo colocar a iniciativa da qual resultou a nosso favor a criação de um curso regular de sociologianaFaculdade de Letras de Bordéus, permitiu que cedo nos consagrássemos ao estudo da ciência social e a constituíssemos em matéria das nossas ocupações profissionais,podendo assim abandonar estas questões demasiado gerais e abordar um certo número de problemas particulares. Fomos, portanto, pela força das próprias circunstâncias,levados a elaborar um método mais definido, ao que julgamos, e mais exatamente adaptado à natureza particular dos fenômenos sociais. São os resultados desta nossaprática que gostaríamos de expor aqui no seu conjunto, submetendo-os a discussão. Eles estão sem dúvida implicitamente contidos no livro que recentemente publicamossobre A Divisão do Trabalho

p. 86Social. Mas parece-nos que tem algum interesse separá-los, formulá-los à parte, acompanhando-os das suas provas e ilustrando-os com exemplos tirados quer dessaobra, quer de trabalhos ainda inéditos. Poder-se-á assim julgar melhor a orientação que gostaríamos de tentar imprimir aos estudos de sociologia.

9 Sistema de Lógica, I VI. caps VII XII.1 º Ver 2." edição, pags. 294-336.

p. 87 CAPITULO PRIMEIRO

O QUE É UM FATO SOCIAL?

O fato social não pode definir-se pela sua generalidade no interior da sociedade. Características distintivas do fato social: 1." — a sua exterioridade em

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relaçãoàs consciências individuais; 2." — a ação coerciva que exerce ou é suscetível de exercer sobre essas mesmas consciências. Aplicação desta definição às práticasconstituídas e às correntes sociais. Verificação desta definição. Outra maneira de caracterizar o fato social: o estado de independência em que se encontra em relaçãoàs suas manifestações individuais. Aplicação desta característica às práticas constituídas e às correntes sociais. O fato social generaliza se por ser social, masnão é social porque se generaliza. Como esta segunda definição se reduz à primeira. Como os fatos de morfologia social se enquadram nesta mesma definição. Fórmulageral do fato social. Antes de procurar saber qual é o método que convém ao estudo dos fatos sociais, importa dar a conhecer os fatos que assim designamos.A questão é tanto mais necessária quanto as pessoas se servem desta qualificação sem grande precisão. Empregam-na correntemente para designar, pouco mais ou menos,todos os fenômenos que ocorrem na sociedade, mesmo que apresentem, apesar de certas generalidades, pouco interesse social. Mas, partindo desta acepção, não há. porassim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser apelidados de sociais. Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse emque estas funções se exerçam regularmente. Assim, se estes fatos fossem sociais, a sociologia não teria um objeto que lhe fosse próprio e o seu domínio confundir-se-iacom os da biologia e da psicologia. Mas, na realidade, há em todas as sociedades um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por características distintas dos estudados pelas outrasciências da natureza. Quando desempenho a minha obrigação de irmão, esposo ou cidadão, quando satisfaço os compromissos que contraí, cumpro deveres que estão definidos, para

p. 88além de mim e dos meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo quando eles estão de acordo com os meus próprios sentimentos e lhes sinto interiormente a realidade,esta não deixa de ser objetiva, pois não foram estabelecidos por mim, mas sim recebidos através da educação. Quantas vezes acontece ignorarmos os pormenores dasobrigações que nos incumbem e, para os conhecer, termos de recorrer ao Código e aos seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, os fiéis, quando nascem, encontramjá feitas as crenças e prá ticas da sua vida religiosa: se elas existiam antes deles é porque existiam fora deles. O sistema de sinais de que me sirvo para exprimiro pensamento, o sistema monetário que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas minhas relações comerciais, as práticas seguidasna minha profissão, etc., etc. funcionam independentemente do uso que deles faço. Tomando um após outro todos os membros de que a sociedade se compõe, pode repetir-setudo o que foi dito, a propósito de cada um deles. Estamos pois em presença de modos de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais.Não somente estes tipos de conduta ou de pensamento são exteriores ao indivíduo, como são dotados dum poder imperativo e coercivo em virtude do qual se lhe impõem,quer ele queira quer não. Sem dúvida, quando me conformo de boa vontade, esta coerção não se faz sentir ou faz-se sentir muito pouco, uma vez que é inútil. Mas nãoé por esse motivo uma característica menos intrínseca de tais fatos, e a prova é que ela se afirma desde o momento em que eu tente resistir. Se tento violar as regrasdo direito, elas reagem contra mim de modo a impedir o meu ato, se ainda for possível, ou a anulá-lo e a restabelecê-lo sob a sua forma normal, caso já tenha sidoexecutado e seja reparável, ou a fazer me expiá-lo, se não houver outra forma de reparação. Tratar-se-á de máximas puramente morais? A consciência pública reprimetodos os atos que as ofendam, através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe. Noutros casos, a coação é menosviolenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os usos seguidos no meu país e na minha classe,o riso que provoco e o afastamento a que me submeto produzem, ainda que duma maneira mais atenuada, os mesmos efeitos de uma pena propriamente dita. Aliás, a coaçãonão é menos eficaz por ser indireta. Não sou obrigado a falar francês com os meus compatriotas, nem a usar as moedas legais, mas é impossível fazêlo de outro modo.Se tentasse escapar a esta necessidade, a minha tentativa falharia miseravelmente. Se for industrial, nada me proíbe de trabalhar com processos e métodos do séculopassado, mas, se o fizer, arruíno-me pela certa. Mesmo quando posso libertarme dessas regras e violá-las com sucesso, nunca é sem ser obrigado a lutar contra elas.Mesmo quando são finalmente vencidas, ainda fazem sentir suficientemente a sua força constrangedora, pela resistência que opõem. Não há inovador, mesmo bem sucedido,cujos empreendimentos não acabem por chocar com oposições deste tipo. Aqui está, portanto, um tipo de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo,e dotadasde um poder coercivo em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte,

p. 89não poderiam ser confundidos com os fenômenos orgânicos, visto consistirem em representações e ações; nem com os fenômepos psíquicos, por estes só existirem naconsciência dos indivíduos, e devido a ela. Constituem, pois, uma espécie nova de fatos, aos quais deve atribuir-se e reservar-se a qualificação de sociais. Talqualificação convém-lhes, pois, não tendo o indivíduo por substrato, não dispõem de outro para além da sociedade, quer se trate da sociedade política na sua íntegraou de um dos grupos parciais que engloba: ordens religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais, etc. Por outro lado, a designação convém unicamentea estes fatos, visto a palavra "social" só ter um sentido definido na condição de designar apenas os fenômenos que não se enquadrem em nenhuma das categorias defatos já constituídas e classificadas. Eles são, portanto, o domínio próprio da sociologia. É certo que este conceito de coação, pelo qual definimos os fatos sociais,corre o risco de enfurecer os zelosos partidários de um individualismo absoluto. Como eles professam a crença de que o indivíduo é perfeitamente autônomo, parecelhes estarem a diminuí-lo ao fazê-lo sentir que não depende unicamente de si próprio. Ora. uma vez que hoje é incontestável que as nossas idéias e tendências nãosão, na sua maior parte, elaboradas por nós, mas nos chegam do exterior, só poderão infiltrar-se se se impuserem; isto é tudo quanto a nossa definição pretende significar.Sabe-se, aliás, que a coação social não exclui necessariamente a personalidade individual.11 Isto não significa, de resto. que toda a coação seja normal. Voltaremos a este assunto mais adiante. No entanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.) consistem todos em crenças eem práticasconstituídas, poder-se-ia, de acordo com o que precede, supor que só há fatos sociais onde houver organização definida. Mas há outros fatos que, sem apresentarestas formas cristalizadas, têm a mesma objetividade e o mesmo ascendente sobre o indivíduo. São as chamadas correntes sociais. Assim, numa assembléia, as grandesmanifestações de entu siasmo, de indignação e de piedade que se desencadeiam não têm a sua origem em nenhuma consciência particular. Chegam a cada um de nós do exteriore são suscetíveis de nos arrastar, mesmo contra a vontade. Pode acontecer que. abandonando-me a elas sem reservas, não venha a sentir a pressão que exercem sobremim. Mas esta pressão manifesta-se a partir do momento em que eu tentar lutar contra ela. Se um indivíduo experimentar opor-se a uma destas manifestações coletivas,os sentimentos que nega voltar-se-ão contra ele. Ora, se este poder de coação externa se afirma com tal nitidez nos casos de resistência, é porque existe, emborainconsciente, nos casos contrários. Estamos então a ser vítimas de uma ilusão que nos faz acreditar termos sido nós quem elaborou aquilo que se nos impôs do exterior.Mas, se a complacência com que nos deixamos levar mascara a pressão sofrida, não a suprime. Do mesmo modo, o ar não deixa de ter peso pelo fato de não o sentirmos.Mesmo quando colaboramos espontaneamente na emoção comum, a impressão que sentimos é totalmente diferente da que teríamos sentido se tivéssemos estado sós. Umavez dispersa a assembléia, finda a ação das influências sociais sobre nós, e ficados a sós, os sentimentos por que passamos dão-nos a impressão de ser algo de estranhoem que já não nos reconhecemos. Apercebemo-nos nessa altura que fomos sua presa, mais do que seus criadores. Chegam mesmo a horrorizar-nos, tão contrários eram ànossa natureza. É assim que indivíduos, perfeitamente inofensivos na sua maioria, podem, reunidos em multidão, deixar-se conduzir a atos de atrocidade. Ora, o quedizemos acerca destas explosões passageiras aplica-se também aos movimentos de opinião mais duradouros que se produzem incessantemente à nossa volta, mesmo em círculosmais restritos, sobre questões religiosas, políticas, literárias, artísticas, etc.Esta definição do fato social pode, aliás, confirmar-se por uma experiência

p. 90característica. Basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que todaa educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros

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tempos da sua vida a coagimos a comer, a dormir e a beber a horas regulares. Coagimo-la à limpeza, à calma, à obediência; mais tarde, coagimo-la a ter em conta osoutros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc. Se. com o tempo, essa coação deixa de ser sentida, é porque fez nascer hábitos e tendênciasinternas que a tornam inútil, mas que só a substituem porque derivam dela. Segundo Spencer, uma educação racional deveria reprovar tais processos e deixar a criançaagir com toda a liberdade; mas, como esta teoria pedagógica nunca foi praticada por qualquer povo conhecido, não passa de um desideratum pessoal, não constituindoum fato que possa opor-se aos precedentes. Ora. estes últimos são particularmente instrutivos por a educação ter justamente o objetivo de criar o ser social. Podemoscompreender assim, de modo sumário, como esse ser se constituiu na história. Esta coação permanente exercida sobre a criança é a pressão do meio social que tendea moldá-la à sua imagem, e da qual os pais e professores não passam de representantes e de intermediário-,.Não é pois a sua generalidade que sen e para caracterizar os fenômenos sociológicos. IJm pensamento comum a todas as consciências particulares ou um movimentorepetido por todos os indivíduos não são por isso fatos sociais. Se houve quem se contentasse com este caráter para os definir, foi por os ter confundido, erradamente,com aquilo a que se poderia chamar as suas encarnações individuais. O que os contitui são as crenças, as tendências, as práticas do grupo tomado coletivamente;quanto às formas de que se revestem os estados coletivos ao refletir se nos indivíduos, são coisas de uma outra espécie. O que demonstra categoricamente esta dualidadede naturezas é a ocorrência destes dois tipos de fatos inúmeras vezes dissociados. com efeito, certas maneiras de agir ou de pensar adquirem, devido à repetição,uma espécie de consistência que as isola dos acontecimentos particulares que as refletem. Tomam assim uma forma sensível que lhes é própria, e constituem uma realidadesui generis muito distinta dos fatos individuais que as manifestam. O hábito coletivo não existe apenas no estado de imanência nos atos sucessivos que determina:por um privilégio de que não encontramos exemplos no reino biológico, exprime-se, de uma vez para sempre, numa fórmula que se repete de boca em boca, que se transmiteatravés da educação, que se fixa por escrito. Tal é a origem e a natureza das regras jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditados populares, dos artigos de féem que as seitas religiosas ou políticas condensam as suas crenças, códigos de gosto que disciplinam escolas literárias, etc. Nenhuma delas se encontra inteiramentenas aplicações que delas são feitas pelos particulares, uma vez que podem subsistir mesmo sem serem atualmente aplicadas.Esta dissociação não se apresenta sempre com a mesma nitidez, mas basta que ela exista de um modo incontestável nos casos que enumeramos para provar que o fatosocial é distinto das suas repercussões individuais. Aliás, mesmo quando a dissociação não nos é evidente, podemos, por vezes, realizá-la com a ajuda de certosartifícios de método; somos até obrigados a utilizá-los quando queremos isolar o fato social e observa Io num estado de pureza. Há certas correntes de opinião quenos levam, com intensidades desiguais segundo o tempo e os países, ao casamento, ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos forte; estes são, evidentemente,fatos sociais. Ã primeira impressão parecem inseparáveis das formas que tomam nos casos particulares, mas a estatística fornece-nos o meio de os isolar. com efeito,são retratados pela taxa de natalidade, de nupcialidade, de suicídios, quer dizer, pelo número que se obtém dividindo o total médio anual dos nascimentos, casamentose mortes

p. 91voluntárias pelo número de homens na idade de procriar, de se casar, de se suicidar.12XTofflo cada um destes números compreende todos os casos individuais indistintamente,as circunstâncias particulares que podem ter tomado parte na produção do fenômeno neutralizam-se mutuamente e, por conseguinte, não contribuem para o determinar.O que ele exprime é um certo estado de alma coletivo.Eis o que são os fenômenos sociais, desembaraçados de todos os elementos estranhos. As suas manifestações privadas têm sempre algo de social, uma vez que reproduzemem parte um modelo coletivo; mas cada uma delas depende também, e numa larga medida, da constituição orgânico-psíquica do indivíduo, das circunstâncias particularesem que está colocado. Não são, portanto, fenômenos propriamente sociológicos. Pertencem ao mesmo tempo a dois reinos e poderíamos chamar-lhes sócio psíquicos. Interessam ao sociólogo sem constituírem a matéria imediata da sociologia. Aliás, também se encontram no interior dos organismos fenômenos de natureza mista que são estudadospor ciências mistas, como a químico-biologia.Mas, dir-se-á, um fenômeno não pode ser coletivo se não for comum a todos o membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles. Sem dúvida; mas ele é geralpor ser coletivo (quer dizer, mais ou menos obrigatório), e nunca coletivo por ser geral. É um 12 As pessoas não se suicidam em todas as idades, nem em todas as idades cora a mesma intensidade.

p. 91estado do grupo que se repete nos indivíduos porque se impõe a eles; está em cada parte porque está no todo, não está no todo por estar nas partes. Isto é evidenciadopelas crenças e práticas que nos são transmitidas pelas gerações anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obrasecular, estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Devemos notar que a imensa maioria dos fenômenos sociaischega até nós por essa via; mas, mesmo quando o fato social é devido em parte à nossa colaboração direta, a sua natureza não muda. Um sentimento coletivo que surjanuma assembléia não expri me apenas o que há de comum entre todos os sentimentos individuais. Há nele algo de diferente, como já mostramos; resulta da vida comum,é um produto das ações e das rea ções entre as consciências individuais; e, se ressoa em cada uma delas, é em virtude de uma energia especial que se deve justamenteà sua origem coletiva. Se todos os corações vibram em uníssono, não é no seguimento de uma concordância espontânea e preestabe lecida; é que uma mesma força os movenum mesmo sentido. Cada um é levado por todos.Esperamos ter definido exatamente o domínio da sociologia, domínio esse que só compreende um determinado grupo de fenômenos. Um fato social reconhece-se pelo seupoder de coação externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder reconhece-se, por sua vez, pela existência de uma sançãodeterminada ou pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tenda a violenta Io. No entanto, podemos defini-lo também pela difusão que temno interior do grupo, desde que, de acordo com as observações que fizemos, se tenha o cuidado de juntar como segunda e essencial característica a de que ele existaindependentemente das formas individuais que toma ao difundir-se. Este último critério é aliás, em certos casos, mais fácil de aplicar do que o precedente. comefeito, a coação é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por uma reação direta da sociedade, como é o caso do direito, da moral, das crenças, usos, eaté das modas. Mas, quando é apenas indireta, como a que exerce uma organização econômica, a coação nem sempre é tão evidente. A generalidade e a objetividade podem,nesse caso, ser mais fáceis de estabelecer. Aliás, esta segunda definição não é mais do que uma outra forma da primeira; de fato, uma maneira de se conduzir,

exterior às consciências dos indivíduos, só se generaliza se for imposta.13No entanto, poderíamos perguntarse esta definição está completa. Os fatos sociais que tomamos como base são todos maneiras de fazer; são de ordem fisiológica. Mastambém existem maneiras de ser coletivas, quer dizer, fatos sociais de ordem anatômica ou morfológica. A sociedade não pode desinteressar-se do que diz respeitoao substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a natureza das partes elementares de que se13 Vê-se como esta definição do fato social se afasta da que serve de base ao engenhoso sistema de Tarde. Em primeiro lugar, devemos declarar que as nossas investigaçõesnão nos fizeram constatar em parte alguma a tal influência preponderante que Tarde atribui à imitação da gênese dos fatos coletivos. Além disso, da definição precedente,que não é uma teoria mas um simples resumo dos dados imediatos de observação, parece resultar que a imitação nunca exprime o que há de essencial e de mais característicono fato social. Sem dúvida, todo o fato social é imitado, isto é, tem uma tendência para generalizar-se; mas isto se deve ao fato de ser social, quer dizer, obrigatório.O seu poder de expansão não é a causa, mas a conseqüência do seu caráter sociológico. Se os fatos sociais fossem os únicos a produzir esta conseqüência, a imitaçãopoderia servir, se não para os explicar, pelo menos para os definir, mas um estado individual que faz ricochete não deixa por isso de ser individual. Poderemos aindaperguntar se a palavra "imitação" é a que melhor convém para designar uma propagação devida à influência coerciva. Nesta expressão confundem se fenômenos muito diferentese que seria neccsbai 10 distinguir.

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p. 92compõe a sociedade, a maneira como elas se dispõem, o grau de coalescência a que che garam, a distribuição da população pela superfície do território, o número ea natureza das vias de comunicação, a forma das habitações, etc. não parecem, num primeiro exame, poder ser relacionados com maneiras de agir, sentir ou pensar.Mas estes diversos fenômenos apresentam uma mesma característica que nos permite definir os outros; estas maneiras de ser impõem-se ao indivíduo tal como as maneirasde fazer, atrás referidas. com efeito, quando se quer conhecer a maneira como uma sociedade é dividida politicamente, como se compõem essas divisões, a fusão maisou menos completa que existe entre elas, não é com a ajuda de uma inspeção material e por observações geográficas que podemos consegui-lo. Mesmo quando têm umabase qual quer de natureza física, essas divisões são também morais; e é somente através do direito público que é possível estudar essa organização, uma vez queé ela que a determina, tal como determina as nossas relações domésticas e cívicas. Ela não deixa por isso de ser obrigatória, pois se a população se aglomera nasnossas cidades em vez de se dispersar pelos campos é porque há uma corrente de opinião, um impulso coletivo que impõe aos indivíduos esta concentração. Não podemosescolher a forma das nossas casas tal como não podemos escolher a forma do nosso vestuário. Os nossos gostos são obrigatórios tanto num campo como noutro. As viasde comunicação determinam de uma maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as trocas, e até a intensi dade destas trocas e migrações;logo, deveríamos acrescentar uma nova categoria à lista dos fenômenos que enumeramos como apresentando o sinal distintivo do fato social. Porém, como esta enumeraçãonada tinha de rigorosamente exaustiva, a adição não é indispensável. Convém frisar que, por outro lado, essa adição não teria qualquer utilidade; as maneiras de ser não são mais do que maneiras de fazer consolidadas. A estruturapolíticade uma sociedade é apenas a maneira como os diferentes segmentos que a compõem adquiriram o hábito de viver uns com os outros. Se as suas relações são tradicionalmenteestreitas, os segmentos tendem a confundir-se; tenderão a distinguir-se no caso contrário. O tipo de habitação que se nos impõe não é senão a maneira como toda agente à nossa volta e, em parte, as gerações anteriores, se acostumaram a construir as casas. As

vias de comunicação não são mais do que o leito que esta foi cavando para si própria ao correr no mesmo sentido; veja-se, por exemplo, a corrente regular das trocase das migrações, etc. Se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresentar esta fixidez. poder-se-ia acreditar que constituem uma classe à parte; masuma regra jurídica é tão permanente como um tipo de arquitetura e, no entanto, é um fato fisiológico. Poder-se-ia objetar citando as máximas morais, muito mais maleáveis;mas mesmo elas têm formas muito mais rígidas do que um simples uso profissional ou uma moda. Há assim uma gama de cambiantes que, sem solução de continuidade, ligamos fatos de estrutura mais caracterizados a essas correntes livres da vida social que ainda não se fixaram em ne nhum molde definido. Quer dizer, portanto, que nãohá entre eles mais do que diferenças de grau de consolidação; tanto uns como outros não passam de vida mais ou menos cristalizada. Pode haver interesse em reservaro nome de morfológicos para os fatos sociais a que se refere o substrato social, mas com a condição de que nunca se perca de vista que eles têm todos a mesma natureza.A única definição que permite englobar tudo o que dis semos é a seguinte: "£ um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o

p. 93indivíduo uma coação exterior", ou ainda, "que e geral no conjunto de uma dada socie dade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais" 14.

14 Este parentesco estreito entre a vida e a estrutun entre o órgão e a função pode ser facilmente estabele cido na sociologia porque entre estes dois termosextremos existi, toda uma serie de intermediários imedia lamente observáveis que mostram a ligação entre eles A biologia não tem o mesmo recurso Mas pode se acreditar queas induções di primeira destas ciências sobre este assunto são aplicáveis a outra e que nos organismos tal como nas socied ides só existem diferenças de grau entreestas duas ordens de fatos

p. 94CAPÍTULO SEGUNDO

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

Regra fundamental: Tratar os fatos sociais como coisas.

I — Fase ideológica que atravessam todas as ciências, durante a qual elaboram noções vulgares e práticasem vez de descreverem e explicarem as coisas. Motivo por que esta fase devia prolongar-se na sociologia mais do que nas outras ciências. Fatos extraídos à sociologiade Comte, à de Spencer, e ao estado atual da moral e da economia política, mostrando que este estágio ainda não foi ultrapassado. Razões para o ultrapassar:1º — Os fatos sociais devem ser tratados como coisas porque são os data imediatos da ciência, enquanto que as idéias, de que os fatos sociais são supostamente osdesenvolvimentos, não são diretamente dados. 2º — Têm todas as características da coisa. Analogia desta reforma com a que transformou recentemente a psicologia.Razões para esperar, no futuro, um progresso rápido da sociologia. II — Corolários imediatos da regra precedente: 1." — Afastar da ciência todas as noções prévias.Acerca do ponto de vista místico que se opõe à aplicação desta regra. 2º — Maneira de constituir o objeto positivo da investigação: agrupar os fatos segundo assuas características exteriores comuns. Relações do conceito assim formado com o conceito vulgar. Exemplos de erros a que nos expomos ao negligen• ciar esta regra ou ao aplica la mal: Spencer e a sua teoria sobre a evolução do casamento; Garofalo e a sua definição de crime; o erro comum que recusa a moralàs sociedades inferiores. Que a exterioridade das características que entram nestas definições iniciais não constituam um obstáculo às explicações científicas. 3."— Estas características exteriores devem, além disso, ser o mais objetivas possível. Método para o conseguir: apreender os fatos sociais de modo que se apresentemisolados das suas manifestações individuais.A primeira regra e a mais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas.

I

Quando uma nova ordem de fenômenos se torna objeto de ciência, tais fenômenos encontram-se já representados no espírito, não somente por imagens sensíveis, mas poruma espécie de conceitos grosseiramente formados. Antes dos primeiros rudimentos da física e da química, os homens tinham já sobre os fenômenos

físico-químicos algumas noções que ultrapassavam a pura percepção; tais como, por exemplo, as que encon tramos misturadas em todas as religiões. A reflexão é anteriorà ciência: esta limita-se a servir-se dessa reflexão mais metodicamente. O homem não pode viver no meio de objetos sem ter uma idéia deles que lhe permita regulara sua conduta. Como essas noções estão mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem, tendemos natural mente a fazer delas a matéria das nossas especulações,substituindo as realidades por elas; em vez de observar as coisas, de as descrever, de as comparar, contentamo-nos então com a tomada de consciência das nossasidéias, analisando-as, combinando-as. Em vez de uma ciência das realidades, temos uma mera análise ideológica. Esta análise não exclui necessariamente e por completoas observações; podemos fazer apelo aos fatos para confirmar certas noções ou as conclusões que delas tiramos. Mas nesse caso, os fatos não intervém senão secundariamente,

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a título de exemplo ou de provas confirma tórias; não são os objetos da ciência. A ciência vai das idéias às coisas e não das coisas às idéias.É claro que um método como este não poderia conduzir a resultados objetivos. Estas noções ou conceitos, seja qual for o nome que lhes queiramos dar, não são substi

p. 95tutos legítimos das coisas. Produtos da experiência vulgar, eles têm como objetivo pôr as nossas ações em harmonia com o mundo que nos rodeia; são formados pelaprática e para ela. Ora. uma representação pode ser capaz de desempenhar utilmente o seu papel sendo, ao mesmo tempo, teoricamente falsa. Copérnico. ao fim de muitosséculos, dissipou as ilusões dos nossos sentidos acerca dos movimentos dos astros; e, no entanto, é ainda segundo essas ilusões que regulamos muitas vezes a distribuiçãodo nosso tempo. Para que uma idéia suscite corretamente as atitudes reclamadas pela natureza das coisas não é necessário que exprima fielmente essa natureza; bastaque nos faça sentir o que essas coisas têm de útil ou de prejudicial, como nos podem servir, como nos podem contrariar. E convém ainda notar que estas noções sóse ajustam à prática de um modo aproximado e apenas na generalidade dos casos. Quantas vezes se tornam perigosamente inadequadas! Não é, portanto, elaborando-as,seja de que modo for, que se conseguirá descobrir as leis da realidade. Não são mais do que um véu que se interpõe entre as coisas e nós e que as mascara tanto melhorquanto mais acreditarmos na sua transparência.Uma tal ciência, além de truncada, não contém matéria de que se possa alimentar. Mal começa a existir, desaparece imediatamente, transformando-se em arte. com efeito,e dado que são confundidas com o real, estas noções deveriam conter tudo o que há de essencial nele; e a partir daí elas parecem ter tudo quanto é necessário paranos habilitar não somente a compreender o que existe, mas também para prescrever o que deve existir e os meios para o executar. É bom o que concorda com a naturezadas coisas: o resto é mau, e os meios para atingir um e fugir do outro derivam dessa mesma natureza. Se, portanto, nós a possuímos à partida, o estudo da realidadepresente não tem já qualquer interesse prático e, como é este interesse a razão de ser do estudo, também este perde a sua finalidade. A reflexão é assim incitadaa voltar as costas ao próprio objeto da ciência, a saber, o presente e o passado, e a lançar-se num salto para o futuro. Em vez de procurar compreender os fatosadquiridos e realizados, ela empreende imediatamente a construção de fatos novos, mais conformes aos fins perseguidos pelos homens. Quando alguém julga saber emque consiste a essência da matéria esse alguém põe-se imediatamente à procura da pedra filosofal. Esta usurpação da arte em desfavor da ciência, impedindo-a

de se desenvolver, é, aliás, facilitada pelas próprias circunstâncias que determinam o despertar da reflexão científica visto que, como ela nasce para satisfazeras necessidades vitais, acha-se naturalmente orientada para a prática. As necessidades que é chamada a aliviar são sempre prementes e, por conseguinte, apressam-naa conclusões; as necessidades reclamam remédios e não explicações.Este modo de proceder está tão de acordo com as inclinações naturais do nosso espírito que o encontramos mesmo na origem das ciências físicas. É ele quem diferenciaa química da alquimia, a astronomia da astrologia. É pelo modo de proceder que Bacon se diferencia dos seus contemporâneos e os combate. As noções que acabamos dereferir são as prenoções ou noções vulgares1 5 que ele assinala na base de todas as ciências1 6 e que nestas tomam o lugar dos fatos.1 7São uma espécie de fantasmas que desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que nós confundimos com as verdadeiras coisas. Como esse meio imaginário não ofereceao espírito qualquer resistência este abandona-se a ambições ilimitadas e crê possível construir, ou melhor, reconstruir o mundo pelas suas próprias forças e à vontadedos seus desejos.,, ;jf?., ^ ,,., *í1 5 Novuni Organum, I, pág. 26.1 6 Ibid.. 1. pág. 17.1 7 Ibid., I, pág. 36.-Si * -.

p. 96Se aconteceu assim com as ciências naturais, com muito mais razão deveria acontecer o mesmo com a sociologia. Os homens não esperaram pela ciência social parater idéias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, e a própria sociedade. Não podem passar sem estas coisas para viver. Ora. é sobretudo na sociologia queestas prenoções, para utilizar a expressão de Bacon, são capazes de dominar o espírito e substituir a reali dade. com efeito, os objetos sociais não se realizamsenão através do homem; são um produto da atividade humana. Parecem, portanto, uma mera execução das idéias, inatas ou não, que temos; uma sua aplicação às diversascircunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização familiar, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade aparece assim como um simplesdesenvolvimento das idéias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justiça, etc. Por conseqüência, estes fatos e os seus análogos parecem não ter realidade senãonas idéias e através delas. Sendo estas idéias os seus germes, tornam-se assim, desde logo, a matéria da sociologia.Os créditos desta maneira de ver são aumentados pelo fato de a minúcia da vida social transbordar em todos os sentidos a consciência e de esta não ter uma percepçãosuficientemente forte para sentir a realidade dessa vida social. Como esta não está suficientemente próxima de nós, julgamos que não está ligada a coisa alguma eque flutua no vazio, que é uma matéria meio irreal, infinitamente plástica. É por essa razão que tantos pensadores viram nos arranjos sociais meras combinações artificiais,mais ou menos arbitrárias. Mas, se o detalhe, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos podemos ter a representação dos aspectos mais geraisda existência coletiva em conjunto e por aproximação; e são precisamente essas representações esquemáticas e sumárias que constituem as prenoções de que nos servimospara o& usos comuns da vida. Não podemos, portanto, duvidar da sua existência, uma vez que nos apercebemos dela ao mesmo tempo que de nós próprios. Não só elas estãoem nós, mas, como são um produto de experiências repetidas, tiram da repetição e do hábito assim adquirido uma espécie de ascendente, de autoridade. Sentimo lasresistir quando tentamos libertar-nos, e não podemos deixar de encarar como realidade aquilo que se opõe a nós. Tudo contribui, portanto, para nos fazer ver aí averdadeira realidade social.

Até agora, a sociologia tem tratado mais ou menos exclusivamente, não das coisas, mas dos conceitos. De fato, Comte proclamou que os fenômenos sociais são fatosnaturais, submetidos a leis naturais. Reconheceu, assim, o seu caráter de coisas, visto que na natureza só há coisas. Mas quando, ao sair destas generalidades filosóficastenta aplicar o seu princípio e extrair dele a ciência que nele estava contida, acaba por tomar as idéias como objeto de estudo. com efeito, a principal matériada sua sociologia é o progresso da humanidade no tempo. Parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano, a qual consiste numa realização sempre maiscompleta da natureza humana; e preocupa se em encontrar a ordem desta evolução. Ora. supondo que esta evolução existe, só o poderemos demonstrar quando dispusermosde uma verdadeira ciência. Comte não poderia, portanto, considerar essa evolução como objeto de pesquisas senão definindo-a como uma concepção do espírito e nãocomo uma coisa. com efeito, não se provou a existência desse progresso da humanidade. O que existe, a única coisa que se pode observar, são sociedades particularesque nascem, que se desenvolvem e que morrem independentemente umas das outras. Se, além disso, se considera que as mais recentes continuam as que as precederam,então cada tipo superior poderá ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, com alguns acrescentos; poder-se-ia, portanto, coloca lastopo a topo. por assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada poderia ser encarada como

p. 97representativa da humanidade. Mas os fatos não se apresentam com tanta simplicidade. Um povo que substitui um outro não é apenas um prolongamento deste último comalguns caracteres novos: é diferente, tem propriedades a mais e outras a menos; constitui uma individualidade nova e todas estas individualidades distintas, sendoheterogêneas, não podem fundir-se numa mesma série contínua nem numa série única, pois uma série de sociedades não pode ser figurada por uma linha geométrica, parecendose mais com uma árvore cujos ramos têm sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou a noção que tinha do desenvolvimento histórico, e que não diferia muito da noçãovulgar, pelo próprio desenvolvimento. Vista de longe, com efeito, a história toma esta aparência enganadora; só nos apercebemos dos indivíduos que se sucedem unsaos outros e que caminham todos na mesma direção porque têm uma natureza comum. Como aliás não se concebe que a evolução social possa ser outra coisa para além dodesenvolvimento de uma idéia humana, é perfeitamente natural defini-la pela idéia que os homens dela têm. Ora, procedendo deste modo, não só permanecemos na ideologia

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como damos à sociologia, como objeto, um conceito que não tem nada de sociológico.Spencer não aceita este conceito mas o substitui por um outro formado do mesmo modo. Faz das sociedades, não da humanidade, o objeto da ciência; mas dá das primeirasuma definição que as afasta imediatamente pondo em seu lugar a prenoção que delas tem. Spencer afirma, como proposição evidente, que "uma sociedade só existe a partirdo momento em que à justaposição se junta uma cooperação ", só assim uma união de indivíduos se transforma em sociedade propriamente dita.18 Depois, partindo doprincípio de que a cooperação é a essência da vida social, divide as sociedades em duas classes segundo a natureza da cooperação nelas dominante. "Há uma cooperaçãoespontânea que se efetua sem premeditação quando se tenta atingir fins de caráter privado; e há uma cooperação conscientemente instituída que supõe fins de interessepúblico nitidamente reconhecidos. "1 9 As primeiras Spencer dá o nome de sociedades industriais; às segundas, o de sociedades militares; e pode-se dizer que estaidéia é a mãe da sua sociologia.Mas esta definição inicial enuncia como uma coisa aquilo que não é mais do que um fruto da sua imaginação. Apresenta-se, com efeito, como a expressão de um fatoimediatamente visível e cuja observação basta para provar, visto

surgir-nos como um axioma da ciência. E, no entanto, é impossível saber por uma simples inspeção se realmente a vida social se pode reduzir à cooperação. Tal atitudenão é legítima cientificamente a menos que se passem em revista todas as manifestações da existência coletiva e se conclua que todas elas são formas diversas decooperação. Trata-se, portanto, de uma certa maneira de conceber a realidade social que se vai substituir a essa mesma realidade.20 O que se define não é a sociedademas a idéia que dela faz Spencer. E se não sente qualquer escrúpulo em proceder deste modo é porque, para ele, a sociedade não passa de realização de uma idéia,neste caso a idéia de cooperação.21 Seria fácil mostrar que, em cada um dos problemas particulares que aborda, o seu método é o mesmo. Assim, ainda que pretendaproceder empiricamente, como os fatos acumulados na sua sociologia são mais usados para ilustrar análises de noções do que para descrever e explicar as coisas, parecemsó existir para representarem o papel de argumentos. Na realidade, tudo o que1 * Sociolovu; tradução francesa. in. págs. 331-332. y : ^.^, ,t f. t-;. ;_-19Sociologie, in, pág. 332.20 Concepção, aliás, controversa. (.Ver Divisão do Trabalho Social, II, 2, § 4.)21 "A cooperação não poderia, portanto, existir sem a sociedade, e é o fim que esta se propõe." (Princípios de Sociologia, in, pág. 332.)

p. 98há de essencial na sua doutrina pode ser imediatamente deduzido da sua definição de sociedade e das diferentes formas de cooperação, visto que, se tivermos possibilidadesde escolher apenas entre uma cooperação tiranicamente imposta e uma cooperação livre e espontânea, é evidente que esta última será o ideal para o qual a humanidadetende e deve tender.Não é apenas na base da ciência que se encontram estas noções vulgares; encontramo-las a cada instante na trama dos raciocínios. No estado atual dos nossos conhecimentos,não sabemos com exatidão o que é Estado, soberania, liberdade política, democracia, socialismo, comunismo, etc.; o método aconselha que não utilizemos estes conceitos,enquanto não forem cientificamente constituídos. No entanto, as palavras que os exprimem aparecem incessantemente nas discussões dos sociólogos. Empregam-se correntementee com segurança como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas quando, na verdade, não evocam em nós senão noções confusas, misturas indistintas deimpressões vagas, preconceitos e paixões. Troçamos hoje em dia dos singulares raciocínios que construíam os médicos da Idade Média com as noções de quente, frio,úmido ou seco, e não nos apercebemos de que continuamos a aplicar o mesmo método a uma ordem de fenômenos que também não o comporta, tendo em vista a sua extremacomplexidade.Nos ramos especiais da sociologia o caráter ideológico é ainda mais acentuado.É, sobretudo, o caso da moral. Pode-se dizer, com efeito, que não há um único sistema em que ela não seja representada como simples desenvolvimento de uma idéiainicial que a conteria em potência, na sua totalidade. Esta idéia, segundo uns encontra-se já feita no íntimo do homem desde que nasce; outros, pelo contrário, entendemque ela se forma mais ou menos lentamente no decurso da história. Mas, para uns como para outros, para os empiristas como para os racionalistas, essa idéia é o quehá de mais verdadeiramente real na moral. Quanto às regras jurídicas e morais, afirma-se que elas não têm existência por si próprias, que se resumem à tal noçãofundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificadas segundo os casos. A partir daqui, o objeto da moral não poderia ser este sistema depreceitos sem realidade, mas sim a idéia da qual decorrem e de que não passam de aplicações várias. Do mesmo modo, todas as questões que à ética vulgarmente se põemdizem respeito, não a coisas, mas a idéias; trata-se de saber em que consiste

a idéia do direito, a idéia da moral, e não qual é a natureza da moral e do direito em si. Os moralistas não chegaram ainda à simples concepção de que, tal comoa nossa representação das coisas sensíveis vem dessas mesmas coisas e as exprime mais ou menos exatamente, a nossa representação da moral vem do próprio espetáculodas regras que funcionam sob os nossos olhos e as representa esquematicamente; por conseqüência, a matéria da ciência é formada por estas regras e não pela visãosumária que delas temos, do mesmo modo que a física tem por objeto os corpos tal qual existem e não a idéia que deles faz a pessoa vulgar. Daqui resulta que se tomepor base da moral o que é apenas o seu cume, a saber, a maneira segundo a qual ela se prolonga nas consciências individuais e aí ressoa. E não é só nos problemasmais gerais da ciência que este método é seguido, mas também nas questões especiais. Das idéias essenciais que primeiro estuda, o moralista passa às idéias secundáriasde família, de pátria, de responsabilidade, de caridade, de justiça; e é sempre às idéias que ele aplica a sua reflexão.O mesmo se passa com a economia política. Esta tem por objeto, diz Stuart Mill, os fatos sociais que se executam principalmente, ou exclusivamente, visando à aquisiçãodas riquezas.22 Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser designados comoZ-22 Sistema de Lógica, in, pág. 496.

p. 99coisas à observação do investigador, seria necessário, pelo menos, que se pudesse indicar qual o sinal que permite identificar os fatos que satisfazem esta condição.Ora, no início de uma ciência, não podemos sequer afirmar que tais fatos existem, e muito menos nomeá-los. Em toda a ordem de pesquisas, com efeito, é apenas quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que se pode definir o fim para o qual tendem. Não há problema mais complexo nem mais insuscetível de ser abreviado logo de início. Nada, portanto, nos assegura de antemão que haja uma esfera de atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente este papel preponderante. Logo, a matéria da economia política, assim compreendida, não é feita de realidades que se possam apontar a dedo, mas de simples hipóteses, de puras concepções mentais, de fatos que o economista concebe em íntima relação com um fim considerado. Stuart Mill tentou, por exemplo, estudar aquilo a que chama produção. Logo à partida crê poder enumerar os principais agentes que participam na produção, e julga poder analisá-los. Isto significa que não reconhece a sua existência observando as condições de que depende o objeto em estudo, pois, nesse caso. teria começado por expor as experiências que o levaram a essa conclusão. Se logo no início da investigação, e em algumas palavras, propõe uma forma de classificar, devemos concluir que a obteve por uma simples análise lógica. Parte da idéia de produção; ao decompô-la verifica que ela implica logicamente as idéias de forças naturais, de trabalho, de instrumento ou de capital e trata em seguida, pelo mesmo processo, estas idéias derivadas.23A mais fundamental de todas as teorias econômicas, a do valor, é manifestamente construída segundo o mesmo método. Se o valor fosse, aí, estudado como na realidade o deve ser, o economista indicaria primeiro como é possível reconhecer o objeto a que se dá este nome; em seguida, classificaria as suas espécies, procuraria por induções metódicas as causas das suas variações, compararia enfim estes diversos resultados para deles tirar uma fórmula geral. A teoria só deveria surgir quando a ciência tivesse já sido levada bastante longe. Em vez disso, encontramo-la desde o princípio... O economista contenta-se em recolher a idéia que tem do valor, quer dizer, de um objeto suscetível de ser trocado; e afirma que ela implica a idéia do útil, do raro, etc., construindo uma definição com estes produtos da sua análise. É verdade que

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essa teoria é confirmada por alguns exemplos; mas. quando se pensa nos incontáveis fatos a que essa teoria se refere, qual é o valor demonstrativo dos fatos, necessariamentebastante raros, que nos são apresentados?Também na economia política, como na moral, a parte de investigação científica é bastante restrita; a da arte, preponderante. Na moral, a parte teórica está reduzidaa algumas discussões sobre a idéia do dever, do bem e do direito, especulações abstratas que não constituem uma ciência propriamente dita, uma vez que não têm porobjeto determinar a regra suprema da moralidade, mas o que esta deva ser. Do mesmo modo, o que ocupa mais lugar nas investigações econômicas é a questão de saber,por exemplo, se a sociedade deve ser organizada segundo as concepções dos individualistas ou segundo as dos socialistas; se é melhor que o Estado intervenha nasrelações industriais e comerciais ou que as abandone inteiramente à Iniciativa privada; se o sistema monetário deve ser o monometalismo ou o bimetalismo. etc., etc.As leis propriamente ditas são pouco numerosas; mesmo aquelas a que temos o costume de assim chamar não merecem23 Esta característica ressalta das próprias expressões que os economistas empregam. Trata se sempre de idéias, da idéia de útil. de poupança, de investimento, dedespesa. (Vei: Gide. Principiou i/c l conoinia Política, li v. in. cad. I, § l:cad. in, § 1.)

p. 100tal qualificação: não são mais do que máximas a orientar a nossa ação, preceitos práticos disfarçados. Vejamos, por exemplo, a famosa lei da oferta e da procura.Nunca foi estabelecida indutivamente, como expressão da realidade econômica; jamais foi instituída uma experiência, uma comparação metódica, para estabelecer que.de fato, é segundo esta lei que se processam as relações econômicas. Tudo quanto se pôde fazer e tudo quanto se fez foi afirmar que os indivíduos devem procederassim para orientar bem os seus interesses; toda e qualquer maneira de proceder diferente seria prejudicial e implicaria da parte dos que a ela se prestassem umaverdadeira aberração lógica. É lógico que as indústrias mais produtivas sejam as mais procuradas; que os detentores dos produtos mais procurados e mais raros osvendam a um preço mais elevado. Mas esta necessidade lógica não se parece em nada com a necessidade que as verdadeiras leis da natureza apresentam. Estas exprimemas relações segundo as quais os fatos se encadeiam real mente, não o modo como seria bom que eles se encadeassem.O que dizemos desta lei podemos repeti-lo acerca de todas as que a escola econômica ortodoxa qualifica como naturais e que, aliás, são meros casos particulares da precedente. São naturais, se assim quisermos, no sentido em que enunciam os meios que é natural empregar para atingir um dado fim; mas não devem ser assim chamadas se, por lei natural, se entende toda maneira de ser da natureza indutivamente constatada. Em suma, constituem meros conselhos de sabedoria prática e, se se pôde, mais ou menos especiosamente, apresentá-los como a própria expressão da realidade, foi porque, com razão ou sem ela. se acreditou que tais conselhos eram seguidos pela generalidade dos homens e na generalidade dos casos.No entanto, os fenômenos sociais são objetos e devem ser tratados como tais. Para demonstrar esta proposição não é necessário filosofar sobre a sua natureza nemdiscutii as analogias que apresentam com os fenômenos dos reinos inferiores. Basta constatar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo. É objeto, com efeito,tudo o que é dado. tudo o que se oferece, ou antes, se impõe à observação. Tratar dos fenômenos como coisas é tratá-los na qualidade de data que constituem o pontode partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esta característica. O que nos é dado não é a idéia que

os homens têm do valor, visto que ela é inacessível; são os valo rés que se trocam realmente no decurso das relações econômicas. Não e uma ou outra concepção deideal moral; e o conjunto das regras que determinam efetivamente a condu tá, Não é a idéia do útil ou da riqueza; é todo o detalhe da organização econômica. É possívelque a sociedade proceda a um mero desenvolvimento de certas noções; mas. mesmo quj isso aconteça, essas noções não são dadas imediatamente. Logo, não as podemosatingir diretamente mas sim através da realidade fenomenal que as exprime. Não sabemos apriori quais as idéias que estão na origem das diversas correntes entre asquais se partilha a vida social, nem sequer se existem; só depois de as ter seguido até às fontes saberemos de onde provém.Devemos, portanto, considerar os fenômenos sociais em si mesmos, desligados dos sujeitos conscientes que, eventualmente, possam ter as suas representações; e precisoestudá-los de fora, como coisas exteriores, porquanto é nesta qualidade que eles se nos apresemam. Se esta exterioridade não é senão aparente, a ilusão dissipar-se-áà medida que a ciência for avançando e ver se-á, por assim dizer, o exterior entrar no interior. Mas a solução não pode ser inventada previamente; mesmo que os fenômenossociais não tenham todas as características de um objeto, deveremos primeiramente tratá-los como se as tivessem. Esta regra aplica se a toda a realidade social enão admite quaisquer exceções. Mesmo os fenômenos que pareçam consistir em simples airanjos aitificiais devem

p. 101ser considerados deste ponto de vista. O caráter convencional de uma prática ou de uma instituição nunca deve ser presumido. Se, aliás, nos for permitido invocara nossa experiência pessoal, julgamos poder assegurar que, procedendo deste modo, teremos muitas vezes a satisfação de ver os fatos aparentemente mais arbitráriosapresentarem, na seqüência de uma observação mais atenta das suas características de constância e regularidade, os sintomas de uma verdadeira objetividade.De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito anteriormente sobre as características distintivas do fato social basta para nos tranqüilizar acerca da naturezadesta objetividade e para nos provar que ela não é ilusória. com efeito, reconhece-se uma coisa por um dado sinal característico; ela não pode ser modificada porum simples decreto da vontade. Ela não é evidentemente refratária a toda modificação; mas para que haia uma mudança não basta que a desejemos, é preciso ainda umesforço mais ou menos laborioso tendente a vencer a resistência que ela nos opõe e que, aliás, nem sempre pode ser vencida. Ora, nós já vimos que os fatos sociaistêm esta propriedade. Longe de serem um produto da nossa vontade, determinam-na do exterior; são como que moldes nos quais temos a necessidade de vazar as nossasações. Freqüentemente essa necessidade é tal que não podemos escapar-lhe; mas, mesmo quando conseguimos triunfar dos fatos sociais, a oposição que encontramos bastapara nos advertir de que estamos em presença de algo que não depende de nós. Portanto, considerando os fenômenos sociais como coisas, não faremos mais do que conformarmo-noscom a sua natureza.Em definitivo, a reforma que se trata de introduzir na sociologia é idêntica, ponto por ponto, à que transformou a psicologia nestes últimos trinta anos. Do mesmomodo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são fatos naturais sem, no entanto, os tratarem como coisas, também as diferentes escolas empiristas tinham,desde havia muito, reconhecido o caráter natural dos fenômenos psicológicos continuando a aplicarlhes um método puramente ideológico. com efeito, também os empiristas,tal como os seus opositores, procediam exclusivamente por introspecção. Ora, os fatos que observamos em nós mesmos são demasiado raros, demasiado fugidios, demasiadomaleáveis para poderem impor-se às noções que o hábito fixou em nós e para se poder fixar-lhes as leis. Quando, portanto, estas noções não são submetidas a um outrocontrole, nada lhes faz contrapeso:

por conseguinte, tomam o lugar dos fatos e constituem a matéria da ciência.Nem Locke nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. Não estudaram a sensação, mas sim uma certa idéia de sensação. É por isso que. apesarde terem preparado o surgimento da psicologia científica, esta só nasce verdadeiramente muito mais tarde, quando se chegou à concepção de que os estados de consciênciapodem e devem ser considerados a partir do exterior e não do ponto de vista da cons ciência que os experimenta. Tal é a grande revolução que se efetuou neste campode estudos. Todos os procedimentos particulares, todos os métodos novos que enriqueceram esta ciência não são mais do que meios diversos de realizar mais completamenteessa idéia fundamental. É este mesmo progresso que resta à sociologia fazer; é necessário que ela passe do estado subjetivo, que ainda não ultrapassou, à fase objetiva.Esta passagem é, aliás, menos difícil de efetuar do que na psicologia. Na realidade. os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do sujeito do qual nãoparecem sequer separáveis. Interiores por definição, parece não ser possível tratá-los como exteriores senão violentando a sua natureza. Para os poder considerarassim, é necessário um esforço de abstração e todo um conjunto de procedimentos e artifícios. Pelo contrário, os fatos naturais têm imediatamente todas as característicasda coisa. O direito existe nos

p. 102códigos, os movimentos da vida cotidiana inscrevem-se nos números da estatística, os monumentos na história, as modas nos fatos, os gostos nas obras de arte. Tendemem virtude da sua própria natureza a constituir-se fora das consciências individuais, uma vez que as dominam. Para os ver sob o aspecto de coisa não é, portanto,

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necessário torturálos engenhosamente. Deste ponto de vista a sociologia tem sobre a psicologia uma séria vantagem que não tinha sido percebida até aqui e que deveapressar o seu desenvolvi-, mento. Os fatos são, talvez, mais difíceis de interpretar, uma vez que são mais comple xos, mas são mais fáceis de atingir. A psicologiatem dificuldade em os elaborar e em i atingi-los. . . Quando este princípio do método científico for unanimemente reconhecido e praticado, veremos a sociologia progredircom uma rapidez que a lentidão atual do seu desenvolvimento não faz de modo algum prever, e conquistar o avanço que a psicologia agora apresenta mas que deve unicamenteà sua anterioridade histórica.2 4

II

Mas, a experiência dos nossos antecessores mostrou-nos que, para assegurar a realização prática da verdade acabada de estabelecer, não basta dar-lhe uma demonstraçãoteórica nem assimilá-la. As barreiras que o espírito naturalmente lhe opõe são de tal modo fortes que somos inevitavelmente conduzidos a antigos erros se não tivermosa preocupação de nos submeter a uma disciplina rigorosa, cujas regras principais, corolários da precedente, passamos a formular:1º — É necessário afastar sistematicamente todas as noções prévias. Torna-se necessário uma demonstração especial desta regra, pois resulta de tudo o que anteriormente dissemos. Constitui, aliás, a base de todos os métodos científicos. A dúvida meto dica de Descartes não passa, no fundo, de mais uma das suas aplicações. Se,no momento em que se dispôs a fundar uma ciência. Descartes pós em causa todas as idéias anteriores, e porque pretendeu utilizar apenas conceitos cientificamenteelaborados, isto é, construídos segundo o método por ele instituído; todos os que provierem de outra origem devem, pois, ser rejeitados, pelo menos provisoriamente.Vimos já que a teoria dos ídolos tem, em Bacon, o mesmo sentido. As duas grandes doutrinas, tantas vezes consideradas como opostas, concordam neste ponto essencial.É portanto necessário que o sociólogo, quer no momento em que determina o objeto das

suas pesquisas, quer no decurso das suas demonstrações, se abstenha resolutamente de empregar conceitos formados fora da ciência e pensados em função de necessidadesque nada têm de científico. É preciso que o sociólogo se liberte das falsas evidências que dominam o espírito do vulgo, que sacuda de uma vez por todas o jugo dascategorias empíricas que uma longa habituação acaba, muitas vezes, por tornar tirânico. Se por vezes a necessidade o obriga a servir-se delas, que o faça com aconsciência do seu pouco valor, para não lhes atribuir, na sua doutrina, um papel que não mereçam.O que torna esta depuração particularmente difícil em sociologia é o fato de o sentimento entrar muitas vezes em jogo. Apaixonamo-nos freqüentemente pelas nossascrenças políticas e religiosas, bem como pelas nossas práticas morais, de um modo muito diferente do adotado para com as coisas do mundo físico; este caráter passionaltende a24. É verdade que a maior complexidade dos fatos sociais torna a sua ciência mais difícil. Mas. em compen sação. precisamente porque a sociologia foi a última :iaparecer, está habilitada a aproveitar os progressos realizados pelas ciências anteriores e a instruir se nas suas escolas. Esta utilização das experiências feitasnão pode deixar de acelerar o seu desenvolvimento.

p. 103influir na maneira como concebemos e explicamos tais crenças. A forma como as conce bemos e os objetos que delas fazem parte são-nos de tal modo gratos que adquiremuma autoridade difícil de contradizer. Qualquer opinião que as perturbe é tratada como inimiga. Se uma proposição não está de acordo com a idéia que temos do patriotismo ou da dignidade individual, por exemplo, é negada quaisquer que sejam as provas sobre que assenta. Custa-nos admitir que seja verdadeira, e a nossa atitude é rejeitá-la. A paixão, para se justificar, não tem aliás problemas em sugerir razões que facilmente adotamos como decisivas. Pode até dar-se o caso de essas noções terem um tal prestígio que nem sempre tolerem o exame científico. O simples fato de serem submetidas, conjuntamente com os fenômenos afins, a uma análise fria e seca revolta certos espíritos. Quem se decidir a estudar a moral como uma realidade exterior será visto por esses espíritos delicados como um ser sem moral. Longe de admitir que esses sentimentos relevam da ciência, crê-se ser a eles que deve recorrer-se para fazer a ciência das coisas a que dizem respeito. Como diz um eloqüente historiador das religiões: "Desgraça ao sábio que aborde as coisas de Deus sem ter no fundo da sua consciência, na mais profunda e indestrutível camada do seu ser, onde descansa a alma dos antepassados, um santuário desconhecido do qual se eleve por instantes um perfume de incenso, um salmo, um grito doloroso ou triunfal que em criança lançou para o céu, na esteira dos seus irmãos, e o coloque cm súbita comunhão com os profetas de outrora''.2 5Não vale a pena erguermo-nos com demasiada violência contra esta doutrina mística que. como todo o misticismo, não passa de um empirismo disfarçado, negador da ciência. Os sentimentos que têm por objeto as coisas sociais não gozam de privilégios relativamente aos outros, porquanto possuem a mesma origem, isto é, também se formaram historicamente. São um produto da experiência humana, mas de uma experiência confusa e desorganizada. Não se devem a uma antecipação transcendental da realidade, mas a toda uma gama de impressões e de emoções desordenadamente acumuladas, ao sabor das circunstâncias, sem interpretações metódicas. Longe de nos trazerem esclarecimentos superiores aos racionais, tais sentimentos são na verdade fortes, mas confusos. Conceder-lhes grande preponderância seria conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas, seria condenar-se a uma oratória infrutífera.

Uma ciência assim fundamentada só pode satisfazer os espíritos que preferem pensar com a sensibilidade a pensar com o entendimento, que preferem as sínteses imediatase confusas da sensação às análises pacientes e esclarecedoras da razão. O sentimento é objeto de ciência, e não critério da verdade científica. De resto, todas asciências encontraram de início resistências análogas. Houve tempos em que os sentimentos para com as coisas do mundo físico, elas próprias dotadas de um caráterreligioso ou moral, se opunham com não menos ímpeto ao estabelecimento das ciências físicas. Podemos portanto acreditar que, expulso de ciência em ciência, estepreconceito acabará por desaparecer da própria sociologia, seu último refúgio, para deixar o terreno livre ao estudioso.2º — Mas a regra precedente é totalmente negativa. Ensina ao sociólogo a escapar ao império das noções vulgares e a dar atenção aos fatos, mas não diz como elese deve apoderar dos fatos para proceder ao seu estudo objetivo.Todas as investigações científicas se debruçam sobre um determinado grupo de fenômenos abrangidos por uma mesma definição. A primeira tarefa do sociólogo deve ser,portanto, a de definir aquilo que irá tratar, para que todos saibam, incluindo ele próprio, o que está em causa. Esta é a primeira e a mais indispensável das condiçõespara 26. J. Darmesteter, Os Profetas de Israel, pág. 9.

p. 104o estabelecimento de qualquer prova e de qualquer verificação: uma teoria só pode ser controlada se se conhecerem os fatos a que se reporta. Para além disso, dadoque é atra vês desta definição inicial que se estabelece o objeto de uma ciência, esse objeto será ou não uma coisa, consoante a forma como tal definição for feita.Para que seja objetiva, é necessário que exprima os fenômenos não em função de uma idéia concebida pelo espírito mas sim das suas propriedades concretas, medianteuma caracterização baseada num elemento integrante da sua natureza e não em conformidade com uma noção mais ou menos ideal. Ora, no momento em que a pesquisa seinicia e os fatos ainda não foram submetidos a qualquer elaboração, as únicas características a que podemos recorrer são as imediatamente visíveis. As que se situammais profundamente são, sem dúvida, mais essenciais e de maior valor explicativo; mas são desconhecidas nesta fase da ciência e só podem ser antecipadas se substituirmosa realidade por um conceito qualquer do espírito. É portanto entre as primeiras características que deve procurar-se a matéria desta definição fundamental. Claroque esta definição deverá compreender, sem qualquer exceção ou distinção, todos os fenômenos que apresentem essas mesmas características, porquanto não dispomosainda de nenhum meio para as selecionar. Tais propriedades são. nesta etapa, tudo o que sabemos do real, por conseguinte, devem determinar soberanamente a maneirade agrupar os fatos. Como não há outro critério que possa, mesmo parcialmente, suspender os efeitos do precedente, adota-se a seguinte regra: Tomar sempre para objetode investigação um grupo de fenômenos previamente definidos por certas características exteriores que lhes sejam comuns, e incluir na mesma investigação todos osque correspondam a esta definição. Conside rando, por exemplo, o conjunto dos atos que apresentam a característica exterior comum de, uma vez executados, determinarempor parte da sociedade a reação particular a que se chama pena, constituímo los num grupo sui generis a que impomos a rubrica genérica de crime; os atos assim definidos

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formam o objeto de uma ciência especial, a criminolo gia. Do mesmo modo, no seio de todas as sociedades conhecidas constata se a existência de uma sociedade parcialreconhecível pela característica externa de ser composta por indivíduos na sua maioria consanguíneos e unidos

entre si por laços jurídicos; os fatos que lhes são afins formam um grupo particular a que damos o nome de fenômenos da vida doméstica; chamamos família a todosos agregados deste tipo e fazemos da família assim definida o objeto de uma investigação especial que ainda não recebeu uma denomi nação específica na terminologiasociológica. Posteriormente, ao passar da família em geral para os diferentes tipos familiares, aplicar-se-á a mesma regra. Quando se abordar, por exemplo, o estudodo clã, da família matriarcal ou da família patriarcal, começar-seá por defini-los segundo o mesmo método. O objeto de cada problema, quer seja geral quer seja particular,deve ser estabelecido de acordo com o mesmo princípio.Procedendo desta maneira, o sociólogo radica-se, desde a primeira tentativa, na realidade. Esta classificação dos fatos não depende efetivamente dele, dos aspectosparticu lares do seu espírito, mas da natureza das coisas. A característica que os engloba nesta ou naquela categoria pode ser reconhecida por todos e as afirmaçõesde cada observador podem ser controladas pelos restantes. É certo que a noção assim constituída nem sem pré concorda com a noção comum. Assim, para o senso comum,o livre pensamento ou as faltas de etiqueta, tão regular e severamente punidos em tantas sociedades, não são olhados como crimes mesmo relativamente a essas sociedades.Do mesmo modo. um clã não é uma família na acepção usual da palavra. Mas como o que está em causa não é a simples questão de descobrir um modo que nos permita encontrarcom suficiente segu rança os fatos a que se aplicam as palavras da língua corrente e as idéias que elas tradu-

p. 105zem, o que se impõe é formar com o auxílio de todas as peças conceitos novos, apropriados às necessidades da ciência e expressos através de uma terminologia especial.Não é que o conceito vulgar seja inútil ao investigador, pois serve-lhe de indicador. Ele informa-nos da existência de conjuntos de fenômenos reunidos sob um mesmonome e, conseqüentemente, devendo possuir características comuns; e como nunca existe sem ter tido um qualquer contato com os fenômenos, o conceito vulgar indica-nospor vezes, embora grosseiramente, qual a direção em que os fenômenos devem ser procurados. Contudo, sendo de natureza grosseira, é perfeitamente natural que nãocoincida exatamente com o conceito científico a que serviu de veículo.2 6Por mais evidente e mais importante que seja esta regra, nunca é observada em sociologia. Precisamente porque ela se ocupa de coisas a que nos referimos incessantemente,como família, propriedade, crime, etc., parece, na maioria das vezes, inútil ao sociólogo dar-lhes uma definição prévia e rigorosa. Estamos de tal modo habituadosa servir-nos dessas palavras no decurso das conversas, que parece inútil precisar o sentido em que as tomamos. Atribuímos-lhes simplesmente a noção comum. Ora, estaé freqüentemente ambígua, e tal ambigüidade faz com que se reúnam sob um mesmo nome, e numa mesma explicação, coisas efetivamente muito diferentes. Daqui resultaminextricáveis confusões. Existem, por exemplo, duas espécies de uniões monogámicas: umas de fato e outras de direito. Nas primeiras, o marido tem apenas uma mulher,ainda que juridicamente possa ter mais; nas segundas, é-lhe legalmente proibido ser polígamo. A monogamia encontra-se em muitas espécies animais e em certas sociedadesinferiores, não no estado esporádico, mas com a mesma generalidade que teria se fosse imposta por lei. Quando a população se encontra dispersa numa vasta superfície,a trama social é muito frouxa e, por conseguinte, os indivíduos vivem isolados uns dos outros. Logo, cada homem procura naturalmente encontrar uma mulher, e só uma.porque, nesse estado de isolamento, é-lhe difícil ter várias. A monogamia obrigatória, peio contrário, só se observa nas sociedades mais complexas. Estas duas espéciesde sociedades conjugais têm, portanto, um significado muito diferente, existindo no entanto uma só palavra para as desig nar; diz-se, correntemente, de certos animaisque são monogâmicos, ainda que não haja neles nada que se pareça com uma obrigação jundica. Ora,

Spencer. ao abordar o casamento, emprega a palavra monogamia sem a definir, com o seu sentido usual e equívoco. Daí resulta o fato de a evolução do casamento lheparecer apresentar uma incompreen sível anomalia, uma vez que julga observar a forma superior da união sexual desde as primeiras fases do desenvolvimento histórico,parecendo desaparecer no período intermédio para reaparecer em seguida. Conclui daqui que não há relação regular entre o progresso social em geral e o avanço progressivopara um tipo perfeito de vida familiar. Uma definição oportuna teria evitado este erro.2 7Outros casos há em que se toma o cuidado de definir o objeto do qual se ocupa a investigação; mas, era vez de incluir e agrupar na definição, sob a mesma rubrica,todos* e Na prática, é sempre do conceito vulgar e da palavra vulgar que se pane. Procuram se. entre as coisas que conota confusamcnte essa palavra, as que apresentemcaracterísticas exteriores comuns. Sc estas existirem e se o conceito formado pelo agrupamento dos fatos assim aproximados coincide, se não totalmente (o que é raro),pelo menos na maior parte dos casos, com o conceito vulgar, poder-se á continuar a designar o p'imeiro pela mesma palavra que designa o segundo e conservar na ciênciaa expressão usada na língua cor rente. Mas se o afastamento é demasiado importante, se a noção comum confunde uma pluralidade de noções distintas, impõe se a criaçãode termos novos e específicos.2 7 Foi esta mesma ausência de definição que conduziu, por vezes, à afirmação de que a democracia se encontra no começo e no fim da história. A. verdade é que ademocracia primitiva e a de hoje são muito diferentes uma da outra.

p. 106os fenômenos com as mesmas propriedades exteriores, procede se a uma seleção. Escolhem-se alguns, uma espécie de elite, que são olhados como os únicos a ter direitoa tais características. Quanto aos outros, consideram-se como tendo usurpado esses sinais característicos e não são levados em linha de conta. Mas é fácil de verque, deste modo, só pode conseguir-se uma noção subjetiva e truncada. Tal eliminação, com efeito, só pode ser feita mediante uma idéia preconcebida, pois, nos primordiosde uma ciência, não houve ainda uma investigação que pudesse estabelecer a natureza dessa usurpação. supondo-a possível. Os fenômenos escolhidos só podem ter sidoretidos por serem, mais que os outros, conformes à concepção ideal existente desse tipo de realidade. Garofalo, por exemplo, no início da sua Criminologia demonstrabastante bem que o ponto de partida desta ciência deve ser "a noção sociológica do crime".28 Somente, para constituir esta noção, não compara indistintamente todosos atos que, nos diferentes tipos sociais, foram reprimidos por penas regulares, mas apenas alguns deles, a saber, os que ofendem a parte imutável do sentido moral.Quanto aos sentimentos morais que desapareceram com a evolução, não lhe parecem baseados na natureza das coisas pelo fato de não terem conseguido manter-se; porconseguinte, os atos que foram considerados criminosos por os violarem, parecem-lhe dever exclusivamente esta denominação a circunstâncias acidentais e mais ou menospatológicas. Mas é em virtude de uma concepção perfeitamente pessoal de moral que ele procede a esta eliminação. Parte da idéia de que a evolução moral, tomada nasua fonte, ou próximo dela. comporta toda espécie de escórias e impurezas e as vai eliminando progressivamente, só tendo conseguido hoje desembaraçar-se de todosos elementos adventícios que, primitivamente, perturbavam o seu curso. Mas este princípio não é nem um axioma evidente, nem uma verdade demonstrada; não passa deuma hipótese sem qualquer justificação. As partes variáveis do sentido moral não se baseiam menos na natureza das coisas do que as partes imutáveis; as variaçõespor que passaram as primeiras testemunham simplesmente que as próprias coisas variaram. Em zoologia, as formas especiais das espécies inferiores não são encaradascomo menos naturais do que as que se repetem em todos os degraus da escala animal. Do mesmo modo, os atos considerados como crime pelas sociedades primitivas, eque perderam essa qualificação, são realmente criminosos para essas sociedades, tal como os que continuamos a reprimir hoje em dia. Os

primeiros correspondem às condições mutáveis da vida social, e os segundos às condições constantes; mas não são mais artificiais uns do que os outros.Mas, mesmo que esses atos tivessem revestido indevidamente o caráter de crime, mesmo assim não deveriam ser separados radicalmente dos outros; as formas mórbidasde um fenômeno têm a mesma natureza das formas normais e, por conseguinte, devem ser observadas do mesmo modo para lhes determinar a natureza, A doença não se opõeà saúde; são duas variantes do mesmo gênero, que se esclarecem mutuamente. É uma regra desde há muito reconhecida e praticada na biologia e na psicologia, e queo sociólogo não é menos obrigado a respeitar. A menos que se admita que um mesmo fenômeno possa ser devido umas vezes a uma causa e outras a outra, quer dizer, anão ser que se negue o princípio de causalidade, as causas que imprimem a um ato, de uma maneira anormal, o sinal distintivo do crime não poderiam ser de um gênero

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diferente das que produzem normalmente esse mesmo efeito; distinguem-se em grau ou por não agirem num mesmo conjunto de circunstâncias. O crime anormal também é,portanto, um crime. Vemos assim que Garofalo toma por gênero o que é apenas uma espécie ou uma simplesCriminologui, pág. 2.

p. 107variedade. Os fatos a que aplica a sua fórmula da criminalidade só representam uma ínfima minoria dos que a sua fórmula deveria abarcar, pois não convém nem aos crimes religiosos, nem aos crimes contra a etiqueta, o cerimonial, a tradição, etc., que, se desapareceram dos nossos códigos modernos, enchem porém quase todo o direito penal das sociedades anteriores. l' 1- 'f- "'• '•' •'"•«É essa mesma falta de método que permite a certos observadores recusarem aos selvagens toda c qualquer espécie de moralidade.29 Partem da idéia de que nossa moral é a moral; ora, é evidente que ela é desconhecida dos povos primitivos, onde só existe num estado rudimentar. Mas esta definição é arbitrária. Apliquemos a nossa regra: para decidir se um preceito é moral ou não, devemos examinar se apresenta ou não o signo exte rior da moralidade, que consistirá numa sanção repressiva difusa, quer dizer, numa censura da opinião pública que vinga todas as violações do preceito. Sempre que estamos em presença de um fato que apresenta esta característica, qualificamo-lo de moral por que ela prova que o fato é da mesma natureza dos outros fatos morais. Ora, este tipo de regras, além de se encontrar nas sociedades inferiores, é aí mais numeroso do que nas civilizadas. Uma multidão de atos que, atualmente, são abandonados à livre apreciação dos indivíduos, eram então impostos obrigatoriamente. Vemos assim os erros a que somos levados quando damos más definições ou não as damos.Mas definir os fenômenos pelas suas características aparentes não será atribuir às qualidades superficiais uma espécie de preponderância sobre os atributos fundamentais? Não será. por uma verdadeira subversão da ordem lógica, fazer repousar as coisas sobre os seus cumes e não sobre as suas bases? De fato, se definirmos o crime pela pena, expomo-nos quase inevitavelmente a ser acusados de querer fazer derivar o crime da pena ou, segundo uma citação bem conhecida, de ver no cadafalso a origem da vergonha, não no ato expiado. Mas esta censura repousa numa confusão. Posto que a definição cuja regra acabamos de dar surge no início da ciência, nunca poderia ter por objetivo exprimir a essência da realidade; deve somente ajudar-nos a lá chegar mais tarde. Tem por única função pôr-nos em contato com as coisas e, como o nosso espírito só as pode atingir do exterior, é pelo exterior que a definição as exprime. Mas não

as explica: fornece apenas um primeiro ponto de apoio necessário às nossas explicações. Não é decerto a pena que faz o crime, mas é através dela que o crime senos revela exteriormente e é dela que teremos de partir se quisermos compreendê-lo.A objeção só teria fundamento quando estas características exteriores fossem ao mesmo tempo acidentais, quer dizer, não estivessem ligadas às propriedades fundamentais.Nestas condições, a ciência, depois de as ter assinalado, não poderia ir mais longe; não poderia descer mais ao fundo da realidade uma vez que não haveria nenhumarelação entre a superfície e o fundo. Mas, a menos que o princípio da causalidade seja uma palavra vã, quando certos caracteres se encontram identicamente e semexceção alguma em todos os fenômenos de uma certa ordem, podemos estar certos de que estão estreitamente ligados à natureza dos fenômenos e que são solidários comela. Se um dado grupo de atos apresenta a particularidade de estar ligado a uma sanção penal poderemos concluir que existe um laço íntimo entre a pena e os atributosconstitutivos desses atos. Logo, por muito superficiais que sejam, estas propriedades, se forem metodicamente observadas, mostram ao investigador a via que deveseguir para penetrar no fundo das coisas; são o primeiro e indispensável anel da cadeia que a ciência desenrolará seguidamente no decurso das suas explicações.29 Ver Lubbock. As Origens da Civilização, cap. VIII. Mais geralmente ainda, diz-se, o que é incorreto, que as religiões antigas são amorais ou imorais. A verdadeé que elas têm a sua própria moral.

p. 108Visto que o exterior das coisas nos é dado pela sensação, poderemos dizer, em resumo: a ciência, para ser objetiva, deve partir da sensação e não dos conceitos quese formaram sobre ela. É aos dados sensíveis que ela deve pedir os elementos das suas defini cões iniciais. com efeito, basta recordar em que consiste a obra daciência para compreender que ela não pode proceder de outro modo. Necessita de conceitos que exprimam adequadamente as coisas tais como são, e não tais como seriaútil à prática concebe las. Os conceitos que se constituíram fora da sua ação não respondem a esta condição; a ciência deve portanto criar conceitos novos e, paraisso, afastar as noções comuns e as palavras que as exprimem, voltando à sensação, matéria primeira e necessária de todos os conceitos. É da sensação que saem todasas idéias gerais, verdadeiras ou falsas, científicas ou não. O ponto de partida da ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser diferente do ponto de partidado conhecimento vulgar ou prático. As divergências entre esses dois tipos de conhecimento só começam mais tarde, na forma como cada um deles é elaborado.3º— Mas a sensação é facilmente subjetiva. Por isso é de regra, nas ciências naturais, afastar os dados sensíveis que se arriscam a ser demasiado pessoais, retendoexclusivamente os que apresentam um suficiente grau de objetividade. É assim que o físico substitui as vagas impressões produzidas pela temperatura ou pela eletricidadepor uma representação visual das oscilações do termômetro ou do eletrômetro. O sociólogo é obrigado às mesmas precauções. As características exteriores que lhe permitemdefinir o objeto das suas pesquisas devem ser tão objetivas quanto possível.Podemos pôr como princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de ser objetivamente representados quanto mais livres estiverem dos fatos individuaisque os manifestam.Uma sensação é tanto mais objetiva quanto mais definido estiver o objeto a que diz respeito: porque a condição de toda a objetividade é a existência de um pontode referência, constante e idêntico, com o qual a representação pode ser relacionada e que permite eliminar tudo o que ela tiver de variável, logo. de subjetivo.Se os únicos pontos de refe rência dados forem também variáveis, se são diferentes de si mesmos, falta-nos uma medida comum e nào

temos processo algum de distinguir, nas nossas impressões, o que depende do exterior e o que nós lhes acrescentamos. A vida social, enquanto não conseguir isolar-sedos acontecimentos particulares para se constituir à parte, tem justamente esta propriedade; como estes acontecimentos não têm sempre a mesma fisionomia, são inseparáveisdo observador, comunicam-lhe a sua mobilidade. A vida social consiste então de tendências perpetuamente em via de transformação e que o olhar do observador não conseguefixar. Nestas condições, o investigador não pode abordar o estudo da reali dade social Mas sabemos que a vida social apresenta a particularidade de, sem travar oseu movimento, se cristalizar; além dos atos individuais, os hábitos coletivos exprimemse sob formas definidas, regras jurídicas, morais, ditados populares, fatosde estrutura social, etc. Como estas formas existem de uma maneira permanente, não mudando com as diversas aplicações que delas são feitas, constituem um objetofixo, padrão constante que está sempre à mão do observador e que não dá azo às impressões subjetivas e às observações pessoais. Uma regra de direito é o que é enão há duas maneiras de a perceber. Uma \ez que, por outro lado. estas práticas não são senão práticas da vida social consolidada, é legítimo, salvo indicações emcontrário.30 estudá-la através dessas prática30 Para que jsta substituição não fosse legitima seria preciso, por exemplo, ter razões para acreditar que num dado momento o direito já expnme o verdadeiro estadodas relações sociais.

p. 109Quando, portanto, o sociólogo empreende a exploração de uma qualquer ordem de fatos sociais, deve esforçar-se por considerá-los sob um ângulo em que eles se apresentemisolados das suas manifestações individuais. Foi a partir deste princípio que estuda mos a solidariedade social, as suas formas diversas e a sua evolução atravésdo sistema das regras jurídicas que as exprimem.31 Do mesmo modo, se tentarmos distinguir e cias sificar os diferentes tipos familiares segundo as descrições literáriasque deles nos dão os viajantes e, por vezes, os historiadores, expomo nos a confundir as espécies mais diferen tes, a aproximar os tipos mais afastados Se. pelocontrário, tomarmos para base dessa classificação a constituição jurídica da família e, mais especialmente, o direito sucesso no, teremos um critério objetivo que,sem ser infalível, nos prevenirá, no entanto, contra muitos erros.32 Pretende se classificar as diferentes espécies de crimes? Tentemos reconstruir as maneiras deviver, os costumes profissionais usados nos diferentes mundos do crime, e definamos tantos tipos criminologicos quantas as formas diferentes apresen tadas por estaorganização Para atingir os costumes, as crenças populares, teremos em conta os provérbios, os ditados que os exprimem. Sem duvida, ao proceder assim, deixa mos

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provisoriamente de lado a matéria concreta da vida coletiva, apesar de não termos o direito de postular a sua imnteligibihdade a pnori; mas, se queremos seguir umavia metódica, é preciso estabelecer as primeiras bases da ciência sobre um terreno firme e não sobre areias movediças. Temos de abordar o reino social pelos aspectosem que ele se oferece mais facilmente a investigação científica. Só depois poderemos levar mais longe a investigação e, por aproximações sucessivas, encerrar poucoa pouco essa reah dade fugidia da qual o espírito humano talvez nunca possa apoderar se completamente.

31 Ver Divisão do Trabalho Social, I l32 Cf a nossa Introdução a Sociologia da Família m 4nais da Faculdade de Letras de Bouk /s, ano de1889

p. 110CAPÍTULO TERCEIROREGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE O NORMALE O PATOLÓGICO

Utilidade teórica e prática desta distinção. É preciso que ela seja possível cientificamente para que a ciência possa servir para dirigir a conduta. I — Exame doscritérios correntemente utilizados: a dor não é o sinal distintivo da doença, porque faz parte da saúde, nem a diminuição das probabilidades de sobrevivência, namedida em que por vezes é produzida por fatos normais (velhice, parto, etc.) e não resulta necessariamente da doença; para alem disso, este critério e, na maiorparte das vezes, inaplicável, sobretudo em sociologia. A doença distinguida do estado de saúde como o anormal do normal. O tipo médio ou específico. Necessidadede levar em linha de conta a idade para determinar se o fato é normal ou não. Como esta definição do patoló gico coincide em geral com o conceito corrente de doença,o anormal é o acidental; porque o anormal, em geral, constitui o ser em estado de inferioridade. II — Utilidade que há em verificar os resultados do método precedente,procurando as causas da normalidade do fato, quer diíer, da sua generalidade. Necessidade que há em proceder a esta verificação quando se trata de fatos que se reportama sociedades que não acabaram a sua história. Por que não pode este segundo critério ser usado senão a título complementar e em segundo lugar. Enunciado das regras.in — Aplicação destas regras a quaisquer casos, designadamente à questão do crime. Por que é que a existência de uma criminalidade é um fenômeno normal. Exemplosde erros em que se cai quando não se seguem estas regras. A própria ciência torna-se impossível.A observação, quando guiada pelas regras precedentes, confina duas ordens de fatos bastante diferentes: aqueles que são o que devem ser e aqueles que deveriam serdiferentes daquilo que são, os fenômenos normais e os fenômenos patológicos. Vimos que era necessário englobar uns e outros numa mesma definição prévia ao ato deinvestigar; mas, se em certos aspectos têm natureza idêntica, não deixam de constituir duas variedades diferentes que importa distinguir. Disporá a ciência de meiosque lhe permitam fazer esta distinção?

Esta pergunta é de uma importância fundamental; da resposta que se lhe der dependerá a nossa concepção de ciência, particularmente de ciência do homem. Segundouma teoria que encontra partidários nas escolas mais diversas, a ciência nada nos ensina sobre o que devemos querer. Atribui aos fatos um valor e interesse idênticos;observa-os, explica-os, mas não os valora, não admitindo a existência de fatos censuráveis. A seu ver o bem e o mal não existem. Pode perfeitamente explicar-noso modo como as causas geram os efeitos, mas não os fins que se deve procurar atingir. Para conhecer o que é desejável, somos obrigados a recorrer às sugestões doinconsciente a que podemos chamar sentimento, instinto, impulsos vitais, etc. A ciência, afirma um escritor que já citamos, pode na verdade alumiar o mundo, masos corações, esses, deixa os nas trevas; compete ao coração alumiar se a si próprio. A ciência é assim quase destituída de toda a eficácia prática e, por conseguinte,perde a sua razão de ser; com efeito, qual o sentido de tentarmos conhecer o real se esse conhecimento não tem qualquer utilidade na vida? Poder se á argumentarque, ao revelar-nos as causas dos fenômenos, a ciência nos fornece os meios para os produzirmos à nossa vontade e, conseqüentemente, para realizar os fins que porrazões supracientíficas a vontade humana pretende atingir. Mas. de certo modo. um meio é também um fim, pois para utiliza Io é preciso querê Io tanto como ao própriofim que prepara. Há sempre diferentes vias que levam a um objetivo determinado; portanto, é preciso escolher entre elas. Ora, se a ciência não

p. 111nos diz qual é o melhor objetivo, como poderá dizer-nos qual é a melhor via para o atin gir? Como nos poderia recomendar a via mais rápida em vez da mais econômica,a mais segura em vez da mais simples, ou inversamente? Se não nos pode ajudar a determinar os fins superiores será também impotente quando se trata de escolher osfins secundários e subordinados a que chamamos meios.O método ideológico permite, de fato, escapar a este misticismo, e é aliás deste desejo de fuga que advém a persistência de tal método. Efetivamente, os que o praticamsão demasiado racionalistas para admitir que a conduta humana não tivesse necessidade de ser dirigida através da reflexão; e, no entanto, não viam nos fenômenos,quando tomados em si e independentemente de qualquer dado subjetivo, nada que permitisse classificá-los segundo o valor prático. Parecia portanto que a única maneirade classificá-los consistia em relacioná-los com um conceito que os dominasse; a partir desse momento, a utiliza cão de noções que presidissem à harmonização dosfatos, em vez de deles derivarem, tornou-se indispensável a qualquer sociologia racional. Mas sabemos que, se nessas condições a prática se torna uma prática refletida,a reflexão que se utiliza não é científica.O problema que acabamos de levantar vai permitir-nos reivindicar os direitos da razão sem que caiamos na ideologia. com efeito, tal como para os indivíduos, a saúdeé boa e desejável para as sociedades, ao contrário da doença, que é coisa má e de evitar. Se, portanto, encontrarmos um critério objetivo, inerente aos própriosfatos, que nos per mita distinguir cientificamente a saúde da doença nas diferentes espécies de fenômenos sociais, a ciência terá a possibilidade de dirigir a práticapermanecendo fiel ao método que lhe é específico. É óbvio que, dado que presentemente não lhe é possível atingir o indivíduo, só nos pode fornecer indicações geraisque só podem ser diversificadas na medida em que se entre em contato com o particular através da sensação. A noção de saúde que a ciência pode definir não seráaplicável exatamente a nenhum sujeito individual, pois este conceito só pode ser definido em relação a circunstâncias gerais que não exis tem tais e quais em todasas pessoas; o que não impede que seja um ponto de referência precioso para orientar a conduta. O fato de se ser obrigado a ajusta Io a cada caso

espe cífico não significa que não laja interesse em conhecê-lo. Pelo contrário, constitui a norma que deve servir de base aos nossos raciocínios práticos. Nestascondições, perdese o direito de afirmar que o pensamento é inútil para a ação. Entre a ciência e a arte já não há um abismo; em vez disso, passa-se de uma para aoutra sem solução de continui dade. A ciência só pode descer aos fatos por intermédio da arte; mas é unicamente um prolongamento da ciência. Aliás, podemos perguntarnos se a insuficiência prática desta última não irá diminuindo à medida que as leis que estabelece exprimirem de um modo cada vez mais completo a realidade individual.

I

Habitualmente, o sofrimento é encarado como o sinal da doença e é fato que, em geral, existe uma relação entre estes dois fatores, se bem que a esta relação falteconstância e precisão. Há graves diáteses que são indolores. enquanto que certas perturbações sem importância, como as que resultam de urn grão de carvão que seintroduz num olho, provocam um verdadeiro suplício. Em certos casos, é até a ausência de dor ou mesmo o prazer que constituem sintomas de doença. Há um certo tipode invulnerabi lidade que é patológico. Em circunstâncias em que o homem são sofreria, o neurastènico pode ter uma sensação de prazer cuja natureza mórbida é incontestável.Inversamente, a dor é correlativa de muitos estados tais como a fome, a fadiga, o parto, que são fenôme nos puramente fisiológicos.

p. 112Poderemos então afirmar que a saúde, consistindo num desenvolvimento feliz das forças vitais, se identifica com a perfeita adaptação do organismo ao meio, classificando,pelo contrário, como doença tudo o que perturba esta adaptação? De acordo com o que diremos mais tarde sobre este assunto, não está ainda provado que cada estadodo organismo corresponda a um estado externo. Além disso, e mesmo que este critério fosse realmente probante do estado saudável, seria necessário um outro critérioque o reconhecesse, pois seria forçoso indicar o princípio em função do qual este ou aquele modo de adaptação é mais perfeito do que um outro.Teria esse outro critério que ver com as nossas possibilidades de sobrevivência? A saúde seria assim o estado de um organismo em que essas possibilidades são máximase a doença, pelo contrário, caracterizar-se-ia por tudo o que tem como conseqüência enfraquecê-las. com efeito, e em gera), a doença tem realmente como conseqüênciaum enfraquecimento do organismo. Mas não é apenas ela que produz este efeito. As funções de reprodução, em certas espécies inferiores, implicam fatalmente a morte,

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e mesmo nas espécies mais desenvolvidas implicam sempre certos riscos. No entanto, são normais. A velhice e a infância têm os mesmos efeitos, pois o velho e a criançasão mais acessíveis às causas de destruição. Quer isto dizer que são doentes e que só o adulto representa o tipo são? O domínio da saúde e da fisiologia ver-se-iaassim singularmente restringido. Aliás, se a velhice é já por si uma doença, como distinguir nesse caso o velho são do velho doente? Do mesmo modo. seria necessárioenquadrar a menstruação entre os fenômenos mórbidos; efetivamente, dadas as perturbações que determina, aumenta a vulnerabilidade da mulher face à doença. No entanto,como classificar de doentio um estado cuja ausência ou desaparecimento prematuro constituem incontestavelmente um fenômeno patológico? Racíocina-se neste campo comose, num organismo são, cada detalhe tivesse, por assim dizer, um papel útil a desempenhar, como se cada estado interno respondesse exatamente a uma dada condiçãoexterna e, por conseguinte, contribuísse para assegurar o equilíbrio vital e diminuir os riscos de morte. Ora. é legítimo pensar que certas composições anatômicasou funcionais não servem diretamente para nada, mas existem porque existem, porque não podem deixar de existir dadas as condições gerais da vida. No entanto, nãoas podemos classificar como

mórbidas; porque a doença é antes de mais nada qualquer coisa de evitável que não é inerente à constituição regular do ser vivo. Mas pode acontecer que, em vezde fortalecerem o organismo, estas composições diminuam a capacidade de resistência deste e, por conseguinte, aumentem os riscos de morte.Por outro lado, não é certo que a doença tenha sempre o resultado através do qual a pretendemos definir. Não será verdade que existem inúmeras afecções demasiadoligeiras para que lhes possamos atribuir uma influência sensível sobre as bases vitais do organismo? Mesmo dentro das doenças graves há algumas que não terão conseqüênciasdesastrosas se soubermos lutar contra elas utilizando as armas de que dispomos. O homem que tem perturbações gástricas pode viver tanto tempo como o homem são seseguir uma boa higiene. É sem dúvida obrigado a ter cuidado com a sua pessoa; mas não o somos todos nós? Poderá a vida prolongar-se de outro modo? Cada um de nóstem uma higiene; a do doente não se assemelha à que pratica a média dos homens do seu tempo e do seu meio; mas é a única diferença que, sob este aspecto, existeentre eles. A doença nem sempre nos deixa desamparados, num estado de irremediável desadaptação; obriga-nos simplesmente a adaptarmo-nos de maneira diferente dados nossos semelhantes. Quem nos diz que não há mesmo doenças que afinal se revelam úteis? A varíola que inoculamos a nós próprios através da vacina é uma verdadeiradoença que voluntariamente provocamos e que. no entanto, aumenta as nossas possibilidades de sobrevivência.

p. 113Há talvez muitos outros casos em que a perturbação causada pela doença é insignifí cante quando confrontada com a imunidade assim adquirida.Este critério é inaplicável na maior parte dos casos. Rigorosamente, pode-se determinar que a mortalidade mais baixa que se conhece é apanágio dum grupo determinadode indivíduos; mas não se pode demonstrar a impossibilidade de haver outra mais baixa. Quem nos diz que não seriam possíveis outras combinações que tivessem comoconseqüência diminuí-la ainda mais? Este mínimo real não constitui, portanto, a prova de uma perfeita adaptação nem é, por conseguinte, o índice certo de um estadosaudável. Além disso, é bastante difícil constituir e isolar um grupo de todos os outros de modo a obser var a constituição orgânica de que tem o privilégio e queé a causa presumida desta superioridade. Inversamente, se as probabilidades de sobrevivência do ser se encontram diminuídas quando de uma doença mortal, é difícilfornecer a prova disso quando se trata de uma afecção que não implica diretamente a morte. Efetivamente, só há uma maneira objetiva de provar que certos seres colocadosem condições determinadas têm menos possibilidades de sobreviver do que outros; é a que consiste em provar que, com efeito, a maior parte deles vive menos tempo.Ora. se no que respeita às doenças indivi duais esta demonstração é muitas vezes possível, é absolutamente impraticável na sócio logia. De fato, não possuímos nestecaso o ponto de referência de que dispõe o biologista. a saber, o valor da mortalidade média. Não sabemos sequer com uma exatidão, digamos, simplesmente aproximada,em que momento nasce uma sociedade e em que momento morre. Todos estes problemas, que já na biologia estão longe de estar claramente resolvi dos. permanecem, nasociologia, envoltos em mistério. Aliás, os acontecimentos que se produzem no decorrer da vida social e que se repetem de um modo mais ou menos idên tico em todasas sociedades do mesmo tipo são demasiado variados para que seja possí vel determinar a medida em que um deles contribuiu para o desfecho final. Quando se tratade indivíduos, e devido ao fato de serem muito numerosos, pode-se escolher uma amostra cujos elementos só tenham em comum uma única e mesma anomalia; esta apa receassim isolada de todos os fenômenos concomitantes e pode-se em seguida estudar a natureza da influência que exerce sobre o organismo. Se, por exemplo, um milharde reumáticos, escolhidos ao acaso, apresenta uma mortalidade sensivelmente superior à média, há boas

razões para atribuir este resultado à diátese reumatismal. Mas, como em sociologia cada espécie social só contém um pequeno número de exemplares, o campo das comparaçõesé demasiado restrito para que tais agrupamentos sejam demonstrativos.Ora, na ausência desta prova de fato, só nos restam os raciocínios dedutivos cujas conclusões têm apenas um valor de presunções subjetivas. Não se demonstra queeste ou aquele acontecimento tem efeito debilitante sobre o organismo social, mas que deve ter esse efeito. Para isso, demonstra-se que não pode deixar de provocaresta ou aquela conseqüência considerada prejudicial para a sociedade e, com base nisso, será declarado mórbido. Mas, admitindo que ele provoca efetivamente estaconseqüência, pode aconte cer que os inconvenientes desta sejam mais do que compensados por vantagens de que não nos apercebemos. Além disso, só há uma razão quenos pode levar a considerá-lo funesto: o fato de perturbar o funcionamento normal das funções. Mas uma prova deste gênero presume o problema já resolvido; com efeito,só tem sentido se tivermos determi nado previamente em que consiste o estado normal e qual o sinal que nos permite reconhecê-lo. Dever se-á recorrer à construçãointegral e feita a priori? Não é preciso mostrar o que vale uma construção deste tipo; é devido a especulações deste tipo que tanto na história como na sociologiaos mesmos acontecimentos são classificados, de acordo com os sentimentos pessoais do estudioso, como salutares ou desastrosos. Acon tece assim que um teórico incréduloassinale como um fenômeno mórbido os restos de fé que sobrevivem à derrocada geral das crenças religiosas, enquanto para o crente é a incredulidade que constituia grande doença social. Da mesma forma, para o socialista

114a organização econômica atual é um fato de teratologia social enquanto para o economista ortodoxo são as tendências socialistas que são fundamentalmente patológicas.E cada um encontra silogismos que considera bem elaborados para fundamentar as opi niões respectivas.O defeito comum a estas definições é a pretensão de atingirem prematuramente a essência dos fenômenos. Assim, supõem irrefutáveis proposições que, verdadeiras ou não, só podem ser confirmadas se a ciência estiver suficientemente avançada. É portanto conveniente obedecer à regra que há pouco estabelecemos. Em vez de tentarmos determinar prematuramente as relações entre o estado normal ou o seu contrário e as forças vitais, procuremos algumas manifestações exteriores, imediatamente perceptíveis mas objetivas, que nos permitam reconhecer qualquer destas duas ordens de fatos.Qualquer fenômeno sociológico, como aliás qualquer fenômeno biológico, é susce tível de revestir formas diferentes apesar de permanecer essencialmente o mesmo. Ora, estas formas são de dois tipos. Umas são comuns a toda a espécie; encontram-se, se não em todos os indivíduos, pelo menos na maior parte deles e apresentam variações de um sujeito para outro compreendidas entre limites muito próximos. Outras são excepcionais; além de surgirem apenas em minorias, muitas vezes não chegam a durar a vida inteira do indivíduo. São uma exceção tanto no tempo como no espaço.33 Estamos portanto em presença de duas variedades distintas de fenômenos e que devem ser designadas sob termos diferentes. Chamaremos normais aos fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros a designação de mórbidos ou de patológicos. Se se considerar que o tipo médio é o ser esquemático que resultaria da reunião num mesmo ser, numa espécie de individualidade abstrata, das características mais freqüentes da espécie e das formas mais freqüentes destas características, poder-se-á afirmar que o tipo normal se confunde com o tipo médio, e que qualquer desvio em relação a este padrão de saúde é um fenômeno mórbido. É verdade que o tipo médio não pode ser determinado com a mesma clareza com que nos surge o tipo individual dado que os atributos que o constituem não são absolutamente fixos e podem variar. Mas não duvidamos de que possa ser elaborado pois constitui de próprio a matéria imediata da ciência; com efeito, confunde-se com o tipo genérico. O que o fisiologista estuda são as funções do organismo médio e em sociologia passa-se o mesmo.

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A partir do momento em que sabemos distinguir as espécies sociais umas das outras — examinaremos esta questão mais à frente — é possível isolar a forma mais geral que um fenômeno apresenta numa espécie determinada.Vê-se que um fato só pode ser considerado patológico quando referido a uma dada espécie. As condições da saúde e da doença não podem ser definidas in abstracto e de uma maneira absoluta. Esta regra não é contestada em biologia; ninguém pensou que o que é normal para um molusco o é igualmente para um vertebrado. Cada espécie tem uma saúde que lhe é específica, porque tem um tipo médio que lhe é peculiar, e a saúde das espécies mais inferiores não é menor do que a das espécies superiores. O mesmo princípio aplica se à sociologia ainda que, neste caso, seja muitas vezes ignorado. É preciso renunciar ao hábito, ainda demasiado corrente, que consiste em avaliar uma instituição,33 Pode-se distinguir assim a doença da monstruosidade. A segunda só constitui uma exceção no espaço; não se encontra na média da espécie mas perduia durante toda a vida dos indivíduos em que se encontra. Vê-se aliás que estas duas ordens de fatos só diferem por uma questão de grau e são no fundo de idêntica natureza; as fronteiras entre elas são muito indecisas porque a doença pode fixar-se e a monstruosidade pode perdurar futuramente. Não convém portanto Depara las radicalmente quando se procede a uma definição das mesmas. A distinção entre elas não pode ser mais catenónca do que a distinção entre o moifológico c o fisiológico, sendo o mórbido o anormal na ordem fisiológica e o teratológico o anormal na ordem anatômica.

p. 115uma prática, uma máxima social ou moral, como se fossem boas ou más por natureza e cm si próprias, e indistintamente para todos os tipos sociais.Dado que o ponto de referência que permite avaliar o estado de saúde ou de doença varia com as espécies, pode variar igualmente para uma única e mesma espécie seesta se modificar. É assim que, sob um ângulo estritamente biológico, o que é normal para o selvagem nem sempre o é para o civilizado e reciprocamente.3 4 Existealiás uma ordem de variações que é importante tomar em consideração porque se produz regularmente em todas as espécies: as que se relacionam com a idade. A saúdedo velho não é igual à do adulto assim como a do adulto não é igual à da criança; o mesmo se passa com as sociedades.3 5 Um fato social só pode ser consideradonormal para uma dada espécie social quando relacionado com uma fase bem determinada do seu desenvolvimento; por conseguinte, para saber se ele tem direito a essadesignação, não é suficiente observar a forma sob a qual se apresenta na generalidade das sociedades que pertencem a esta espécie; é ainda necessário considerá-lasnuma fase correspondente da evolução respectiva.Pode parecer que acabamos de proceder a uma simples definição de termos; com efeito, nada mais fizemos do que agrupar os fenômenos segundo as suas semelhanças ediferenças e conferir uma designação aos grupos que deste modo constituímos. Mas, na realidade, os conceitos que elaboramos, ao mesmo tempo que têm a grande vantagemde serem identificáveis através de características objetivas e facilmente perceptíveis, não se afastam da noção que normalmente se tem da saúde e da doença. comefeito, a doença é encarada por toda a gente como um acidente que a natureza do ser vivo implica mas que não gera necessariamente. Era isto que os filósofos antigosexprimiam ao afirmar que ela não deriva da natureza das coisas, e que é o produto duma espécie de contingência imanente dos organismos. Uma tal concepção constitui,indiscutivelmente, a negação de toda a ciência; com efeito, a doença não é mais miraculosa do que a saúde, pois fundamenta-se igualmente na natureza dos seres.Mas a doença não se baseia na natureza normal destes, não é inerente ao seu temperamento normal nem está ligada às condições de existência de que geralmente dependem;por outro lado, a noção de saúde identifica-se para toda a gente com a de espécie. Não se pode conceber uma espécie que. por si só e em virtude da sua constituiçãofundamental, fosse irremediavelmente doente: ela é a norma por excelência e, conseqüentemente, não pode conter nada que seja anormal.Normalmente, identifica-se com a noção de saúde um estado geralmente preferível à doença. Mas esta definição está englobada na precedente. Se, com efeito, as característicascuja reunião forma o tipo normal puderam generalizar-se numa espécie, é porque há uma razão para isso. Esta generalidade é ela própria um fato que necessita de umaexplicação e que, por isso, reclama uma causa. Ora, seria inexplicável se as formas de organi zação mais freqüentes não fossem também, pelo menos no conjunto, asmais vantajosas. Como poderiam ter-se mantido numa tão grande variedade de circunstâncias se não pusessem os indivíduos em condição de resistirem mais eficazmentecontra as causas de destruição?E se as outras são mais raras é porque, na média dos casos, os sujeitos que as apre-3 * Por exemplo, o selvagem que tivesse o tubo digestivo atrofiado e o sistema nervoso desenvolvido do civilizado seria um doente em relação ao seu meio.3 5 Abrc\ íamos aqui esta parte do nosso estudo: com efeito, só repelimos a propósito dos fatos sociais em geral o que |á dissemos noutras ocasiões a propósiíoda distinção entre fatos morais normais c anormais (CfDivision du Travail Social, págs. 33-39.)

p. 116sentam têm mais dificuldade em sobreviver. A maior freqüência das primeiras é portanto a prova da sua superioridade.3 6

II

Esta última observação fornece um meio de controlar os resultados do método precedente.Dado que a generalidade que caracteriza exteriormente os fenômenos normais é ela própria um fenômeno explicável, é necessário, depois de diretamente estabelecidapela observação, procurar explicá-la. Sabe-se de antemão que tem uma causa, mas é conveniente saber exatamente em que consiste esta causa, pois o caráter normaldo fenômeno será mais incontestável se se demonstrar que o sinal exterior que inicialmente o tinha revelado não é puramente aparente e se baseia na natureza dascoisas; se, em resumo, se erigir esta normalidade de fato numa normalidade de direito. Tal demonstração não consistirá sempre em mostrar que o fenômeno é útil parao organismo, ainda que este seja o caso mais freqüente pelas razões que acabamos de apontar; pode acontecer também, como assinalamos precedentemente, que uma combinaçãoseja normal e não sirva para nada, e isto por ser inerente à natureza do ser. Por exemplo, talvez fosse útil que o parto não provocasse perturbações tão violentasno organismo feminino; mas é impossível consegui-lo. Logo. a normalidade do fenômeno baseia-se no fato de estar relacionado com as condições de existência da espécieconsiderada, seja como um efeito moca nicamente necessário destas condições seja como um meio que permite aos organismos adaptarem-se a estas.3 7Esta prova não é apenas útil como meio de controle. É preciso não esquecer que o maior interesse em distinguir o normal do anormal advém da necessidade de esclarecera prática. Ora, para agir com conhecimento de causa, não basta saber o que devemos desejar mas também por que o desejamos. As proposições científicas relativasao estado normal serão mais imediamente aplicáveis aos casos particulares se forem acompa nhadas das razões que as justificam; porque então será mais fácil reconheceros casos em que convém modificá-las para as aplicar e qual o sentido da modificação.Existem mesmo circunstâncias em que esta verificação é rigorosamente necessária pois a aplicação exclusiva do primeiro método poderia induzir em erro. É o que acontecenos períodos de transição em que a espécie inteira está em via de evoluir sem se ter ainda definitivamente sob uma forma nova. Neste caso o único tipo normal quejá se realizou e concretizou nos fatos é o do passado, e já não convém às novas condições de existência. Um fato pode assim persistir em toda a espécie apesar dejá não corresponder às3 6 Garofalo tentou fazer uma distinção entre o mórbido e o anormal. (Cronologie, págs. 109, 110.) Mas osdois únicos argumentos em que baleia essa distinção são os seguintes:1." — A palavra "doença" significa sempre qualquer coisa que tende para a destruição total ou parcial doorganismo; se não há destruição há cura, nunca estabilização, como em numerosas outras anomalias. Masacabamos de ver que o anormal é também uma ameaça para o ser vivo na média dos casos. É verdade quenem sempre é assim; mas os perigos que a doença implica também só existem na generalidade das circunstâncias. Quanto à ausência de estabilidade que distmguiria o mórbido, é-se obrigado a esquecer as doençascrônicas e a separar radicalmente o teratológico do patológico. As monstruosidades são definitivas.2º — Diz-se que o normal e o anormal variam segundo as raças, enquanto a distinção entre o fisiológico eo patológico e válida para todo o genus homo. Acabamos de mostrar que, pelo contrário, acontece muitasvezes que o que é mórbido para o selvagem não o é para o civilizado. As condições da saúde física variam

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segundo os meios.3 7 Pode-se perguntar se, no caso de um fenômeno derivar necessariamente das condições gerais da vida,isso não o torna útil. Não podemos debruçar-nos aqui sobre esta questão filosófica. No entanto voltaremosa ela urn pouco mais adiante.

p. 117exigências da situação. Conserva somente as aparências da normalidade; a generalidade que apresenta não é senão uma etiqueta mentirosa, pois, mantendo-se apenas pela força cega do hábito, deixou de ser o indício de que o fenômeno observado está estreitamente• ligado às condições gerais da existência coletiva. Esta dificuldade é, aliás, específica da sociologia. Não existe para o biologista; é bastante raro que as espécies animais sejam levadas a tomar formas imprevistas. As únicas modificações normais por que passam são as que se reproduzem regularmente em cada indivíduo, principalmente sob a influência da idade. São, portanto, conhecidas ou podem sê-lo, dado que já se realizaram numa grande quantidade de casos; em conseqüência, pode-se saber para cada momento do desenvolvimento do animal, e mesmo para os períodos de crise, em que consiste o es tado normal. O mesmo acontece na sociologia no que respeita às espécies inferiores, pois, como muitas já cumpriram todo o percurso, a lei da evolução normal pode já estar definida. Mas quando se trata de sociedades mais evoluídas e mais recentes esta lei é, por definição, desconhecida, dado que estas ainda não percorreram todas as diferentes etapas da sua história. O sociólogo pode assim ficar embaraçado quando pretende saber se um fenômeno é normal ou não, pois não tem qualquer ponto de referência.Resolverá a dificuldade se proceder como acabamos de indicar. Depois de ter estabelecido através da observação que o fato é geral, irá até as condições que no passado determinaram esta generalidade e procurará em seguida determinar se estas condições existem no presente ou se, pelo contrário, se modificaram. No primeiro caso poderá con siderar o fenômeno como normal e, no segundo, recusa-lhe este caráter. Por exemplo, para determinar se o estado econômico atual dos povos europeus, caracterizado pela ausência de organização,38 é normal ou não, deverá procurar-se o que no passado o gerou. Se estas condições estão ainda subjacentes às nossas sociedades é porque esta situação é normal apesar dos protestos que provoca. Mas se se provar, pelo contrário, que está ligada a essa velha estrutura social que classificamos noutra obra como segmentaria39 e que, depois de ter constituído a ossatura essencial das sociedades, vai desaparecendo, cada vez mais, concluiremos que constitui presentemente um estado mor bido, por muito universal que este possa ser. É seguindo este mesmo método que terão de ser resolvidos todos os problemas deste tipo que se encontram em debate, como seja o de saber se o pretenso enfraquecimento das crenças religiosas e o desenvolvimento dos poderes do Estado são fenômenos normais ou não. 4038 Consultar a este propósito um apontamento que publicamos na Rcvue Phüosophique inúmero de novem bro de 1893) acerca de La Définition du Socia/isme.39 As sociedades segmentadas e nomeadamente as sociedades segmentárias com uma base territorial são aquelas cujas articulações correspondem às divisões territoriais. (Cf. Division du Travai! Social, págs.189 210.)40 Em certos casos pode-se proceder de um modo um pouco diferente e verificar se um fato. de cujo caráter normal se suspeita, se liga estreitamente ao desenvolvimento anterior do tipo social considerado ou ao con junto da evolução social em geral ou se, pelo contrário, contradiz tanto um como o outro. Foi assim que demonstramos que o enfraquecimento atual das crenças religiosas ou. mais geralmente, dos sentimentos coletivos é normal; provamos que este enfraquecimento se acentua à medida que as.sociedades se aproximam do nosso tipo atual e que este é. por sua vez. mais desenvolvido (Division du Travail Social, págs.73 182). Mas. no fundo, este método constitui unicamente um caso particular do precedente. Porque, se a normalidade deste fenômeno pôde ser estabelecida por este processo, foi porque ao mesmo tempo se estabe leceu a relação entre ele e as condições mais gerais da nossa vida coletiva. com efeito, se por um lado esta regressão da consciência religiosa è tanto mais acentuada quanto mais sólidas são as estruturas das nossas sociedades, é porque não depende de qualquer causa acidental mas sim da própria constituição do nosso meio social: como, por outro lado, as particularidades características desta última estão certamente mais desenvolvidas hoje do que no passado, é normal que os fenômenos que dependem dela estejam também amplificados. Este método só difere do precedente pelo fato de as condições que explicam e justificam a generalidade do fenômeno serem induzidas e não diretamente observadas. Sabe se que depende da natureza do meio social sem que se saiba de que depende exatamente e como.

p. 118Todavia, este método de forma nenhuma poderia substituir o precedente nem se quer ser utilizado em primeiro lugar. Primeiramente, levanta problemas a que nos referi remos mais adiante e que não podem ser abordados antes de se estar bastante avançado no estudo científico; com efeito, implica uma explicação quase completa dos ienômenos na medida em que supõe determinadas as causas ou as funções destes. Mas importa que desde o início da investigação se possam classificar os fatos como normais e anormais, com exceção para alguns casos de exceção, a fim de se poder delimitar o domínio da fisiologia e da patologia. Seguidamente, o fato terá de ser considerado útil ou necessário em relação ao tipo normal para poder ser considerado como normal. De outro modo poder-se-ia demonstrar que a doença se confunde com a saúde, pois deriva necessária mente do organismo que atingiu. Da mesma forma, a aplicação de um remédio, dado que é útil ao doente, pode surgir como um fenômeno normal quando é evidentemente anor mal, pois só em circunstâncias anormais é que tem esta utilidade. Logo, não se poderá utilizar este método se o tipo normal não tiver sido constituído anteriormente, o que implica a recorrência a um outro processo. Por último, e isto é o mais importante, se é verdade que tudo o que é normal é útil, é falso que tudo o que é útil seja normal. Pode mos estar certos de que os estados que se generalizaram na espécie são mais úteis do que os que permaneceram excepcionais; mas não podemos ter a certeza de serem mais úteis do que outros que pudessem existir. Nada nos leva a pensar que todas as combinações possíveis foram tentadas no decorrer da experiência; entre as que nunca foram realizadas mas que são concebíveis, há talvez muitas mais vantajosas do que as que conhecemos. A noção de útil ultrapassa a de normal; está para esta como o gênero está para a espécie. Ora, é impossível deduzir o mais do menos, a espécie do gênero. Pode-se apenas encontrar o gênero na espécie, dado que esta o contém. É por isso que, a partir do momento em que a generalidade do fenômeno foi constatada, pode-se, mostrando para que serve, confirmar os resultados do primeiro método. 41 Podemos, portanto, formular as três seguin tes regras:11º — Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada de desenvolvimento, quando se produz na média das sociedades desta espécie, consideradas numa fase correspondente de desenvolvimento.2º — Os resultados do método precedente podem verificar-se mostrando que a generalidade do fenômeno está ligada às condições gerais da vida coletiva do tipo social considerado.3º — Esta verificação é necessária quando este fato diz respeito a uma espécie social que ainda não cumpriu uma evolução integral.

III

Está-se de tal modo habituado a resolver de modo categórico estas questões difíceis e a decidir rapidamente, em função de observações sumárias e por meio de silogismos,da41 Mas então, dir-se-á, a realização do tipo normal não é o objetivo mais elevado que pode ser proposto; e, para o ultrapassar, seria necessário também ultrapassar a ciência. Não é aqui o lugar para tratar desta quês tão exprofesso; respondamos simplesmente1." — Que e absolutamente teoi n.a porque, na lealidaJe, o tipo normal, o estado saudavü. e bastante difíci de realizar, e tão raramente atingido que não vale a pena tentar encontrar algo de melhoi.2º — Que estes melhoramentos, objetivamente mais vantajosos, não passam por isso a ser objetivamente desejáveis, pois ou não respondem a nenhuma tendência latente e a nenhum ato, não acrescentando assiri nada à felicidade, ou só respondem a qualquer tendência porque o tipo normal não se encontra realizado.3º — E. por ultimo, que para melhorar o tipo normal é preciso conhecê-Io. Portanto, de qualquer modo. não podemos ultrapassar a ciência senão apoiando nos nela

p. 119normalidade de um fato social, que talvez se ache este procedimento inutilmente compli cado. Não parece que seja necessária tanta ponderação para distinguir a doença da saúde. com efeito, fazemos distinções deste gênero todos os dias; mas resta saber se as fazemos judiciosamente. O que nos esconde as dificuldades destes problemas é fato de vermos o biólogo resolvê-las com uma certa facilidade. Mas esquecemos que lhe é muito mais fácil do que ao sociólogo compreender até que ponto cada fenômeno

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afeta a capaci dade de resistência do organismo e determinar, por conseguinte, o caráter normal ou anormal daquele com uma exatidão na prática suficiente. Na sociologia, a complexidade e mobilidade mais acentuadas dos fatos exigem um maior número de precauções como o provam os juízos contraditórios de que um mesmo fenômeno é alvo por parte dos diversos partidos. Para que fique bem clara a necessidade desta circunspecção mostre mos, através de alguns exemplos, os erros a que estamos sujeitos quando a desprezamos e o aspecto diferente sob o qual nos surgem os fenômenos mais essenciais quando são tratados metodicamente.Se há um fato cujo caráter patológico parece incontestável é sem dúvida o crime. Todos os criminólogos estão de acordo sobre este ponto. Apesar de explicarem esta mor bidez de maneiras diferentes, são unânimes na sua constatação. Contudo, o problema merecia ser tratado com menos superficialidade.com efeito, apliquemos as regras precedentes. O crime não se produz só na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades, qualquer que seia o tipo destas. Não ha nenhuma em que não haja criminalidade. Muda de forma, os atos assim classificados não são os mesmos em todo o lado; mas em todo o lado e em todos os tempos existiram homens que se conduziram de tal modo que a repressão penal se abateu sobre eles. Se, pelo menos, a taxa de criminalidade, ou seja, o quociente entre o número anual de crimes e o da população, tivesse tendência para baixar à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores para os tipos superiores, poder-se-ia admitir que, apesar de permanecer um fenômeno normal, o crime tendia, no entanto, para perder este caráter. Mas não temos nenhum motivo para acreditar na realidade desta regressão. Pelo contrário, vários fatores parecem demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso. A estatística fornece-nos desde o princípio do século o meio de seguir a evolução da criminalidade; ora, ela aumentou por todo o lado. Na França o aumento é quase de trezentos por cento. Não há portanto um fenômeno que apresente de maneira tão irrefutável como a criminalidade todos os sintomas da normalidade, dado que surge como estreitamente ligada às condições da vida coletiva. Transformar o crime numa doença social seria o mesmo que admitir que a doença não é uma coisa acidental mas que, pelo contrário, deriva em certos casos da constituição fundamental do ser vivo; consistiria em eliminar qualquer distinção entre o fisiológico e o patológico. Pode sem dúvida acontecer que o crime tome formas anormais; é o que acontece quando, por exemplo, atinge uma taxa exagerada. Efetivamente, não será de duvidar da natureza mórbida deste excesso. Mas é normal a existência de uma criminalidade que atinja mas não ultrapasse, para cada tipo social, um certo nível que talvez não seja impossível de determinar de acordo com as regras precedentes. 42Eis-nos perante uma conclusão aparentemente paradoxal. Classificar o crime como um fenômeno de sociologia normal não significa apenas que seja um fenômeno inevitável, ainda que lastimável, provocado pela incorrigível maldade dos homens; é afir mar que é um fator da saúde pública, que é parte integrante de qualquer sociedade sã.42 Do fato de o crime ser um fenômeno de sociologia normal não se deduz que o criminoso seja um indiví duo normalmente constituído do ponto de vista biológico e psicológico. As duas questões são independentes uma da outra. Comprecnder-se á melhor esta independência quando mostrarmos mais à frente a diferença que existe entre os latos psíquicos c os fatos sociológicos..

p. 120Este resultado é à primeira vista tão surpreendente que nos desconcertou durante muito tempo. Contudo, a partir do momento em que se consegue dominar esta primeira impres são de surpresa, não é difícil encontrar as razões que explicam esta normalidade e ao mesmo tempo a confirmam.Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade que estivesse livre dele é impossível.Já mostramos que o crime consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa dada sociedade. os atos considerados como criminosos pudessem deixar de existir seria necessário, por tanto, que os sentimentos que chocam se encontrassem, sem exceção, em todas as cons ciências individuais e possuíssem a força necessária para conterem os sentimentos opôs tos. Ora, admitindo que esta condição pudesse efetivamente ser realizada, o crime não desapareceria por isso e apenas mudaria de forma; seria a própria causa que assim elimi nava as origens da criminalidade, que viria a gerar as novas fontes desta.com efeito, para que os sentimentos coletivos que o direito penal de um po\o prote ge, num dado momento de sua história, possam penetrar nas consciências que lhes eram avessas até esse momento ou alargar o seu domínio naquelas a que unham um acesso relativo, é necessário que adquiram uma intensidade superior à que tiveram ate essa altu rã. É preciso que a comunidade os sinta mais intensamente; com efeito, não podem n buscar a outro lado a força que lhes permite agora impor-se aos indivíduos que no passa do lhes eram adversos. Para que os assassinos desapareçam é preciso que o horror pelo sangue vertido se acentue nessas camadas sociais donde provêm os assassinos; mas para que isto aconteça é necessário que a sociedade global se ressinta do mesmo modo. Aliás, a própria ausência do crime contribuiria diretamente para produzir este efeito; porque um sentimento surge como muito mais respeitável quando é sempre e uniformemente respeitado. Mas não se repara que estes estados fortes da consciência comum não podem ser reforçados sem que ao mesmo tempo os estados mais fracos, cuja violação não origi nava até aí senão erros puramente morais, sejam igualmente reforçados; porque os segundos são apenas o prolongamento, a forma atenuada dos primeiros. Assim, o roubo e a simples desonestidade não chocam senão um único sentimento, o do respeito pela propriedade de outrem. Mas este sentimento é menos chocado por um destes atos do que pelo outro; e como, por outro lado, não tem na consciência média a intensidade sufi ciente para sentir vivamente a mais ligeira destas duas ofensas, esta é alvo de uma maior tolerância. Eis a razão por que apenas se critica o desonesto enquanto se pune o ladrão. Mas se este sentimento se torna suficientemente forte para fazer calar em todas as consciências a tendência que leva o homem ao roubo, tornar-se-á mais sensível às lesões que até esse momento só o atingiam ligeiramente; reagir-se-á portanto contra elas commais violência, serão alvo de uma reprovação mais enérgica que as elevará ao grau de crime quando no passado eram meros erros morais. Por exemplo, os contratos desonestosou executados desonestamente que não originam senão uma reprovação pública ou reparações civis tornar-se-ão delitos. Imaginai uma sociedade de santos, um conventoexemplar e perfeito. Os crimes propriamente ditos serão desconhecidos: mas os erros que conside ramos veniais ou vulgares provocarão o mesmo escândalo que o delitonormal provoca nas consciências normais. Se, portanto, esta sociedade tem o poder de julgar e de punir, qualificará estes atos como criminosos e agirá em conseqüência.É por esta razão que o homem perfeitamente honesto julga as suas menores fraquezas morais com uma severidade que a maioria reserva para os atos delituosos. No passado,as violências contra as

p. 121pessoas eram mais freqüentes do que hoje porque o respeito pela dignidade individual era menor. Como se tornou maior, estes crimes tornaram-se mais raros; mas tambémbas tantes atos que lesavam este sentimento entraram no direito penal de que não faziam parte inicialmente. 43-~ Poder-se-á perguntar, tentando esgotar todas as hipóteses possíveis, qual a razão de esta unanimidade não abranger todos os sentimentos coletivos; por que razãoos mais fracos não têm energia suficiente para evitar qualquer dissidência. A consciência moral da sociedade encontrar-se ia em todos os indivíduos com uma vitalidadesuficiente para impedir qualquer ato que a ofendesse, quer se tratasse de erros puramente morais quer de crimes. Mas uma uniformidade tão universal e absoluta éradicalmente impossível; com efeito, o meio físico imediato que envolve cada um de nós, os antecedentes hereditários, as influências sociais de que dependemos variamde um indivíduo para outro e, por conseguinte, diversificam as consciências. Não é possível que toda a gente seja semelhante até este ponto pela simples razão deque cada um de nós tem um organismo específico e que estes organismos ocupam porções diferentes do espaço. É por isso que mesmo nos povos inferiores, onde a originalidadeindividual se encontra pouco desenvolvida, esta nunca é, no entanto, nula. Dado que não pode haver uma sociedade em que os indivíduos não se diferenciem de um modomais ou menos acentuado do tipo coletivo, é .inevitável também que entre estas divergências haja algumas que apresentem um caráter criminoso. Porque o que lhes confereeste caráter não é a sua importância intrínseca mas a que lhes atribui a consciência comum. Se, portanto, esta é forte, se tem a autoridade suficiente para tornarestas divergências muito fracas em valor absoluto, será igualmente mais sensível, mais exigente e, ao reagir contra desvios mais insignificantes com a energia quenoutros casos só despende contra: dissidências mais consideráveis, atribui àque las a mesma gravidade destas, isto é, classifica-as como criminosas.O crime é portanto necessário; está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social e, precisamente por isso, é útil; porque estas condições a que estáligado são indispensáveis para a evolução normal da moral e do direito.com efeito, hoje já não é possível contestar que o direito e a moral não variam apenas de um tipo social para outro mas também dentro de um mesmo tipo social desde

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que as condições de existência coletiva se modifiquem. Para que estas transformações sejam possíveis, é necessário que os sentimentos que se encontram na base damoral não sejam refratários à mudança e que, por conseguinte, tenham uma energia moderada. Se fossem demasiado fortes não seriam suficientemente moldáveis. Qualquerordem estabelecida constitui um obstáculo à nova ordem e isto tanto mais intensamente quanto a ordem primitiva é sólida. Quanto mais se acusa uma estrutura tantomaior é a resistência que ela opõe a qualquer modificação e isto tanto acontece com as ordens funcionais como com as anatômicas. Ora, se não existissem crimes,esta condição não estaria preenchida; com efeito, uma hipótese desse gênero subentenderia que os sentimentos coletivos tinham atingido um grau de intensidade desconhecidona história. Nada é bom de um modo infinito. É preciso que a autoridade que a consciência moral usufrui não seja excessiva; de outro modo, ninguém ousaria opor-lheresistência e facilmente estagnaria dentro de uma forma imóvel. Para que possa evoluir é preciso que a originalidade individual se possa manifestar; ora, para quea originalidade do idealista que ambiciona ultrapassar o seu século se possa manifestar, é preciso que a do criminoso que está aquém do seu tempo o possa igualmente.Não podem existir uma sem a outra.43 Calúnias, injúrias, difamação, etc.

p. 122Além desta utilidade indireta verifica-se ainda que o crime desempenha um papel útil nesta evolução. Não só significa que o caminho está aberto às modificações necessárias,como ainda, em certos casos, prepara diretamente estas mudanças. Não só os sentimentos coletivos estão num estado de maleabilidade perfeita para tomarem novas formasnas regiões em que há crimes, como este pode por vezes predeterminar a forma que eles tomarão. Quantas vezes, com efeito, o crime não é uma simples antecipaçãoda moral futura, um encaminhamento para o mundo do futuro! Segundo o direito ateniense, Só- , crates era um criminoso e a sua condenação era justa. Contudo, o seucrime, a saber, a independência de pensamento, era útil não só à humanidade como também à sua pátria, pois servia para preparar uma moral e uma fé novas de que osatenienses necessitavam nesse momento porquanto as tradições em que se tinham apoiado até então já não estavam em harmonia com as condições de existência. Ora,o caso de Sócrates não é um caso isolado, reproduz-se periodicamente na história. A liberdade de pensamento de que gozamos hoje nunca poderia ter sido proclamadase as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente abolidas. No entanto, nesse momento, esta violação era um crime pois ofendia sentimentosque a generalidade das consciências ainda ressentia vivamente. Contudo, este crime era útil pois era o prelúdio de transformações que de dia para dia se tomavammais necessárias. A livre filosofia teve como precursores os heréticos de toda a espécie que o braço secular abateu durante toda a Idade Média e até a véspera daépoca contemporânea.Vistos assim, os fatos fundamentais da criminologia surgem-nos sob um aspecto inteiramente novo. Contrariamente às idéias correntes o criminoso já não aparece comoum ser radicalmente insociável, como uma espécie de elemento parasitário, de corpo estranho e inassimilável, introduzido no seio da sociedade; 4 4 é um agente regularda vida social. Por seu lado, o crime deve deixar de ser concebido como um mal que nunca é demais limitar; pelo contrário, em vez de nos felicitarmos quando descedemasiado em relação ao nível habitual, podemos estar certos de que este progresso aparente é ao mesmo tempo anunciador e corolário de qualquer perturbação social.O número de ofensas corporais nunca desce tão baixo como durante uma época de miséria. 4 5 Ao mesmo tempo, e por via indireta, a teoria penal surge renovada, ouantes, necessita ser renovada. com efeito, se o crime é uma doença, a pena é o remédio para ele e não pode ser conce bida de modo diferente; assim, todas as discussõesque levanta incidem sobre a questão de saber em que deve consistir para desempenhar o seu papel de remédio. Mas, se o crime não tem nada de mórbido, a pena não podeter como objetivo curá-lo e a sua verdadeira função deve ser outra.As regras precedentemente enunciadas não têm como única razão de ser a satisfação de um formalismo lógico sem grande utilidade pois modificam totalmente a interpretaçãodos fatos sociais mais essenciais. Aliás, se este exemplo é especialmente elucidativo — e foi por isso que lhe fizemos referência —, há muitos outros que se poderiam4 4 Nós próprios cometemos o erro de falar do criminoso desta maneira porque não aplicamos a nossa regra (Division du Travail Social, pági. 395-396).4 5 Aliás, por o crime ser um fato normal de sociologia, não devemos deixar de o odiar. Também a dor não tem nada de desejável; o indivíduo odeia-a tal como a sociedadeodeia o crime e no entanto aquela faz parte da fisiologia normal. Não só deriva necessariamente da própria constituição do ser vivo como desempenha um papel útilna vida, papel esse em que não pode ser substituído. Seria deformar singularmente o nosso pensamento considerar que fazemos uma apologia do crime. Não nos ocorreriasequer protestar contra uma interpretação deste gênero se não conhecêssemos as esti anhas acusações c os mal entendidos a que nos expo mos quando se tenta estudarobjetivamente os fatos morais e falar deles numa linguagem diferente da vulgar.

p. 123igualmente citar. Não existe nenhuma sociedade em que a proporcionalidade entre a pena e o delito não seja uma regra; no entanto, para a escola italiana, este princípionão é mais do que uma invenção de juristas despida de qualquer solidez. 4 6 Inclusivamente, segundo estes criminólogos, é a própria instituição penal, tal como temfuncionado até hoje em todos os povos conhecidos, um fenômeno antinatural. Já vimos que, para Garofalo, a criminalidade específica das sociedades inferiores nãotem nada de natural. Para os socialistas, é a organização capitalista que, apesar da generalidade que apresenta, constitui um desvio em relação ao estado normal,provocado pela violência e pelo artifí cio. Pelo contrário, segundo Spencer. é na centralização administrativa e na extensão dos poderes governamentais que resideo vício radical das nossas sociedades, e isto apesar de tanto uma como outra destas características progredirem de um modo regular e universal à medida que se avançana história. Não pensamos que se seja obrigado por sistema a decidir se os fatos sociais são normais ou anormais através do grau de generalidade que apresentam.É sempre necessário recorrer à dialética para resolver estas questões.Contudo, se se põe de lado este critério, não só se está exposto a confusões e a erros parciais do gênero daqueles para que chamamos a atenção, como se torna impossívela própria ciência. com efeito, esta tem como objetivo imediato o estudo do tipo normal; ora, se os fatos mais gerais são mórbidos, isto significa que o tipo normalnunca existiu de fato. Nesse caso, para que serve estudá-los? Só servem para confirmar os nossos preconceitos e enraizar os nossos erros dado que resultam deles.Se o castigo e a respon 'habilidade têm existido tal como na história, se são unicamente um produto da ignorância e da barbárie, qual a utilidade de os conhecermoscom o fim de determinarmos as formas normais? É assim que o espírito é levado a desviar-se da realidade para se fechar sobre si próprio e procurar no seu interioros materiais necessários para a reconstruir. Para que a sociologia possa tratar os fatos como coisas, é preciso que o sociólogo sinta a necessidade de aprender juntodeles. Ora, como o objetivo principal de qualquer ciên cia da vida, seja ela individual ou social, é. em suma, definir o estado normal, explica Io e diferenciá-lodo seu contrário, se a normalidade não existe nas coisas, se é uma caracte rística que lhes impomos do exterior ou que lhes recusamos por uma razão qualquer, acabou-seesta salutar dependência. O espírito está à vontade face ao real que não tem nada a ensinar-lhe; já não se encontra englobado na matéria que estuda porque é eleque de certo modo a determina. As diferentes regras que estabelecemos até agora são estreita mente solidárias umas das outras. Para que a sociologia seja uma ciênciadas coisas, é necessário que a generalidade dos fenômenos seja considerada como o critério probante de normalidade.O nosso método tem, aliás, a vantagem de orientar a ação ao mesmo tempo que orienta o pensamento. Se o que é desejável não é dado pela observação mas pode e deveser determinado por uma espécie de cálculo mental, então nenhum limite pode ser posto às livres invenções da imaginação na sua busca do melhor. com efeito, comoimpor à perfeição um limite a não ultrapassar? O objetivo da humanidade recua até ao infinito, desencorajando uns com o seu afastamento, e excitando outros que,para se aproxi marem um pouco dele, apressam o passo e se lançam nas revoluções. Evita-se este dile ma prático se o desejável for a saúde e se a saúde for qualquercoisa de definido e dado pelas coisas porque o objetivo desse esforço surge-nos bem definido. Não se trata de ten tar desesperadamente atingir um fim que se vaiafastando à medida que lhe chegamos perto, mas de trabalhar com uma perseverança constante para manter o estado normal, para o restabelecer no caso de se encontrarperturbado, e para redefinir as suas condições no caso de estas virem a modificar-se. O dever do homem de Estado deixa de consistirV. Garotalo, Cninmologie, pág. 299.

CAPITULO QUARTO

REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS

A distinção do normal e do anormal implica a constituição de espécies sociais. Utilidade deste conceito de espécie, intermediário entre a noção do genus homo e a

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de sociedades particulares. I — O modo de as constituir não é elaborando monografias. Impossibilidade de sucesso por esta via. Inutilidade da classificação que seriaconstruída deste modo. Princípio do método a aplicar: distinguir as sociedades segundo o seu grau de composição. II — Definição da sociedade simples: a horda. Exemplosde algumas das maneiras como a sociedade simples se compõe consigo mesma e as combinações destes compostos entre si. No seio das espécies assim constituídas, distinguirvariedades conforme os segmentos componentes forem coalescentes ou não. Enunciado da regra. in — Como o que precede demonstra que há espécies sociais. Diferençasna natureza da espécie na biologia e na sociologia.Dado que um fato social só pode ser classificado como normal ou anormal quando posto em relação com uma espécie social determinada, é forçoso consagrar um ramoda sociologia à constituição destas espécies e à respectiva classificação. i,, Esta noção de espécie social tem. aliás, a grande vantagem de nos fornecer um termointermédio entre as duas concepções opostas de vida coletiva que durante muito tempo dividiram os espíritos: refiro-me ao nominahsmo dos historiadores48 e ao realismoextremo dos filósofos. Para o historiador, as sociedades constituem individuali dades heterogêneas que não se podem comparar. Cada povo tem uma fisionomia específica,uma constituição especial, um direito, uma moral, uma organização econômica que só a ele se adaptam sendo quase impossível qualquer generalização. Para o filósofo,pelo contrário, todos estes grupos particulares a que se chama tribos, cidades, nações, consti tuem meras combinações contingentes e provisórias destituídas de realidadeprópria. A única coisa real é a humanidade e é dos atributos gerais da natureza humana que provém a evolução social. Por conseguinte, para o primeiro, a históriaé unicamente uma série de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzirem; para o segundo, estes acontecimentos só têm valor e interesse como ilustrações dasleis gerais que estão inscritas na constituição do homem e que dominam todo o desenvolvimento histórico. Para aquele o que é bom para uma dada sociedade não o épara outra. As condições de um estado saudável variam de um povo para outro e não podem ser determinadas teoricamente: é uma questão de prática, de experiência,de intuição. Para este, podem ser calculadas de modo diferente e definitivo para toda a espécie humana. Dir se-ia que a realidade social só pode ser alvo de umafilosofia abstrata e vaga ou de monografias puramente descritivas. Mas evitamos esta alternativa a partir do momento em que reconhecemos que entre a multidão confusadas sociedades históricas e o conceito único, mas ideal, de humanidade, há intermediários: as espécies sociais. com efeito, na noção de espécie encontra-se a unidadeque qualquer investigação verdadeiramente científica exige e a diversidade própria aos fatos, porquanto a espécie é a mesma para todos os indivíduos que fazem partedela se bem que, por outro lado, as espécies difiram umas das outras. É verdade que as instituições morais, jurídicas, econômicas, etc., são infinitamente variáveis;mas estas variações não são de molde a impossibilitar totalmente uma investigação científica.48 Chamo-lhe assim porque a denominação é freqüente nos historiadores.

p. 124em empurrar violentamente as sociedades para um ideal que se lhe afigura sedutor, para passai a assemelhar se ao papel do medico: prevenir o desencadeamento dasdoenças através de uma boa hisiene e uma ve7 que elas se declaram procurar cura las 4 7

47 A partir da teoria desenvolvida neste capitulo concluiu se por vezei que, segundo nos o movimento ascendente da criminalidade durante o século XIX era um fenômenonormal Nada e mais contrario ao nosso pensamento do que isto Vários fatos que indicamos a propósito do suicídio (ver Lê Suicide, pags 420 e seguintes) levam nos,pelo contrario, a crer que este desenvolvimento e, em geral, mórbido No entanto poderia acontecer que um certo aumento de algumas formas de criminalidade fosse normalporque cada estado de desenvolvimento tem uma criminalidade especifica Mas temos de ficar no domínio das hipóteses

p. 125CAPITULO QUARTO

REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS

A distinção do normal e do anormal implica a constiluição de espécies sociais. Utilidade deste conceito de espécie, intermediário entre a noção do genus homo e ade sociedades particulares. I — O modo de as constituir lão é elaborando monografias. Impossibilidade de sucesso por esta via. Inutilidade da classificação que seriaconstruída deste modo. Princípio do método a aplicar: distinguir as sociedades segundo o seu grau de composição. II — Definição da sociedade simples: a horda. Exemplosde algumas das maneiras como a socitdade simples se compõe consigo mesma e as combinações destes compostos entre si. No seio das espécies assim constituídas, distinguirvariedades conforme os segmentos componentes forem coalescentes ou não. Enunciado da regra. in — Como o que precede demonstra que há espécies sociais. Diferençasna natureza Já espécie na biologia e na sociologia.Dado que um fato social só pode ser classificado como normal ou anormal quando posto em relação corn uma espécie social determinada, é forçoso consagrar um ramoda sociologia à constituição destas espécies s à respectiva classificação.Esta noção de espécie social tem. aliás, a grande vantagem de nos fornecer um termo intermédio entre as duas concepções opostas de vida coletiva que durante muitotempo dividiram os espíritos: refiro-me ao nominalismo dos historiadores 48 e ao realismo extremo dos filósofos. Para o historiador, as sociedades constituem individualidadesheterogêneas que não se podem comparar. Cada povo tem uma fisionomia específica, uma constituição especial, um direito, uma moral, uma organização econômica quesó a ele se adaptam sendo quase impossível qualquer generalização. Para o filósofo, pelo contrário, todos estes grupos particulares a que se chama tribos, cidades,nações, constituem meras combinações contingentes e provisórias destituídas de realidade própria. A única coisa real é a humanidade e é dos atributos gerais da naturezahumana que provém a evolução social. Por conseguinte, para o primeiro, a história é unicamente uma série de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzirem;para o segundo, estes acontecimentos só têm valor e interesse como ilustrações das leis gerais que estão inscritas na constituição do homem e que dominam todo odesenvolvimento histórico. Para aquele o que c born para uma dada sociedade não o é para outra. As condições de um estado saudável variam de um povo para outro enão podem ser determinadas teoricamente: é uma questão de prática, de experiência, de intuição. Para este, podem ser calculadas de modo diferente e definitivo paratoda a espécie humana. Dir-se ia que a realidade social só pode ser alvo de uma filosofia abstrata e vaga ou de monografias puramente descritivas. Mas evitamos estaalternativa a partir do momento em que reconhecemos que entre a multidão confusa das sociedades históricas e o conceito único, mas ideal, de humanidade há intermediários:as espécies sociais. corn efeito, na noção de espécie encontra-se a unidade que qualquer investigação verdadeiramente científica exige e a diversidade própria aosfatos, porquanto a espécie e a mesma para todos os indivíduos que fazem parte dela se bem que, por outro lado, as espécies difiram umas das outras. É verdade queas instituições morais, jurídicas, econômicas, etc., são infinitamente variáveis; mas estas variações não são de molde a impossibilitar totalmente uma investigaçãocientífica.48 Chamo-lhe assim porque a denominação é freqüente nos historiadores.

p. 126Foi por desconhecer a existência das espécies sociais que Comte julgou poder repre sentar o progresso das sociedades humanas pelo progresso de um povo único "como qual idealmente se podiam relacionar todas as modificações consecutivas observadas em populações distintas". 49 Efetivamente, se só existe uma espécie social,as sociedades particulares só podem diferir por uma questão de grau, conforme apresentam mais ou menos características constitutivas desta espécie única, conformeexprimem de um modo mais ou menos perfeito a humanidade. Se, pelo contrário, existem tipos sociais qualitati vãmente distintos uns dos outros, por mais que se tentea aproximação entre eles nunca se conseguirá uni-los como se fossem segmentos homogêneos de uma reta geométrica. O desenvolvimento histórico perde assim a unidadeideal e simplista que lhe era atribuída: digamos que se fragmenta numa multidão de troços que, pelo fato de diferirem especifi camente uns dos outros, não podemligar-se de um modo contínuo. A famosa metáfora de Pascal, que posteriormente Comte retomou, deixará de ser verdadeira daqui para diante.Mas como devemos proceder para constituirmos estas espécies?

I

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À primeira vista pode parecer que deveremos estudar cada sociedade em particular, fazer uma monografia tão exata quanto possível de cada uma, comparar em seguidatodas estas monografias e ver os pontos em que concordam e aqueles em que divergem. A partir daí, segundo a importância relativa destas semelhanças ou destas divergências,classificar se-iam os povos em grupos semelhantes ou diferentes. Para justificar este método faz-se notar que só ele é compatível com uma ciência baseada na observação.Na realidade, a espécie é apenas um resumo dos indivíduos: logo, como deveremos constituí-la se não começarmos por descrever cada um dos indivíduos de um modo completo?Não é verdadeira a regra de que só se deve passar ao geral depois de se ter observado o particular de um modo exaustivo? É por essa mesma razão que por vezes sepretendeu adiar a sociologia até a época infinitamente longínqua em que a história chegasse a resultados suficientemente objetivos e definidos no estudo das sociedadesparticulares para que a comparação entre estas fosse útil.Mas, na realidade, esta circunspecção só é científica aparentemente. com efeito, é inexata a afirmação de que a ciência só pode formular leis depois de ter analisadotodos os fatos que estas exprimem ou de que só possa formar gêneros depois de ter descrito integralmente os indivíduos que estes englobam. O verdadeiro método experimentaltende de preferência para substituir os fatos vulgares, que só são demonstrativos quando são muito numerosos, por fatos decisivos ou cruciais, como dizia Bacon,50que por si, e independentemente do número, têm um valor e um interesse científico. É necessário proceder deste modo principalmente quando se trata de constituirgêneros e espécies, porquanto é impossível proceder a um inventário de todas as características de um indivíduo. O indivíduo é um infinito, e não se pode esgotaro infinito. Limitarmo-nos às propriedades mais essenciais? Mas que critério nos permite distingui-las? Seria preciso esboçar um critério que ultrapassasse o indivíduoe que as monografias, por muito bem feitas que fossem, seriam portanto incapazes de fornecer. Sem ir tão longe pode-se prever que, quanto mais numerosas forem ascaracterísticas que servirão de base à classifica-49 Cours de Philosophie Positive, IV, pág. 263.50 Novum Organum, II. § 3b. n--- >

p. 127cão, tanto maior será a dificuldade de as suas diversas combinações apresentarem serne lhanças suficientemente evidentes e diferenças suficientemente nítidas parapermitirem a constituição de grupos e de subgrupos definidos. t £{_.-Mas ainda que fosse possível proceder a uma classificação segundo este método ela teria sempre o grande defeito de ser incapaz de prestar os serviços para que seriacriada. com efeito, em primeiro lugar, esta classificação deve ter como objetivo reduzir o trabalho científico substituindo o número indefinido de indivíduos porum número restrito de tipos; mas perde esta vantagem se os tipos só forem constituídos depois de todos os seus elementos terem sido inspecionados e analisados inteiramente.Pouco pode facilitar uma investigação que se limita a resumir as investigações já feitas. Só será verdadeiramente útil se nos permitir classificar outros fatos alémdaqueles que lhe servem de base, se nos fornecer um enquadramento para os fatos vindouros. O seu papel consiste em possibilitar nos pontos de referência que possamservir para enquadrar outras observações além daquelas que permitiram a constituição de tais pontos de referência. Mas e então necessário que esta classificaçãonào tenha sido feita depois de um inventário completo de todas as características individuais, mas em função de um pequeno número destas, cuidadosamente escolhidas.Nestas condições não servirá unicamente para pôr um pouco de ordem nos conhecimentos já estabelecidos; servirá para adquirir outros, novos. Poupará muitas diligênciasao observador porque o guiará. Se a classificação se basear neste princípio, já não será necessário observar todas as sociedades de uma espécie determinada parasaber se um dado fato é geral nesta espécie; bastarão algumas. Em muitos casos, uma só observação bem feita será bastante, assim como basta muitas vezes uma únicaexperiência bem conduzida para se chegar à formulação de uma lei.Portanto, devemos escolher para a nossa classificação características particularmente essenciais. É verdade que só é possível conhecê-las se a explicação dos fatosesti ver suficientemente avançada. Estas duas partes da ciência são solidárias uma com a outra e são tributárias dos progressos mútuos. No entanto, mesmo sem irmosmuito longe no estudo dos fatos, não é difícil imaginar de que lado devemos procurar as propriedades características dos fatos sociais. Sabemos, com efeito, queas sociedades são constituídas por partes que se juntam umas às outras. Dado que qualquer resultante depende necessariamente da natureza, do número dos elementosque a compõem e do modo de combinação destes, estas características são evidentemente as que devemos tomar como base; delas dependerão os fatos gerais da vida social.Por outro lado, como estas características são de ordem morfológica, poder-se-ia chamar morfologia social à parte da sociologia que tem como objetivo constituire classificar os tipos sociais.Pode-se, aliás, precisar o princípio desta classificação. Sabe se efetivamente que as partes que compõem uma sociedade são sociedades mais simples do que ela. Umpovo provém da reunião de dois ou vários povos que o precederam. Se, portanto, conhecêssemos a sociedade mais simples de todas, bastar-nos-ia seguir a maneira comoesta sociedade se ordena a ela própria e como os seus componentes se harmonizam entre si para estabelecer a classificação em causa.

II

Spencer compreendeu perfeitamente que a classificação metódica dos tipos sociais só podia basear-se nestas considerações."Vimos", afirma, "que a evolução social começa a partir de pequenos agregados simples; que progride através da união de alguns destes agregados em agregados maiores

p. 128e que, uma vez consolidados, estes grupos se unem a outros semelhantes para formarem agregados ainda maiores. A nossa classificação deve começar portanto pelas sociedadesde primeira ordem, isto é, pelas mais simples.''51Infelizmente, para pôr este princípio em prática, seria preciso começar por definir com precisão o que se considera como uma sociedade simples. Ora, esta definiçãonão é dada por Spencer, que aliás a considera mais ou menos impossível.52 É que a simplicidade, tal como ele a concebe, consiste essencialmente numa certa formagrosseira de organização, e não é fácil definir rigorosamente o momento em que a organização social é suficientemente rudimentar para poder ser considerada comosimples; é uma questão de apreciação. É por isso que a definição dada por Spencer é de tal modo vaga que se aplica a todas as espécies de sociedades. "O que temosa fazer", afirma, "é considerar como uma sociedade simples aquela que é formada por um todo que não depende de outra e cujas partes cooperam, com ou sem centroregulador, com vista a certos fins de interesse público."53 Há numerosos povos que satisfazem esta condição; englobam se aqui, um pouco ao acaso, todas as sociedadesmenos civilizadas. É fácil imaginar o que possa ser uma classificação que assenta num tal ponto de partida. Aparecem relacionadas, na mais espantosa confusão, sociedadesmuito diferentes, como os gregos homéricos e os feudos do século X tendo por base os dos bechuanas ou dos zulus, e a confederação ateniense juntamente com os feudosda França do século XIII assentando nos iroquesese nos araucanos.A palavra simplicidade só tem um sentido definido quando significa uma ausência total de partes. Por sociedade simples é preciso, portanto, subentender qualquersocie dade que não contém outras mais simples do que ela; que não só está atualmente redu zida a um segmento único como não apresenta nenhum vestígio de segmentaçãoanterior. A horda, tal como a definimos num outro trabalho.5 4 corresponde exatamente a esta definição. É um agregado social que não abrange e que nunca abrangeunenhum outro agregado mais elementar e que se decompõe imediatamente em indivíduos. Estes não formam no interior do grupo total grupos especiais e diferentes doprecedente; estão justa postos atomicamente. Não pode haver sociedade mais simples do que esta; é o protoplasma e, por conseguinte, a base natural de qualquer classificação.Talvez não exista nenhuma sociedade histórica que corresponda exatamente a esta definição; mas, como provamos no livro já citado, conhecemos uma quantidade delasque são formadas, de forma imediata e sem qualquer intermediário, por uma repetição de hordas. Quando a horda deixa assim de constituir uma sociedade inteira parase tornar num segmento social, muda de nome, passa a chamar-se clã; mas conserva as mesmas características constitutivas. Efetivamente, o clã é um agregado socialque não se decompõe em nenhum outro mais restrito. Poder-se-á talvez observar que, geralmente, os clãs hoje existentes englobam uma pluralidade de famílias

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particulares.Mas, primeiramente, e por razões que não podemos desenvolver aqui, cremos que a formação destes pequenos grupos familiares é posterior ao clã; em segundo lugar,não se pode afirmar que constituam segmentos sociais pois não são divisões políticas. Em qualquer lado em que o encontremos, o clã constitui a última divisão destegênero. Por conseguinte, ainda que não tivéssemos outras provas para postular a existência da horda — e como teremos um5' Sociologie, II, pág. 135.62 "Nem podemos determinar com precisão o que constitui uma sociedade simples." (Ibid., púgs 135-136.)53 Ibid., pag. 136.5 4 Division du Travail Social, pág. 189. f r .

p. 129dia a oportunidade de mostrar, há outros fatos que o provam —, a existência do clã, isto é, de sociedades formadas por uma reunião de hordas, permite-nos admitirque houve primeiramente sociedades mais simples que se reduziam à horda propriamente dita e considerar esta como a origem de todas as espécies sociais.Definida esta noção de horda ou sociedade de segmento único — quer a concebamos como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência — tem-se o ponto deapoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais. Distinguir-se-ão tantos tipos fundamentais quantas as maneiras como a horda se organiza a elaprópria para dar origem a sociedades novas e as maneiras como estas se combinam entre si. Primeiramente, temos os agregados formados por uma simples repetição dehordas ou de clãs, sem que estes clãs estejam associados entre si de modo a formar grupos interme diários entre cada um deles e o grupo global que os abrange a todos.Estão simplesmente justapostos tal como os indivíduos da horda. Encontram-se exemplos destas sociedades a que poderíamos chamar polissegmentárias simples em certastribos iroquesas e austra lianas. A arch ou tribo cabília tem a mesma característica; é a reunião de clãs sob a forma de aldeias. Muito possivelmente houve um momentohistórico em que a cúria ro mana ou a sociedade ateniense constituíam um grupo deste tipo. Virão em seguida as sociedades formadas pela reunião das sociedades precedentes,ou seja. as sociedades polissegmentárias simplesmente compostas, É o caso da confederação iroquesa e da for mada pela reunião das tribos cabílias: passou-se o mesmocom as três tribos primitivas cuja associação deu mais tarde origem à cidade romana. Viriam seguidamente as sociedades polissegmentárias duplamente compostas queresultam da justaposição ou fusão de várias sociedades polissegmentárias simplesmente compostas. E o caso da cidade, agregado de tribos, que são por sua vez agregadosde cúrias, que por seu lado se compõem de gentes ou clãs, e o caso da tribo germânica com os seus condados que se subdi videm em grupos, que por sua vez têm comoelemento último o clã sob forma de aldeia.Não é o momento de desenvolver este assunto pois não interessa proceder aqui a uma classificação das sociedades. É um problema demasiado complexo para poder sertratado de um modo ligeiro; supõe todo um conjunto de longas investigações. Quisemos simplesmente precisar idéias e mostrar como deve ser aplicado o método atravésde alguns exemplos. Mas não se deve considerar o que precedeu como uma classificação completa das sociedades inferiores. Simplificamos um pouco as coisas para tornara explica cão mais clara. com efeito, supusemos que cada tipo superior era formado por uma repetição de sociedades do mesmo tipo, a saber, do tipo imediatamenteinferior. Mas não é impossível que sociedades de espécies diferentes situadas a níveis desiguais na árvore genealógica dos tipos sociais se reúnam de modo a formaremuma nova espécie; conhece-se pelo menos o caso do Império Romano, que abrangia no seu seio povos de natureza ba-stante diferente.5 5Uma vez constituídos estes tipos, será necessário distinguir neles diferentes variedades, conforme as sociedades segmentárias que servem de base à sociedade resultanteconservem ou não uma certa individualidade. Efetivamente, compreende-se que os fenômenos sociais devam variar não só em função da natureza dos elementos que os compõem mas também de acordo com a forma como estes se combinam: devem ser até muito diferentes quando cada grupo parcial conserva a vida local ou adere à vida geral,isto é, conforme está mais ou menos concentrado. Por conseguinte, dever-se-á investigar65 Todavia, é possível que normalmente a distância entre as sociedades componentes não seja tão grande; de outro modo, não poderia haver entre elas nenhuma afinidademoral.

p. 130se em qualquer momento se produz uma coalescência completa destes segmentos. Convirá não esquecer que esta composição original da sociedade não afeta a organizaçãoadministrativa e política. Neste aspecto a cidade distingue-se claramente das tribos germânicas; nestas últimas a organização com base nos clãs permaneceu, aindaque de um modo apagado, até ao fim da sua história, enquanto em Roma ou em Atenas, as gentes e os réus deixaram muito rapidamente de serem divisões políticas parase tornarem agrupamentos privados.No seio dos enquadramentos que deste modo se formaram pode-se tentar introduzir novas distinções de acordo com as características morfologicas secundárias. No entanto,e por razões a que nos referiremos posteriormente, achamos pouco verossímil que possa haver qualquer utilidade em ultrapassar as divisões gerais que acabamos deindicar. Além disso, não somos obrigados a descer a estes detalhes; basta-nos ter definido o princípio de classificação, que pode ser enunciado do seguinte modo:Começar-se-ápor classificar as sociedades segundo o grau de composição que apresentam, tomando como base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único;no interior destas classes proceder-se-á à distinção das diferentes variedades conforme se produz ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais.

III

Estas regras respondem implicitamente a uma pergunta que o leitor fez talvez a si mesmo quando nos viu falar de espécies sociais como uma realidade, sem que antestenhamos estabelecido diretamente a sua existência. Esta prova está contida no próprio princípio do método que acaba de ser exposto.Efetivamente, acabamos de ver que as sociedades são meras combinações diferentes de uma só e única sociedade original. Ora, um só elemento não pode combinar-se comele próprio, e os compostos que dele resultam só podem por sua vez combinar-se entre si segundo um número limitado de maneiras, sobretudo quando os elementos componentessão pouco numerosos, o que é o caso dos segmentos sociais. A gama de combinações possíveis é, portanto, fmita, e por conseguinte a maior parte delas deve repetir-se.É assim que surgem as espécies sociais. Aliás, é possível que certas combinações só se produzam uma vez; isto não impede que as espécies existam. Dir-se-á simplesmenteque nos casos deste tipo a espécie só abrange um indivíduo.5 6Portanto, as espécies sociais existem pela mesma razão que existem espécies biológicas. Na realidade, estas são devidas ao fato de os organismos serem meras combinaçõesvariadas de uma única e mesma unidade anatômica. Todavia, sob este ponto de vista, há uma grande diferença entre os dois domínios. com efeito, nos animais há umfator especial que dá uma força de resistência às características específicas que as outras não têm; é a geração. Os primeiros, pelo fato de serem comuns a todaa linha dos ascendentes, estão mais enraizados no organismo. Portanto, não se deixam influenciar facilmente pela ação dos meios individuais; pelo contrário, mantêm-seidênticos a si próprios apesar da diversidade das circunstâncias exteriores. Há uma força interna que os fixa apesar das solicitações para a variação que podem provirdo exterior; é a força dos hábitos hereditários. É por isso que se encontram claramente definidos e que podem ser determinados com precisão. No domínio social,esta causa interna está ausente. As características específicas não podem ser reforçadas pela geração porque só duram uma geração.5 6 Não será este o caso do Império Romano, que parece único na história?

p. 131com efeito é habitual que as sociedades geradas sejam de uma espécie diferente da das sociedades geradoras porque, ao combinarem se, estas ultimas dão origem aarranjos totalmente novos Só a colonização poderia ser equiparada a uma geração por gemina cão. em todo o caso, para que a comparação fosse exata seria necessárioque o grupo de colonos não se misturasse com qualquer sociedade de outra espécie ou de outra varieda de Os atributos distintivos da espécie não recebem portantoda hereditanedade uma força suplementar que lhes permita resistir as variações individuais, modificam se e vá riam infinitamente sob a ação das circunstancias Quando

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se pretende atingi los, apôs se terem afastado todas as variantes que os dissimulam acontece muitas vezes obter se ape nas um resíduo bastante vago Esta mdeterminaçãoacentua se tanto mais quanto maior e d complexidade das características, quanto mais complexo e um dado objeto, mais numerosas são as combinações que as suas partespodem formar Resulta daqui que o tipo especifico não apresenta, para alem das características mais gerais e mais simples, contornos tão definidos como na biologia57

57 Quando redigimos este capitulo para a primeira edição desta obra nada dissemos acerca do método que consiste em classificar as sociedades segundo o respectivograu de ciulizaçao Naquele momento nenhuma classificação deste gênero fora proposta por sociólogos competentes salvo talvez a de Comte ainda que evidentemente arcaicaMais tarde varias tentativas foram feitas neste sentido nomeadamente por Vierkandt (Die Kulturtypen der Wenschheit m Archn / Anthropologie 1898) por Sutherland(The Origm and Growth ofthe Moral Instmct) e por Stemmetz (Classification dês Tvpes Socmux m Annee Sociologique in pags 43 147) Não obstante não as discutiremospoique não correspondem ao probleim levantado neste capitulo Nessas tentativas não transparece uma classificação das espécies sociais mas o que e muito dife renttdas fases históricas Desde a sua formação a França passou por formas de civilização muito diferen tes, eomeçou por ser agrícola passando em seguida a industria artesanale ao pequeno comercio depois para a manufatura e por ultimo para a grande industn i Ora e impossível pensar que uma individualidade cole tiva possa mudar de espécietrês ou quatro vezes Uma espécie deve definir se através de características mais constantes O estado econômico tecnológico etc apresenta fenômenos demasiadoinstáveis e complexos para constituir a base de uma classificação E mclusivamente muito possível que uma mesma civilização indu tnal cientifica ou artística possaencontrar se em sociedades de constituição congemtal muito diferen te O Japão poderá adotar a nossa arte a nossa industria ate mesmo a nossa organização políticamas não dux ira poi isso de pertencer a urm espécie socnl diferente da d i França e da da Alemanha Acrescentemos que estas tentitnis ainda que pirlindo de sociólogosde valor só deram resultados vagos contestáveis e com pouca utilidade

p. 132 CAPITULO QUINTO

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

A constituição das espécies é essencialmente um modo de agrupar os fatos a fim de facilitar a sua interpreta cão; a morfologia social encara os verdadeiros problemasda explicação científica. Qual é o método desta? I — Caráter finalista das explicações em vigor. A utilidade de um fato não explica a sua existência. Dualidade dasduas questões, estabelecida pelos fatos de sobrevivência, pela independência do órgão e da função, e a diversidade de serviços que pode prestar sucessivamente umamesma instituição. Necessidade da investigação das causas eficientes dos fatos sociais. Importância preponderante destas causas na sociologia, demonstrada pela generalidadedas práticas sociais, mesmo as mais minuciosas. A causa eficiente deve, portanto, ser deter minada independentemente da função. Por que deve a primeira investigaçãopreceder à segunda. Utilidade desta última. II — Caráter psicológico do método de explicação geralmente seguido. Este método desconhece a natureza do fato socialque é irredutível aos fatos puramente psíquicos em virtude da sua definição. Os fatos sociais só podem ser explicados por fatos sociais. Como isto acontece mesmoque a sociedade não tenha por matéria mais do que consciências individuais. Importância da associação que dá nascimento a um novo ser e a uma nova ordem de realidades.Solução de continuidade entre a sociologia e a psicologia, aná loga à que separa a biologia das ciências físico químicas. Se esta proposição se aplica ao fato daformação da sociedade. Relação positiva entre os fatos psíquicos e os fatos sociais. Os primeiros são a matéria indetermi nada que o fator social transforma: exemplos.Se os sociólogos lhes atribuíram um papel mais direto na gênese da vida social é porque tomaram por fatos puramente psíquicos estados de consciência que são apenasfenômenos sociais transformados. Outras provas em apoio da mesma proposição: 1º — independência dos fatos sociais em relação ao fator ético, o qual é de ordem orgânicopsíquica; 2." — a evolução social não é explicável por causas puramente psíquicas. Enunciado das regras sobre esta questão. É por estas regras serem desconhecidasque as explicações sociológicas têm um caráter demasiado geral, que as desacredita. Necessi dade de uma cultura propriamente sociológica. in — Importância primáriados fatos de morfologia social nas explicações sociológicas: o meio interno é a origem de todo o processo social de alguma importância. Papel particularmente preponderantedo elemento humano desse meio. O problema sociológico consiste, por tanto, e, sobretudo, em encontrar as propriedades desse meio que têm mais influências sobre osfenômenos sociais. Duas espécies de características correspondem, em particular, a esta condição: o volume da socie dade e a densidade dinâmica medida pelo graude coalescência dos segmentos. Os meios internos secunda rios; as suas relações com o meio geral e o detalhe da vida coletiva. Importância desta noção de meio social.Se a rejeitamos, a sociologia deixa de poder estabelecer relações de causalidade mas, apenas, relações de sucessão, não comportando a previsão científica: exemplostirados de Comte e de Spencer. Importância desta mesma noção para explicar como pode variar o valor útil das práticas sociais sem depender de arranjos arbi trários.Relações desta questão com a dos tipos sociais. A vida social assim concebida depende de causas internas. IV — Caráter geral desta concepção sociológica. Para Hobbes,a ligação entre o psíquico e o social é sintética e artificial; para Spencer e para os economistas, a ligação é natural mas analítica; para nós, é natu ral e sintética.Como estas duas características são conciliáveis. Conseqüências gerais que daqui resultam.

I

A maior parte dos sociólogos julga ter explicado os fenômenos a partir do momento em que definiu a sua utilidade e o papel que desempenham. Raciocina-se como setais fenômenos só existissem para desempenhar esse papel e tivessem como única causa determinante o sentimento, claro ou confuso, dos serviços que são chamados aprestar. É por essa razão que se julga té los tornado compreensíveis quando se estabeleceu a rea

p. 133lidade dos seus serviços e se mostrou a que necessidade social satisfazem. Comte, por exemplo, reduz toda a força progressiva da espécie humana à tendência fundamental"que incita diretamente o homem a melhorar continuamente e sob todos os aspectos a situação em que se encontra",58 enquanto Spencer a reduz ao desejo de atingiruma maior felicidade. Parte desse princípio para explicar a formação da sociedade pelas vantagens que resultam da cooperação, a instituição do governo pela utilidadeque há em regularizar a cooperação militar,59 as transformações por que passou a família pela necessidade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interessesdos pais, dos filhos e da sociedade.Mas este método confunde duas questões muito diferentes. Mostrar a utilidade de um fato não explica o seu nascimento nem a aparência com que nos surge, pois asfun ções para que serve supõem as propriedades específicas que o caracterizam, mas não o criam. A nossa necessidade das coisas não as determina; tal necessidadenão pode extraí-las do nada e conferir-lhes existência. Esta depende de causas de um outro gênero. O nosso sentimento da sua utilidade pode incitar-nos a provocarestas causas e a aproveitar os resultados que implicam, mas não a suscitar estes resultados a partir do nada. Isto é evidente quando se trata de fenômenos materiaisou mesmo psicológicos; mas também não seria contestado em sociologia se os fatos sociais, dada a sua imaterialidade extrema, não nos parecessem, erradamente, destituídosde qualquer realidade intrínseca. Dado que só vemos neles combinações puramente mentais, julgamos que surgem por si mesmos a partir do momento em que se tem umaidéia deles, e são considerados como sendo úteis. Mas como cada um deles é uma força que domina a nossa, pois é dotado de uma natureza que lhe é própria, nem o desejonem a vontade são suficientes para lhe conferir existência; seria necessário que possuíssemos forças capazes de produzir esta força determinada, uma natureza capazde produzir esta natureza especial. Para despertar o espírito de família onde este se revela mais fraco, não basta que todos compreendam as vantagens de tal necessidade;é necessário fazer atuar as suas causas, pois só elas o podem produzir. Para conferir a um governo a autoridade que lhe é necessária, não basta sentir esta necessidade;é preciso encontrar as origens da autoridade, isto é, constituir tradições, um espírito comum, etc., etc.; para tal, é ainda necessário procurar um ponto em quea ação do homem possa inserir-se eficazmente.A dualidade destas duas séries de investigações é bem demonstrada quando se sabe que um fato pode existir sem servir para nada, por nunca ter correspondido a qualquer

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fim vital ou por, depois de ter sido útil, ter perdido essa utilidade continuando a existir unicamente pela força do hábito. De fato, há ainda mais reminiscênciasna sociedade do que no organismo. Há casos em que um costume ou uma instituição social mudam de funções sem que a sua natureza se modifique. A regra is pater estquemjustae nuptiae declarant60 permaneceu no nosso código idêntica àquilo que era no velho direito romano; mas, ao passo que então tinha como objetivo salvaguardaros direitos de propriedade do pai em relação aos filhos da mulher legítima, atualmente tende a proteger os direitos das crianças. O juramento começou por ser umaespécie de prova judiciária para se tor nar simplesmente uma forma solene e imponente de testemunho. Desde há séculos que os dogmas religiosos do cristianismo nãomudaram; mas o papel que desempenham nas nossas sociedades modernas já não é o mesmo que desempenhavam na Idade Média. As58 Cours de Philosophie Positive, IV, pág. 262.59 Sociologie, in, pág. 336.60 Pai é aquele que é apontado pelo casamento. (.N. do E.)

p. 134palavras servem para exprimir idéias novas sem que a sua estrutura se modifique. A afirmação de que o órgão é independente da função, isto é, de que, embora permanecendoo mesmo, pode servir para fins diferentes, é tão verdadeira em sociologia como em biologia. Isto significa que as causas que o fazem existir são independentes dosfins para que serve.Não pretendemos afirmar que as tendências, as necessidades ou os desejos dos ho-- mens nunca intervém de uma maneira ativa na evolução social. Pelo contrário, nãohá dúvida de que lhes é possível, conforme a maneira como agem sobre as condições de que depende um fato, apressar ou moderar o desenvolvimento deste. Porém, e alémde nunca poderem fazer algo a partir do nada, a sua intervenção só pode realizar-se através do aproveitamento de causas eficientes. com efeito, uma tendência sópode contribuir para a produção de um fenômeno novo se for ela própria nova, isto é, se se constituir total mente como inovação ou for devida a qualquer transformaçãode uma tendência ante rior. A menos que se postule uma harmonia preestabelecida e providencial, não se pode admitir que o homem tenha em si mesmo desde a sua origeme em estado virtual todas as tendências que se possam considerar oportunas no decorrer da sua evolução. Uma tendência também é uma coisa; não é pelo simples fatode lhe encontrarmos uma utilidade que ela se pode constituir ou modificar. Ê uma força que tem a sua natureza própria, e que não pode ser suscitada ou alterada pelofato de vermos nisso alguma vantagem. Para que tais modificações se produzam é necessário que existam causas ativas que as impliquem fisicamente.Por exemplo, explicamos os progressos constantes da divisão do trabalho social mostrando a sua necessidade a fim de que o homem se possa conservai nas novas condiçõesde existência que se lhe deparam; atribuímos pois a esta tendência, a que se chama muito impropriamente instinto de conservação, um papel muito importante. Mas,por exemplo, ela nunca poderia explicar por si só a especialização, mesmo a mais rudimentar, pois não a pode criar se as condições de que depende este fenômeno nãose encontram já realizadas, isto é. se as diferenças individuais não aumentarem suficientemente devido à indeterminação progressiva da consciência comum e das influênciashereditá rias.61 Além disso, seria necessário que a divisão do trabalho já tivesse surgido para que a sua utilidade e necessidade fosse reconhecida; o simples desenvolvimentodas divergên cias individuais, ao implicar uma maior diversidade de gostos e de aptidões, produzia necessariamente este primeiro resultado. Mas o instinto de conservaçãonão veio por si só, e sem qualquer causa justificativa, fecundar este primeiro germe da especialização. Se nos orientou nesta nova via. é porque o caminho seguidoaté então foi bloqueado, pois a maior intensidade da luta, devida à maior condensação das sociedades, tornou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduosque continuavam a dedicar-se a tarefas gerais. Houve portanto necessidade de mudar de direção. Por outro lado, se a nossa atividade foi desviada no sentido de umadivisão de trabalho cada vez mais desenvolvida, é porque era este o sentido que opunha uma menor resistência. As outras soluções possíveis eram a emigração, o suicídio,o crime. Ora, em regra, os laços que nos ligam ao nosso país, à vida, a simpatia que temos pelos nossos semelhantes são sentimentos mais fortes e mais resistentesdo que os hábitos suscetíveis de nos afastar de uma especialização mais rígida. Foram portanto estes que cederam quando foi necessário dar um passo em frente. Logo,não somos obrigados a recorrer ao finalismo pois não nos recusamos a fazer intervir as necessidades humanas nas explicações sociológicas; aquelas só podem influir na

61 Division du Travail, 1. II, caps. in e IV.

p. 135evolução social porque também evoluem, e as modificações por que passam não podem ser explicadas por causas finalistas.Mas ainda mais convincentes do que as considerações anteriores é a própria prática dos fatos sociais. Onde existe fmalismo, existe também uma grande contingênciapois não há fins ou meios que se imponham necessariamente a todos os homens, mesmo que estes se encontrem nas mesmas circunstâncias. Num ambiente idêntico, cadaindivíduo, conforme o humor próprio, adapta-se-lhe à sua maneira. Um tentará modificá-lo a fim de o pôr de acordo com as suas necessidades; outro preferirá modificar-sea si mesmo e refrear os seus desejos. Para chegar a um mesmo fim, quantas vias diferentes podem ser e são efetivamente seguidas! Se o desenvolvimento histórico tivesseprocurado fins claros ou obscuramente sentidos, os fatos sociais apresentariam portanto uma diversidade infinita e seria praticamente impossível estabelecer qualquerespécie de comparação. Ora, o contrário é que é a verdade. Não há dúvida de que os acontecimentos exteriores cuja trama constitui a parte superficial da vida socialvariam de um povo para outro; mas é precisamente isso que justifica o fato de cada indivíduo ter a sua história, apesar de as bases da organização física e moralserem as mesmas para todos. Na realidade, quando se está em contato com os fenômenos sociais, fica-se surpreendido com a espantosa regularidade com que eles sereproduzem nas mesmas circunstâncias. Mesmo as práticas mais minuciosas, e aparentemente mais pueris, repetem-se com grande uniformi„ dade. Uma cerimônia nupcial,puramente simbólica ao que parece, como o rapto da noiva, encontra-se sempre que existe um determinado tipo familiar ligado a toda uma organização política. Muitoscostumes estranhos podem ser observados nos povos mais diversos e são sintomáticos de um determinado estado social. O direito de fazer testamento surge numa determinadafase da história e, de acordo com as restrições mais ou menos importantes que o limitam, pode-se afirmar em que momento da evolução social nos encontramos. Seriafácil multiplicar os exemplos. Esta generalidade das formas coletivas seria inexplicável se as causas finais tivessem em sociologia a preponderância que se lhesatribui.Portanto, quando nos lançamos na explicação de um fenômeno social, temos de investigar separadamente a causa eficiente que o produz e a função que ele desempenha.Preferimos servir nos do termo função em vez de fim ou de objetivo, precisamente porque os fenômenos sociais não existem geralmente com vista aos resultados úteisque produzem. O que é necessário determinar é se existe correspondência entre o fato considerado e as necessidades gerais do organismo social e em que consiste estacorrespondência, sem nos preocuparmos em saber se foi ou não intencional. Todas estas questões de intenção são, aliás, demasiado subjetivas para poderem ser discutidascientificamente.Estas duas séries de problemas devem ser desligadas uma da outra; e em geral convém estudar a primeira antes da segunda. Esta série corresponde, com efeito, à dosfatos. É natural que se procure a causa de um fenômeno antes de tentar determinar os seus efei tos.o que é lógico, pois, uma vez resolvida a primeira questão, aresolução da segunda é muito facilitada. com efeito, o laço de solidariedade que liga a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não tem sido suficientementereconhecido. O efeito não pode existir sem a causa, mas esta, por sua vez, tem necessidade do efeito. É a partir dela que o efeito obtém a sua energia, se bem que,dado que este lha restitui na altura devida, olá se ressente se o efeito desaparecer. 62 Por exemplo, a reação social materializada pela62 Não era nossa intenção levantar problemas de filosofia geral cujo lugar não é aqui. Reparemos, no entanto, que. se for estudada mais cuidadosamente, esta reciprocidadeentre a causa e o efeito poderia fornecer um meio para reconciliar o mecanismo científico e o finalismo que a existência e. em especial, a persistência da vida implicam.

p. 136pena é devida à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende; mas tem como função útil conservar estes sentimentos no mesmo grau de intensidade, poiseles não tar dariam a modificar-se se as ofensas que lhes são infligidas não fossem castigadas. 83 Da mesma forma, à medida que o meio social se torna mais complexo

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e mais instável, as tra dições e as crenças desmoronam-se, tornam-se mais vacilantes e flexíveis, e as faculdades de reflexão desenvolvem-se: mas estas mesmas faculdadessão indispensáveis às socieda dês e aos indivíduos para poderem adaptar-se a um meio mais instável e mais comple xo.6 4 À medida que os homens são obrigados a executarum trabalho mais intenso, os produtos deste trabalho tornam-se mais numerosos e de qualidade superior; e estes pró dutos, melhores e mais abundantes, são necessáriospara compensar as despesas que este trabalho mais considerável implica.6 5 Assim, a causa dos fenômenos sociais não con siste numa antecipação da função que sãochamados a desempenhar; pelo contrário, esta função, pelo menos num grande número de casos, consiste em conservar a causa preexis tente donde derivam. Portanto,se a segunda já é conhecida, encontrar-se-á mais fácil mente a primeira. Mas, se só se deve proceder à determinação da função em segundo lugar, ela não deixa deser necessária para que a explicação do fenômeno seja completa. com efeito, se não é a utilidade do fato que o faz nascer, ela é porém necessária para que o fatose mantenha. Se não servir para nada, tal fato será prejudicial pois implicará uma despesa não recompensada. Se a generalidade dos fenômenos sociais revestisse estecaráter parasitário, o orçamento do organismo estaria em déficit e a vida social seria impossível; logo, para que esta se revele satisfatoriamente compreensível,é necessário mostrar como os fenômenos que constituem a sua matéria contribuem para a harmonia da sociedade, no seu seio e com o exterior. Sem dúvida que a fórmulacorrente que define a vida como uma correspondência entre o meio interno e o meio externo não é senão uma aproximação; mas é em geral verdadeira e, portanto, paraexplicar um fato de ordem vital, não basta mostrar a causa de que depende, e é ainda necessário, pelo menos na maior parte dos casos, achar a parte que lhe cabena criação desta harmonia geral.

II

Uma vez diferenciadas estas duas questões, temos de determinar o método segundo o qual devem ser resolvidas.Ao mesmo tempo que é finalista, o método de explicação geral seguido pelos sociólogos é essencialmente psicológico. Estas duas tendências são solidárias. com efeito,se a sociedade é apenas um sistema de meios instituídos com vista a certos fins, estes fins só podem ser individuais pois, antes da sociedade, só podiam existirindivíduos. É portanto do indivíduo que emanam as idéias e as necessidades que determinam a formação das sociedades e, se tudo provém dele, é necessariamente atravésdele que tudo deve ser explicado. Aliás, na sociedade só existem consciências particulares; é portanto nestas últimas que se encontra a origem de toda a evoluçãosocial. Logo, as leis sociológicas são apenas um corolário das leis mais gerais da psicologia; a explicação suprema da vida coletiva consistirá em mostrar como eladeriva da natureza humana em geral, por dedução direta e sem observação prévia ou depois de a ter observado.63 Division du Travai! Social, 1. II, cap. II, e especialmente págs. 105 e seguintes.6 * Division du Travail Social, págs. 52 e 53.6 º Ibid., págs. 301 e seguintes.

p. 137Estes termos correspondem mais ou menos às palavras utilizadas por Auguste Comte para caracterizar o seu método. Dado que afirma que "o fenômeno social, concebidona totalidade, não é, no fundo, senão um simples desenvolvimento da humanidade, sem qualquer espécie de criação de faculdades ", 8 6 como mais acima afirmamos, todasas disposições efetivas que a observação sociológica poderá revelar deverão portanto reencontrar se pelo menos em germe neste tipo primordial que a biologia elaborouantecipadamente para a sociologia. Segundo este autor, o fato dominante da vida social é o progresso e este, por outro lado, depende de um fator exclusivamente psíquico,a saber, a tendência que leva o homem a desenvolver cada vez mais a sua natureza. Os fatos sociais derivariam de um modo tão imediato da natureza humana, que, duranteas primeiras fases da história, poderiam ser diretamente deduzidos sem que fosse necessário recorrer à observação.6 7 Comte confessou ser impossível aplicar estemétodo dedutivo aos períodos mais avançados da evolução; mas esta impossibilidade é puramente prática, e provém do fato de a distância entre o ponto de partida eo ponto de chegada se tornar demasiado grande para que o espírito humano se perca se tentar percorrer essa distância sem um guia.68 Mas a relação entre as leis fundamentaisda natureza humana e os resultados finais do progresso não deixa de ser analítica. As formas mais complexas da civilização correspondem precisamente à vida psíquicadesenvolvida. Assim, mesmo que as teorias da psicologia não possam bastar como premissas do raciocínio sociológico, elas constituem a peça fundamental do tabuleiro,a única que permite avaliar a validade das proposições estabelecidas indutivamente. Comte afirma que "nenhuma lei da sucessão social, ainda que o método históricoa defenda com toda a sua autoridade, poderá ser admitida senão após ter sido relacionada direta ou indiretamente com a teoria positiva da natureza humana".69 Portanto,é sempre a psicologia que tem a última palavra a dizar.É este também o método seguido por Spencer. com efeito, segundo este, os dois fatos primários dos fenômenos sociais são o meio cósmico e a constituição física emoral do indivíduo.70 Ora, o primeiro só poderá influir sobre a sociedade através do segundo, que é deste modo o motor essencial da evolução social. A sociedadeconstitui-se para permitir ao indivíduo realizar a sua natureza, e todas as transformações pelas quais passou não têm outro fim senão o de tornar esta realizaçãomais fácil e mais completa. É em virtude deste princípio que, antes de se lançar em qualquer investigação sobre a organização social, Spencer achou por bem dedicarquase todo o primeiro tomo dos seus Princípios de Sociologia ao estudo do homem primitivo físico, emocional e intelectual. "A ciência da sociologia", afirma, "partedas unidades sociais, submetidas às condições que vimos, constituídas por elementos físicos, emocionais e intelectuais, de posse de certas idéias cedo adquiridase dos sentimentos correspondentes." 71 E é em dois destes sentimentos, o receio dos vivos e o receio dos mortos, que este autor encontra a origem do governo políticoe do governo religioso.72 Este autor admite que, uma vez constituída, a sociedade reage contra os indivíduos;73 mas tal não significa que ela tenha o poder de66 Cours de P/iiloiop/iii-Püsilive, IV, páa 333 "~67 íbid., pág. 345. " '»-'-,68 Cours de Philosophie Positive, pág. 346. .- *69 /Wd., pág. 335. * \70 Príncipes de Sociologie, I, 14, 14.71 Op. cf/.. I, pág. 583. **"72 íbid., pág. 582.73 íbid., pág. 18.

p. 138produzir diretamente o mais pequeno fato social; deste ponto de vista, só tem alguma eficácia causai por intermédio das modificações que determina no indivíduo.Portanto, é sempre da natureza humana, tanto primitiva como derivada, que tudo dimana. Aliás, esta ação que o corpo social exerce sobre os seus membros não podeter nada de especí fico dado que os fins políticos não são nada em si mesmos e se constituem como mera expressão resumida dos fins individuais.7 4 Portanto, elaé apenas uma espécie de retorno da atividade particular sobre si mesma. Nas sociedades industriais, que têm precisamente0 objetivo de deixar o indivíduo entregue a si próprio e aos seus impulsos naturais, liber tando-o de toda e qualquer sujeição social, não se vê em que possa elaconsistir.Este princípio não está apenas na origem destas grandes doutrinas de sociologia geral; inspira igualmente um número enorme de teorias particulares. Por exemplo,expli ca-se vulgarmente a organização doméstica através dos sentimentos dos pais em relação aos filhos e destes em relação aos primeiros; a instituição do casamentopelas vantagens que oferece aos esposos e à respectiva descendência; o castigo pela cólera que provoca no indivíduo qualquer lesão grave aos seus interesses. Todaa vida econômica tal como os economistas a concebem e a explicam, em especial os da escola ortodoxa, está decisi vãmente dependente deste fator puramente individual,o desejo da riqueza. No campo da moral, consideram-se os deveres do indivíduo para consigo próprio como a base da ética. A religião é considerada como um produtodas impressões que as grandes forças da natureza ou certas personalidades eminentes despertam no homem, etc., etc.Mas só se poderá aplicar um tal método aos fenômenos sociológicos se ele não os desnaturar. Para o provarmos, basta que nos refiramos à definição dada mais atrás.Dado que a característica essencial destes fenômenos reside no poder que têm de exercer, a partir do exterior, uma pressão sobre as consciências individuais, nãoé daí que deri vam; logo, a sociologia não é um corolário da psicologia, pois este poder de coação revê la-nos que exprimem uma natureza diferente da nossa, dadoque só penetram em nós pela torça ou, pelo menos, exercendo uma maior ou menor pressão. Se a vida social fosse um mero prolongamento do ser individual, não a veríamoselevar-se até à origem e invadi-la impetuosamente. Dado que a autoridade diante da qual o indivíduo se submete quando age, sente ou pensa socialmente o domina até

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esse ponto, é porque ela é um produto de1 orcas que o ultrapassam e que, por conseqüência, não conseguiria explicar. Não é dele que pode provir esse impulso exterior a que está submetido; não é portantoo que se passa com ele que a poderá explicar. Não somos incapazes de nos reprimir a nós próprios; podemos refrear as nossas tendências, hábitos, os próprios instintose até mesmo impedir o seu desenvolvimento através de um ato de inibição. Mas não devemos confun dir os atos inibitivos com aqueles que constituem a coação social.O processo dos pri ineiros é centrífugo; o dos segundos é centrípeto. Uns elaboram-se na consciência indivi dual e tendem em seguida a exteriorizar-se; os outrossão inicialmente exteriores ao indivíduo, mas tendem a moldá-lo à sua imagem e semelhança. A inibição é, por assim dizer, o meio através do qual a coação socialproduz os seus efeitos psíquicos; ela não é essa coação.Ora, posto de lado o indivíduo, resta-nos apenas a sociedade; é portanto necessário ir até à natureza da própria sociedade para se encontrar a explicação da vidasocial. Dado que ela ultrapassa infinitamente o indivíduo tanto no tempo como no espaço,7 4 "A sociedade existe para benefício dos seus membros, os membros não existem para o benefício da socie dade. . .: os direitos do corpo político não são nada emsi mesmos, só podem vir a ser alguma coisa com a condição de encarnarem os direitos dos indivíduos que o constituem." (Op. eu , II. pág. 20.)

p. 139compreende-se que esteja apta a impor-lhe as maneiras de agir e de pensar que foram sancionadas pela sua autoridade. Esta pressão, que é o sinal distintivo dos fatossociais, é a que todos exercem sobre cada um deles.Mas, poder-se-á ripostar, dado que os únicos elementos que constituem a sociedade são os indivíduos, a origem principal dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica.Raciocinando deste modo, também se pode afirmar que os fenômenos biológicos se explicam analiticamente pelos fenômenos inorgânicos. com efeito, na célula viva sóexis tem moléculas de matéria bruta; simplesmente, estão associadas e é esta associação que é a causa dos fenômenos novos que caracterizam a vida e cujo germe éimpossível encontrar em qualquer um dos elementos associados. Um todo não é idêntico à soma das par tes que o constituem: é algo de diferente cujas propriedadesdiferem das que revelam as partes de que é composto. A associação não é, como por vezes se pensou, um fenômeno, por si mesmo, infecundo, que consiste simplesmenteem relacionar exteriormente fatos adquiridos e propriedades constituídas. Não será antes, pelo contrário, a origem de todas as novidades que se foram produzindosucessivamente no decorrer da evolução geral das coisas? Em última análise, todos estes seres se convertem em elementos da mesma natu reza; mas estes elementos encontram-seora justapostos ora associados de uma maneira ou de outra. Podemos perguntar a nós próprios se esta lei não se aplicará inclusive no mundo mineral e se as diferençasque separam os corpos não organizados não terão a mesma origem.Em virtude deste princípio, a sociedade não é uma simples soma de indivíduos, pois o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica quetem as suas características próprias. Sem dúvida que nada se pode produzir de coletivo sem que se manifestem consciências particulares; mas esta condição necessárianão é suficiente. É necessário ainda que estas consciências se associem, de uma certa maneira; é desta combinação que resulta a vida social e, por conseguinte, éesta combinação que a explica Ao agregarem-se, ao penetrarem-se, ao fundirem-se, as almas individuais dão origem a um ser, psíquico por assim dizer, mas que constituiuma individualidade psíquica de um estilo novo.7 5 É portanto na natureza desta individualidade, e não na das unidades componentes, que se deve procurar as causaspróximas e determinantes dos fatos que nela se produzem. O grupo pensa, sente e age de um modo muito diferente do que o fã riam os seus membros caso estivessem isolados.Portanto, se se parte destes últimos, não se compreenderá absolutamente nada do que se passa no grupo. Resumindo, entre a psi cologia e a sociologia existe a mesmasolução de continuidade que entre a biologia e as ciências físico-químicas. Todas as vezes que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico,podemos estar certos de que a explicação é falsa.Argumentar se-á, talvez, que, se a sociedade, uma vez constituída, é com efeito a causa próxima dos fenômenos sociais, as causas que determinaram a sua constituiçãosão de natureza psicológica. Aceita-se que, quando os indivíduos estão associados, esta75 Eis em que sentido e por que razões se pode e deve falar de uma consciência coletiva distinta das consciências individuais. A fim de justificar esta distinção,não é necessário atribuir existência real à primeira; constitui qualquer coisa de particular e deve ser designada por um termo especial simplesmente pelo fato deos estados que a constituem diferirem especificamente dos que constituem as consciências particulares. Esta especificidade provém do fato de eles não serem constituídospelos mesmos elementos. com efeito, uns derivam da natureza do ser orgânico-psíquico considerado isoladamente, e os outros da combinação de uma pluralidade de seresdeste gênero. As resultantes não podem portanto deixar de diferir, dado que os componentes diferem neste ponto. Aliás, a nossa definição do fato social assinalavasimplesmente esta linha de demarcação de uma outra maneira.

p. 140associação pode dar origem a uma vida nova, mas entende-se que ela só pode existir por razões individuais. Porém, por muito que se recue na história, a associaçãoé o fato mais obrigatório de todos, porquanto é a causa de todas as outras obrigações. Em virtude do meu nascimento, estou obrigatoriamente ligado a um determinadopovo. Diz-se que. mais tarde, uma vez adulto, aquiesço a esta obrigação pelo simples fato de continuar a viver no meu país. Porém, este consentimento não lhe tirao caráter imperativo. Uma pressão que é aceita e suportada de bom grado não deixa de constituir uma pressão. Aliás, qual poderá ser o significado de uma tal adesão?Em primeiro lugar é forçada, pois na grande maioria dos casos é-nos materialmente e moralmente impossível renun ciar à nossa nacionalidade; uma tal renúncia é mesmogeralmente considerada como uma abjuração. Em seguida, não podemos pôr em causa um passado que não foi esco Ihido e que, no entanto, determina o presente. Não quisa educação que recebi: mas é ela que, mais do que qualquer outra causa, me prende ao solo natal. Por outro lado, dado que o futuro me é desconhecido, que não conheçotodos os deveres que qualquer dia me poderão exigir na minha qualidade de cidadão, como poderia eu aquiescer com antece dência? Tudo o que é obrigatório, como odemonstramos, tem a sua origem fora do indi víduo. Portanto, enquanto não sairmos do âmbito da história, a associação apresenta o mesmo caráter dos outros fatose, por conseguinte, explica-se da mesma maneira. Por outro lado, como todas as sociedades nasceram de outras sociedades sem solução de continuidade, podemos estarcertos de que, no decorrer da evolução social, não houve uma ocasião em que os indivíduos tivessem tido verdadeiramente de deliberar a fim de saberem se entrariamou não numa dada vida coletiva. Para que se pudesse pôr este pró blema seria necessário ir às origens de qualquer sociedade. Mas as soluções, sempre duvidosas, quepodemos dar a tais problemas nunca poderiam afetar o método segundo o qual devem ser analisados os fatos da história; não temos portanto de os discutir.Não queremos dizer com isto que a sociologia deve ou pode fazer abstração do homem e das suas faculdades. Pelo contrário, é claro que as características geraisda natureza humana entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida social. Mas não são elas que a suscitam ou lhe conferem a sua forma particular; tornaram-naunicamente possível. As causas geradoras das representações, das emoções, das tendências coletivas não são constituídas por certos estados da consciência dos particulares,mas pelas condi ções em que se encontra o corpo social tomado em conjunto. É claro que só se podem realizar se as naturezas individuais não se revelarem refratáriasa este; mas estas consti tuem apenas a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma. A sua contribuição limita se aos estados muito gerais, àspredisposições vagas e, por conse guinte, plásticas que não conseguiriam, por si sós, tomar as formas definidas e comple xás que caracterizam o;> fenômenos sociais.Que abismo existe, por exemplo, entre os sentimentos que o homem sente diante de forças superiores à sua e a instituição religiosa com os seus credos, as suas práticastão múltiplas e complexas, a sua organização material e moral; entre as condições psíquicas da simpatia que dois seres do mesmo sangue sentem um pelo outro 7 6 eo conjunto prolixo de regras jurídicas e morais que determinam a estrutura da família, as relações das pessoas entre elas, das coisas com as pessoas, etc.! Vimosque, mesmo quando a socie dade se reduz a uma multidão desorganizada, os sentimentos coletivos que nela se constituem não só podem ser diferentes como podem opor-seà média dos sentimentos indivi-7 6 Na condição de que exista antes de qualquer vida social. Ver, sobre esta questão, Espinas, Sociétés Ani, .males, pág. 474.

p. 141duais. Quanto maior ainda não será o afastamento quando a pressão que o indivíduo suporta é a de uma sociedade regular, em que à ação dos contemporâneos se acrescentaa das gerações anteriores e da tradição! Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais acaba portanto por deixar escapar tudo o que eles têm de específico,isto é, de social.

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O que fez com que tantos sociólogos não se apercebessem da insuficiência deste me todo foi o fato de, ao tomarem o efeito pela causa, terem freqüentemente citadocomo condições determinantes dos fenômenos sociais certos estados psíquicos, relativamente definidos e especiais, mas que, na realidade, são conseqüência daqueles.Por exemplo, considerou-se inato um certo sentimento de religiosidade do homem, um certo mínimo de ciúme sexual, de devoção filial, de amor paterno, etc., e foia partir daí que se quis expli car a religião, o casamento, a família. Mas a história revela que estas tendências, longe de serem inerentes à natureza humana, ounão existem em certas condições sociais, ou manifestam tais variações de uma sociedade para outra que o resíduo que se obtém de pois de se eliminarem todas estasdiferenças, e que unicamente se pode considerar como sendo de origem psicológica, reduz-se a algo de vago e de esquemático que deixa os fatos que interessa explicara uma distância infinita. Quer isto dizer portanto que, longe de constituírem a base desta, estes sentimentos resultam da organização coletiva. Além disso, não estáde forma nenhuma provado que a tendência para a sociabilidade tenha constituído, desde a origem, um instinto congenital da espécie humana. É muito mais natural quese veja nela um produto da vida social que lentamente se organizou em nós, porquanto é fácil observar que os animais são ou não sociáveis conforme as disposiçõesdos seus habitais os obriguem à vida em comum ou os levem a afastarem se dela. É ainda necessário acrescentar que a diferença entre estas tendências mais determinadase a realidade social permanece considerável.Existe, aliás, um meio de isolar quase completamente o fator psicológico de forma qut- sé possa precisar o alcance deste: é investigar de que maneira a raça afeta a evolução social. com efeito, os caracteres étnicos são de ordem orgânico-psíquica. A vida social deve portanto variar quando eles variam, isto na hipótese de os fenômenos psicológicos exercerem sobre a sociedade a eficácia causai que se lhes atribui. Ora, não temos conhe cimento de nenhum fenômeno social que esteja incontestavelmente na dependência da raça. É claro que não poderíamos conferir a esta proposição o valor de uma lei; mas. pelo menos, podemos apresentá-la como um fato constante da nossa prática. Encon tram-se as formas mais diversas de organização no seio de sociedades de raças semelhan tes. ao passo que se observam semelhanças evidentes entre sociedades de raças diferentes A cidade existiu na Fenícia, assim como em Roma e na Grécia; encontramo-la em via de formação nos Cabílios. A família patriarcal encontrava-se quase tão desenvolvida no seio dos hindus como no seio dos judeus, embora já não a encontremos nos eslavos que, no entanto, são de raça ariana. Em compensação, o tipo familiar que encontramos neste povo existe também nos árabes. Por toda a parte encontra-se a família maternal e o clã. De um ponto de vista étnico, o detalhe das provas judiciárias e das cerimônias nup ciais é idêntico nos mais diferentes povos. Isto acontece porque a contribuição psíquica é demasiado geral para poder predeterminar o desenvolvimento dos fenômenos sociais. Dado que não implica uma forma social com preferência a uma outra, não pode explicar nenhuma. Há, é claro, um determinado número de fatos que é costume serem atribuídos à influência da raça; assim se explica, nomeadamente, que o desenvolvimento das letras e das artes tenha sido tão rápido e intenso cm Atenas e tão lento e medíocre em Roma. Mas, apesar de clássica, esta interpretação dos fatos nunca foi demonstrada metódica-

p. 142mente; toda a sua autoridade provém da tradição. Nem sequer se tentou descobrir uma possível explicação sociológica dos mesmos fenômenos; e estamos convencidos de que ela poderia ser tentada com sucesso. . . Em suma, quando se atribui, com esta facilidade, o caráter artístico da civilização ateniense a propriedades estéticas congenitais, está-se mais ou menos a agir como na Idade Média, quando se explicava o fogo pelo fio gisto e os efeitos do ópio pela sua propriedade soporífera.Por último, se de fato a origem da evolução social fosse inerente à constituição psicológica do homem, não se compreende como poderia ter-se realizado; seria necessário admitir que tivesse como propulsor alguma força inerente à natureza humana. Mas de que força se poderia tratar? Tratar-se-ia dessa espécie de instinto a que se refere Comte e que incitaria o homem a realizar cada vez mais a sua natureza? Mas isso eqüivale a responder à pergunta com outra pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata para o progresso, verdadeira entidade metafísica cuja existência, aliás, nada prova; porquanto mesmo as espécies animais mais avançadas não sentem necessidade de progredir e, inclusivamente, nas sociedades humanas, existem muitas que preferem man ter-se indefinidamente estacionárias. Tratar-se-ia, como parece crer Spencer, da necessi dade de uma maior felicidade que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar? Seria então necessário afirmar que a felicidade aumenta com a civilização e nós já mostramos todas as dificuldades que esta hipótese levanta.7 7 Mais ainda: mesmo que se acabasse por aceitar um ou outro destes dois postulados, não seria por isso que o desenvolvimento histórico se tornaria inteligível, porquanto a expli cação que daí resultaria seria puramente finalista e nós já mostramos que os fatos sociais, assim como todos os fenômenos naturais, não podem ser explicados pela mera indicação do fim a que se destinam. Embora se tenha provado que as organizações sociais cada vez mais científicas que se sucederam no decorrer da história têm tido sem pré como efeito satisfazer de um modo mais completo esta ou aquela nossa tendência fundamental, isto não quer dizer que se tenha explicado como se produziram. O fato de se terem revelado úteis não nos indica o que as originou. Ainda que explicássemos a forma como conseguimos imaginá-las e planificá-las com antecedência de modo a termos uma idéia dos serviços que podemos esperar delas — e este é já um problema difícil —, o desejo que delas tivéssemos não bastaria para as tirar do nada. Resumindo, e mesmo admitindo que elas constituem os meios necessários para se atingir o fim que se pretende, o problema mantém-se: como, isto é, a partir de que e para que estes meios foram constituídos?Chegamos portanto à seguinte regra: A causa determinante de um fato social deve ser procurada nos fatos sociais antecedentes e não nos estados da consciência individual. Por outro lado, concebe-se facilmente que tudo o que precede se aplica tanto à determi nação da função como da causa. A função de um fato social não pode ser senão social, isto é, só pode consistir na produção de efeitos socialmente úteis. Sem dúvida que pode acontecer, e acontece na realidade, que. por via indireta, sirva também o indivíduo. Mas a sua razão de ser imediata não é este resultado feliz. Podemos portanto completar a proposição anterior dizendo: A função de um fato social deve ser sempre procurada na relação existente entre ele e um determinado fim social.É pelo fato de os sociólogos terem freqüentemente ignorado esta regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto de vista demasiado psicológico que as suas teorias se revelaram, para muitos, como demasiado vagas, vacilantes e afastadas da natu-Division du Travail Social, l, 11, cap. I.

p. 143reza particular das coisas que julgam explicar. O historiador, nomeadamente, que vive na intimidade da realidade social, não pode deixar de sentir fortemente até que ponto estas interpretações demasiado gerais se revelam impotentes para alcançarem os fatos; e é sem dúvida isto que fez em parte com que a história tivesse freqüentemente testemunhado uma desconfiança em relação à sociologia. Isto não significa que o estudo dos fatos psíquicos não seja indispensável ao sociólogo. Se a vida coletiva não deriva da vida individual, é porque ambas estão relacionadas intimamente; se a segunda não pode expli car a primeira, poderá, pelo menos, facilitar a sua explicação. Em primeiro lugar, como mostramos, é incontestável que os fatos sociais são produzidos por uma elaboração sui generis de fatos psíquicos. Mas, além disso, esta própria elaboração está relacionada com a que se realiza em cada consciência individual e que transforma progressivamente os elementos primários (sensações, reflexos, instintos) que originalmente a constituem. É com um certo fundamento que se afirmou que o próprio eu era uma sociedade, da mesma forma que o organismo, embora de uma outra maneira, e há já muito que os psicólogos mostraram toda a importância do fator associação para a explicação da vida espiritual. Mais ainda do que uma cultura biológica, uma cultura psicológica constitui portanto para o sociólogo uma propedêutica necessária; mas só lhe será útil com a condição de se libertar dela depois de a ter admitido e de a ultrapassar completando-a com uma cultura verdadeiramente sociológica. É necessário que renuncie a fazer da psicologia, de certa forma, o centro das suas operações, o ponto de onde devem partir e aonde devem recon duzi-lo as incursões a que se aventura no mundo social, e que se coloque mesmo no cen tro dos fatos sociais para observá-los bem de frente e sem intermediários, exigindo ape nas à ciência do indivíduo uma preparação geral e. se necessário, sugestões úteis.7B

III

Dado que os fatos de morfologia social são da mesma natureza que os fenômenos fisiológicos, devem ser explicados segundo esta mesma regra. Todavia, podemos concluirde tudo o que foi dito anteriormente que eles desempenham um papel preponderante na vida coletiva e, por conseguinte, nas explicações sociológicas.com efeito, se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste, como mostramos, no próprio fato da associação, é porque têm de variar consoante as formas desta associação, isto é, consoante as maneiras como estão agrupadas as partes constituintes da sociedade. Por outro lado, dado que o conjunto determinado que deriva da reunião dos diferentes elementos que entram na composição de uma sociedade constitui o meio interno desta, tal como o conjunto dos elementos anatômicos, dispostos no espaço de uma certa maneira, constitui o meio interno dos organismos, poder-se-á afirmar: A origem primária de qualquer processo social de uma certa importância deve ser procurada78 Os fenômenos psíquicos só podem ter conseqüências sociais quando estão tão intimamente unidos a fenômenos sociais que a ação de uns e de outros se confundem

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necessariamente. É o caso de certos fatos sócio-psíquicos. Assim, um funcionário é simultaneamente uma força social e um indivíduo. Daí resulta o fato de poder servir-se da energia social que detém, num sentido determinado pela sua natureza individual, e de poder exercer uma influência sobre a constituição da sociedade. E o que acontece aos homens de Estado e, de uma forma mais geral, aos homens de talento. Estes, ainda que não desempenhem uma função social, adquirem dos sentimentos coletivos de que são alvo uma autoridade que constitui, também, uma força social, e que. em certa medida, podem pôr ao serviço de idéias pessoais. Mas constata se que estes casos são devidos a acidentes individuais e. por conseguinte, não poderiam afetar as características que constituem a natureza social, a única que interessa à ciência. A restrição ao principio enunciado anteriormente não tem poi tanto uma grande importância para o sociólogo.

p. 144na constituição do meio social interno. Ê mesmo possível um maior rigor; com efeito, os elementos que constituem este meio são de duas espécies: as coisas e as pessoas. Nas coi sãs é necessário englobar, além dos objetos materiais que estão incorporados na socieda de, os produtos da atividade social anterior, o direito constituído, os costumes instituí dos, as obras literárias, artísticas, etc. Não é nem de uns nem de outros que poderá vir o estímulo que determina as transformações sociais; porquanto não contêm nenhuma força motriz; mas é claro que se devem levar em conta nas explicações que tentarmos dar Têm, com efeito, um certo peso na evolução social cuja velocidade e direção variam em função deles mas não contêm nenhum fator que a ponha em movimento. São a matéria à qual se aplicam as forças vivas da sociedade mas, só por eles, não criam nenhuma força viva. Fica, portanto, como fator ativo, o meio propriamente humano.O esforço principal do sociólogo deverá tender portanto para a descoberta das dife rentes propriedades deste meio que são suscetíveis de exercer uma influência sobre o desenvolvimento dos fenômenos sociais. Até agora, encontramos duas séries de tipos que correspondem excelentemente a esta condição: é a quantidade das unidades sociais ou. como dissemos, também, o volume da sociedade, e o grau de concentração da massa, ou aquilo a que chamamos a densidade dinâmica. Deve-se subentender por este termo não o encerramento puramente material do agregado que só pode ter efeito se os indivíduos. ou melhor, os grupos de indivíduos se mantiverem separados por vácuos morais, mas o encerramento moral de que o anterior não é senão um auxiliar e, muitas vezes, uma conseqüência. A densidade dinâmica pode definir-se, para um volume igual, em função do número dos indivíduos que efetivamente têm relações não só comerciais mas também morais; isto é, que não só trocam serviços ou fazem concorrência entre eles, mas que também vivem uma vida comum. Como as relações puramente econômicas fazem com que os homens vivam isolados, pode haver alguns que apesar de estarem muito próximos não participam na mesma existência coletiva. Os negócios que se realizam ultrapassando as fronteiras que separam os povos não fazem com que essas fronteiras deixem de existir. Ora, a vida em comum só pode ser influenciada por aqueles que nela colaboram eficaz mente; é essa a razão por que o grau de coalescência dos segmentos sociais é o que me lhor exprime a densidade dinâmica de um povo. Se cada agregado parcial constitui um todo, uma individualidade distinta, separada das outras, é porque, em geral, a atividade dos seus membros limita-se a ele; se, pelo contrário, estas sociedades parciais estão todas misturadas no seio da sociedade total ou tendem para nela se misturarem, é porque o círculo da vicia social se alargou.Quanto à densidade material — se se entender por este termo não só o número dos habitantes por unidade de superfície mas também o desenvolvimento dos meios de comu nicação e de transmissão —, evolui habitualmente da mesma forma que a densidade dinâmica e, em geral, pode servir p'ara medi-la, pois se as diferentes partes da população tendem a aproximar-se é inevitável que abram caminhos que permitam esta aproximação e. por outro lado, só se podem estabelecer relações entre pontos distantes da massa social se esta distância não constituir um obstáculo. Há no entanto exceções79 e expor-nos íamos a sérios erros se apreciássemos sempre a concentração moral de uma sociedade segundo o grau de concentração material respectivo. As estradas, as linhas de caminho79 Em Division du Travail Sócia!, fizemos mal em apresentar, com demasiada insistência, a densidade material como a expressão exata da densidade dinâmica. Todavia, a substituição da segunda pela primeira é absolutamente legítima para tudo o que diz respeito aos efeitos econômicos daquela; por exemplo, a divi são do trabalho como fato puramente econômico.

p. 145de ferro, etc., podem servir mais ao desenvolvimento dos negócios do que à união das populações que exprimem de uma forma muito imperfeita. É o caso da Inglaterra,cuja densidade material é superior à da França e onde, no entanto, a coalescência dos seg mentos está muito menos desenvolvida, como atesta a constância do espírito local e de vida regional.Já anteriormente mostramos como qualquer aumento do volume e da densidade dinâmica das sociedades, tornando a vida social mais intensa e alargando o horizonte que cada indivíduo abrange com o seu pensamento e preenche com a sua atividade, modifica profundamente as condições fundamentais da existência coletiva. Não vamos referir novamente a aplicação que então fizemos deste princípio; acrescentemos apenas que nos serviu para analisar não só a questão ainda muito geral que constituía o objetivo deste estudo, mas também muitos outros problemas mais particulares, e que pudemos des'e modo verificar a sua exatidão através de um número considerável de experiências. Todavia, estamos longe de pensar que encontramos todas as particularidades do meio só ciai suscetíveis de desempenhar um papel na explicação dos fatos sociais. Tudo o que podemos dizer é que foram as únicas que descobrimos e que não houve nenhum motivo que nos levasse a procurar outras.Esta espécie de preponderância que atribuímos ao meio social e, mais particular mente, ao meio humano, não implica que se deva ver nele uma espécie de fato último e absoluto para além do qual não seja necessário ir. É evidente que, pelo contrário, a situa cão em que se encontra em cada período da história depende de causas sociais, algumas das quais são inerentes à própria sociedade, ao passo que outras estão ligadas às ações e às reações que se estabelecem entre esta sociedade e as suas vizinhas. Aliás, para a ciência não existem causas principais no sentido absoluto do termo. Para ela, um fato c principal quando é suficientemente geral para poder explicar um grande número de ou tros fatos. Ora, o meio é um fator deste gênero pois, quaisquer que sejam as causas, as modificações que nele se produzem repercutem-se em todas as direções do organismo social e não podem deixar de influenciar mais ou menos todas as funções.O que acabamos de afirmar acerca do meio gera! da sociedade pode também ser dito acerca dos meios específicos próprios a cada um dos grupos particulares que nela existem. Por exemplo, a vida doméstica será diferente consoante a família for mais ou menos numerosa, mais ou menos fechada sobre si mesma. Da mesma maneira, se as corporações profissionais se reconstituem de forma que cada uma delas esteja ramificada em toda a extensão do território em vez de continuar isolada, como antigamente, dentro dos limites de uma cidade, a ação exercida será muito diferente da que exerceram outrora. De um modo mais geral, a vida profissional será muito diferente no caso de o meio próprio a cada profissão estar fortemente constituído em vez de estar frouxo como atualmente. Todavia, a ação destes meios particulares nunca poderia revestir a importância do meio geral, pois estão submetidos à influência deste. Acaba-se sempre por voltar a este meio geral. É a pressão que ele exerce sobre estes grupos especiais que faz variar a constituição destes.Esta concepção do meio social como fator determinante da evolução coletiva é da maior importância. Se não a aceitarmos, a sociologia ver-se-á na impossibilidade de estabelecer qualquer relação de causalidade.com efeito, uma vez posto de lado este tipo de causas, não existem condições concomitantes das quais possam depender os fenômenos sociais; pois se o meio socialexterno, isto é, aquele que é constituído pelas sociedades circundantes, é suscetível de exercer alguma ação, esta só se exercerá sobre as funções que têm como objetivoo ataque

p. 146e a defesa e, além disso, a sua influência só poderá ser sentida através do meio social interno. As causas principais do desenvolvimento histórico não estariamportanto entre as circumfusa; estariam todas no passado; elas próprias constituiriam fases ultrapassadas deste desenvolvimento. Os acontecimentos atuais da vidasocial não derivariam do estado atual da sociedade mas dos acontecimentos anteriores, dos precedentes históricos, e as explicações sociológicas consistiriam exclusivamenteem ligar o presente ao passado.É verdade que isto pode parecer suficiente. Afirma-se correntemente que a história tem o objetivo de encadear os acontecimentos segundo a ordem e sucessão destes.Mas não se pode pensar que o estado a que chegou a civilização num determinado momento pudesse ser a causa determinante do estado seguinte. As etapas que a humanidade

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per corre sucessivamente não dão origem umas às outras. Compreende-se que os progressos realizados numa determinada época no campo jurídico, econômico, político,etc. possibilitam novos progressos, mas em que é que eles os predeterminam? São um ponto de partida que permite ir mais longe; mas o que é que nos incita a ir maislonge? Seria necessário então admitir uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar indefinidamente os resultados adquiridos, para se realizar completamenteou para aumentar a sua felicidade, e o objetivo da sociologia seria encontrar a ordem segundo a qual se desenvolveu esta tendência. Mas, sem voltarmos às dificuldadesque implica tal hipótese, em todo o caso, a lei que exprime este desenvolvimento não poderia ter nada de causai. com efeito, uma relação de causalidade só poderáser estabelecida entre dois fatos determinados; ora, a tendência que se supõe ser a causa deste desenvolvimento não é nada; é apenas postulada e construída peloespírito com base nos efeitos que se lhe atribuem. É uma espécie de faculdade motriz que imaginamos sob o movimento, a fim de explicá-lo; mas a causa eficientede um movimento não pode ser senão um outro movimento e não uma virtualidade deste gênero. Tudo aquilo que atingimos portanto experi mentalmente é uma sucessão demodificações entre as quais não existe relação causai. O estado antecedente não produz o conseqüente, sendo a relação entre eles exclusivamente cronológica. Nestascondições, é impossível fazer qualquer previsão científica. Podemos dizer de que forma as coisas se sucederam até agora mas não a ordem por que se sucederão de hojeem diante, pois a causa donde se supõe dependerem não está cientificamente determinada, nem é determinável. Admite-se muitas vezes que a evolução prosseguirá nomesmo sentido do passado; mas isto é um mero postulado. Nada nos confirma que os fatos realizados exprimam suficientemente a natureza desta tendência para que sepossa conjeturar a partir deles o objetivo a que aspira. Por que razão haveria de ser retilínea a direção que segue e que transmite?Eis a razão por que o número das relações causais estabelecidas pelos sociólogos é tão restrito. À parte algumas exceções, de que Montesquieu é o exemplo mais ilustre,a antiga filosofia da história interessou-se unicamente por descobrir a direção geral do desenvolvimento da humanidade, sem procurar ligar as fases desta evoluçãoa qualquer condição concomitante. Por muito grandes que tenham sido os serviços que Comte pres tou à filosofia social, os termos em que ele põe o problema sociológiconão diferem dos anteriores. Assim a sua célebre lei dos três estados não tem nada a ver com uma relação de causalidade; mesmo que fosse exata, só poderia ser empírica.É uma vista de olhos sumária à história do gênero humano. É de uma forma perfeitamente arbitrária que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivoda humanidade. Quem nos diz que não surgirá um outro no futuro? Por outro lado, a lei que governa a sociologia de Spencer não parece ser de natureza diferente. Mesmoque fosse verdade que tendamos

p. 147atualmente para procurar a nossa felicidade dentro de uma civilização industrial, nada nos afiança que, mais tarde, não a procuremos algures. Ora, a generalidade e a persistência deste método provêm do fato de vermos freqüentemente no meio social um susten táculo do progresso e não a causa que o determina.É também em relação a este meio que devemos calcular o valor útil ou, como dissemos, a função dos fenômenos sociais. Entre as modificações que ocasiona, interessamnos as que se relacionam com o estado em que ele se encontra, dado que este é a condição essencial da existência coletiva. Deste ponto de vista, cremos que a concepção que acabamos de expor é fundamental, pois permite explicar a variação do caráter útil dos fenômenos sociais sem que esta dependa de arranjos arbitrários. com efeito, se conside i an ios que a evolução histórica é movida por uma espécie de vis a tergoso que compele os l omens para a frente, dado que uma tendência motriz só pode ter um único fim, só poderá existir um ponto de referência em relação ao qual se calcule a utilidade ou a nocividíde dos fenômenos sociais. Daí resulta que só existe e só pode existir um único tipo de organização social que convenha perfeitamente à humanidade e que as diferentes sociedades históricas constituem meras aproximações sucessivas deste modelo único. Não é necessário mostrar como é inconciliável hoje em dia um tal simplismo com a variedade e a complexidade próprias às formas sociais. Se, pelo contrário, a vantagem ou a desvantagem das instituições só se podem estabelecer em relação a um determinado meio, dado que estes meios são diversos, há portanto uma diversidade de pontos de referem ia e, por conseguinte, de tipos que, embora sendo qualitativamente distintos uns dos outros, estão todos baseados na natureza dos meios sociais.A questão que analisamos depende portanto da que diz respeito à constituição dos tipos sociais. Se existem espécies sociais, é porque a vida coletiva depende antes do mais de condições concomitantes que revelam uma certa diversidade. Se, pelo contrário, as causas principais dos acontecimentos sociais se situassem todas no passado, cada povo seria simplesmente o prolongamento daquele que o precedeu e as diferentes sociedades perderiam a sua individualidade para não serem mais do que momentos diversos de um único e mesmo desenvolvimento. Dado que, por outro lado, a constituição do meio social resulta do modo de composição dos agregados sociais, ou seja. que estas duas expressões são, no fundo, sinônimas, temos agora a prova de que não existem tipos mais essenciais do que aqueles que citamos como base da classificação sociológica.Julgamos ter demonstrado que seria injusto partir dos conceitos de condições exteriores e meio, para acusar o nosso método e procurar as origens da vida fora dela. As considerações feitas refletem a idéia de que as causas dos fenômenos sociais são internas à sociedade. É a teoria que faz derivar a sociedade do indivíduo que devemos acusar de tentar justificar o conteúdo através do invólucro, pois ela explica o ser social através de algc diferente dele próprio e tenta deduzir o todo a partir das partes. Os princípios que precedem desconhecem tão pouco o caráter espontâneo de qualquer ser vivo que, se os aplicarmos à biologia e à psicologia, teremos de admitir que também a vida individual se elabora inteiramente no interior do indivíduo.

IV

A partir do conjunto de regras estabelecidas, deduz-se uma certa concepção da sociedade e da vida coletiva.80 Impulso pelas costas. (N. do E.)

p. 148Existem, relativamente a esta questão, duas teorias opostas. - - -Para alguns, como Hobbes e Rousseau, existe uma solução de continuidade entre o indivíduo e a sociedade. O homem é portanto naturalmente refratário à vida em comum, e só obrigado se conforma com ela. Os fins sociais não constituem simplesmente o ponto de encontro dos fins indivuais; são-lhes, até, contrários. Assim, para fazer com que o indivíduo os siga, é necessário exercer sobre ele uma pressão, e é na instituição e na organização desta pressão que consiste, por excelência, a obra social. Simplesmente, visto tque o indivíduo é considerado como a única e exclusiva realidade do reino humano, esta organização, que tem por objetivo contrariá-lo e refreá-lo, só pode ser concebida como artificial, não baseada na natureza, pois destina-se a exercer violência sobre o indivíduo, impedindo-lhe os seus atos anti-sociais. É uma obra de arte, uma máquina construída inteiramente pelo homem que, à semelhança de todos os produtos deste gênero, é aquilo que é porque os homens assim a quiseram: um decreto da vontade criou-a, um outro decreto poderá transforma la. Nem Hobbes nem Rousseau parecem ter compreendido tudo o que há de contraditório no ato de admitir que o indivíduo é ele próprio autor de uma máquina que tem por função essencial dominá-lo e oprimi-lo ou, pelo menos, no ato de supor que para fazer desaparecer esta contradição bastava dissimulá-la aos olhos das suas vítimas através do hábil artifício do pacto social.Os teóricos do direito natural, os economistas e, mais recentemente, Spencer, inspi raram-se na idéia contrária.81 Para estes, a vida social é essencialmente espontânea, e a sociedade uma coisa natural. Mas, ao conferir-lhe este caráter, não o fazem porque lhe reconheçam uma natureza específica e sim por lhe encontrarem um fundamento na natu reza do indivíduo. À semelhança dos pensadores anteriores, não vêem nela um sistema de coisas existindo por si só e devido a causas que lhe sejam específicas. Mas enquanto os primeiros a concebiam unicamente como um dispositivo convencional sem qualquer ligação com a realidade e, por assim dizer, suspenso no ar, estes consideram os instintos fundamentais do coração humano como a causa da sociedade. O homem manifestaria uma tendência natural para a vida política, doméstica, religiosa, para o comércio, etc., e destas tendências naturais é que derivaria a organização social. Assim sendo, onde quer que ele fosse normal não teria necessidade de se impor. E, sempre que recorresse à coa cão, é porque não corresponderia ao que devia ser ou porque as circunstâncias seriam anormais. Em princípio, bastaria deixar desenvolver livremente as forças individuais para que estas se organizassem socialmente.Nenhuma destas doutrinas é partilhada por nós.É claro que consideramos a coação como característica de qualquer fato social. Simplesmente, esta coação não resulta de uma maquinação mais ou menos sapiente, destinada a esconder aos homens as armadilhas em que caíram. É simplesmente devida ao lato de o indivíduo se encontrar diante de uma força que o domina e à qual se submete;

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mas esta força é natural, não deriva de um dispositivo convencional que a vontade humana acrescentou à realidade; emana das próprias entranhas da realidade; é o produto necessário de determinadas causas. Assim, para fazer com que o indivíduo se submeta voluntariamente a ela, não é necessário recorrer a nenhum artifício;basta fazer com que ele tome consciência do seu estado de dependência e de inferioridade naturais, quer por uma representação sensível e simbólica, através da religião,quer por uma noção adequada e definida, através da ciência. Dado que a superioridade da sociedade perante ele não é simplesmente física, mas também intelectual emoral, a independência de opinião8' A posição de Comte sobre este assunto é dum ecletismo bastante ambíguo

p. 149nãc ameaça esta superioridade desde que aquela seja utilizada corretamente. A reflexão que faz com que o homem compreenda quanto o ser social é mais rico, maiscomplexo e mais duradouro do que o ser individual revela-lhe precisamente as razões inteligíveis da subordinação que dele se exige e dos sentimentos de dedicaçãoe de respeito que o hábito gravou no seu coração.82Portanto, só uma crítica particularmente superficial poderia acusar a nossa concepção da coação social de ser uma segunda edição das teorias de Hobbes e de MaquiavelMas, se, contrariamente a estes filósofos, afirmamos que a vida social é natural, não é porque tenhamos encontrado a sua origem na natureza do indivíduo; é por eladerivar diretamente do ser coletivo tido como uma natureza sui generis; e por resultar da elaboração especial a que estão submetidas as consciências particularesdevido à sua associação, da qual emana uma nova forma de existência.83 Se estamos portanto de acordo com uns para afirmar que ela se apresenta ao indivíduo sobo aspecto da coação, admitimos também, à semelhança dos outros, que ela é um produto espontâneo da realidade; e o que liga logicamente estes dois elementos, aparentementecontraditórios, é o fato de a realidaae de que emana ultrapassar o indivíduo. Quer isto dizer que os termos coação e espontaneidade não têm na nossa terminologiao sentido dado por Hobbes ao primeiro e por Spencer ao segundo.Em resumo, relativamente à maior parte das tentativas que foram feitas para explicar racionalmente os fatos sociais, pode-se objetar que todas faziam desaparecerqualquer idéia de disciplina social ou só conseguiam conservá-la graças a falsos subterfúgios. Pelo contrário, as regras que expusemos permitiriam construir umasociologia que veria no espírito de disciplina a condição essencial de qualquer vida em comunidade, embora fundamentando-o na razão e na verdade.

82 fis a razão pela qual nem toda coação é normal Só merece este nome a que corresponder a alguma supenondade social, isto é, intelectual ou moial Mas a que umindivíduo exerce sobre outro pelo fato de ser mais forte ou mais rico. em especial se esta riqueza não exprime o seu valor social, é anormal e só poderá conservarse pela violência.83 A nossa teoria é mesmo mais oposta à de Hobbes do que à do direito natural. com efeito, para os partidários desta última doutrina, a vida coletiva só é naturalna medida em que pode ser deduzida da natureza individual Ora, só as formas mais gerais da organização social podem, com rigor, derivar desta origem Quanto aodetalhe, está demasiado longe da extrema generalidade das propriedades psíquicas para poder estar em conexão com elas Parece portanto tão artificial aos discípulosdesta escola como aos seus adversários Para nós. pelo contrário, tudo é natural. mclusi\amente os dispositivos mais particulares, porquanto tudo se fundamenta nanatureza da sociedade

CAPÍTULO SEXTO

REGRAS RELATIVAS AO ESTABELECIMENTO DAS PROVAS

I — O método comparativo ou experimental indireto é o método da prova na sociologia. Inutilidade do meto do chamado histórico por Comte. Resposta às objeções deMill relativamente à aplicação do método comp;i rativo à sociologia. Importância do princípio: A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa. II— Por que, dos diversos procedimentos do método comparativo, é o método das variações concomitantes o instrumento por excelência da investigação sociológica; a suasuperioridade: 1." — na medida em que atinge a relação casual a partir de dentro; 2º — na medida em que permite a utilização de documentos mais escolhi dos e melhorcriticados. Como a sociologia, por estar reduzida a um único procedimento, não se acha, relati vãmente a outras ciências, num estado de inferioridade, em virtudeda riqueza de variações de que o sociólogo dispõe. Necessidade de só comparar séries contínuas e extensões de variações, e não variações isoladas. in— Diferentes maneiras de compor estas séries. Casos em que os termos podem ser extraídos de uma única sociedade. Casos em que é necessário extraí-los de sociedadesdiferentes mas da mesma espécie. Casos em que é preciso comparar espécies diferentes. Por que é este o caso mais geral. A sociologia comparada é a sociologia propriamentedita. Precauções a tomar para evitar certos erros no decurso destas comparações.

I

Dispomos unicamente de um processo comprovativo de que um fenômeno é a causa de outro, de acordo com o qual se comparam os casos em que estes se encontram simultaneamente presentes ou ausentes e se procura saber se as variações por eles apresentadas nessas diferentes combinações de circunstâncias testemunham a dependênciade um para com o outro. Quando os fatos podem ser produzidos artificialmente ao gosto do observador, o método é a experimentação propriamente dita. Quando, pelocontrário, a sua produção não está ao nosso alcance e só podemos confrontá-los tais como se produ ziram espontaneamente, o método utilizado é o da experimentaçãoindireta ou método comparativo.Vimos que a explicação sociológica consiste exclusivamente no estabelecimento de relações de causalidade, quer se trate de confrontar um fenômeno com a sua causa,ou uma causa com os seus efeitos úteis. Como os fenômenos sociais escapam evidentemente à ação do operador, o método comparativo é o único que convém à sociologia.É verdade que Comte não o considerou suficiente; achou necessário completá-lo com aquilo a que chamou método histórico — fato motivado pela sua concepção particulardas leis sociológicas. Para ele, tais leis não devem exprimir principalmente relações definidas de causalidade, mas sim o sentido da evolução humana em geral, nãopodendo portanto ser descobertas através de comparações: para se poderem comparar as diferentes formas que reveste um fenômeno social em povos diferentes, serianecessário destacá-lo das séries temporais a que pertence. Ora, começando por fragmentar deste modo o desenvolvimento humano, torna-se impossível conhecer-lhe aseqüência. Não é por meio de análises, mas sim de amplas sínteses que isto se consegue. Torna-se necessário aproximar os estados sucessivos da humanidade e. de certomodo, reuni-los numa mesma intuição, para observar "o crescimento contínuo de cada disposição física, intelectual, moral e política".84Couis de Philüsophie Positive, IV, pág. 328.

p. 151Tal é a razão de ser deste método a que Comte chama histórico e que. por conseguinte, perde todo o significado a partir do momento em que se rejeita a sua concepçãofundamental da sociologia.É certo que Mill declara a experimentação, mesmo indireta, inaplicável à sociologi.i. Mas, para desautorizar em grande parte a sua argumentação, basta lembrar queele também a aplicava aos fenômenos biológicos, e até mesmo aos fatos físico-químicos mais complexos;8 5 ora, hoje em dia, já não é necessário demonstrar que a químicae a biologia são ciências experimentais. Não existe portanto motivo para considerar as suas criticas mais válidas no que se refere à sociologia: os fenômenos sociaissó se distinguem dos anteriores por uma maior complexidade. Esta diferença pode perfeitamente significar que a utilização do raciocínio experimental em sociologiaoferece ainda mais dificul dades do que nas outras ciências, mas não que seja radicalmente impossível.Esta teoria de Mill assenta sem dúvida num postulado ligado aos princípios fundamentais de sua lógica, o que não impede que esteja em contradição com todos os resultados da ciência. Ele admite, com efeito, que um mesmo conseqüente nem sempre resulta de um' mesmo antecedente, podendo derivar ora de uma causa, ora de outra. Esta

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concep cão da relação causai, tirando-lhe toda a determinação, torna-a praticamente inacessível à análise científica, pois introduz uma tal complicação no conjunto das causas e dos efeitos que o espírito acaba por se perder. Se um efeito pode derivar de causas diferentes, "para sabermos o que o determina num conjunto de circunstâncias determinadas seria necessário que a experiência se fizesse em condições de isolamento praticamente irreali/áveis, em especial na sociologia.Mas este pretenso axioma da pluralidade das causas é uma negação do princípio da causalidade. É claro que, se admitirmos como Mill que a causa e o efeito são absoluta mente heterogêneos, que não existe entre eles nenhuma relação lógica, não há qualquer contradição em admitir que um efeito possa acompanhar ora uma causa, ora outra. Se a relação que liga C a A é puramente cronológica, não é exclusiva de uma outra relação da mesma espécie que ligaria C a B, por exemplo. Mas se, pelo contrário, a relação causai tem qualquer coisa de inteligível, não poderia ser indeterminada até esse ponto. Se consiste numa relação que resulta da natureza das coisas, um mesmo efeito só poderá manter essa relação com uma única causa, pois só poderá exprimir uma única natureza. Só os filósofos puseram em dúvida a inteligibilidade da relação causai; para o sábio, ela não põe qualquer problema e é suposta pelo método da ciência. Como explicar de outra forma o papel tão importante da dedução no raciocínio experimental e o princípio funda mental da proporcionalidade entre a causa e o efeito? Nos casos que se citam e em que se pretende observar uma pluralidade de causas, para que fossem demonstrativos, seria necessário ter estabelecido previamente que esta pluralidade não é aparente ou que a uni dade exterior do efeito não encobre uma real pluralidade. Quantas vezes aconteceu à ciência ter de procurar uma única causa em situações cuja diversidade, à primeira vista, pa-ecia irredutível! O próprio Stuart Mill dá um exemplo ao lembrar que, segundo as teorias modernas, a produção do calor por fricção, a percussão, a ação química, etc.. derivam de uma única e mesma causa. Inversamente, quando se trata do efeito, o sábio diferencia muitas vezes o que o homem vulgar confunde. Para o senso comum, o termo febre designa uma mesma e única entidade mórbida; para a ciência, existem diversas febres especificamente diferentes e a pluralidade das causas está em relação com a dos efei tos; e se, entre todas essas condições nosológicas. há no entanto algo comum é porque as próprias causas apresentam algumas características comuns.8 5 Système de Logique, 11, pág. 478.

p. 152É tanto mais importante esconjurar este princípio da sociologia quanto é verdade que existem ainda muitos sociólogos que sofrem a sua influência, apesar de não levantarem qualquer objeção à utilização do método comparativo. É corrente afirmar que o crime pode ser produzido pelas mais diferentes causas; o mesmo se passa com o suicídio, a punição, etc. Utilizando desta forma o raciocínio experimental, mesmo que se reúna um número considerável de fatos, nunca conseguiremos obter leis precisas, relações determinadas de causalidade. Só vagamente se poderá definir um conseqüente mal definido de um grupo confuso de antecedentes. Se quisermos portanto utilizar de uma forma científica o método comparativo, isto é, respeitando o princípio de causalidade tal como ele se deduz da própria ciência, deveremos tomar como base para as comparações que se estabelecem a seguinte proposição: A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa. Assim, voltando aos exemplos que mais acima citamos, se o suicídio depende de mais de uma causa é porque, na realidade, existem várias espécies de suicídios. O mesmo se passa com o crime. Quanto à punição, pelo contrário, se se julga que ela tem causas diferentes, é porque se descurou o elemento comum que se encontra em todos estes antecedentes e que está na base desse efeito produzido.86

II

Todavia, se os diferentes processos do método comparativo podem ser aplicados à sociologia, isso não significa que mantenham um mesmo poder demonstrativo.O chamado método dos resíduos, embora constitua uma forma do raciocínio experimental, não tem, por assim dizer, qualquer utilidade no estudo dos fenômenos sociais.Além de servir apenas às ciências bastante evoluídas, dado que supõe já conhecida uma grande quantidade de leis, os fenômenos sociais são demasiado complexos paraque se possa, num determinado caso, eliminar exatamente o efeito produzido por todas as causas que não nos interessam.Pela mesma razão, é também difícil utilizar o método da concordâcia e o da diferença. com efeito, ambos supõem que os casos comparados concordam ou diferem numúnico ponto. Nunca houve uma ciência capaz de estabelecer experiências em que o caráter rigorosamente único de uma concordância ou de uma diferença fosse estabelecidode maneira irrefutável; nunca se pode estar certo de não ter deixado escapar algum antecedente cujo comportamento se assemelhe ao do único antecedente conhecido.No entanto, embora a eliminação de qualquer elemento acidental seja um limite ideal que não pode ser realmente atingido, as ciências físico-químicas e as biológicasaproximam-se o bas tante para, num grande número de casos, a demonstiação poder ser considerada suficiente. Mas já o mesmo não acontece em sociologia em virtudeda demasiada complexi dade dos fenômenos, à qual se acrescenta ainda a impossibilidade de proceder a qualquer experiência artificial. Como não se pode fazer um inventário,ainda que incompleto, de todos os fatos que coexistem no seio de uma mesma sociedade ou que se sucederam no decorrer da sua história, nunca se pode ter a certezade que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspectos, salvo naquele que nos interessa. Por conseqüência, um tal método de demonstração só pode dar origema conjeturas praticamente desprovidas de qualquer caráter científico.Nade disto acontece com o método das variações concomitantes. com efeito, para que este seja demonstrativo, não é necessário que todas as variações diferentesdaquelas86 Division du Travail Social, pág. 87.

p. 153que se comparam tenham sido rigorosamente eliminadas. O simples paralelismo dos valores por que passam dois fenômenos, desde que tenha sido efetuado num número decasos suficientemente variados, é a prova de que existe uma relação entre eles. Isso devese ao fato de tal método não atingir a relação causai pelo exterior comoos métodos precedentes, mas pelo interior. Não nos mostra apenas dois fatos que se acompanham ou se excluem exteriormente,87 sem nos referir qualquer vínculo interno;pelo contrário, mostra-nos como os dois fatos se relacionam entre si de uma maneira contínua. Por si só, esta relação basta para demonstrar que eles não são estranhosum ao outro. A maneira como um fenômeno se desenvolve exprime a sua natureza; para que os dois desenvolvimentos correspondam, é necessário que haja também uma correspondêncianas naturezas que manifestam. A concomitância é portanto, por si só, uma lei, qualquer que seja o estado dos fenômenos que não entraram na comparação. Assim, parainvalidá-la não basta mostrar que é contestada por algumas aplicações particulares do método da concordância ou da diferença; isso seria atribuir a este gênero deprovas uma autoridade que não podem ter em sociologia. Quando dois fenômenos variam regularmente e em mútua relação é necessário manter esta relação ainda que, emcertos casos, um dos fenômenos se apresente sozinho; pode acontecer que a causa aparentemente desaparecida não produza o seu efeito devido a alguma causa contrária,ou esteja presente de um modo diferente do já conhecido. Não se deve abandonar imediatamente as conclusões de• uma demonstração feita corretamente.As leis estabelecidas por este processo nem sempre se apresentam sob a forma de relações de causalidade. A concomitância pode não ser devida ao fato de um dos fenômenosser a causa do outro, mas ao fato de serem ambos efeitos de uma mesma causa, ou de existir entre eles um terceiro fenômeno, intercalado mas despercebido, efeitodo primeiro e causa do segundo. Os resultados a que este método conduz devem portanto ser interpretados. Mas qual é o método experimental que permite obter mecanicamenteuma relação de causalidade sem que os fatos que estabelece tenham necessidade de ser elaborados pelo espírito? O que importa é que esta elaboração seja conduzidametodicamente. Primeiramente, tentar-se-á deduzir a forma como um dos dois termos pôde produzir o outro; esforçar-nos-emos em seguida por verificar o resultado destadedução com a ajuda de experiências, isto é, de novas comparações. Se a dedução é possível e se a verificação tem êxito, poder-se-á considerar a prova como feita.Se, pelo contrário, não se descobre nenhuma relação direta entre estes fatos e, em especial, se a hipótese de uma tal relação contradiz leis já demonstradas, iremosprocurar um terceiro fenômeno de que dependem igualmente os dois outros ou que tenha podido servir de intermediário entre eles. Por exemplo, pode-se afirmar com

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toda a certeza que a tendência para o suicídio varia como a tendência para a instrução. Mas é impossível afirmar que a instrução conduza ao suicídio; uma tal explicaçãocontradiz as leis da psicologia. A instrução, sobretudo quando se reduz aos conhecimentos elementares, só atinge as regiões mais superficiais da consciência; e oinstinto de conservação é uma das nossas tendências fundamentais. Não poderia portanto ser influenciado sensivelmente por um fenômeno tão longínquo e de tão pequenarepercussão. É lógico pensar, portanto, que estes dois fenômenos sejam conseqüência de um mesmo estado. Esta causa comum é o enfraqueci mento do tradicionalismoreligioso, que torna simultaneamente mais forte a necessidade de saber e a tendência para o suicídio.Mas há uma outra razão que faz do método das variações concomitantes o instru mento por excelência das investigações sociológicas. com efeito, mesmo quando as8' No caso do método da diferença, a ausência da causa exclui a presença do efeito.

p. 154circunstâncias lhes são o mais possível favorá\eis, os outros métodos só podem ser utilizados utilmente se a quantidade dos fatos comparados for considerável. Senão se conse gue encontrar duas sociedades que só difiram ou que só se assemelhem num ponto, pode-se, pelo menos, constatar que, de uma forma muito geral, dois fatosse acompa nham necessariamente um ao outro ou se excluem um ao outro. Mas, para que esta cons tatação tenha um valor científico, é necessário que tenha sido feitaum grande número de vezes; seria quase necessário ter a certeza de que todos os fatos foram examinados. Ora. não só não é possível um inventário tão completo, comoainda os fatos que assim acumu íamos nunca podem ser estabelecidos com uma precisão suficiente, precisamente por serem demasiado numerosos. Não só nos arriscamosa omitir alguns essenciais e que contradizem os que são conhecidos, como ainda não podemos estar certos de conhecer bem estes últimos. Na realidade, o que desacreditoumuitas vezes os raciocínios dos sociólogos foi que, dado que utilizaram de preferência o método da concordância ou o da diferença e em especial o primeiro, preocuparam-semais com a acumulação dos docu mentos do que com a crítica e a escolha destes. É por isso que lhes acontece porem freqüentemente no mesmo plano as observaçõesconfusas e feitas às pressas dos viajantes e os textos exatos da história. Ao vermos estes exemplos não podemos deixar de pensar que um só fato poderia chegar paraos invalidar e que os próprios fatos de que esses exemplos tratam nem sempre merecem confiança.O método das variações concomitantes não nos obriga a essas enumerações incompletas nem a essas observações superficiais. Para que dê resultados bastam alguns fatos.A partir do momento em que se provou que, num determinado número de casos, dois fenômenos variam da mesma forma, podemos ter a certeza de estarmos perante uma lei.Não necessitando serem numerosos, os documentos podem ser escolhidos e, além disso, estudados de perto pelo sociólogo que os utiliza. Por conseguinte, ele poderáe deverá considerar como matéria principal das suas induções as sociedades cujas crenças, tradições, costumes e direito se materializaram em monumentos escritose autênticos. Sem dúvida que ele não desprezará as informações da etnografia (não existem fatos que possam ser desprezados pelo sábio), mas pô-las-á no seu devidolugar. Em vez de fazer delas o centro de gravidade das suas investigações, só as utilizará em geral como complemento daquelas que ele deve à história ou, pelo menos,esforçar-se-á por confirmá-las por intermédio destas informações. Não só limitará assim, com mais discernimento, a amplitude das suas comparações, como também asconduzirá com um maior sentido crítico; porquanto, pelo fato de se interessar por uma categoria restrita de fatos, poderá controlá-los com mais cuidado. Não deverárefazer a obra dos historiadores; mas também não poderá receber passivamente e de qualquer parte as informações de que se serve.Não se julgue, porque a sociologia só se pode servir de um único processo experimental, que ela esteja numa situação de sensível inferioridade em relação às outrasciências. com efeito, este inconveniente é compensado pela riqueza das variações que se oferecem espontaneamente às comparações do sociólogo e das quais não seencontra nenhum exemplo nos outros reinos da natureza. As modificações que se dão num organismo no decurso de uma existência individual são pouco numerosas e muitolimitadas; as que se podem provocar artificialmente sem destruir a vida estão também compreendidas entre estreitos limites. É verdade que se produziram modificaçõesimportantes durante a evolução zoológica, mas só há delas vestígios raros e obscuros e é ainda mais difícil encontrar as condições que as determinaram. Pelo contrário,a vida social é uma sucessão ininterrupta de transformações, paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva; e não temos apenas à nossa disposiçãoas que se referem a

p. 155uma época recente, pois um grande número daquelas por que passaram os povos desaparecidos chegou até nós. Apesar de suas lacunas, a história da humanidade é muito mais clara e completa que a das espécies animais. Além disso, existe uma grande quantidade de fenômenos sociais que se produzem em toda a extensão da sociedade, mas que se revestem de formas diversas segundo as regiões, as profissões, as confissões, etc. É o caso, por exemplo, do crime, da natalidade, da nupcialidade, da poupança, etc. Da diversidade destes meios particulares resultam, para cada uma destas categorias de fatos, novas séries de variações, independentemente das que a evolução histórica produz. Se portanto o sociólogo não pode utilizar todos os processos de investigação experimental com uma igual eficácia, o único método de que tem de se servir, quase exclusivamente, pode, em seu poder, tornar-se muito fecundo.Mas este método só produzirá os resultados esperados se for utilizado com rigor. Não provamos nada quando, como muitas vezes acontece, nos contentamos em mostrar através de exemplos mais ou menos numerosos que, em alguns casos dispersos, os fatos \ ariaram de acordo com a hipótese. Não se consegue tirar nenhuma conclusão geral a partir destas concordâncias esporádicas e fragmentárias. Ilustrar uma idéia não é demonstrá-la. O que é preciso é não comparar variações isoladas mas séries de variações, constituídas regularmente, cujos termos se liguem entre si através de uma gradação *- tão contínua quanto possível e que, além disso, tenham uma amplitude Mificiente; as \ ariações de um fenômeno só permitem induzir a lei se elas exprimirem claramente a maneira como ele se desenvolve em determinadas circunstâncias. Ora, para tal, é necessário que exista entre elas a mesma seqüência que existe entre os diferentes momentos de uma mesma evolução natural e que, além disso, esta evolução que representam seja suficientemente demorada para que o sentido não seja duvidoso.

III

A maneira como se devem formar estas séries difere conforme os casos. Podem compreender fatos reproduzidos de uma única sociedade — ou de várias sociedades da mesmaespécie — ou de várias espécies sociais distintas.O primeiro processo pode bastar, na pior das hipóteses, quando se trata de fatos de uma grande generalidade e em relação aos quais possuímos informações estatísticas bastante amplas e variadas. Por exemplo, comparando a curva que exprime o movimento do suicídio durante um período suficientemente longo, com as variações que o mesmo fenômeno apresenta conforme as províncias, as classes, os habitais rurais ou urbanos, os sexos, as idades, o estado civil, etc., podemos chegar, mesmo sem estender as investiga ções para além de um só país, a estabelecer verdadeiras leis, embora seja sempre preferível confirmar estes resultados com outras observações feitas sobre povos da mesma espécie. Mas só nos podemos contentar com comparações tão limitadas quando estudamos algumas destas correntes sociais que se encontram espalhadas em toda a sociedade, embora variando de um ponto para outro. Quando se trata, pelo contrário, de uma instituição, de uma regra jurídica ou moral, de um costume organizado, que é o mesmo e que funciona da mesma maneira em toda a extensão do país e que só muda com o tempo, não nos podemos limitar ao estudo de um único povo; porquanto, nesse caso, só teríamos como matéria de prova um único par de curvas paralelas, ou seja, aquelas que exprimem o movimento histórico do fenômenoconsiderado e da causa conjeturada, mas nesta única e exclusiva sociedade. Sem dúvida que, se for constante, este simples paralelismo constitui já um fato considerável,mas não poderia, por si só, constituir uma demonstração.

p. 156Se tomarmos em consideração vários povos da mesma espécie, possuímos já um campo de observação mais extenso. Em primeiro lugar, podemos confrontar a história deum povo com a dos outros e ver em cada um deles, considerado individualmente, se o mesmo fenômeno evolui no tempo em função das mesmas condições. Podemos em seguidaestabelecer comparações entre estes diferentes desenvolvimentos.Determinar-se-á, por exemplo, a forma que reveste nas diferentes sociedades o fato estudado, no momento em que atinge o apogeu. Dado que estas sociedades, emborapertencendo ao mesmo tipo, constituem individualidades distintas, esta forma não é a mesma em toda a parte; é mais ou menos acentuada conforme os casos. Obteremosassim uma nova série de variações que cpmpararemos com as que apresenta, no mesmo momento e em cada um destes países, a condição presumida. Assim, depois de seter seguido a evolução da família patriarcal através da história de Roma, de Atenas, de Esparta, classificar-se-ão estas mesmas cidades segundo o grau mais elevado

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de desenvolvimento que este tipo familiar atinge em cada uma delas, vendo depois, se, em relação ao estado do meio social do qual parece depender segundo a primeiraexperiência, elas se classificam ainda da mesma maneira.Mas este método não se basta a si mesmo. com efeito, só se aplica aos fenômenos que surgiram durante a vida dos povos comparados. Ora, uma sociedade não cria totalmentea sua organização; recebe-a, em parte, já feita daquelas que a precederam. O que lhe é deste modo transmitido, no decorrer da sua história, não é o produto de nenhumdesenvolvimento e, por conseguinte, não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie de que faz parte. Só as adições que se juntam por acréscimo a estefundo primitivo e o transformam deverão ser tratadas desta maneira. Mas, quanto mais nos elevamos na escala social, menos importância têm as características adquiridaspor cada povo ao lado das características transmitidas. É esta, aliás, a condição de todo o progresso. Assim, os novos elementos que introduzimos no direito doméstico,no direito de propriedade, na moral, desde o começo da nossa história, são relativamente pouco numerosos e pouco importantes comparados com aqueles que o passadonos legou. As novidades que deste modo se produzem não poderiam portanto ser compreendidas se não se estudaram primeiramente estes fenômenos mais fundamentais queconstituem as suas raízes e só podem ser estudados através de comparações muito mais extensas. Para poder explicar o estado atual da família, do casamento, da propriedade,etc., seria necessário conhecer quais são as suas origens, quais são os elementos simples de que se compõem estas instituições; sobre estes assuntos a história comparadadas grandes sociedades européias não nos pode dar grandes explicações. É necessário subirmos mais alto.Por conseguinte, para explicar uma instituição social que pertence a uma espécie determinada, comparar-se-ão as formas diferentes que apresenta nos povos desta espéciee ainda em todas as espécies anteriores. Suponhamos, por exemplo, que se trata da organização doméstica. Constituir-se-á primeiro o tipo mais rudimentar que tenhaexistido, para acompanharmos em seguida, passo a passo, a maneira como progressivamente se complicou. Este método, a que se poderia chamar genético, daria imediatamentea análise e a síntese do fenômeno, pois mostrar-nos-ia os elementos que o compõem dissociados, pelo simples fato de nos surgirem cronologicamente e, graças a estevasto campo de comparação, estaria em boa situação para determinar as condições de que depende a formação e a associação dos fenômenos. Só se pode explicar um fatosocial de uma certa complexidade se acompanharmos o seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é um ramo particularda sociologia; é a própria sociologia, na medida em que deixa de ser puramente descritiva e ambiciona explicar os fatos.

p. 157Durante estas extensas comparações, comete-se freqüentemente um erro que falsifica os resultados. Por vezes, para se interpretar o sentido em que se desenvolvemos acontecimentos sociais, acontece que se comparou simplesmente aquilo que se passa no declínio de cada espécie com aquilo que se produz no início da espécie seguinte.Procedendo deste modo, julgou se poder afirmar, por exemplo, que o enfraquecimento das crenças religiosas e de qualquer tradicionalismo nunca podia ser senão umfenômeno passageiro da vida dos povos dado que surge unicamente durante o último período de sua existência para desaparecer a partir do momento em que uma nova evoluçãorecomeça. Mas, com um tal método, arriscamo-nos a considerar como desenvolvimento regular e necessário do progresso aquilo que é, efetivamente, o efeito de outracausa. com efeito, a situação em que se encontra uma sociedade jovem não é o simples prolongamento da situação a que tinham chegado no final da sua carreira associedades que ela substitui; os produtos das experiências realizadas pelos povos anteriores não são todos imediatamente assimiláveis e utilizáveis. É do mesmo modoque a criança recebe dos pais certas faculdades e predisposições que só tardiamente entram em jogo na sua vida. É portanto possível, para voltarmos ao mesmo exemplo,que este regresso do tradicionalismo que se observa no início de cada história seja devido não à transitoriedade do retrocesso de tal fenômeno mas às condições particularesem que se encontra qualquer sociedade que se inicia. A comparação só poderá ser demonstrativa se eliminarmos este fator da idade que a perturba; para chegarmos atal, bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de desenvolvimento. Assim, para sabermos em que sentido evolui um fenômeno social, compararemoso que ele é durante a juventude de cada espécie com aquilo em que se torna durante a juventude da espécie seguinte, e, conforme ele apresen tar, de uma destas etapasaté à outra, maior, menor ou igual intensidade, afirmar-se-á então que progride, que recua ou que se mantém.

CONCLUSÃO

Características gerais deste método: 1º — A sua independência face a toda a filosofia (independência que é útil à própria filosofia) e face às doutrinas práticas.Relações entre a sociologia e essas doutrinas. Como permite dominar os partidos. 2º — A sua objetividade Os fatos sociais considerados como coisas. Como este princípiodetermina todo o método. 3º — O seu caráter sociológico: os fatos sociais explicados conservando a sua especificidade; a sociologia como ciência autônoma. A conquistadesta autonomia é o progresso mais importante que resta à sociologia empreender. Maior autoridade da sociologia assim praticada.Em resumo, as características deste método são as seguintes: em primeiro lugar, é independente de qualquer filosofia. Por ter nascido das grandes doutrinas filosóficas,a sociologia conservou o hábito de se apoiar num sistema qualquer, ao qual passava portanto a ficar solidária. Foi por este motivo que se chamou sucessivamente positivista,evolucionista e espiritualista, quando se devia ter contentado em ser apenas sociologia. Nós hesitaríamos até em qualificá-la de naturalista, a menos que se queirasomente indicar por essa palavra que a sociologia considera os fatos sociais como explicáveis naturalmente e, nesse caso, o epíteto é perfeitamente inútil, uma vezque significa simplesmente que o sociólogo faz uma obra de ciência, não sendo por isso um místico. Mas repudiamos o termo se se lhe der um sentido doutrinai sobrea essência das coisas sociais; se, por exemplo, se pretender dizer que elas são redutíveis às outras forças cósmicas. A sociologia não tem que optar entre as grandeshipóteses que dividem os metafísicos. Não lhe cabe mais o direito de afirmar a liberdade do que de afirmar o determinismo. Tudo quanto pretende que lhe concedamé que o princípio de causalidade se aplique aos fenômenos sociais. Este princípio é ainda considerado pela sociologia não como uma necessidade racional, mas unicamentecomo um postulado empírico, produto de uma indução legítima. Uma vez que a lei da causalidade se verificou nos outros reinos da natureza e que, progressivamente,estendeu o seu império do mundo físico-químico ao mundo biológico, e deste ao mundo psicológico, estamos no direito de admitir que é igualmente válida para o mundosocial; e, hoje em dia, é possível acrescentar que as investigações empreendidas com base neste postulado tendem a confirmá-lo. Mas a questão de saber se a naturezada ligação casual exclui toda a contingência não fica por isso encerrada.De resto, a própria filosofia tem todo o interesse na emancipação da sociologia, visto que, enquanto o sociólogo não despojar suficientemente o filósofo, este apenasconsidera as coisas sociais pelo seu lado mais geral, ou seja, o lado em que mais se assemelham às outras coisas do universo. Ora, se a sociologia assim concebidapode servir para ilustrar com fatos curiosos uma filosofia, não pode enriquecê-la com novas perspectivas, pois nada assinala de novo no objeto que estuda. Mas,na realidade, se os fatos funda-

p. 160mentais dos outros reinos se encontram no reino social, é sob formas especiais que melhor lhe dão a conhecer a natureza, visto serem a sua expressão mais elevada.Só que, para os aperceber sob este aspecto torna-se necessário sair das generalidades e entrar na particularidade dos fatos. Deste modo, e à medida que se for especializando,a sociologia fornecerá materiais mais originais à reflexão filosófica. O que ficou dito permite já entrever como noções essenciais tais como a de espécie, órgão,função, saúde e doença, causa e fim aí se apresentam sob novas luzes. Aliás, não será à sociologia que caberá a tarefa de dar o devido relevo a uma idéia que podemuito bem constituir a base não somente de uma psicologia mas de toda uma filosofia: a idéia de associação?Relativamente às doutrinas práticas, o nosso método permite e requer a mesma independência. A sociologia assim entendida não é nem individualista, nem comunista,nem socialista, no sentido em que vulgarmente se empregam estas palavras. Por princípio, a sociologia ignora tais teorias, às quais não poderia reconhecer valorcientífico por tenderem diretamente não a exprimir os fatos, mas a reformá-los. E, se se interessa por elas, é na medida em que aí descortina fatos sociais que podemajudá-la a compreender a realidade social, ao patentearem as necessidades que atormentam a sociedade. Isto não quer dizer, todavia, que ela deva desinteressar-sedas questões práticas. Vimos, pelo contrário, que a nossa preocupação constante era a de orientá-la de modo que desse resultados práticos. A sociologia depara-se

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necessariamente com estes problemas no termo das investigações. Mas, justamente porque eles apenas se lhe apresentam nesse momento e surgem dos fatos e não daspaixões, podemos prever que se apresentem ao sociólogo em termos muito diferentes daqueles ern que se põem à multidão, e que as soluções, aliás parciais, que elelhes pode dar não poderão coincidir exatamente com nenhuma das que os partidos adotam. Mas, sob este ponto de vista, o papel da sociologia deve justamente consistirem libertar-nos de todos os partidos, não opondo uma doutrina às doutrinas mas fazendo com que os espíritos partilhem, face a estas questões, uma atitude especialque só a ciência pode dar pelo contato direto com as coisas. Só ela, com efeito, pode ensinar a tratar com respeito, mas sem fetichismo, a^ instituições históricas,sejam elas quais forem, fazendo-nos sentir o que elas possuem ao mesmo tempo de necessário e de provisório, a sua capacidade de resistência e sua infinita variabilidade.Em segundo lugar, o nosso método é objetivo. É totalmente dominado pela idéia de que os fatos sociais'são coisas e devem ser tratados como tais. Este princípio encomrase,sem dúvida, sob uma forma um pouco diferente na base das doutrinas de Comte e de Spencer. Mas estes pensadores preocuparam se mais com a sua formulação teóricado que com como pô-lo em prática. Para que não continuasse letra morta, não bastava promulgá-lo: era preciso fazer dele a base de toda uma disciplina que dominasseo sábio no próprio momento em que abordasse o objeto da sua investigação, e que o acompanhasse, passo a passo, em todas as suas iniciativas. Foi à instituição dessadisciplina que nos dedicamos. Mostramos como o sociólogo devia afastar as noções antecipadas que tinha dos fatos para se debruçar sobre os próprios fatos; como deviaabordá-los pelos seus caracteres mais objetivos; como devia extrair deles o processo de os classificar como sãos ou mórbidos; como, por fim, deveria inspirar-seno mesmo princípio tanto para antecipar explicações como paia prová-las. Na realidade, quando temos o sentimento de que nos encontramos na presença de coisas, nãosonhamos sequer explicá-las por cálculos utilitários ou por raciocínios de qualquer espécie. Compreende-se demasiado bem o afastamento que há entre tais causas etais efeitos. Uma coisa é uma força que só pode ser engendrada por outra força. Procuram-se, portanto, para explicar os fatos sociais, energias capazes de os produzir.Não somente as explicações são diferentes como são diversamente explicadas, ou melhor, só nesse momento se experimenta a neces-

p. 161sidade de as demonstrar. Se os fenômenos sociológicos não são mais do que sistemas de idéias objetivadas, explicá-los é repensá-los na sua ordem lógica que, em simesma, constitui a sua própria prova; quando muito, poder-se-á confirmá-la com alguns exemplos. Pelo contrário, só as experiências metódicas podem arrancar às coisaso seu segredo.Mas, se considerarmos os fatos sociais como coisas, consideramo-los como coisas sociais. A terceira característica do nosso método é ser exclusivamente sociológico.Julgou-se muitas vezes que estes fenômenos, dada a sua extrema complexidade, ou eram refratários à ciência, ou só podiam penetrar nela reduzidos às suas condiçõeselementares, psíquicas ou orgânicas, isto é, despojados da sua própria natureza. Nós, pelo contrário, tentamos estabelecer que era possível tratá-los cientificamente,nada lhes tirando dos seus caracteres específicos. Recusamo-nos mesmo a reduzii a imaterialidade sui generis que os caracteriza à dos fenômenos psíquicos que, noentanto, é já complexa; com muito maior razão nos impedimos de a incorporar, na seqüência da escola italiana, nas propriedades gerais da matéria organizada.88 Mostramosque um fato social só pode ser explicado por um outro fato social e, simultaneamente, como este tipo de explicação é possível assinalando no meio social internoo motor principal da evolução coletiva. A sociologia não é, portanto, o anexo de qualquer outra ciência, sendo em si mesma uma ciência distinta e autônoma: a noçãoda especificidade da realidade social é de tal modo necessária ao sociólogo que só uma cultura especialmente sociológica pode prepará-lo ',para a compreensão dosfatos sociais.Pensamos que este progresso é o mais importante dos que resta à sociologia empreender. Quando uma ciência está a nascer, é-se sem dúvida obrigado, para a construir,a tomar como referência os únicos modelos existentes, quer dizer, as ciências já formadas. Há nelas um tesouro de experiências já feitas que seria insensato nãoaproveitar. No entanto, uma ciência só pode olhar-se como definitivamente constituída quando conseguiu adquirir uma personalidade independente, porquanto não teriarazão de existir se não tivesse por matéria um tipo de fatos que as outras ciências não estudam. Ora, é impossível que as mesmas noções possam convir identicamentea coisas de natureza diferente.Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico.Este conjunto de regras parecerá inutilmente complicado se o compararmos com os procedimentos correntemente usados. Todo este aparelho de precauções pode parecerbem laborioso para uma ciência que até aqui apenas reclamava, dos que a ela se dedicavam, uma cultura geral e filosófica; e é de fato certo que o pôr em práticaum tal método não poderia ter por efeito a vulgarização da curiosidade das coisas sociológicas. Quando, como condição de iniciação prévia, se pede às pessoas parase desfazerem dos conceitos que habitualmente aplicam a um tipo de coisas, para as repensar com novos esforços, não se pode esperar recrutar uma grande clientela.Mas não é esse o fim para que tendemos. Cremos, pelo contrário, que chegou o momento de a sociologia renunciar aos sucessos mundanos, por assim dizer, e tomar ocaráter esotérico que convém a todas as ciências. Ganhará assim em dignidade e autoridade o que talvez perca em popularidade. Porque, enquanto estiver misturadacom as lutas de partidos e se contentar com a elaboração de idéias comuns, apenas um pouco mais lógica do que o habitual, e, por conseguinte, não supondo qualquercompetência específica, a sociologia não'tem o direito de falar suficientemente alto para calar as paixões e os preconceitos. Seguramente, vem ainda longe o tempoem que ela poderá desempenhar esse papel eficazmente; no entanto, é para apronta la para o desempenhar um dia que precisamos, desde já, trabalhar.É portanto despropositado qualificar o nosso método de materialista.

***

p. 163 O SUICÍDIO

ESTUDO SOCIOLÓGICO

(INTRODUÇÃO, LIVRO II, CAP. I E LIVRO III, CAP. I)

Tradução de Luz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves

p. 165 Introdução

I

Como a palavra suicídio é freqüentemente utilizada, poder-se-ia pensar que todos lhe conhecem o sentido e que, portanto, seria supérfluo defini-lo. Mas, na realidade,as palavras da língua corrente, como os conceitos que exprimem, são sempre ambíguos e o estudioso que os explorasse tais como os recebe na utilização que deles éfeita diariamente, haveria necessariamente de incorrer em graves confusões. Não só a compreensão destas palavras e conceitos é de tal maneira pouco circunscritaque varia de caso para- caso, segundo as necessidades do discurso, mas também, visto que a classificação de que eles são o produto não procede de uma análise metódica mas traduz apenasas impressões confusas da massa, acontece com demasiada freqüência que categorias de fatos muito díspares sáo indistintamente reunidas sob uma mesma rubrica, ouque realidades da mesma natureza são apelidadas de nomes diferentes. Assim, aquele que se deixa con duzir pela acepção recebida corre o risco de distinguir o quedeve ser confundido ou de confundir o que deve ser distinguido. de desconhecer portanto o verdadeiro parentesco das coisas entre si e, por conseguinte, de se enganarsobre a natureza destas. Só a comparação nos pode fornecer explicações. Uma investigação científica só pode portanto atingir o seu fim se se debruçar sobre fatoscomparáveis, e tem tanto mais hipóteses de o con seguir quando se certificar de ter reunido todos os fatos que podem ser utilmente comparados. Porém, estas afinidadesnaturais dos seres não poderiam ser atingidas com um mínimo de segurança através de um exame superficial como aquele de que resultou a terminologia vulgar; porconseguinte, o estudioso não pode tomar como objeto das suas investigações os grupos de fatos já constituídos a que correspondem as palavras da língua corrente.É obrigado a constituir ele próprio os grupos que pretende estudar, a fim de lhes conferir a homogeneidade e a especificidade que lhes são necessárias para poderem ser tratados cientificamente. É assim que o botânico, ao falar de flores ou de frutos, que o zoólogo, ao falar de peixes ou de insetos, utilizam estes diferentestermos em sentidos previamente estabelecidos.

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A nossa tarefa primordial deve portanto ser a de determinar a ordem de fatos que nos propomos estudar sob o nome de suicídios. Nesse sentido, vamos procurar verse, entre os diferentes tipos de mortes, existem alguns que têm em comum caracteres suficientemente objetivos para poderem ser reconhecidos por qualquer observadorde boa fé, suficientemente especiais para não serem encontrados noutros tipos, mas. ao mesmo ternpo, suficientemente próximos dos que são qualificados sob o nomede suicí dios para que possamos, sem forçar o uso, conservar esta mesma expressão. Reuniremos sob esta denominação todos os fatos, sem exceção, que apresentaremestes caracteres distintivos, e isto sem nos preocuparmos se a classe assim constituída não compreende todos os casos que normalmente se denominam assim, ou se,pelo contrário, compreende

p. 166outros casos que estamos acostumados a designar de outra forma. Porque o que é importante não é exprimir com alguma precisão a noção de suicídio criada pela médiadas inteligências, mas constituir uma categoria de objetos que, embora possa ser sem inconveniente etiquetada sob esta rubrica, seja objetivamente fundada, istoé. corresponda a uma natureza de coisas determinada.Ora, entre as diversas espécies de mortes, há as que apresentam o seguinte traço particular: o fato de serem obra da própria vítima, de resultarem de um ato de queo paciente é o autor; e, por outro lado, acontece que este mesmo traço se encontra na base da idéia que normalmente se tem de suicídio. A natureza intrínseca dosatos que produzem este resultado não é aliás muito importante. Embora de uma maneira geral o suicí dio seja pensado como uma ação positiva e violenta que implicaum investimento de força muscular, pode acontecer que uma atitude puramente negativa ou uma simples abstenção tenham a mesma conseqüência. As pessoas tanto se matampela recusa de se alimentarem como pela destruição pelo ferro e pelo fogo. Nem sequer é necessário que o ato emanado do paciente tenha sido o antecedente imediatoda morte para que esta possa ser considerada como o efeito de tal ato: a relação de causalidade pode ser indireta, o fenômeno no entanto não se altera na sua natureza.O iconoclasta que, para conquistar as palmas do martírio, comete um crime de lesa-majestade que sabe ser capital e que morre às mãos do carrasco é o autor do seufim como o seria se tivesse sido ele a desferir o golpe mortal sobre si próprio; não se pode classificar em gêneros diferentes estas duas variedades de mortes voluntárias,visto que as diferenças existentes entre elas se verificam apenas nos pormenores materiais da execução. Chegamos assim a uma primeira fórmula: o suicídio é todamorte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima.Mas esta definição é incompleta; não se faz qualquer distinção entre duas espécies de mortes muito diferentes. Não podemos alinhar na mesma classe e tratar da mesmamaneira a morte do alucinado que se precipita de uma janela alta porque a julga perto do solo e a do homem são de espírito que atenta contra a vida sabendo que ofaz. Aliás, em certo sentido, há poucas mortes que não sejam a conseqüência próxima ou longínqua de procedimentos do paciente. As causas de morte estão situadasfora de nós mais que em nós e só nos atingem se nos aventurarmos a entrar na sua esfera de ação.Diremos então que só há suicídio se o ato de que a morte resulta tiver sido realizado pela vítima tendo em vista o resultado? Que só se mata verdadeiramente aqueleque quis matar-se e que o suicídio é um homicídio intencional de si próprio? Isto corresponderia a definir o suicídio através de uma característica que, apesar dointeresse e da importância que pudesse ter, possuiria pelo menos a desvantagem de não ser facilmente reconhecível, porque difícil de observar. Como saber que móbildeterminou o agente, como saber se, ao tomar a sua resolução, desejava efetivamente a morte, ou tinha outro fim em vista? A intenção é algo de demasiado íntimo parapoder ser atingida do exterior, a não ser por aproximações grosseiras. Até da observação interior ela se defende. Quantas vezes nos enganamos sobre as verdadeirasrazões que nos levam a agir! Quantas vezes explicamos por paixões generosas ou por considerações elevadas atos que nos foram inspirados por simples sentimentos oupor uma rotina cega!Aliás, de uma maneira geral, um ato não pode ser definido pelo fim que o agente persegue, pois um mesmo sistema de movimento, sem mudar de natureza, pode servira muitos fins diferentes. De fato, se só houvesse suicídio nos casos em que houvesse intenção de pôr termo à vida. seria preciso recusar esta denominação a fatosque, apesar das aparentes dessernelhanças, são, no fundo, idênticos àqueles que todos designam assim e

p. 167que não podem ser designados de outra maneira a não ser que o termo perca a utilização. O soldado que corre para uma morte certa para salvar o seu pelotão não querperecer; e, no entanto, não será o autor da sua própria morte como o é o industrial ou comerciante que se mata para se poupar à vergonha da falência? O mesmo sepode dizer do mártir que dá a vida pela fé, da mãe que morre para salvar o filho, etc. Quer a morte seja simplesmente aceita como uma condição lamentável mas inevitável,quer seja expressão desejada e procurada em si, num caso e noutro, o sujeito renuncia à existência; e as diferentes expressões desta renúncia não são senão variedadesde uma mesma classe. Há entre elas demasiadas semelhanças fundamentais para que não sejam reunidas sob a mesma expressão genérica embora se tenha de distinguir espéciesno gênero assim constituído. Sem dúvida, o suicídio é vulgarmente e antes de mais nada o ato de desespero de um indivíduo a quem a vida já não interessa. Mas, narealidade, e visto que se está ainda ligado à vida no momento de a deixar, não deixa de ser difícil abandoná-la; e, entre todos os atos pelos quais um ser vivo abandonaassim o mais precioso dos seus bens, existem traços comuns que são evidentemente essenciais. Pelo contrário, a diversidade dos mobeis que podem ter ditado estasresoluções só pode dar lugar a diferenças secundárias. Portanto, quando o desvelo vai até ao sacrifício certo da vida, é cientificamente um suicídio; veremos maisadiante de que espécie.O que é comum a todas as formas possíveis desta renúncia suprema é que o ato que a consagra é realizado com conhecimento de causa; é que a vítima, no momento deagir, sabe o que vai resultar da sua conduta, seja qual for a razão que a levou a conduzir-se assim. Todos os fatos de morte que apresentam esta particularidadecaracterística se distinguem claramente dos outros, em que o paciente ou não é o agente do seu próprio falecimento ou o é apenas de uma maneira inconsciente. Distinguem-sedos outros através de uma característica facilmente reconhecível, pois não constitui problema insolúvel saber se previamente o indivíduo conhecia ou não as conseqüênciasnaturais da sua ação. Estes óbitos constituem portanto um grupo definido, homogêneo, discernível de outro qualquer e que, por conseguinte, deve ser designado porum termo específico. O de suicídio convém-lhe bastante bem, pelo que não vale a pena criar outro; porque a grande generalidade dos fatos que diariamente se designamassim integra-se perfeitamente nele. Definitivamente, diremos então: Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivoou negativo praticado pela própria vítima, ato que a vítima sabia dever produzir este resultado. A tentativa de suicídio é o ato assim definido, mas interrompidoantes que a morte daí tenha resultado.Esta definição é suficiente para excluir do nosso trabalho tudo o que se relacione com suicídios de animais. com efeito, o que sabemos sobre a inteligência animalnão nos permite atribuir aos animais uma representação antecipada da sua morte, nem, sobretudo, dos meios capazes de a produzir. Há animais que se recusam a penetrarnum local onde foram mortos outros animais; dir-se-ia que pressentem o destino que os espera. Mas, na realidade, basta o cheiro a sangue para determinar este movimentoinstintivo de recuo. Todos os casos providos de autencidade que se costuma citar e nos quais se pretende ver suicídios propriamente ditos podem ser explicados deoutra maneira. Se o escorpião irritado se pica a si próprio (o que aliás nem sempre acontece), fá-lo provavelmente em virtude de uma reação automática e irrefletida.A energia motora desencadeada pelo seu estado de irritação é desferida ao acaso; embora o animal seja a vítima desta descarga de energia, não podemos dizer que elese tenha representado previamente a conseqüência do seu movimento. Inversamente, se há cães que recusam alimentar-se após terem perdido o dono, é porque a tristezaem que estão mergulhados lhes suprime

p. 168mecanicamente o apetite; embora a morte possa resultar de uma situação dessas, não se pode dizer que tenha sido prevista. Nem o jejum, neste caso, nem a picada noprimeiro são utilizados como meios cujo efeito é conhecido. Os caracteres distintivos do suicídio, tal como os definimos, não estão presentes nestes exemplos. Épor isso que a partir de aqui nos debruçaremos apenas sobre o suicídio humano.1Mas esta definição não tem apenas a vantagem de evitar as aproximações enganadoras ou as exclusões arbitrárias; dá-nos imediatamente uma idéia do lugar que os suicídios ocupam no conjunto da vida moral. Mostra-nos de fato que, ao contrário do que se poderia pensar, os suicídios não constituem um grupo isolado, uma classe àparte de fenômenos monstruosos, sem relação com os outros modos da conduta, mas, pelo contrário, que estão ligados a eles através de uma série contínua de intermediários.Não são mais que a forma exagerada de práticas usuais. com efeito, e como dissemos, há sui cídio quando a vítima, no momento em que comete o ato que deve pôr fimaos seus dias, sabe com toda certeza o que normalmente daí deve resultar. Mas esta certeza pode ser mais ou menos forte. Matizada de algumas dúvidas, constituium fato novo, que não é o suicídio, mas que é seu parente próximo visto que só existem entre eles diferenças de grau. Um homem que conscientemente se expõe por

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outrem,sem saber se o desfecho da situação lhe traz ou não a morte, não é, sem dúvida, um suicida, mesmo no caso de sucumbir, como não o é o imprudente que em pleno conhecimentode causa brinca com a morte embora procurando evitá-la, ou o apático, que, não tendo nada que o prenda à vida, não cuida da saúde e a compromete por negligência.E, no entanto, estas diferentes maneiras de agir não se distinguem radicalmente dos suicídios propriamente ditos. Procedem de estados de espírito análogos, vistoque implicam igualmente riscos mortais não ignorados pelo agente, e que a perspectiva destes riscos não o impede de prosseguir os seus intentos; a diferença resideno fato de os riscos de morte serem menores. Assim, não é sem fundamento que freqüentemente se diz do estudioso que se esgotou a trabalhar que deu cabo de si próprio.Todos estes fatos constituem portanto espécies de suicídios embrionários, e, se não é metodologicamente correto confundi-los com o suicídio completo e desenvolvido,também é preciso não perder de vista as relações de parentesco que os ligam a este último. Porque o suicídio surge sob um aspecto novo, se reconhecermos que se ligasem solução de continuidade aos atos de coragem e de desvelo, por um lado, e, por outro, aos atos de imprudência e de simples negligência. Adiante se verá o queestasaproximações têm de instrutivo. „ **, ,t<

II

Mas, assim definido, o fato interessará ao sociólogo? Visto que o suicídio é um ato do indivíduo que apenas afeta o indivíduo, dir-se-ia que depende exclusivamentede fato rés pessoais e que o estudo de tal fenômeno se situa no campo da psicologia. E, aliás, não é pelo temperamento do suicida, pelo seu caráter, pelos seus antecedentes,pelos acontecimentos da sua vida privada que normalmente este ato se explica?1 Resta contudo um número muito restrito de casos que não podem ser assim explicados, mas que são mais que du\ idosos. Assim por exemplo o fato, relatado por Aristóteles,de um cavalo que, percebendo que copulara com a mãe, sem o saber e depois de a tal se ter recusado várias vezes, se teria intencionalmente precipi tado do altode uma montanha (Histoire dês Animaux (História dos Animais), IX, 47). Os criadores afirmam que o cavalo não é de modo algum refratáno ao incesto. Sobre toda estaquestão, ver Westcott, Suicide, págs. 174-179.

p. 169Por agora não tentaremos aprofundar em que medida e em que condições é legítimo estudar assim os suicídios, mas o que é certo é que podem ser analisados sob um aspectocompletamente diferente. Assim, se. em vez de vermos neles apenas acontecimentos particulares isolados uns dos outros e que necessitam cada um por si de um exameparticular, considerarmos o conjunto dos suicídios cometidos numa sociedade dada, o total assim obtido não é uma simples soma de unidades independentes, um todode coleção, mas constitui em si um fato novo e síii generis, que possui a sua unidade e a sua individualidade, a sua natureza própria por conseguinte, e que, alémdisso, tal natureza é eminentemente social. De fato, para uma mesma sociedade, e desde que a observação não se estenda por um período demasiado longo, este númeroé pouco mais ou menos invariável, como o prova o quadro I. É que, de um ano para o outro, as circunstâncias em que a vida dos povos se desenvolve são sensivelmenteas mesmas. Não quer isto dizer que por vezes não se produzam variações. Aliás pode verificar-se que são sempre contemporâneas de alguma crise que venha afetar oestado social.2Assim, em l 848 houve unia descida brusca em todos os Estados europeus.Considerando um intervalo de tempo maior, contam-se modificações mais graves. Mas elas tornam-se crônicas; provam portanto e muito simplesmente que os caracteresconstitucionais da sociedade sofreram, entretanto, transformações profundas. É interessante notar que estas modificações não se produzem com a extrema lentidãoque um grande número de observadores lhes atribui, mas são simultaneamente bruscas e progressivas. De repente, após uma série de anos ao longo dos quais os númerososcilaram entre limites muito próximos, manifesta-se uma subida que, após hesitações em sentidos contraditórios, se afirma, se acentua e acaba por fixar-se. Istoquer dizer que a rotura do equilíbrio social, mesmo surgindo bruscamente, leva sempre tempo a produzir todas as suas conseqüências. A evolução do suicídio é assimcomposta por ondas de movimento, distintas e sucessivas, que se verificam por arranques, se desenvolvem durante um tempo,para depois estacionar, para em seguida recomeçar. No quadro I, p. 472 pode-se verificar que uma dessas ondas se constituiu em quase toda a Europa após os acontecimentosde 1848, isto é, por volta dos anos de 1850-1853, segundo os pases; uma outra teve início na Alemanha após a guerra de 1866; na França um pouco mais cedo, em 1860,na época que marca o apogeu do governo imperial; na Inglaterra em 1868, isto é, após a revolução comercial que os tratados de comércio então determinaram. Talveza nova recrudescência que se constata entre nós por volta de 1865 seja devida à mesma causa. Depois da guerra de 1870 verificou-se outra subida que ainda dura eque é geral na Eui opa.3Cada sociedade tem portanto, em cada momento da sua historia, uma aptidão definida para o suicídio. Mede-se a intensidade relativa desta aptidão tomando a relaçãoentre o número global de mortos voluntários e a população global (todas as idades e ambos os sexos). Designaremos este dado numérico por taxa de mortalidade-suicídioprópria à sociedade considerada. Esta taxa é geralmente considerada relativamente a um milhão ou a cem mil habitantes. • . . - <•*Não só esta taxa é constante durante longos períodos de tempo, como a sua invariabilidade é também maior que a dos principais fenômenos demográficos. A mortalidade

2 Pusemos entre parênteses os números referentes a esses anos excepcionais.3 No quadro representamos alternativamente por algarismos normais ou por algarismos itálicos as séries de números que representam estas diferentes ondas de movimento,a fim de tornar materialmente sensível a individualidade de cada uma delas.falta texto p. 171geral, sobretudo, varia mais de um ano para outro e as variações por que passa são muito mais consideráveis. Para se ficar seguro disso, basta comparar, durantevários períodos, a forma como estes dois fenômenos evoluem. Foi o que fizemos no quadro II(v.pág.476). Para facilitar a aproximação, exprimimos, tanto no que respeitaaos óbitos como aos suicídios, a taxa de cada ano em função da taxa média do período referida a 100. As diferenças de ano para ano ou relativamente à taxa médiatornam-se assim suscetíveis de comparação nas duas colunas. Ora, desta comparação resulta que em cada período a amplitude das variações é muito mais considerávelno quadro da mortalidade geral que no quadro dos suicídios; é em média o dobro. O afastamento mínimo entre dois anos consecutivos tem sensivelmente a mesma importânciaem ambos os casos durante os dois últimos períodos. Simplesmente, este mínimo é uma exceção na coluna dos óbitos, enquanto pelo contrário as variações anuais dossuicídios só excepcionalmente se afastam dele. Verifica-se isso comparando os afastamentos médios. 4É verdade que, se compararmos já não os anos sucessivos de um mesmo período, mas as médias de períodos precedentes, as variações que se observam na taxa de mortalidade se tornam quase insignificantes. As alterações em sentido contrário que se verificam de uns anos para outros, e que são devidas à ação de causas passageirase aciden tais, neutralizam se mutuamente quando se toma por base do cálculo uma unidade de tempo mais extensa; desaparecem portanto do número médio que, devido aesta eliminação, apresenta uma grande invariabilidade. Assim, na França, de 1841 a 1870 foi sucessivamente, para cada período decenal, 23,18, 23,72, 22.87. Mas sobretudoé um fato notável que o suicídio tenha, de ano para ano, um grau de constância igual ou até superior ao que a mortalidade geral manifesta apenas de período paraperíodo. Além disso, a taxa média da mortalidade só atinge esta regularidade quando se torna algo de geral e de impessoal que só muito imperfeitamente pode servirpara caracterizar uma dada sociedade. com efeito, é sensivelmente a mesma para todos os povos que atingiram um idêntico grau de civilização; pelo menos as diferençasexistentes de uns para outros são muito fracas.Assim, na França, como aliás vimos, oscila de 1841 a 1870 em torno de 23 óbitos para mil habitantes; durante o mesmo período foi sucessivamente 23, 93, 22,5, 20,04na Bélgica; 22,32, 22,21, 22,68 na Inglaterra; 22,65 (1845-49), 20,44 (1855-59), 20,4 (1871-68) na Dinamarca. Abstraindo da Rússia, que por enquanto só geograficamenteé européia, os únicos grandes países da Europa em que a dízima mortuária se afasta de urna maneira relativamente vincada dos números precedentes são a Itália, paísonde ela se elevava ainda de 1861 a 1867 a 30,6, e a Áustria, onde era ainda mais considerável (32.52).5

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Pelo contrário, a taxa dos suicídios, ao mesmo tempo que acusa apenas alterações anuais fracas, varia segundo as sociedades do singular para o duplo, para o triplo,para o quádruplo e até para mais (v. quadro in, pág. 477). Ela é portanto num grau muito mais elevado que a taxa de mortalidade, pessoal a cada grupo social, doqual pode ser considerada como um índice característico. Inclusivamente, está tão estreitamente ligada ao que há de mais profundamente constitucional em cada temperamentonacional que a ordem segundo a qual se classificam, sob este aspecto, as diferentes sociedades, permanece quase rigorosamente a mesma em épocas muito diferentes.4 Wagner ia comparara do mesmo modo a mortalidade e a nupcialidade (Üie Gesetzmassigkeit, etc., pág.87).5 Segundo Bertillon. artigo Moila/ité do Dictionnaire Enc\ clopédique dês Sciences Médicales, t. LXI, pág.

738.

A taxa de suicídios constitui portanto uma ordem de fatos una e determinada; é o que demonstram, simultaneamente, a sua permanência e a sua variabilidade. Porqueesta permanência seria inexplicável se não dependesse de urn conjunto de caracteres distintivos, solidários, que, apesar da diversidade das circunstâncias ambientes,se afirmam simultaneamente; e esta variabilidade prova a natureza individual e concreta destes mesmos caracteres, visto que eles variam com a própria individualidadesocial. Em suma, o que estes dados estatísticos exprimem é a tendência para o suicídio de que cada sociedade está coletivamente afetada. Não pretendemos estudaraqui em que consiste esta tendência, se é um estado sui generis da alma coletiva,6 com a sua realidade própria, ou se representa apenas uma soma de estados individuais.Embora as considerações precedentes sejam dificilmente conciliáveis com esta última hipótese, reservamos por agora o problema que será tratado adiante.7 Apesardo que se possa pensar sobre a questão, o que acontece é que esta tendência existe de uma maneira ou de outra. Cada sociedade está predisposta a fornecer um determinadocontingente de mortos voluntários. Esta predisposição pode portanto ser objeto de um estudo especial, que se situa no domínio da sociologia. É este estudo que vamosempreender.6 É claro, servindo nos desta expressão, não pretendemos de manena nenhuma hipostasiar a consciência coletiva. Tanto admitimos a existência de uma alma substancialna sociedade como no indivíduo. Voltare mos a esta questão.7 Vide liv. in, cap I.

p. 174A nossa intenção não é pois fazer um inventário o mais completo possível de todas as condições que poderão eventualmente entrar na gênese dos suicídios particulares,mas apenas procurar as condições de que depende este fato distinto a que chamamos taxa social dos suicídios. De fato, as duas questões são independentes apesar darelação que possa haver entre elas. É claro, entre as condições individuais haverá certamente muitas que não são suficientemente gerais para afetar a relação entreo número total das mortes voluntárias e a população. Talvez possam fazer com que este ou aquele indivíduo isolado se mate, não que a sociedade in globo tenha umapropensão mais ou menos intensa para o suicídio. Estas condições, do mesmo modo que não provêm de certo estádio de organização social, também não têm reações sociais.Portanto, são do interesse do psicólogo, não do sociólogo. O que este último procura são as causas através das quais é possível agir, não sobre os indivíduos isolados,mas sobre o grupo. Por conseguinte, entre os fatores dos suicídios, os únicos que lhe dizem respeito (ao sociólogo) são os que se fazem sentir no conjuto da sociedade.A taxa dos suicídios é o produto destes fatores. É por isso que nos vamos debruçar sobre eles.Tal é o objeto do presente trabalho, que compreenderá três partes. !O fenômeno em cuja explicação nos empenhamos só pode ser imputado a causas extra-sociais de uma grande generalidade ou a causas propriamente sociais. Começando pornos interrogar sobre a influência das primeiras, concluiremos que é nula ou muita restrita. ;Determinaremos depois a natureza das causas sociais, a maneira como elas produzem os seus efeitos, e as suas relações com os estados individuais que acompanhamas diversas espécies de suicídios.Feito isto, poderemos precisar em que consiste o elemento social do suicídio, isto é,8 Seguem-se as indicações relativas à bibliografia geral do suicídio. _ __PUBLICAÇÕES ESTATÍSTICAS OFICIAIS""" 7"" , ^"""". DE QUE NOS SERVIMOS «!>.*„•>-.Oesteneischische Statistik (Stalistik dês Sanitàtiswesens). Annuaire Statistique de la Belgique.Zeitschrift dês Koeniglisch Bayerischen Statistischen Bureau.Preussische Statistik (Sterblichkeit nach Todesursachen und Altersclassen der Gestorbenen). Wúrtembürgische Jahrbucherfur Statistik und Landeskunde. Badische Statistik.Tenth Census ofthe United States. Report on the Mortality and Vital Statistic ofthe United States 1880, 2.a parte. Annuario Statistico Italiano. — Statistica delleCause delle Morti in Tutti i Comuni dei Regno. — Relazione Medico Statistica sulle Condiztoni Sanitane dell'Esercito Italiano. — Stattslische Nachrichten dês GrossherzogthumsOldenburg.Compte Rendu General de 1'Administration de la Justice Criminelle en France. Statistisches Jahrbuch der Stadt Berlin.Statistik der Síadt Wien. rStatistisches Handbuchfúr den Hamburgischen Staat. Jahrbuch fúr die Amtliche Statistik der Bremischen Staaten. Annuaire Slatistique de la Ville de Paris.Os seguintes artigos encerram igualmente informações úteis:P\ztter,UeberdieSelb!,tmordein Oesíerretch on denJahren 1819-1872, inStatist, Monatsch., 1876. Brattassévic, Die Selbstmorde in Oesíerreich m den Jahren 1873-77,in Stat, Monatsch., 1878, pág. 429. Ogle, Suicides in England and Wales in Relation to Age, Sex, Season and Occupation, in Journal of the StatisticalSocietv, 1886.

p. 175a tendência coletiva a que nos referimos, quais são as suas relações com os outros fatos sociais e através de que meios é possível agir sobre ela.8Rossi, //Suicídio nella Spagna nel 1994, Arch. diPsichiatria, Turim, 1886.II Estudos Sobre o Suicídio em Geral.De Guerry, Statistlque Morale de la France, Paris, 1835, e Slatistique Morale Comparée de la France et del'Anglelerre, Paris, 1864.Tissot, De la Mame du Suicide et de l 'Esprit de Revolte, de Leurs Causes ei de Leurs Remèdes, Paris, 1841.Etoc-Demazy, Recherches Statistiques sur lê Suicide, Paris, 1844.Lisle, Du Suicide, Paris, 1856.Wappaus, Bevolkerungsstatistik, Leipzig, 1861.Wagner, Die Gesetzmassigkeit in den Scheinbar Willkúrlichen Menschlichen Handlungen, Hamburgo, 1864,2.J Parte.Brierre de Boismont, Du Suicide et de la Folie Suicide, Paris, Germer, 1865.Douay, Lê Suicide ou la Morí Volontaire, Paris, Bailhère, 1870.Leroy, Étude sur lê Suicide et lês Maladies Mentales dans lê Dépanement de Seine-et-Marne, Paris, 1870.Oettingen, Die Moralstatistik, 3 Auflage, Erlangen, 1882, págs. 786-832 e quadros anexos 103-120.Du Même, Ueber Acuten und Chronischen Selbstmord, Dorpat, 1881.MoTselli, II Suicídio, Milão, 1879.Legoyt, Lê Suicide Ancien et Moderne, Paris, 1881.Masaryk, Der Selbstmord ais Soziale Massenerscheinung, Viena, 1881.Westcott, Suicide, its History, Litterature, etc., Londres, 1885.

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Motta, Bibliografia dei Suicídio, Bellinzona, 1890.Corre, Crime et Suicide, Paris. 1891.Vo-nometii, IISuicídio, Milão. 1892.Mayr, Selbstmordstatisük, m Handwõrterbuch der Staatswissenschaften, Herausgegeben von Conrad, ErsterSupplementband, lena. 1895.Hauviller D , Suicide, thèse, 1898-99.

p. 177 LIVRO II

CAUSAS SOCIAIS E TIPOS SOCIAIS

CAPITULO PRIMEIRO

Método para os determinar

Os resultados do livro precedente não são unicamente negativos. Estabelecêramos, com efeito, que em cada grupo social há uma tendência específica para o suicídioque não se pode explicar nem através da constituição orgânico-psíquica dos indivíduos nem através da natureza do meio físico. Portanto, por eliminação, depende necessariamentedas causas sociais e constitui, por si só, um fenômeno coletivo; alguns dos próprios fatos que examinamos, nomeadamente as variações geográficas e periódicas dosuicídio, tinham-nos conduzido precisamente a esta conclusão. É esta tendência que temos de estudar agora mais em detalhe.

I

Para o conseguirmos o melhor seria, ao que parece, investigar primeiramente se ela é simples e indecomponível ou se não consistiria antes nurna pluralidade de tendênciasdiferentes que a análise pode isolar e que conviria estudar separadamente. Neste caso, eis como se deveria proceder. Dado que, única ou não, só através dos suicídiosindividuais que a manifestam é que podemos observá-la, é por estes últimos que teremos de começar. Observaríamos, portanto, o maior número possível destes, não contando,é claro, com aqueles que derivam da alienação mental, e descrevê-los-íamos. Se todos eles apresentassem as mesmas características essenciais, reuni-los-íamos numamesma e única classe; no caso contrário, que é de longe o mais verossímil — dado que são demasiado diferentes para não abrangerem diversas variedades —, estabelecer-se-iaum certo número de espécies conforme as respectivas analogias e diferenças.Quanto mais tipos distintos se reconhecessem tanto mais correntes suicidogêneas se admitiriam, procurando-se, em seguida, determinar as causas e a importância respectivadestas. Trata-se pouco mais ou menos do método que seguimos no exame sumário do suicídio vesânico.Infelizmente, uma classificação dos suicídios racionais segundo as suas formas ou características morfológicas revela-se impraticável, pois os documentos necessáriossão quase inexistentes. com efeito, para tentarmos tal classificação, seria necessário possuir boas descrições relativas a um grande número de casos particulares.Teríamos de saber em que estado psíquico se encontrava o suicida no momento em que tomou a resolução, como preparou ele a realização, como finalmente a executou,se estava agitado ou deprimido, calmo ou entusiasta, ansioso ou irritado, etc. Ora, não possuímos informações deste gênero senão para os casos dos suicídios vesânicos,e é precisamente graças às observações e às descrições assim recolhidas pelos alienistas que foi possível definir os principais tipos de suicídios relativamenteaos quais a loucura é a causa determinante. No que diz respeito aos outros, não temos praticamente nenhuma informação. Sozinho.

p. 178Brierre de Boismont tentou realizar este trabalho descritivo relativamente a 1328' casos em que o suicida deixa cartas ou escritos que o autor resumiu no seu livro.Mas, em primeiro lugar, este resumo é demasiado breve. Depois, as confidencias que o próprio sujeito nos faz são na maior parte das vezes insuficientes, quando nãosão suspeitas. Tem uma enorme tendência para se enganar a respeito de si próprio e a respeito da natureza das suas disposições; imagina, por exemplo, agir com sangue-frio,quando, na realidade, está no cúmulo da superexcitação. Enfim, além de não serem suficientemente objetivas, essas observações apóiam-se num número demasiado reduzidode fatos para que se possam tirar conclusões precisas. Consegue-se descortinar algumas linhas muito vagas de demarcação e podemos tirar proveito das indicações quenos fornecem; mas são demasiado pouco definidas para servirem de base a uma classificação regular. De mais a mais, dada a maneira como são executados a maior partedos suicídios, é praticamente impossível obter informações de maneira conveniente.Mas podemos atingir o nosso objetivo por uma outra via. Bastará inverter a ordem das investigações. com efeito, para que haja tipos diferentes de suicídios é necessárioque as causas de que dependem sejam elas próprias de naturezas diferentes. Para que cada um deles possua uma natureza que lhe seja própria, é necessário que possuatambém condições de existência que lhe sejam específicas. Um mesmo antecedente ou um mesmo grupo de antecedentes não pode produzir ora uma conseqüência ora outra,pois, nesse caso, a diferença que distingue o segundo do primeiro não teria ela própria uma causa; o que significaria a negação do princípio da causalidade. Qualquerdiferença específica constatada entre as causas implica portanto uma distinção semelhante quanto aos efeitos. Por conseqüência podemos definir os tipos sociais dosuicídio sem que os classifiquemos diretamente segundo as características previamente descritas, mas classificando as causas que os determinam. Sem nos preocuparmosem saber qual a razão por que são diferentes uns dos outros, procuraremos imediatamente quais as condições sociais de que dependem; reuniremos em seguida estas condições,segundo as semelhanças e diferenças apresentadas, num certo número de classes separadas, e poderemos estar certos de que a cada uma destas classes corresponderáum tipo determinado de suicídio. Em resumo, a nossa classificação, em vez de morfológica, será, logo à primeira vista, etiológica. Não se trata, aliás, de uma inferioridade,pois penetra-se muito mais na natureza de um fenô meno quando se conhece a causa do que quando se conhecem unicamente as características, mesmo as essenciais.É fato que este método tem o defeito de postular a diversidade dos tipos sem os atingir diretamente. Pode estabelecer a existência, o número, mas não as característicasdistintivas. Mas é possível evitar este inconveniente, pelo menos numa certa medida. Logo que é conhecida a natureza das causas, poderemos tentar deduzir a naturezados efeitos, que se encontrarão assim caracterizados e classificados simultaneamente em vir tude de serem postos em relação com as suas origens respectivas. É certoque, se esta dedução não fosse orientada pelos fatos, arriscar-se ia a diluir-se em combinações mera mente fantasistas. Mas poderemos orientá-la com a ajuda dealgumas informações de que dispomos, relativamente à morfologia dos suicídios. Estas informações, por si sós. são demasiado incompletas e demasiado incertas parapoderem representar um princípio de classificação; mas poderão ser utilizadas a partir do momento em que as linhas gerais desta classificação estiverem definidas.Indicar-nos-ào em que sentido a dedução deverá ser dirigida e, pelos exemplos que nos fornecerão, teremos a certeza de que as espécies assim constituídas dedutivamentenão são imaginárias. Passaremos deste modo das cau sãs aos efeitos e a nossa classificação etiológica será completada por uma classificação morfológica que poderáservir para verificar a primeira e reciprocamente.

p. 179Este método invertido é, sob todos os aspectos, o único que convém ao problema particular que pusemos. Não se deve perder de vista, com efeito, que o que estudamosé a taxa social dos suicídios. Os únicos tipos que devem interessar-nos são portanto aque lês que contribuem para a sua formação e em função dos quais varia. Ora,não está pró vado que todas as modalidades individuais da morte voluntária tenham esta propriedade. Algumas há que, embora dotadas de um certo grau de generalidade,não estão, ou não estão suficientemente, ligadas ao temperamento moral da sociedade para poderem entrar, como elemento característico, na fisionomia particular quecada povo apresenta no respeitante ao suicídio. Vimos assim que o alcoolismo não constitui um fator que inter vêm na inclinação específica de cada sociedade; e,

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no entanto, há evidentemente suicí dios provocados pelo alcoolismo, e em número bastante elevado. Não será portanto nunca uma descrição, ainda que bem feita, doscasos particulares, que poderá determinar aqueles que revestem um caráter sociológico. Se quisermos saber de que confluentes resulta o suicídio, considerado comofenômeno coletivo, é sob a sua forma coletiva, isto é, através dos dados estatísticos, que será necessário tomar diretamente como objeto de análise; é preciso partirdo todo para chegar às partes. Mas é claro que só pode ser anali sado em relação às causas diferentes de que depende; porque as unidades cuja adição forma a taxasocial são por natureza homogêneas e não se distinguem qualitativamente. Devemos portanto consagrar-nos, sem mais demora, à determinação das causas, sob o riscode termos de investigar em seguida como se repercutem nos indivíduos.

II

Mas como atingir estas causas?Nas constatações judiciárias que se fazem cada vez que há um suicídio, aponta-se o motivo (desgosto da família, dor física ou outra, remorso, embriaguez, etc.) quese ad mite ter sido a causa determinante e, nos resumos estatísticos de quase todos os países, encontra-se um quadro especial em que os resultados destes inquéritosestão reunidos sob o título: Motivos Presumidos dos Suicídios. Parece portanto natural aproveitar este trabalho já feito e começar a nossa investigação pela comparaçãodestes documentos. com efeito, ao que parece, revelam-nos os antecedentes imediatos dos diferentes suicídios; ora, cremos ser um bom método de estudo de qualquerfenômeno partir das causas mais próximas, sob risco de em seguida se ter de continuar a investigação se a primeira tentativa se revelar infrutífera.Mas, como já dizia Wagner há muito tempo, aquilo a que se chama estatística dos motivos dos suicídios é, na realidade, uma estatística das opiniões que têm, sobreestes motivos, os funcionários, muitas vezes subalternos, encarregados deste serviço de infor mações. Sabe-se, infelizmente, que as constatações oficiais são muitasvezes defeituosas, embora elas respeitem a fatos materiais e ostensivos que qualquer observador conscien cioso pode compreender e que dispensam comentário. Mas quantasnão devem ser consi deradas como suspeitas quando têm por objetivo não registrar simplesmente um fato consumado, mas interpretá-lo e explica Io! É sempre difícilprecisar a causa de um fenô meno. O sábio necessita de toda espécie de observações e de experiências para resolver uma única destas questões. Ora, de todos os fenômenos,as volições humanas são os mais complexos. Vê-se portanto o que podem valer estes juízos improvisados que, com base em algumas informações recolhidas à pressa,pretendem marcar uma origem definida para cada caso particular. Logo que se crê ter descoberto entre os antecedentes da vítima alguns destes fatos que são em geralconsiderados como conduzindo ao desespero, julgase inútil procurar mais e, conforme se considera que o sujeito perdeu recentemente

p. 180dinheiro, teve desgostos de família ou denota uma certa tendência para a bebida, incrimina-se ou a embriaguez ou os desgostos domésticos ou as decepções econômicas.Não se poderia aceitar informações mais suspeitas como base para uma explicação dos suicídios.Mas, mesmo que fossem mais dignas de fé, não poderiam prestar-nos grandes serviços, pois os motivos que são deste modo, certa ou erradamente, atribuídos aos suicídios,não constituem as verdadeiras causas. O que o demonstra é que os números proporcionais de casos, imputados pelas estatísticas a cada uma destas causas presumidas,mantêm-se quase idênticos, ainda que os números absolutos apresentem, pelo contrário, as variações mais consideráveis. Na França, de 1856 a 1878, o suicídio aumentacerca de quarenta por cento e na Saxônia mais de cem por cento durante o período 1854-1880 (1171 casos em vez de 547). Ora, nos dois países, cada categoria de motivosconserva de uma época para a outra a mesma importância relativa. É o que mostra o quadro XVII.Se se considera que os números citados não são e não podem ser senão aproxima ções grosseiras, e, se, por conseqüência, não se dá grande importância a ligeiras diferenças,ter-se-á de reconhecer que se mantêm sensivelmente constantes. Mas, para que a parte contributiva de cada razão presumida se mantenha proporcionalmente a mesma,ainda que o suicídio esteja duas vezes mais desenvolvido, é necessário admitir que cada uma delas adquiriu uma eficácia dupla. Ora, não pode ser em virtude de umaconteci mento fortuito que se tornam todas simultaneamente duas vezes mais mortíferas. Somos portanto forçosamente levados a concluir que estão todas na dependênciade um estado mais geral de que são, quando muito, reflexos mais ou menos fiéis. É ele que faz com que estas razões se tornem mais ou menos suicidogêneas e, porconseqüência, é ele a verdadeira causa determinante dos suicídios. É portanto este estado que temos de atingir, se nos detivermos nas repercussões longínquas quepode ter nas consciências particulares.Um outro fato que fomos buscar a Legoyt mostra ainda mais claramente a que é que se reduz a ação causai destes diferentes motivos. Não há profissões mais diferentesuma da outra do que a agricultura e as funções liberais. A vida de um artista, de um sábio, de um advogado, de um oficial, de um magistrado não se assemelha em nadaà de um agricultor. Pode-se portanto ter a certeza de que as causas sociais do suicídio não são as mesmas para uns e para outros. Ora, não só os suicídios destasduas categorias de sujeitos são atribuídos às mesmas razões, como ainda a importância respectiva destas diferentes razões é quase rigorosamente idêntica num e noutrocaso. Eis, com efeito, quais foram na França, durante o período 1874-78, as proporções respectivas dos princi pais motivos de suicídio nestas duas profissões:AGRICULTURAPROFISSÕES LIBERAISPerda de emprego, reveses da sorte, miséria8,158,87Desgostos de família14.1513.14Amor contrariado e ciúme1,482,01Embriaguez13,236,41Suicídios de criminosos e delinqüentes4094,73Do rés físicas15,9119,89Doenças mentais35,8034,04Repulsa pela vida, contrariedades diversas2,934,94Causas desconhecidas -...3,965,97TOTAL100,00100,00

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O SUICÍDIOQUADRO XVII , „ .Repartição de cem suicidios anuais de cada sexo por categoria de motivos »Hl . ' 1 s <!•*"•18!IHOMENSMULHERES- H* -*-• 'íFrança91856-601874-781856-601874-78íl *, ^ • t, •Miséria ereveses da sorte13,3011,795385,77Desgosto de família11,6812,5312,7916,00Amor, ciúme, devassidão.mau procedimento15,4816,9813 1612,20Desgostos diversos23,7023,4317,1620,22Doenças mentais . ., .-.,-.25,6727,09457541,81Remorsos,receio de condenaçãodepois de crime0,840,19Outras causas ecausas desconhecidas9,338,185,514TOTAL100,00100,00100,001 00,00' * <HOMENSMULHERESSaxe101854 7818801854-781880Dores físicas5,645,867,437,98Desgostos domésticos2,393,303,181,72Reveses da sorte e miséria

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9,5211,282,804,42Devassidão e jogo11,1510741,590,44Remorsos,receio de perseguições, etc10,418,5110,446,21Amor infeliz1,791,503,746,20Perturbações mentais.loucura religiosa27,9430,2750,6454,43Cólera2,003,293,043,09Repulsa pela vida9,586,675,375,76Causas desconhecidas19,5818,581 1,779,75TOTAL100,00100,00100,00100,009 Segundo Legoyt pág 34210 Segundo Oettmgen, Moralstatistik, quadros anexos pag "MO

p. 182Salvo para a embriaguez, os valores, sobretudo aqueles que têm maior importância numérica, diferem muito pouco de uma coluna para a outra. Assim, se se tomassemuni camente em consideração os motivos, poder se-ia ser levado a crer que as causas suicido geneas são nos dois casos não só da mesma intensidade como da mesma natureza.E, no entanto, na realidade, são forças muito diferentes que levam o trabalhador e o elegante citadino ao suicídio. Quer isto dizer, portanto, que estas razões comque se justifica o sui cídio ou que o suicida arranja para si próprio para explicar o ato não são, na maior parte das vezes, senão as causas aparentes. Não só nãosão senão as repercussões individuais de um estado geral, mas exprimem-no muito infielmente, dado que permanecem as mês mas e que ele difere. Estas razões marcam,por assim dizer, os pontos fracos do indiví duo, através dos quais a corrente que vem do exterior para incitá-lo a destruir-se se intro duz mais facilmente. Masnão fazem parte da corrente e não podem, por conseguinte, ajudar-nos a compreende la.Vemos, portanto, sem mágoa, certos países, como a Inglaterra e a Áustria, recusarem estas pretensas causas de suicídio. Os esforços da estatística devem ser orientadosnum sentido muito diferente. Em lugar de procurar resolver estes problemas insolúveis de casuística moral, que note com mais cuidado as características sociaisdo suicídio. Em todo caso, quanto a nós, pusemo-nos como regra não fazer intervir nas nossas investiga ções informações tão duvidosas quanto pouco instrutivas; efetivamente,os suicidógrafos nunca conseguiram retirar delas qualquer lei interessante. Só recorreremos a elas acidentalmente quando nos parecerem ter um significado especiale apresentarem garantias particulares. Sem nos preocuparmos em saber sob que formas podem traduzir se nos sujeitos particulares as causas produtoras do suicídio,trataremos de as determinar dire tamente. Para tal, deixando de lado, por assim dizer, o indivíduo como indivíduo, os seus mobiles e as suas idéias, interrogar-nos-emossobre o estado dos diferentes meios sociais (confissões religiosas, família, sociedade política, grupos profissionais, etc.), em função dos quais varia o suicídio.É só em seguida que. voltando aos indivíduos, investigaremos como estas causas gerais se individualizam para produzir os efeitos homicidas que as acompanham. * -

p. 183LIVRO III

DO SUICÍDIO COMO FENÔMENO SOCIAL EM GERAL

CAPÍTULO PRIMEIRO

O elemento social do suicídioAgora que já conhecemos os fatores em função dos quais varia a taxa social dos suicídios, podemos precisar a natureza da realidade a que corresponde e que exprimenumericamente.

I

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As condições individuais de que se admite a priori depender o suicídio são de duas espécies.Primeiramente temos a situação exterior em que se encontra colocado o agente. Os homens que se matam tanto podem ter sofrido desgostos familiares ou decepções deamor-próprio como podem ter passado pela miséria ou pela doença ou ainda arrastarem o fardo de um erro moral, etc. Vimos no entanto que essas particularidades individuaisnão explicam a taxa social dos suicídios; na realidade esta varia em proporções consideráveis enquanto as diversas combinações de circunstâncias, que deste modosurgem como antecedentes imediatos dos suicídios particulares, apresentam sensivelmente a mesma freqüência relativa. Concluiu-se portanto não serem estas as causasdeterminantes do ato que precedem. O papel importante que por vezes desempenham na deliberação não é uma prova da sua eficiência. Sabe-se, com efeito, que as deliberaçõeshumanas, da forma como as atinge a consciência refletida, são muitas vezes puramente formais, tendo como único objetivo corroborar uma resolução já tomada e motivadapor razões que a consciência desconhece.Aliás, as circunstâncias que são consideradas como causas do suicídio pelo fato de o acompanharem freqüentemente são em número quase infinito. Um se mata no bem-estare outro na pobreza; um tinha uma vida familiar infeliz e o outro acabava de desfazer com o divórcio um casamento que o tinha feito infeliz. Aqui é um soldado querenuncia à vida após ter sido castigado por um erro que não cometera; além é um criminoso, cujo crime ficou impune, que se castiga a si próprio. Os fatos mais diversose mesmo os mais contraditórios da vida podem servir igualmente de pretexto para o suicídio. Quer isto portanto dizer que nenhum deles é a sua causa específica. Seráque pelo menos se pode atribuir esta causalidade às características comuns a todos eles? Mas será isto verdade? O máximo que se pode afirmar é que consistem geralmenteem contrariedades, em desilusões, mas é impossível determinar a intensidade que devem atingir para provocar esta trágica conseqüência. Não existe desgosto, por maisinsignificante que seja, que permita afirmar a priori que de forma alguma pode tornar a existência intolerável; por outro lado não existe nenhum que tenha necessariamenteeste efeito. Vemos homens resistir a desgraças horríveis enquanto outros se suicidam depois de aborrecimentos ligeiros. E, aliás,

p. 184mostramos que as pessoas que sofrem mais não são as que se matam mais. É antes o desafogo econômico que arma o homem contra si próprio. É nas épocas e nas classesem que a vida é menos dura que as pessoas a abandonam com <mais facilidade. Em todo caso, se realmente acontecer que a situação pessoal da vítima seja a causa determinanteda resolução, estes casos são certamente muito raros e, portanto, não será deste modo que se poderá explicar a taxa social dos suicídios. ,Assim, mesmo aqueles que atribuem uma influência determinante às condições individuais relacionam-nas mais com a natureza intrínseca do sujeito que com estes incidentesexteriores, ou seja, com a sua constituição biológica e as características físicas de que esta depende. O suicídio foi assim apresentado como o produto de um certotemperamento, como um episódio da neurastenia, submetido à influência dos mesmos fatores que ela. No entanto não descobrimos nenhuma relação imediata e regular entrea neurastenia e a taxa social dos suicídios. Acontece inclusivamente que estes dois fenômenos variem na razão inversa um do outro, estando um no mínimo no momentoexato e nos mesmos lugares em que o outro está no apogeu. Também não descobrimos relações definidas entre o movimento dos suicídios e os estados do meio físico quese consideram como tendo uma ação poderosa sobre o sistema nervoso, tais como a raça, o clima, a temperatura. É que, se o neuropata pode, dentro de certas condições,manifestar uma certa tendência para o suicídio, não está predestinado necessariamente a suicidar-se; e a ação dos fatores cósmicos não é suficiente para conduzirnesta direção precisa as tendências muito gerais da sua natureza.Muito diferentes são os resultados que obtivemos quando, abandonando o indivíduo, procuramos na natureza das próprias sociedades as causas da inclinação que cadauma delas manifesta para o suicídio. Tanto eram equívocas e duvidosas as relações do suicídio com os fatores de ordem biológica e de ordem física quanto são imediatase constantes com certos estados do meio social. Desta vez encontramo-nos enfim na pré sença de verdadeiras leis que nos permitiram tentar estabelecer uma classificaçãometódica dos tipos de suicídios. As causas sociológicas que determinamos deste modo torna ram compreensíveis estas concordâncias diversas atribuídas muitas vezesà influência de causas materiais em que se pretendeu ver uma prova desta influência. Se a mulher se mata muito menos do que o homem é porque está muito menos integradana vida coletiva do que ele; portanto, ressente-se muito menos intensamente da ação boa ou má. O mesmo se passa em relação à criança e ao velho, ainda que por outrasrazões. E, por último, se o suicídio aumenta de janeiro até junho é porque a atividade social passa por variações idênticas. É portanto natural que os diferentesefeitos que produz estejam sujeitos ao mesmo ritmo e sejam, por conseguinte, mais intensos durante o primeiro destes dois períodos: ora, o suicídio é um deles.De todos esses fatos resulta que a taxa social dos suicídios só se possa explicar sociologicamente. É a constituição moral da sociedade que fixa em cada instanteo contingente dos mortos voluntários. Existe portanto para cada povo uma energia determinada que leva os homens a se matarem. Os movimentos que o paciente executae que à primeira vista parecem representar exclusivamente o seu temperamento pessoal constituem, na realidade, a continuação e o prolongamento de um estado socialque manifestam exteriormente.Eis portanto resolvido o problema que levantamos no início deste trabalho. Não é uma metáfora a afirmação que se faz a propósito das sociedades humanas, a saber,que têm uma tendência mais ou menos acentuada para o suicídio: a expressão baseia-se na natureza das coisas. Cada grupo social tem efetivamente uma inclinação coletivaespecí-

p. 185fica para este ato da qual derivam as inclinações individuais, em vez de ser a primeira a derivar destas últimas. O que a constitui são as correntes de egoísmo,de altruísmo ou de anomia que atuam dentro da sociedade (em consideração) com as tendências para a melancolia langorosa ou para o renunciamento ativo ou para alassidão exasperada, conseqüências daquelas. São estas tendências da coletividade que, penetrando nos indivíduos, os levam a matar-se. Quanto aos acontecimentosprivados, que são geralmente considerados como as causas próximas do suicídio, têm como única ação a que lhe é atribuída pelas disposições morais da vítima, ecodo estado moral da sociedade. Para explicar o desinteresse pela vida o sujeito recorre às circunstâncias que o rodeiam de forma imediata; acha a vida triste porqueestá triste. Sem dúvida que num certo sentido a tristeza lhe vem de fora mas não provém deste ou daquele incidente que se produziu na sua carreira, provém do grupode que faz parte. Eis a razão por que tudo pode servir de causa ocasional do suicídio. Tudo depende da intensidade com que agiram sobre o indivíduo as causas suicidogêneas.

II

Aliás, a estabilidade da taxa social dos suicídios seria suficiente por si só para provar a exatidão desta conclusão. Se, por uma questão de método, nos pareceuque devíamos manter o problema sem resolução até agora, é um fato que ele não pode ter outra além desta.Quando Quételet chamava a atenção dos filósofos 1 1 para a surpreendente regularidade com que certos fenômenos sociais se repetem durante períodos de tempo idênticos,julgou poder explicá-la pela teoria do homem médio, que continua a ser, aliás, a única explicação sistemática dessa propriedade notável. Segundo ele, há em cadasociedade um tipo determinado que a generalidade dos indivíduos reproduz mais ou menos exatamente e de que unicamente a minoria tende a afastar-se sob a influênciade causas perturbadoras. Há, por exemplo, um conjunto de características físicas e morais que se manifestam na maior parte dos franceses mas que não se encontramcom a mesma intensidade nos italianos ou nos alemães e reciprocamente. Como, por definição, essas características são de longe as mais freqüentes, os atos que delasderivam são igualmente de longe os mais numerosos; são eles que formam os grandes batalhões. Aqueles que, pelo contrário, são determinados pelas propriedades divergentessão relativamente raros à semelhança das propriedades de que derivam. Por outro lado, sem que seja absolutamente inalterável, este tipo geral varia, no entanto,muito mais lentamente do que um tipo individual; pois é muito mais difícil uma modificação global da sociedade do que a modificação deste ou daquele indivíduo emparticular. Esta constância comunica-se naturalmente aos atos que derivam dos atributos característicos deste tipo; os primeiros permanecem os mesmos em grandeza

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e em quantidade desde que os segundos se mantenham inalte-1' Nomeadamente nas obras Sur IJíomme et lê Développement de sés Facultes ou Essai de Physique Sociale, 2 vols., Paris, 1835, e Du Système Social et dês Lois quelê Régissent, Paris, 1848. Ainda que Quételet seja o primeiro que tenta explicar cientificamente esta regularidade, não foi o primeiro a assinalá-la. O verdadeirofundador da estatística moral é o pastor Süssmilch com a obra Die Gottliche Ordnung in den Verãnderung dês Menschlichen Geschlechts, aus der Geburt, dem Tode undder Fortpflanzung Desselben, Erwiesen,3 vols., 1742. Vide sobre o mesmo assunto: Wagner, Die Gesetzmãssigkeit, etc., primeira parte; Drobisch, Die Moralische Statistik und die Menschliche Willensfreiheit,Leipzig, 1867 (sobretudo págs.l, 58); Mayr, Die Gesetzmãssigkeit im Gesellschaftsleben, Munique, 1877; Oettingen, Moralstatistik, págs. 90 ss.

p. 186rados e, como estas maneiras de agir são também as mais usuais, é inevitável que a constância seja a lei geral das manifestações da atividade humana suscetível deinvestigações estatísticas. com efeito, o (técnico) estatístico estabelece a relação de todos os fatos de espécie idêntica que se produzem no seio de uma sociedadedeterminada. Portanto, dado que a maior parte desses permanece invariável desde que o tipo geral da sociedade não mude e dado que, por outro lado, esta mudança sóse efetua dificilmente, os recenseamentos estatísticos devem necessariamente ser iguais durante longas séries de anos consecutivos. Quanto aos fatos que derivamdas características particulares e dos acidentes individuais, é verdade que não são obrigados a obedecer a uma tal regularidade; é por esta razão que a constâncianunca é absoluta. No entanto, constituem uma exceção; e daí a invariabilidade ser a regra e a mudança a exceção.A este tipo geral Quételet deu o nome de tipo médio, visto ser obtido, quase exatamente, fazendo a média aritmética dos tipos individuais. Por exemplo, se depoisde termos recenseado as alturas dos membros de uma sociedade somarmos estas e as dividirmos pelo número dos indivíduos medidos, o resultado obtido exprime, comum grau de aproximação muito satisfatório, a estatura mais freqüente. Porque podemos admitir que os desvios para mais ou para menos, os anões e os gigantes, apresentamuma freqüência sensivelmente igual. Compensam-se, portanto, uns aos outros, anulam-se mutuamente e, por conseguinte, não afetam o quociente.A teoria parece muito simples. Mas, para que possa ser considerada como uma explicação, é necessário, primeiramente, que permita compreender a razão por que o tipomédio se realiza na generalidade dos indivíduos. Para que permaneça igual a si próprio, embora os indivíduos variem, é necessário que de certa forma seja independentedeles; e, no entanto, é igualmente necessário que haja qualquer via que lhe permita insinuar-se neles. A questão, é fato, resolve-se por si só se admitirmos queeste tipo médio se identifica com o tipo étnico. Porque os elementos constitutivos da raça, tendo as suas origens fora do indivíduo, não estão submetidos às mesmasvariações que ele; e, no entanto, é nele e unicamente nele que se realizam. Concebe-se portanto muito bem que penetrem nos elementos propriamente individuais e queaté lhes sirvam de base. Mas, para que esta explicação pudesse ser satisfatória no caso do suicídio, seria necessário que a tendência que leva o homem a matar-sedependesse intimamente da raça; ora, sabemos que os fatos contrariam esta hipótese. Será que o estado geral do meio social, sendo igual para a maior parte dos indivíduos,os afeta mais ou menos da mesma maneira e que portanto lhes imprime, em parte, uma fisionomia idêntica? Mas o meio social é essencialmente constituído por idéias,por crenças, por hábitos, por tendências comuns. Para que estes penetrem nos indivíduos é indispensável que tenham uma existência de certa forma independente dadeles; aproximamo-nos então da solução que propusemos. Porque admitimos implicitamente que existe uma tendência coletiva para o suicídio da qual derivam as tendênciasindividuais e, a partir daqui, a questão está em saber no que consiste e como age esta tendência coletiva.Mas há mais; seja qual for a explicação que se dê da generalidade do homem médio, esta concepção não pode, de forma alguma, justificar a regularidade com que sereproduz a taxa social dos suicídios. com efeito, por definição, as únicas características que definem este tipo são as que se encontram na maior parte da população.Ora, o suicídio é um ato praticado por uma minoria. Nos países em que se encontra mais desenvolvido contam-se, no máximo, trezentos a quatrocentos casos por milhãode habitantes. A energia com que se manifesta o instinto de conservação no homem médio exclui-o radicalmente: o homem médio não se mata. Mas então, se a tendênciapara o suicídio é uma

p. 187raridade e uma anomalia, é completamente alheia ao tipo médio e, por conseguinte, um conhecimento ainda que profundo deste último está longe não só de nos ajudara compreender a razão por que o número dos suicídios é constante numa determinada sociedade, como ainda a razão por que existem suicídios. Em definitivo, a teoriade Quételet assenta sobre uma observação inexata. Considerava como estabelecido que a constância só se observa nas manifestações mais gerais da atividade humana;ora, observa-se igualmente, e em grau idêntico, nas manifestações esporádicas que se produzem unicamente em raros e isolados pontos do campo social. Quételet julgavater respondido a todos os desiderata ao mostrar como, rigorosamente, se podia tornar inteligível a invariabilidade do que não é excepcional; mas a própria exceçãotem a sua invariabilidade que, aliás, não é inferior a nenhuma outra. Toda a gente morre; qualquer organismo vivo é constituído de tal forma que a dissolução é inevitável.Pelo contrário, são poucos os que se matam; na imensa maioria dos homens nada há que os incline para o suicídio. E, contudo, a taxa dos suicídios é ainda mais constantedo que a da mortalidade geral. Portanto, não há entre a difusão de uma característica e a sua permanência essa estreita solidariedade que pretendia Quételet.Aliás, os resultados a que conduz o seu método confirmam esta conclusão. Em virtude do princípio enunciado por Quételet, para calcular a intensidade duma característicaqualquer do tipo médio seria necessário dividir a soma dos fatos através dos quais se manifesta no seio da sociedade pelo número dos indivíduos aptos a produzi-los.Assim, num país como a França, onde durante muito tempo não houve mais do que 150 suicídios por milhão de habitantes, a intensidade média da tendência para o suiddioexprimir-se-ia pela relação 150/1 000000 = 0,00015; e na Inglaterra, em que não há senão oitenta casos para uma população idêntica, esta relação é unicamente de0,00008. Existe, portanto, no indivíduo médio, uma tendência desta grandeza para o suiddio. Mas tais números são praticamente iguais a zero. Uma inclinação tão fracaestá tão longe do ato que pode ser considerada como nula. Não tem força suficiente para, por si só, determinar um suiddio. Não é por conseqüência, a generalidadede uma tal tendência que pode explicar a razão por que tantos suiddios são anualmente cometidos numa ou noutra destas sociedades. E esta estimativa é ainda infinitamenteexagerada. Quételet foi conduzido até ela pelo fato de atribuir arbitrariamente à média dos homens uma certa afinidade com o suiddio e de avaliar a energia destaintensidade através de manifestações que só se observam num pequeno número de sujeitos excepcionais e nunca no homem médio. Utilizou-se, assim, o anormal para determinaro normal.Quételet pensava, é certo, escapar a esta objeção ao acrescentar que os casos anormais, produzindo-se uma vez num sentido outra vez no sentido oposto, se compensame se anulam mutuamente. Mas esta compensação verifica-se unicamente no caso das características que se encontram, em diferentes graus, em todas as pessoas, como,por exemplo, a altura. com efeito, admite-se que os sujeitos excepcionalmente altos ou excepcionalmente baixos sejam quase igualmente numerosos. A média destasestaturas exageradas deve ser, portanto, sensivelmente igual à estatura mais vulgar: por conseguinte, esta é a única a sobressair do cálculo. Mas é o contrário quese produz quando se trata de um fato que é excepcional por natureza, como a tendência para o suiddio; neste caso, o processo de Quételet acaba por introduzir artificialmenteno tipo médio um elemento que está fora da média. Sem dúvida, e acabamos de o constatar, este elemento surge num estado de extrema diluição precisamente porque onúmero dos indivíduos, entre os quais está fracionado, é muito superior ao que devia ser. Se o erro é praticamente pouco importante, não deixa, no entanto, de existir.

p. 188Na realidade, o que exprime a relação calculada por Quételet é simplesmente a probabilidade que existe de um homem, pertencente a um grupo social determinado, sematar durante o ano. Se, numa população de 100 000 almas há anualmente quinze suicídios, pode-se concluir que há a probabilidade de quinze em 100 000 de que um sujeitoqualquer se suicide durante esta unidade de tempo. Mas esta probabilidade não nos dá de forma alguma a medida da tendência média nem pode servir para provar queesta tendência existe. O fato de tantos indivíduos em cem se matarem não implica que os outros estejam expostos ao mesmo, consoante um grau mais ou menos intenso,nem nos traz nada de novo sobre a natureza e a intensidade das causas que levam ao suicídio.12Assim, a teoria do homem médio não resolve o problema. Retomemo-lo, portanto, e vejamos como se apresenta. Os suicidas constituem uma ínfima minoria, dispersa pelosquatro cantos do horizonte; cada um deles leva a cabo o seu ato individualmente sem saber que há outros que, por seu lado, fazem o mesmo; e, no entanto, enquantoa sociedade não muda, o número dos suicidas mantém-se inalterado. É, portanto, necessário que todas estas manifestações individuais, por muito independentes que

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possam parecer, sejam, na realidade, o produto de uma mesma causa ou de um mesmo grupo de causas que dominam os indivíduos. Senão, como explicar que, todos os anos,estas vontades particulares, que se ignoram mutuamente, venham, em número igual, conduzir ao mesmo resultado? Não agem, em geral, umas sobre as outras; não existenenhum acordo entre elas; e no entanto tudo se passa como se obedecessem à mesma palavra de ordem. Concluiu-se, portanto, que no meio comum que as rodeia existeuma força qualquer que as determina no mesmo sentido e cuja intensidade, mais ou menos acentuada, motiva um maior ou menor número de suicídios particulares. Oraos efeitos através dos quais se manifesta esta força não variam consoante os meios orgânicos e cósmicos mas exclusivamente consoante o estado do meio social. Queristo dizer, portanto, que é coletiva. Ou, por outras palavras, cada povo tem uma tendência coletiva para o suicídio que lhe é específica e de que depende a importânciado tributo que paga à morte voluntária.Nesta óptica, a invariabilidade da taxa dos suicídios, assim como a sua individualidade, não tem nada de misterioso. Porque, como cada sociedade tem um temperamentoespecífico que não pode modificar de um dia para o outro e como esta tendência para o suicídio nasce da constituição moral dos grupos, é inevitável que varie dumgrupo para outro e que se mantenha sensivelmente igual durante longos anos no seio de cada grupo. É um dos elementos essenciais da cenestesia social; ora, tantonos seres coletivos como nos indivíduos, o estado cenestésico é o que há de mais pessoal e de mais inalterável, pois é o que há de mais fundamental. Mas, nesse caso,os efeitos que resultam deste estado devem ter a mesma personalidade e a mesma estabilidade. É natural que tenham uma estabilidade superior à da mortalidade geral.Porque a temperatura, as influências climá-12 Estas considerações provam mais uma vez que a raça não explica a taxa social dos suicídios. com efeito, o tipo étnico é também um tipo genérico; compreende unicamenteos caracteres que bão comuns a uma grande massa de indivíduos. Portanto, a raça não possui nada que chegue para determinar o suicídio; de outro modo, este teriauma generalidade que na realidade não possui. Pode-se perguntar se, sendo verdade que a raça não possui nenhum elemento que possa ser considerado como uma causasuficiente do suicídio, não pode, no entanto, em função das variações que apresenta, tornar os homens mais ou menos acessíveis à ação das causas suicidogêneas? Mas,ainda que os fatos corroborassem esta hipótese, o que não é verdade, seríamos forçados a reconhecer que o tipo étnico seria fator com uma eficiência muito medíocre,pois que a influência presumida seria impedida de se manifestar na quase totalidade dos casos e só muito excepcionalmente é que se faria sentir. Em resumo, não érecorrendo à raça que conseguiremos explicar a razão por que, em um milhão de sujeitos que pertencem todos ao mesmo tipo étnico, há todos os anos unicamente cemou duzentos que se matam.

p. 189ticas, geológicas, em resumo, as condições diversas de que depende a saúde pública, variam muito mais facilmente de um ano para outro do que o humor das nações.Há, no entanto, uma outra hipótese, aparentemente diferente da precedente, que poderia seduzir alguns espíritos. Para resolver a dificuldade, não bastaria suporque os diversos incidentes da vida privada, que são habitualmente considerados como as causas determinantes do suicídio, se reproduzem regularmente e em proporçõesidênticas todos os anos? Todos os anos, dir-se-á,13 há mais ou menos o mesmo número de casamentos infelizes, de falências, de ambições frustradas, de miséria, etc.É, portanto, natural que, colocados em número igual face a situações análogas, haja o mesmo número de indivíduos a tomar a decisão que a situação exige. Não é necessárioimaginar que cedem a uma força que os domina; basta supor que, em face das mesmas circunstâncias, raciocinam de maneira semelhante.Mas nós sabemos que estes acontecimentos individuais, apesar de precederem, na quase generalidade, os suicídios, não são, na realidade, as causas destes. Insistamos,mais uma vez, em que não há nenhuma infelicidade na vida que leve um homem a matar-se se este não estiver, por uma razão diferente, inclinado para o suicídio. Portanto,a regularidade com que se reproduzem estas diversas circunstâncias não pode explicar a do suicídio. Além disso, seja qual for a influência que se lhes atribua,uma solução deste gênero limita-se a deslocar o problema sem o resolver. Porque é preciso explicar a razão da repetição destas situações desesperadas que se reproduzemde forma idêntica todos os anos de acordo com uma lei específica a cada país. Por que razão, para uma sociedade determinada, suposta estacionaria, há sempre tantasfamílias desunidas, tantas ruínas econômicas, etc.? Esta repetição regular dos mesmos acontecimentos, e que para um mesmo povo mantém proporções constantes, seriainexplicável se em cada sociedade não existissem correntes definidas que conduzem, com uma força determinada, os habitantes a aventuras comerciais e industriais,a ações de toda espécie que são de molde a perturbar o equilíbrio familiar, etc. Ora, isto significa voltar, sob uma forma ligeiramente diferente, à hipótese quese supunha ter eliminado.1 4

III

Mas esforcemo-nos por compreender claramente o sentido e o alcance dos termos que acabam de ser utilizados.Habitualmente, quando se faz referência a tendências ou paixões coletivas, tem-se propensão para encarar estas expressões unicamente como metáforas e maneiras defalar 13 No fundo é a opinião exposta por Drobsoch no livro a que fizemos referência anteriormente.1 * Esta argumentação não se aplica unicamente ao suicídio, ainda que seja especialmente convincente no caso deste. Aphca-se também ao crime sob todas as suas formas.O criminoso é, a semelhança do suicida, um indivíduo excepcional e, por conseguinte, não é a natureza do tipo médio que pode explicar os movimentos da criminalidade.Mas acontece o mesmo com o casamento ainda que a tendência para contrair matrimônio seja mais geral que a inclinação para o suicídio ou para o crime. O número daspessoas que se casam representa, em todas as idades, uma pequena minoria em relação à população celibatária da mesma idade. Assim, na França, na casa dos vinte ecinco para os trinta anos, ou seja, no período em que a nupcialidade é mais elevada, há unicamente por ano 176 homens e 135 mulheres que se casam por mil celibatáriosde ambos os sexos (período 1877 81). Se, portanto, a tendência para o casamento, que é preciso não confundir com o gosto pelo comércio sexual, só tem a força suficientepara se satisfazer numa pequena minoria, não é a energia que tem no tipo médio que explica o estado da nupcialidade num momento determinado. A verdade é que, tantoaqui como no caso do suicídio, os números estatísticos exprimem, não a intensidade média das diposições individuais, mas a da força coletiva que leva ao casamento.

p. 190que não designam nada de real salvo uma espécie de média entre um certo número de estados reais. Manifesta-se uma recusa sistemática em considerá-las como coisas,como forças sui generis que dominam as consciências particulares. No entanto é esta a sua natureza e é isso que a estatística do suicídio demonstra brilhantemente.15Os indivíduos que compõem uma sociedade mudam de um ano para o outro; e, no entanto, o número dos suicídios permanece constante desde que a sociedade não mude. Apopulação de Paris renova-se com uma extrema rapidez; contudo, a parte de Paris no conjunto dos suicídios franceses mantém-se sensivelmente constante. Ainda quebastem alguns anos para renovar o efetivo do exército, a taxa dos suicídios militares varia com uma lentidão extrema numa nação determinada. Em todos os países,a vida coletiva evolui durante o ano segundo um ritmo estável; aumenta aproximadamente de janeiro até julho e diminui em seguida. Assim, embora os membros das diferentessociedades européias pertençam a tipos médios muito diferentes uns dos outros, as variações anuais e até mensais dos suicídios obedecem à mesma lei em toda a Europa.Da mesma forma, qualquer que seja a diversidade dos humores individuais, a relação entre a tendência para o suicídio das pessoas casadas e a dos viúvos e viúvasé idêntica nos grupos sociais mais diversos, pela simples razão de que a relação entre o estado moral da viuvez e a constituição moral específica ao casamento éa mesma em todo o lado. As causas que fixam deste modo os mortos voluntários para uma sociedade ou para uma parte determinada da sociedade têm de ser, portanto,independentes dos indivíduos, dado que conservam a mesma intensidade quaisquer que sejam os sujeitos particulares sobre os quais se exerce a sua ação. Dir-se-á queé o tipo de vida que, sempre igual, produz sempre os mesmos efeitos. Sem dúvida, mas um tipo de vida é qualquer coisa cuja invariabilidade é necessário explicar.Se se mantém invariável enquanto se produzem modificações nas fileiras dos que o praticam, é impossível que sejam estes a conferir-lhe a sua autenticidade.Julgou-se que se eludia esta conseqüência com a observação de que a continuidade era, ela própria, obra dos indivíduos e que, por conseguinte, não era necessárioconferir aos fenômenos sociais uma espécie de transcendência em relação à vida individual para justificá-la. com efeito, afirmou-se que "uma coisa social qualquer,uma palavra de uma língua, um rito de uma religião, um segredo de profissão, um processo artístico, um artigo de lei, uma máxima moral transmite-se e passa de umindivíduo, parente, patrão, amigo, vizinho, camarada, para outro indivíduo".1 6É evidente que, se se tratasse unicamente de explicar o processo pelo qual, de maneira geral, uma idéia ou um sentimento passa de uma geração para outra, pelo quala recordação não se esvai, esta explicação poderia ser considerada, na pior das hipóteses, como suficiente.17 Mas a transmissão de fatos tais como o suicídio e,

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de um modo mais1 5 Não é, aliás, a única; como provamos na nota precedente, todos os fatos da sociologia moral levam a esta conclusão.1 6 Vide Tarde, La Sociologie Élémentaire, In Annales de IJnstitut International de Sociologie, pág. 213.17 Dizemos na pior das hipóteses porque não se pode considerar como resolvido o que há de essencial nesta questão. com efeito, o que é importante, se se quer explicaresta continuidade, é mostrar, não única e simplesmente como os costumes em vigor num período não são esquecidos no período seguinte, mas também a razão por que conservama autoridade e continuam a funcionar. Pelo fato de as novas gerações poderem conhecer, por intermédio das transmissões puramente interindividuais, o que faziam osantepassados não se deduz que sejam obrigadas a comportar-se de modo idêntico. O que é que as obriga a isso? O respeito pela tradição, a autoridade dos antepassados?Mas então a causa da continuidade não reside no fato de os indivíduos transmitirem as idéias e os costumes, mas sim neste estado de espírito eminentemente coletivoque faz com que os antepassados sejam alvo, por parte deste ou daquele povo, de um respeito particular. Este estado de espírito impõe-se aos indivíduos. Tem inclusivamente,tal como a tendência paia o suicídio, uma intensidade definida para cada tipo de sociedade que determina o maior ou menor conformismo com que os indivíduos encarama tradição.

p. 191geral, dos atos de toda espécie sobre os quais nos informa a estatística moral apresenta um caráter muito particular que não se pode apreender tão facilmente comoisso. com efeito, além de incidir na generalidade sobre uma certa maneira de agir, incide igualmente sobre o número dos casos em que esta maneira de agir foi utilizada.Não só há suicídios todos os anos como, regra geral, são tão numerosos como os do ano precedente. O estado de espírito que leva os homens a matar-se não se transmitepura e simplesmente, mas, fato muito mais notável, transmite-se a um número igual de sujeitos que têm em comum o fato de se encontrar todos confrontados com situaçõesidênticas. Como é isto possível se só estão indivíduos em jogo? Em si mesmo o número não pode ser alvo de nenhuma transmissão direta. A população atual não herdouda população do passado o conhecimento da importância do imposto que tem de pagar ao suicídio, e, no entanto, é exatamente a mesma se as circunstâncias não se alteraram.Será portanto necessário imaginar que cada suicida tem, por assim dizer, como iniciador e mestre uma das vítimas do ano anterior de que é o herdeiro moral? Só assimé possível conceber que a taxa social dos suicídios se perpetue por intermédio de tradições interindividuais. Porque, se o número total não pode ser transmitidopor inteiro, é necessário que as unidades que o formam se transmitam individualmente. Cada suicida deveria, portanto, ter recebido a tendência de um dos seus predecessorese cada suicídio deveria ser como que um eco de um suicídio anterior. Mas não existe nenhum fato em que se possa basear esta espécie de filiação pessoal entre osvários acontecimentos morais que a estatística registra, por exemplo, este ano, e os acontecimentos similares que se produziram no ano passado. É absolutamente excepcional,assim como o mostramos anteriormente, que um ato seja provocado por um outro da mesma natureza. Aliás, por que razão se repetiriam estes ricochetes regularmente,todos os anos? Por que razão o fato gerador levaria um ano a produzir o seu semelhante? E, por último, por que razão daria origem a uma única cópia? Porque é necessárioque, em média, cada modelo só se reproduza uma vez: de outro modo, o total não seria constante. Dispensar-nos-ão de prolongar a análise de uma hipótese tão arbitráriaquanto irrepresentável. Mas, se afastamos a hipótese de que a igualdade numérica dos contingentes anuais resulta do fato de que cada particular gera o seu semelhanteno período posterior, então esta igualdade só pode provir da ação permanente de uma causa qualquer, impessoal, que paira sobre todos estes casos particulares.É preciso, portanto, empregar os termos com rigor. As tendências coletivas têm uma existência que lhes é específica; são forças tão reais quanto as forças cósmicas,ainda que sejam de uma outra natureza: agem igualmente sobre o indivíduo a partir do exterior, ainda que seguindo outras vias. O que permite afirmar que a realidadedas primeiras não é inferior à das segundas é que ela se demonstra de uma forma semelhante, a saber, pela constância dos efeitos. Quando constatamos que o númerodos óbitos varia muito pouco de um ano para o outro, justificamos esta regularidade dizendo que a mortalidade depende do clima, da temperatura, da natureza do solo,em resumo, de um certo número de forças materiais que, sendo independentes dos indivíduos, se mantêm constantes enquanto as gerações mudam. Por conseguinte, dadoque os atos morais tais como o suicídio se reproduzem com uma uniformidade não só igual como ainda superior, devemos admitir que dependem também de forças exterioresaos indivíduos. Simplesmente, como estas forças só podem ser morais e como, para além do homem individual, não existe no mundo nenhum outro ser moral a não ser asociedade, é necessário que elas sejam sociais. Mas, seja qual for o nome que se lhes dê, o que importa é reconhecer-lhes a realidade e concebê-las como um conjuntode energias que, a partir do

p. 192exterior, nos determinam a agir à semelhança das energias físico-químicas cuja ação sofremos. Efetivamente, são coisas tão sui generis, e não entidades verbais,que as podemos medir, comparar a sua grandeza relativa, ou seja, proceder do mesmo modo que para a intensidade de correntes elétricas ou luminosas. Assim, esta proposiçãofundamental segundo a qual os fatos sociais são objetivos, proposição que tivemos oportunidade de definir num outro trabalho18 e que consideramos como o princípiodo método sociológico, vem encontrar na estatística moral e, sobretudo, na do suicídio, uma nova prova particularmente demonstrativa. É evidente que desafia o sensocomum. Mas, cada vez que a ciência revelou aos homens a existência de uma força ignorada, teve sempre de enfrentar a incredulidade. Como é necessário modificar osistema das idéias preestabelecidas para dar lugar à nova ordem das coisas e elaborar novos conceitos, os espíritos resistem preguiçosamente. No entanto, é precisoque nos entendamos. Se a sociologia existe, só pode consistir no estudo de um mundo ainda desconhecido, diferente daqueles que estudam as outras ciências. Ora, estemundo ou é um mundo de realidades ou não é nada.Mas, precisamente porque esta concepção fere os preconceitos tradicionais, suscitou objeções a que temos de responder.Em primeiro lugar implica que tanto as tendências como os pensamentos coletivos sejam de natureza diferente da das tendências e pensamentos individuais, que as primeiraspossuam características que estão ausentes das segundas. Ora, pergunta-se, como é isto possível se a sociedade se compõe exclusivamente de indivíduos? Mas sendoassim podemos também dizer que a natureza viva não possui nada que a matéria bruta não possua, pois que a célula é exclusivamente composta de átomos sem vida. Domesmo modo, é um fato que as únicas forças ativas da sociedade são os indivíduos; simplesmente, ao unirem-se, os indivíduos formam um ser psíquico de uma nova espécieque, por conseguinte, tem a sua própria maneira de pensar e de sentir. Sem dúvida que as propriedades elementares de que resulta o fato social estão contidas emgerme nos espíritos particulares. Mas o fato social só surge como tal a partir do momento em que estas são transformadas pela associação. A associação é também umfator ativo que produz efeitos especiais. Ora, em si mesma, ela é qualquer coisa de novo. Quando as consciências, em vez de ficarem isoladas umas das outras, seagrupam e se combinam, há qualquer coisa que mudou no mundo. Em seguida é natural que esta modificação implique outras, que esta novidade gere outras novidades,que apareçam fenômenos cujas propriedades características estão ausentes dos elementos que os compõem.O único meio de contestar esta proposição seria admitir que um todo é qualitativamente idêntico à soma das partes, que um efeito é qualitativamente reduzível à somadas causas que o geraram; o que redunda ou em negar toda e qualquer modificação ou em torná-la inexplicável. Chegou-se, no entanto, ao ponto de defender esta teseextrema apesar de só se encontrarem duas razões, verdadeiramente extraordinárias, que a justifiquem. Afirmou-se, primeiro, que "na sociologia, por um privilégiosingular, temos o conhecimento íntimo do elemento constituído pela nossa consciência individual assim como o do composto formado pelo conjunto das consciências";segundo, que através desta dupla introspecção "verificamos claramente que, posto de lado o indivíduo, o social não é nada".n 9A primeira asserçao é uma negação ousada de toda a psicologia contemporânea.Vide Reglès de la Méthode Sociologique, cap. II.Vide Tarde, op. c/f., In Annales de l Instituí de Sociologie, pág. 222.

p. 193Hoje em dia, reconhece-se unanimemente que a vida psíquica, longe de poder ser apreendida de uma forma imediata, tem, pelo contrário, abismos profundos em que ojuízo íntimo não penetra e que só penosamente atingimos através de processos indiretos e complexos, análogos aos que utilizam as ciências do mundo exterior. É portanto

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necessário que, de futuro, a natureza da consciência deixe de ser misteriosa. A segunda proposição é profundamente arbitrária. O autor pode perfeitamente afirmarque a sua impressão pessoal é que, para além do indivíduo, não existe nada de real na sociedade, mas faltam-lhe as provas para fundamentar esta opinião e, por conseguinte,a discussão torna-se impossível. Seria tão fácil opor a este sentimento o sentimento contrário de um grande número de pessoas que pensam a sociedade, não como aforma que adquire espontaneamente a natureza individual desenvolvendo-se exteriormente, mas como uma força antagonista que os limita e contra a qual lutam! Que pensar,aliás, desta intuição que nos permite conhecer diretamente e sem intermediário, não só o elemento, ou seja, o indivíduo, mas ainda o composto, isto é, a sociedade?Se, na verdade, bastasse abrir os olhos e olhar com atenção para se descobrirem imediatamente as leis do mundo social, a sociologia seria inútil ou pelo menos muitosimples. Infelizmente os fatos mostram até que ponto a consciência é incompetente nesta matéria. Nunca por si só ela seria capaz de desconfiar da existência destanecessidade que faz renascer todos os anos, em número idêntico, os fenômenos demográficos, se não tivesse recebido um aviso do mundo exterior a este respeito. Aindacom mais razão, é incapaz, quando entregue a si própria, de descobrir as causas deste fato.No entanto, apesar de separarmos desta forma a vida social da vida individual, não temos de forma alguma a intenção de afirmar que ela não tem nada de psíquico.É evidente que, pelo contrário, é essencialmente formada por representações. Simplesmente, as representações coletivas são de uma natureza muito diferente da dasrepresentações individuais. Não vemos nenhum inconveniente em se afirmar que a sociologia é uma psicologia, se se tomar a precaução de acrescentar que a psicologiasocial tem as suas leis próprias que não são as mesmas da psicologia individual. O seguinte exemplo completará o nosso pensamento. Habitualmente, consideram-se comoorigem da religião as impressões de medo ou de deferencia que os seres misteriosos e temidos inspiram aos sujeitos conscientes; desta óptica, a religião surge comoo simples desenvolvimento de estados individuais e de sentimentos privados. Mas esta explicação simplista não tem relação com os fatos. Basta ver que no reino animal,onde a vida social é sempre muito rudimentar, a instituição religiosa é desconhecida, que esta só aparece onde há uma organização coletiva, que muda consoante anatureza das sociedades, para se poder concluir que só os homens em grupo pensam religiosamente. Nunca o indivíduo teria concebido a idéia de forças que o ultrapassamtão infinitamente, a ele e a tudo o que o rodeia, se não conhecesse mais nada do que ele próprio e o universo físico. Não foram as grandes forças naturais que conheceque lhe inspiraram esta noção; porque, no início, estava longe de saber, como acontece hoje em dia, até que ponto estas forças o dominavam; julgava, pelo contrário,poder controlá-las à vontade dentro de certas condições.20 Foi com a ciência que aprendeu a medir a sua inferioridade. O poder que deste modo conquistou o respeitodo indivíduo e que se tornou o objeto da sua adoração é a sociedade, de que os deuses foram unicamente a forma substancial. Definitivamente, a religião é o sistemade símbolos através dos quais a sociedade toma consciência de si própria; é a maneira de pensar do ser coletivo. Eis, portanto, um vasto conjunto de estados mentaisque não se teriam20 Vide Prazer, Golden Bough, pág. 9 ss.

p. 194produzido se as consciências particulares não estivessem unidas, que resultam desta união e que se adicionam aos que derivam das naturezas individuais. Pormais que se analisem estas últimas tão minuciosamente quanto possível, nunca se descobrirá nada nelas que explique o processo de criação e do desenvolvimento destascrenças e destes costumes religiosos de que nasceu o totemismo, a maneira como geraram o naturismo e como o próprio naturismo se transformou, aqui na religião abstratade Javé, além no politeísmo dos gregos e dos romanos, etc. Ora, o que pretendemos dizer quando defendemos a heterogeneidade do social e do individual é que as observaçõesprecedentes se aplicam não só à religião mas também ao direito, à moral, às modas, às instituições políticas, aos métodos pedagógicos, etc., em resumo, a todas asformas de vida coletiva.2'Mas há uma outra objeção que nos foi levantada e que, à primeira vista, pode parecer mais grave. Não só admitimos que os estados sociais diferem qualitativamentedos estados individuais, como ainda que são, num certo sentido, exteriores aos indivíduos. Vamos mesmo mais longe e comparamos esta exterioridade com a das forçasfísicas. Mas, perguntou-se, se a sociedade se compõe única e exclusivamente de indivíduos como é possível que exista qualquer coisa que lhes seja exterior?Se a objeção tivesse fundamento, estaríamos em presença de uma antinomia. Porque é preciso não esquecer o que foi estabelecido precedememente. Dado que a pequenaminoria de pessoas que se matam todos os anos não constitui um grupo natural, não estão em contato umas com as outras, o número constante de suicídios só pode serdevido à ação de uma causa comum que domina os indivíduos e que lhes sobrevive. A força que determina a unidade do feixe formado pela multidão dos casos particularesespalhados pela superfície do globo deve, necessariamente, ser exterior a cada um deles. Se, portanto, fosse realmente impossível que ela lhes fosse exterior, oproblema seria insolúvel. Mas a impossibilidade é só aparente.Primeiramente, não é verdade que a sociedade seja composta exclusivamente de indivíduos; abrange, também, coisas materiais que desempenham um papel essencial navida coletiva. Por vezes, o fato social materializa-se, tornando-se um elemento do mundo exterior. Por exemplo, um determinado tipo de arquitetura é um fenômenosocial; ora, este se encarna, em parte, nas casas, em toda espécie de edifícios que, uma vez construídos, se tornam realidades autônomas, independentes dos indivíduos.Assim acontece com os meios de comunicação e de transporte, com os instrumentos e as máquinas utilizadas na indústria ou na vida privada e que exprimem o estadoda técnica nos diferentes momentos da história, da linguagem escrita, etc. A vida social que é deste modo como que cristalizada e fixada nos suportes materiais,exterioriza-se, e é a partir do exterior que age sobre nós. Os meios de comunicação que foram construídos no passado imprimem ao andamento dos negócios atuais umadireção determinada, na medida em que nos põem em contato com um grupo de países determinados. A criança elabora o senso artístico quando entra em contato comos monumentos de cunho nacional, herdados das gerações passadas. Inclusive vê-se, por vezes, um desses monumentos cair no esquecimento durante séculos e renascerposteriormente, quando as nações que o tinham erigidojá desapareceram há muito, para recomeçar, no seio de novas sociedades, uma existência^~i21 Acrescentemos, para evitar qualquer interpretação inexata, que não queremos dizer com isto que exista um ponto preciso em que termina o individual e em que começao social. A associação não se estabelece de uma só vez e não produz todos os seus efeitos de forma imediata; necessita de tempo e, conseqüentemente, há momentosem que a realidade é indecisa. Assim, transita-se, sem interrupções, de uma ordem de fatos para uma outra; mas não é razão para não fazermos uma distinção entreeles. De outro modo, se se admi-. tisse que não há gêneros distintos e que a evolução é contínua, não haveria no mundo nada que se' distinguisse.

p. 195nova. É o que caracteriza esse fenômeno muito particular a que se chama as renascenças. Uma renascença é vida social que, depois de se ter como que cristalizadonas coisas e permanecido latente durante muito tempo, desperta subitamente e vem modificar a orientação intelectual de povos que não tinham participado na sua criação.É evidente que este despertar não seria possível se as consciências vivas não estivessem presentes para receber a sua ação; mas, por outro lado, estas consciênciasteriam pensado e sentido de maneira muito diferente caso esta ação não se tivesse produzido.Pode-se fazer uma observação idêntica a respeito das fórmulas definidas em que se condensam ou os dogmas da fé ou os preceitos do direito quando aqueles e estesse fixam exteriormente sob uma forma consagrada. Seguramente que por muito bem redigidas que estivessem seriam totalmente ineficazes se não houvesse ninguém paraapreendê-las e pô-las em prática. No entanto, apesar de não serem tudo, não deixam de ser fatores sui generis da atividade social, visto que têm um modo de açãoque lhes é peculiar. As relações jurídicas diferem consoante se trate do direito escrito ou não. Quando existe um código elaborado, a jurisprudência é mais regularmas menos flexível, a legislação mais uniforme mas também mais inalterável. Adapta-se menos facilmente à diversidade dos casos particulares e opõe uma maior resistênciaàs tentativas inovadoras. As formas materiais que reveste não são, portanto, simples combinações verbais sem eficiência mas realidades ativas visto que provocamefeitos que não se produziriam se elas não existissem. Ora, não só estas formas materiais são exteriores aos indivíduos como é a exterioridade que lhes confere ocaráter específico. É porque são menos acessíveis aos indivíduos que estes as adaptam menos facilmente às circunstâncias e, ao mesmo tempo, é isso que as torna maisrefratárias às mudanças.Todavia é incontestável que nem toda consciência social consegue exteriorizar-se e materializar-se a este grau. A estética nacional não se concentra integralmentenas obras que inspira; os preceitos definidos não esgotam toda a moral. A maior parte dela fica difusa. A liberdade caracteriza uma parte da vida coletiva; as mais

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variadas espécies de correntes vão, vêm, circulam em todas as direções, cruzam-se e misturam-se de mil e uma maneiras diferentes e precisamente porque estão numperpétuo estado de mobilidade não chegam a tomar uma forma objetiva. Hoje é um vento de tristeza e de desencorajamento que sopra sobre a sociedade; amanhã, pelocontrário, será um sopro de alegre confiança que virá aliviar os corações. Durante um tempo, todo o grupo se orienta para o individualismo; vem um outro períodoe são as aspirações sociais e filantrópicas que se tornam preponderantes. Ontem era-se cosmopolita, hoje é-se patriota. E todos estes redemoinhos, todos estes fluxose refluxos, se produzem sem que os preceitos cardinais do direito e da moral, imobilizados dentro de formas hieráticas, sofram a menor alteração. Aliás, estes preceitoslimitam-se a exprimir uma vida subjacente de que fazem parte; resultam dela mas não a suprimem. Na base de todas estas máximas jazem sentimentos atuais e vivos queestas fórmulas resumem mas de que são unicamente a capa superficial. Não provocariam nenhum eco se não correspondessem a emoções e impressões concretas espalhadaspela sociedade. Portanto, quando lhes atribuímos uma realidade, não pretendemos transformá-las na realidade global. Isso seria tomar o sinal pela coisa assinalada.Um sinal é seguramente qualquer coisa; não é uma espécie de epifenômeno super-rogatório; hoje está-se ciente do papel que ele desempenha no desenvolvimento intelectual.Mas de qualquer modo não passa de um sinal.2222 Julgamos que depois desta explicação não haverá ninguém que nos acuse de pretendermos, na sociologia, substituir o interior pelo exterior. Partimos do exterior,que nos é imediatamente acessível, com o objetivo de atingir o interior. O processo é. confessamo Io, complicado; mas não podemos recorrer a outro se queremos evitarque a investigação acabe por incidir, não sobre a ordem de fatos que se pretende estudar, mas sobre o sentimento pessoal que temos a seu respeito.

p. 196Mas, porque esta vida não possui um grau de consistência suficiente para se poder fixar, não deixa por isso de ter um caráter semelhante ao dos preceitos formuladosa que nos referimos há pouco. É exterior aos indivíduos médios considerados individualmente. Eis, por exemplo, que um grande perigo público provoca uma exacerbaçãodo sentimento patriótico. Resultará um impulso coletivo em virtude do qual a sociedade, no seu conjunto, imporá como axioma que os interesses particulares, inclusiveaqueles que eram habitualmente considerados como os mais responsáveis, dêem primazia ao interesse comum. E o princípio não é unicamente enunciado como uma espéciede desideratum; se necessário, será aplicado à letra. Observai nesse momento a média dos indivíduos! Encontrareis certamente alguma coisa deste estado moral numgrande número deles mas infinitamente atenuado. São raros aqueles que, mesmo em tempo de guerra, estão prontos espontaneamente a uma abdicação tão completa de sipróprios. Portanto, a corrente coletiva é quase exclusivamente exterior às consciências particulares que compõem a grande massa da nação, dado que cada uma delassó contém uma parcela desta corrente.Pode-se formular uma observação idêntica a propósito de sentimentos morais mais estáveis e fundamentais. Por exemplo, qualquer sociedade respeita a vida humana emgeral, com uma intensidade que se pode determinar e medir através da gravidade relativa23 das penas que sancionam o homicídio. Por outro lado, o homem médio partilhatambém este sentimento, mas de uma forma muito menos acentuada e muito diferente da da sociedade. Para termos uma idéia desta diferença, basta comparar a emoçãoque sentimos pessoalmente quando vemos um assassino ou quando somos testemunhas de um crime, e a que sentem, nas mesmas circunstâncias, as multidões concentradas.Conhecem-se os extremos a que podem chegar se não houver nada que se lhes oponha. É que, neste caso, a cólera é coletiva. Ora, a diferença que existe entre a maneiracomo a socie dade ressente estes atentados e a maneira como estes afetam os indivíduos manifesta-se a todo momento; ou seja, entre a forma individual e a forma socialdo sentimento que ofendem. A indignação social é de tal forma enérgica que muitas vezes só se satisfaz com a expiação suprema. Individualmente, se a vítima nosfor desconhecida ou alguém que nos é indiferente, se o autor do crime não pertencer ao nosso meio e, portanto, não representar uma ameaça direta para a nossa pessoa,ainda que achemos justo que o ato seja punido, não sentimos uma emoção suficientemente forte para termos sede de vingança. Não daremos um passo para descobrir oculpado; repugnar-nos-ia inclusivamente entregá-lo à polícia. A coisa só muda de aspecto a partir do momento em que a opinião pública se encarrega do caso. Tornamo-nosentão mais exigentes e mais ativos. Mas é a opinião que fala pela nossa boca; é sob a pressão da coletividade que agimos e não como indivíduos isolados.Na maior parte das vezes, a distância entre o estado social e as repercussões individuais que provoca é ainda mais considerável. No caso precedente, quando o sentimentocoletivo se individualizava, conservava ainda, na maior parte dos sujeitos, a força suficiente para se opor aos atos que o contrariavam; o horror pelo sangue humanoestá hoje suficientemente bem arreigado na generalidade das consciências para evitar a manifesta-23 Para determinarmos se este sentimento de respeito é mais forte nesta sociedade do que naquela não podemos considerar unicamente a violência intrínseca das medidasque constituem a repressão; devemos também considerar o lugar que a pena ocupa na escala penal tanto hoje como nos séculos passados. O assassinato sóé punido coma morte. Mas hoje em dia a pena de morte simples tem uma maior gravidade relativa; porquanto constitui o castigo supremo enquanto no passado podia ainda ser agravada.É dado que estas agravações não se aplicavam nessa época ao assassinato comum, concluiu-se, portanto, que este era alvo de uma menor reprovação.

p. 197cão de idéias homicidas. Mas o simples desvio de dinheiro, a fraude silenciosa e isenta de violência, está longe de nos inspirar a mesma repulsa. Não são muito numerososos que têm o respeito suficiente pelos direitos de outrem para esmagarem no embrião qualquer tentação de enriquecimento injusto. É fato que a educação desenvolveuma certa aversão pelos atos que são contrários à eqüidade. Mas quanta distância entre este sentimento vago, hesitante, sempre disposto aos compromissos, e o estigmacategórico, sem reservas nem reticências, com que a sociedade sanciona o roubo sob todas as suas formas! E que diremos de tantos outros deveres ainda menos enraizadosno homem médio como o que nos ordena que contribuamos com a nossa parte para as despesas públicas, que não defraudemos o fisco, que não procuremos habilmente evitaro serviço militar, que cum pramos lealmente os nossos contratos, etc. Se, em todos estes aspectos, a moralidade fosse unicamente assegurada pelos sentimentos vacilantesdas consciências médias, seria singularmente precária.É, portanto, um erro fundamental confundir, como tantas vezes tem acontecido, o tipo coletivo duma sociedade com o tipo médio dos indivíduos que a compõem. O homemmédio tem uma moralidade muito medíocre. Só as máximas mais essenciais da ética estão gravadas nele com alguma força e mesmo assim nunca com a precisão e a autoridadecom que se manifestam no tipo coletivo, isto é, no conjunto da sociedade. Esta confusão em que caiu precisamente Quételet transforma a questão da gênese da moralnum problema incompreensível. Pois se o indivíduo é, em geral, de uma tal mediocridade, como é possível que se tenha criado uma moralidade que o ultrapassa tão incontestavelmentee que exprime unicamente a média dos temperamentos individuais? Só por milagre é que o mais pode nascer do menos. Se a consciência comum coin cide com a consciênciamais geral, não é possível que vá além do nível vulgar. Mas então donde provêm estes preceitos elevados e claramente imperativos que a sociedade se esforça por inculcarnas crianças e por fazer respeitar aos seus membros? Não é sem razão que as religiões e, no seu seguimento, tantos filósofos consideraram que a moral só p_pdia terrealidade total em Deus. É que o pálido e muito incompleto esboço que as consciências individuais fazem dela não pode ser considerado como o tipo original. Assemelha-semais a uma reprodução infiel e grosseira de um modelo que deve existir em qualquer lado fora dos indivíduos. É por isso que, com o seu simplismo vulgar, a imaginaçãopopular o identifica com Deus. É evidente que a ciência não é obrigada a preocupar-se com esta concepção que nem sequer é suposta conhecer.2 4 Simplesmente, sea pomos de lado, não temos outra alternativa senão a de deixar a moral ao acaso e inexplicada, ou então a de a considerarmos como um sistema de estados coletivos.Ou bem que não provém de nada que pertença ao mundo da experiência, ou bem que vem da sociedade. Só pode existir numa consciência; se não for na do indivíduo é nado grupo. Mas, então, forçoso nos é admitir que a segunda, em vez de se confundir com a consciência média, a ultrapassa em todos os sentidos.A observação confirma a hipótese. Por um lado, a regularidade dos dados estatísticos implica que existam tendências coletivas, exteriores ao indivíduos; por outrolado, num número considerável de casos importantes, podemos constatar esta exterioridade diretamente. Aliás, esta não tem nada de surpreendente para quem reconhecera hetero-

24. Da mesma forma que a ciência da física não tem que discutir a fé em Deus, criador do mundo físico, também a ciência moral não é suposta conhecer a doutrina

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queconsidera Deus como o criador da moral. A questão não é da nossa competência; não temos que lhe dar qualquer resposta Só temos que nos preocupar com as suas causassecundárias.

p. 198geneidade dos estados individuais e dos estados sociais. com efeito, por definição, estes últimos só podem chegar até nós vindos do exterior, dado que não provêmdas nossas predisposições pessoais; sendo constituídos por elementos que nos são alheios, exprimem outra coisa que não nós próprios. É evidente que, na medida emque estamos totalmente unidos ao grupo e em que vivemos a vida através dele, estamos expostos à influência destes estados sociais; mas, inversamente, no caso desermos possuidores de uma personalidade distinta da do grupo, ser-lhes-emos refratários e tentaremos escapar-lhes. E, como não existe ninguém que não leve concomitantementeesta existência dupla, acontece que cada um de nós está animado simultaneamente por um duplo movimento. Somos conduzidos no sentido social e temos tendência paraseguir a propensão da nossa natureza. O resto da sociedade exerce, portanto, pressão sobre nós com o objetivo de conter as nossas tendências centrífugas e, pelonosso lado, nós contribuímos para exercer pressão sobre outrem a fim de neutralizar as suas. Nós próprios sofremos a pressão para a qual contribuímos com o fimde a exercer sobre os outros. Estão em presença duas forças antagonistas. Uma tem origem na coletividade e tenta apoderar-se do indivíduo; a outra vem do indivíduoe repele a precedente. A primeira é, efetivamente, bastante superior à segunda, pois resulta de uma combinação de todas as forças particulares; mas como se lhe deparamtantas resistências quantos os sujeitos particulares existentes, gasta-se parcialmente nestas lutas numerosas e penetra-nos já desfigurada e enfraquecida. Quandoé muito intensa, quando as circunstâncias que a fazem agir se repetem freqüentemente, pode ainda marcar fortemente as constituições individuais; suscita nelas estadoscaracterizados por uma certa vivacidade e que, uma vez organizados, funcionam com a espontaneidade própria do instinto; é o que acontece com as idéias morais maisessenciais. Mas a maior parte das correntes sociais ou é demasiado fraca ou não está em contato conosco senão de uma forma demasiado intermitente para poder desenvolverraízes profundas; a sua ação é superficial. Conseqüentemente, permanecem sempre totalmente externas. Assim, o processo de calcular um elemento qualquer do tipo coletivonão consiste em medir a grandeza que adquire nas consciências individuais e de fazer em seguida a média de todas estas medidas; é de preferência a soma que deveríamosfazer. Mas este processo de avaliação está ainda muito aquém da realidade; porque desta forma obter-se-ia o sentimento social desfalcado de tudo o que perdeu quandose individualizou.Portanto, a afirmação de que a nossa concepção é escolástica e que fundamenta os fenômenos sociais sobre não sabemos que princípio vital de um novo gênero revelauma certa leviandade. Se nos recusamos a admitir que os fenômenos sociais tenham como substrato a consciência individual, conferimos-lhes, no entanto, um outro:o que é formado pela união e pela combinação de todas as consciências individuais. Este substrato não tem nada de substancial nem de ontológico dado que não é maisdo que um todo composto por partes. Mas não deixa de ser tão real quanto o são os elementos que o compõem; visto que também estes são constituídos da mesma maneira.São igualmente compostos. com efeito, sabe-se hoje que o eu é a resultante de uma multidão de consciências sem eu; que cada uma destas consciências elementaresé por sua vez o produto de unidades vitais sem consciência assim como cada unidade vital é formada por uma associação de partículas inanimadas. Se, portanto, o psicólogoe o biólogo têm razão ao considerar bem fundamentados os fenômenos que estudam, pela simples razão de que estes estão ligados a uma combinação de elementos de ordemimediatamente inferior, por que razão seriam as coisas diferentes no que respeita à sociologia? E, no entanto, esses, que não renunciaram à hipótese de uma forçavital e de uma alma substancial, seriam os únicos que poderiam considerar como insuficiente uma base deste gênero. Assim, não há nada

p. 199de menos estranho do que esta proposição com que alguns acharam por bem deverem ,escandalizar-se:2 B Uma crença ou uma prática social é suscetível de existir independentementedo modo como se exprime individualmente. É evidente que não pretendíamos dizer com isto que a sociedade pode existir sem indivíduos, absurdidade tão manifesta quenos poderiam poupar a simples suspeita de a termos algum dia afirmado. Mas achávamos: primeiro, que o grupo formado pelos indivíduos associados é uma realidade deespécie diferente da do indivíduo isolado; segundo, que os estados coletivos existem no grupo de natureza idêntica à deles, antes de atingirem o indivíduo como tale de se organizarem nele, sob uma nova forma, para iniciarem uma existência puramente interior.Esta maneira de encarar as relações entre o indivíduo e a sociedade faz lembrar, aliás, a idéia que os zoologistas contemporâneos estão inclinados a aceitar acercadas relações entre aquele e a espécie ou a raça. A teoria muito simples segundo a qual a espécie não seria senão um indivíduo perpetuado no tempo e generalizadono espaço está cada vez mais posta de lado. com efeito, esbarra-se contra o fato de as variações que um sujeito acusa só se tornarem específicas em casos muitoraros e talvez duvidosos.2 6 Os caracteres distintos da raça só se alteram no indivíduo se se alterarem na raça em geral. Portanto, em vez de a raça ser uma generalizaçãodas formas individuais, deveria ter alguma realidade da qual pudessem derivar as formas diversas que adquire nos seres particulares. Sem dúvida que não podemos considerarestas doutrinas como definitivamente demonstradas. Mas basta-nos mostrar que as nossas concepções sociológicas, embora não sejam copiadas de outras investigações,apresentam, no entanto, certas analogias com as ciências mais positivas.

IV

Apliquemos esta idéia à questão do suicídio; a solução que apresentamos no início deste capítulo adquirirá uma maior precisão.Não há ideal moral que não alie, em proporções que variam consoante as sociedades, o egoísmo, o altruísmo e uma certa anomia. Porque a vida social pressupõe simultaneamenteque o indivíduo tenha uma certa personalidade de que estará pronto a abdicar se a comunidade assim o exigir e que seja de certa forma receptivo a idéias de progresso.É por isso que não existe nenhum povo em que não coexistam estas três correntes de opinião que solicitam o homem em três direções divergentes e até mesmo contraditórias.Quando estas três correntes se compensam mutuamente, o agente moral encontra-se num estado de equilíbrio que o preserva de qualquer idéia de suicídio. Mas, se umadelas ultrapassar um certo grau de intensidade em prejuízo das outras, tornar-se-á, ao individualizar-se e pelas razões expostas, suicidogênea.Naturalmente, quanto mais forte for a corrente tantos mais sujeitos contaminará de forma suficientemente profunda para os levar ao suicídio e inversamente. Mas,por sua vez, esta intensidade só pode estar dependente dos três seguintes fatores: primeiro, a natureza dos indivíduos que compõem a sociedade; segundo, a maneiracomo estão associados, ou seja, a natureza da organização social; terceiro, os acontecimentos passageiros que perturbam o funcionamento da vida coletiva sem alterarno entanto a constituição anatômica desta, tais como as crises nacionais, econômicas, etc. As propriedades 25. Vide Tarde, op. cit., pág. 212. 26. Vide Delage, Structure du Protoplasme, passim; Weissmann, L'Hérédité, e todas as teorias que se aproximam das de Weissmann.

p. 200individuais são as únicas a poderem desempenhar um papel que é comum a todos os indivíduos. Porque as que são estritamente pessoais ou que não pertencem senão apequenas minorias diluem-se na massa formada pelas outras; além disso, como diferem umas das outras, neutralizam-se e anulam-se mutuamente durante a elaboração deque resulta o fenômeno coletivo. Portanto, só as características gerais da humanidade são suscetíveis de provocarem algum efeito. Ora, estas são quase imutáveis;pelo menos, para que mudem são necessários mais séculos do que aqueles que dura geralmente uma nação. Por conseguinte, as condições sociais de que depende o númerodos suicídios são as únicas em função das quais este pode variar; porque são as únicas que podem variar. Eis a razão por que permanece constante desde que a sociedadenão mude. Esta constância não provém de um estado de espírito gerador do suicídio que, por uma razão que ignoramos, existiria num número determinado de particulares,que por sua vez, e por motivo que também ignoramos, transmitiriam a um número igual de imitadores. Provém sim da estabilidade das causas impessoais que o originaram

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e que o conservam. Não houve nada que viesse modificar nem a forma como as unidades sociais estão agrupadas, nem a natureza do seu consensus. As ações e reaçõesque exercem umas sobre as outras são idênticas; por conseguinte, as idéias e os sentimentos que delas resultam não poderiam variar.Todavia é muito raro, senão mesmo impossível, que uma destas correntes venha a adquirir uma tal preponderância em todos os aspectos da sociedade. É sempre em meiosrestritos, onde encontra condições particularmente favoráveis para o seu desenvolvimento, que atinge este grau de energia. É esta ou aquela condição social, estaou aquela profissão, esta ou aquela confissão religiosa que a estimulam particularmente. Assim se explica o caráter duplo do suicídio. Quando o analisamos atravésdas manifestações exteriores é-se levado a formar uma imagem de uma série de acontecimentos independentes uns dos outros; porque ele se produz em pontos distintos,sem relações visíveis entre eles. E, no entanto, a soma de todos estes casos particulares reunidos tem uma unidade e uma individualidade, pois que a taxa socialdos suicídios é uma característica distintiva das personalidades coletivas. É que, se estes meios particulares onde prefere produzir-se são distintos uns dos outros,fragmentados em mil bocados que se distribuem pela superfície do território, estão, no entanto, estreitamente ligados uns aos outros; porque são partes de um todocomum, órgãos de um mesmo organismo. O estado de um depende do estado geral da sociedade; há uma íntima solidariedade entre o grau de virulência que esta ou aquelatendência atinge num meio determinado e a intensidade com que se manifesta no conjunto do corpo social. O altruísmo é mais ou menos acentuado no exército consoanteo grau que atinge na população civil; o individualismo intelectual é tanto mais desenvolvido e tanto mais fértil em suicídios nos meios protestantes quanto maisacentuado está no resto da nação, etc. Está tudo ligado.Mas se, eliminada a loucura, não há nenhum estado individual que possa ser considerado como um fator determinante do suicídio, é, no entanto, muito provável queum sentimento coletivo não possa incrustar-se nos indivíduos quando estes lhe são absolutamente refratários. Poder-se-á, portanto, pensar que a explicação precedenteé incompleta enquanto não tivermos demonstrado que as correntes suicidogêneas encontram sempre um número suficiente de sujeitos acessíveis à sua influência no momentoe nos meios em que se desenvolvem.Mas, supondo que esta colaboração é na realidade sempre necessária e que uma tendência coletiva não pode impor-se aos particulares pela força, independentementede qualquer predisposição prévia, então a harmonia estabelecer-se-á por si própria; porque as causas que determinam a corrente social agem simultaneamente sobreos indivíduos

p. 201criando neles as disposições adequadas à ação. Entre estas duas ordens de fatores existe um parentesco natural pelo fato de dependerem duma mesma causa e de a exprimirem:é por isso que se combinam e se adaptam mutuamente. A hipercivilização que dá origem à tendência anômica e à tendência egoísta tem também como resultado afinar ossistemas nervosos, tornando-os excessivamente delicados; por isso, são menos capazes de se dedicarem fielmente a um objeto definido, mais contrários à disciplina,mais acessíveis tanto à irritação violenta como à depressão exagerada. Inversamente, a cultura grosseira e rude que o altruísmo excessivo dos primitivos pressupõedesenvolve uma insensibilidade que facilita o renunciamento. Em suma, como é a sociedade que, em grande parte, faz o indivíduo, fá-lo à sua imagem e semelhança.A matéria de que necessita não deve faltar-lhe pois que, digamos, a preparou com as próprias mãos.Temos agora uma idéia mais precisa acerca do papel que os fatores individuais desempenham na gênese do suicídio. Se em determinado meio moral, por exemplo, numaconfissão religiosa, num regimento, numa profissão, há indivíduos que são atingidos e outros que não o são, é porque, de uma maneira geral, a constituição mentaldos primeiros, produtos da natureza e dos acontecimentos, apresenta menos resistência à corrente suicidogênea. Mas se estas condições podem contribuir para determinaros sujeitos particulares em que se encarna esta corrente, não é no entanto delas que dependem nem os caracteres distintivos nem a intensidade desta última. Não éporque haja estes ou aqueles neuropatas num grupo social que se contam anualmente estes ou aqueles suicidas. A neuropatia limita-se unicamente a favorecer de preferênciaa morte destes últimos. Eis portanto o ponto essencial em que divergem as opiniões do clínico e do sociólogo. O primeiro só vê os casos particulares, isolados unsdos outros. Assim, constata muitas vezes que a vítima era um nervoso ou um alcoólico e explica o ato por um destes estados psicopáticos. Num certo sentido tem razão;porque, se o sujeito se matou mais cedo do que os seus vizinhos, é freqüentemente por este motivo. Mas não é por este motivo que, de uma maneira geral, há indivíduosque se matam, nem, sobretudo, é por este motivo que se matam, em cada sociedade, e num espaço de tempo determinado, um número definido de indivíduos, A causa produtorado fenômeno escapa necessariamente a quem só observa os indivíduos; porque ela é exterior aos indivíduos. Para a descobrir é necessário ir além dos suicídios particularese aperceber o que determina a unidade destes. Poder-se-á objetar que, se não existissem os neurastênicos suficientes, as causas sociais não podiam produzir efeitostotais. Mas não há nenhuma sociedade em que a degenerescência nervosa não forneça mais candidatos ao suicídio do que os que são necessários. Os eleitos são só alguns,se é que podemos exprimir deste modo. São os que, pela ação das circunstâncias, se encontravam mais próximos das correntes pessimistas e que, portanto, sofrerammais profundamente os efeitos da sua ação.Mas resta-nos resolver um último problema. Se todos os anos há um número igual de suicídios, é porque a corrente não fulmina de uma só vez todos os que pode e devefulminar. Os sujeitos que vai atingir no próximo ano já existem; têm atualmente, na maior parte dos casos, uma vida coletiva e estão, por conseguinte, submetidosà sua influência. Por que razão ela os poupa provisoriamente? Compreende-se facilmente que necessite de um ano para produzir uma ação total; porque, como as condiçõesda atividade social diferem segundo as estações, ela varia também, consoante os diferentes momentos do ano, de intensidade e de direção. É só quando a revoluçãoanual está completa que todas as combinações de circunstâncias, em função das quais é suscetível de variar, se efetuaram. Mas, dado que o ano seguinte se limita,por hipótese, a uma repetição do precedente e a reconstruir as mesmas combinações, por que é que o primeiro não bastou? Por que

p. 202razão, como se diz habitualmente, a sociedade só paga a renda em prazos fixos sucessivos?O que explica, julgamos nós, esta temporização, é a maneira como o tempo age sobre a tendência para o suicídio. É um fator auxiliar mas importante desta. com efeito,é do conhecimento geral que esta progride ininterruptamente desde a juventude até a maturidade,2 7 e que é dez vezes mais elevada no fim da vida do que no princípio.Portanto, a força coletiva que leva o homem a matar-se vai penetrando nele lentamente. Nas mesmas condições, é à medida que a idade avança que o homem se torna maisacessível, sem dúvida porque necessita de experiências repetidas para sentir o vazio de uma existência egoísta ou a pobreza das ambições sem limites. Eis a razãopor que os suicídios só cumprem o seu destino por camadas sucessivas de gerações.28 -u'-/

27. Notemos, todavia, que esta progressão só foi determinada para as sociedades européias em que o suicídio altruísta é relativamente raro. Talvez não seja verdadeirano caso deste. É possível que ele atinja o apogeu na maturidade, altura em que o homem participa mais apaixonadamente na vida social. As relações que existem entreo suicídio e o homicídio, e que serão examinadas no capítulo seguinte, confirmam esta hipótese.28 Sem que pretendamos levantar uma questão da metafísica, que está fora do âmbito do nosso trabalho, gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção para o fato deque esta teoria da estatística não obriga a recu"ar toda espécie de liberdade ao homem. Pelo contrário, o livre arbítrio é muito mais respeitado do que quando ;>3considera o indivíduo como o gerador dos fenômenos sociais. com efeito, quaisquer que sejam as causas a que se deva a regularidade das manifestações coletivas,é evidente que não deixarão de produzir os seus efeitos onde quer que se encontrem: pois, de outro modo, estes efeitos variariam caprichosamente em vez de apresentarema uniformidade que os caracteriza. Se, portanto, são inerentes aos indivíduos, determinarão necessariamente os indivíduos em que se encontram. Por conseguinte, nestahipótese, não há possibilidade de escapar ao determinismo mais rigoroso. Mas as coisas já não se passam deste modo se esta constância dos dados demográficos provierde uma força exterior aos indivíduos. Porque, neste caso, esta não determina uns ind.víduos mais do que outros. Reclama um número definido de certos atos mas tantolhe faz que estes provenham deste ou daquele. Pode-se admitir que alguns lhe resistem e outros a satisfazem. Definitivamente, a nossa concepção limita-se a acrescentaràs forças físicas, químicas, biológicas forças sociais que agem sobre o homem a partir do exterior à semelhança das primeiras. Se, portanto, estas não excluem aliberdade humana, não há razão para que as coisas se passem diferentemente no caso daquelas. O problema põe-se do mesmo modo para umas e para outras. Quando um focoepidêmico se declara é a sua menor ou maior intensidade que vai determinar a importância da mortalidade que provocará; mas isso não implica que os futuros doentesestejam já designados. A situação dos suicidas em relação às correntes suicidogêneas é a mesma.

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p. 203 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA

(O SISTEMA TOTÈMICO NA AUSTRÁLIA)

INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura

p. 205INTRODUÇÃO

Objeto de Investigação — sociologia religiosa e teoria do conhecimento

I

Objeto principal do livro: análise da religião mais simples que seja conhecida, com vistas a determinar as formas elementares da vida religiosa. — Por queelas são mais fáceis de atingir e de explicar através das religiões primitivas. Propomo-nos estudar, neste livro, a religião mais primitiva e mais simples que atualmente seja conhecida, fazer sua análise e tentar explicá-la. Dizemosde um sistema religioso que ele é o mais primitivo que nos seja dado à observação quando ele preenche as seguintes condições: em primeiro lugar, é preciso que elese encontreem sociedades cuja organização não seja ultrapassada por nenhuma outra em simplicidade 1; além do mais, é preciso que seja possível explicá-lo sem fazer intervirnenhum elemento tomado de empréstimo a uma sociedade anterior. [ 1 No mesmo sentido, diremos destas sociedades que elas são primitivas e chamaremos primitivo ao homem destas sociedades. A expressão carece, sem dúvida,de precisão, mas dificilmente é evitável e, aliás, quando se tomou o cuidado de determinar sua significação, ela não apresenta inconvenientes. (N. do A.) ] Esforçar-nos-emos em descrever a economia deste sistema com a exatidão e a fidelidade que poderiam ter um etnógrafo ou um historiador. Mas nossa tarefa nãose limitará a isto. A sociologia coloca-se problemas diferentes da história ou da etnografia. Ela não procura conhecer as formas caducas da civilização com o únicofim de conhecê-las e reconstituí-las. Mas, como toda ciência positiva, antes de tudo ela tem por objeto explicar uma realidade atual, próxima de nós e capaz, por conseguinte, de afetarnossas idéias e nossos atos: esta realidade é o homem e, mais especialmente, o homem de hoje, pois não existe outro que estejamos mais interessados em conhecer bem.Portanto, não estudaremos a religião mais antiga, objeto de nossa pesquisa, pelo único prazer de relatar coisas bizarras e singularidades. Se nós a tomamos comoobjeto de nossa investigação, é porque ela nos pareceu mais apta do que qualquer outra para fazer compreender a natureza religiosa do homem, isto é, para nos revelarum aspecto essencial e permanente da humanidade. Mas esta proposição não deixa de suscitar vivas objeções. Acha-se estranho que para chegar a conhecer a humanidade presente seja preciso começar por distanciar-sedela e transportar-se ao começo da história. Esta maneira de proceder surge como particularmente paradoxal na questão que nos ocupa. com efeito, as religiões passama ter um valor e uma dignidade desiguais; geralmente, diz-se que elas não contêm todas a mesma parte de verdade. Portanto, parece que não se pode comparar as formasmais altas do pensamento religioso às mais baixas sem rebaixar as primeiras para o nível das segundas. Admitir, por exemplo, que os cultos grosseiros das tribosaustralianas podem

p. 206auxiliar-nos a compreender o cristianismo não é supor que este procede da mesma mentalidade, isto é, que ele é feito das mesmas superstições e repousa sobre os mesmoserros? Eis aí como a importância teórica que algumas vezes foi atribuída às religiões primitivas pode passar pelo índice de uma irreligiosidade sistemática que,prejulgando os resultados da investigação, viciava-os de início. Não precisamos examinar aqui se existem realmente investigadores que mereceram esta censura e que fizeram da história e da etnografia religiosa uma máquinade guerra contra a religião. De qualquer maneira, não poderia ser este o ponto de vista de um sociólogo. com efeito, é um postulado essencial da sociologia que umainstituição humana não poderia repousar sobre o erro e sobre a mentira: sem o que ela não poderia durar. Se ela não estivesse fundada na natureza das coisas, ela teria encontradoresistência nas coisas, contra a qual não poderia triunfar. Portanto, quando abordamos o estudo das religiões primitivas, o fazemos com a segurança de que elasse apoiam no real e o exprimem; ver-se-á este princípio ressurgir incessantemente no decorrer das análises e das discussões que seguirão e o que censuraremos àsescolas das quais nos separaremos é precisamente tê-lo desconhecido. Sem dúvida, quando não se considera senão a letra destas fórmulas, estas crenças e práticasreligiosas algumas vezes parecem desconcertantes e pode-se ficar tentado a atribuí-las a um tipo de aberração profunda. Mas, através do símbolo, é preciso saberatingir a realidade que ele figura e que lhe dá sua verdadeira significação. Os mais bárbaros ritos ou os mais bizarros, os mais estranhos mitos traduzem algumanecessidade humana, algum aspecto, seja individual, seja social da vida. As razões que o fiel se dá a si mesmo para justificá-los podem ser, o são mesmo freqüentemente,errôneas; mas as razões verdadeiras não deixam de existir e é tarefa da ciência descobri-las. Portanto, no fundo, não existem religiões falsas. À sua maneira, todas são verdadeiras, todas respondem, mesmo que de diferentes formas, a condições dadasda existência humana. Sem dúvida, é possível dispô-las segundo uma ordem hierárquica. Umas podem ser ditas superiores às outras no sentido em que elas põem em jogofunções mentais mais elevadas, são mais ricas em idéias e sentimentos, nelas figuram mais conceitos, menos sensações e imagens, sua sistematização é mais engenhosa.Mas, por mais reais que sejam esta maior complexidade e esta mais alta idealidade, elas não são suficientes para classificar as religiões correspondentes em gêneros separados. Todas são igualmente religiões, assim como todos os seres vivos são igualmente vivos, desde os mais humildes plastídios até o homem. Portanto, se nos dirigimosàs religiões primitivas, não é com a segunda intenção de depreciar a religião em geral, pois aquelas religiões não são menos respeitáveis que as outras. Elas respondemàs mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas; portanto, elas podem servir para manifestar igualmente bem a natureza da vida religiosae, por conseguinte, para resolver o problema que desejamos tratar. Mas por que conferir-lhes um tipo de prerrogativa? Por que escolhê-las de preferência a todas as outras como objeto de nosso estudo? — Unicamente por razõesde método.Primeiramente, não podemos chegar a compreender as religiões mais recentes senão seguindo na história a maneira pela qual elas se compuseram progressivamente. comefeito, a história é o único método de análise explicativa que é possível aplicar-lhes. Apenas ela nos permite resolver uma instituição em seus elementos constitutivos,porque ela no-los mostra nascendo no tempo, uns após os outros. Por outro lado, situando cada um deles no conjunto das circunstâncias nas quais ele nasceu, ela colocaem nossas mãos o

p. 207único meio que temos para determinar as causas que os suscitaram. Portanto, todas as vezes que se empreende explicar uma coisa humana, tomada em um momento determinadodo tempo — quer se trate de uma crença religiosa, de uma regra moral, quer de um preceito jurídico, de uma técnica estética, de um regime econômico —, é precisocomeçar por retroceder até a sua forma mais primitiva e mais simples, procurar dar conta dos caracteres pelos quais ela se define neste período de sua existência,depois mostrar como ela se desenvolveu e se complicou pouco a pouco, como ela se tornou o que é no momento considerado. Ora, concebe-se facilmente de que importânciaé para esta série de explicações progressivas a determinação do ponto de partida ao qual estão subordinadas. Era um princípio cartesiano que, na cadeia das verdades

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científicas, o primeiro elo desempenha um papel preponderante. Certamente, não poderia ser o caso de colocar na base da ciência das religiões uma noção elaboradaà maneira cartesiana, isto é, um conceito lógico, um puro possível, construído apenas pelas forças do espírito. O que precisamos encontrar é uma realidade concretaque unicamente a observação histórica pode nos revelar. Mas, se esta concepção fundamental deve ser obtida por processos diferentes, permanece verdadeiro que elaé chamada a desempenhar uma influência considerável sobre toda a seqüência das proposições que a ciência estabelece. A evolução biológica foi concebida de maneiracompletamente diferente a partir do momento em que se soube que existiam seres monocelulares. Igualmente, o detalhe dos fatos religiosos é explicado diferentemente,segundo se coloca na origem da evolução o naturismo, o animismo ou qualquer outra forma religiosa. Mesmo os sábios mais especializados, se não pretendem limitar-sea uma tarefa de pura erudição, se querem tentar dar conta dos fatos que analisam, são obrigados a escolher tal ou tal destas hipóteses e inspirar-se nela. Quer eleso queiram, quer não, as questões que eles se colocam tomam necessariamente a seguinte forma: como o naturismo ou o animismo foram determinados a tomar aqui ou alital aspecto particular, a enriquecer-se ou empobrecer-se de tal ou tal maneira? Portanto, porque não se pode evitar tomar um partido sobre este problema iniciale porque a solução que se dá está destinada a afetar o conjunto da ciência, convém abordá-lo de frente; é o que nos propomos fazer. Por outro lado, mesmo fora destas repercussões indiretas, o estudo das religiões primitivas tem por si mesmo um interesse imediato que é de primeira importância.com efeito, se é útil saber em que consiste tal ou tal religião particular, importa mais ainda investigar o que é a religião de uma maneira geral. É este problemaque em todos os tempos tentou a curiosidade dos filósofos e não sem razão, pois ele interessa à humanidade inteira. Infelizmente, o método que eles ordinariamenteempregam para resolvê-lo é puramente dialético: eles se limitam a analisar a idéia que se fazem da religião, sob condição de ilustrar os resultados desta análisemental por exemplos emprestados às religiões que realizam da melhor maneira seu ideal. Mas, se este método deve ser abandonado, o problema permanece inteiro e ogrande serviço prestado pela filosofia foi o de impedir que ele tenha sido prescrito pelo desdenho dos eruditos. Ora, ele pode ser retomado por outras vias. Porquetodas as religiões são comparáveis, porque elas são todas espécies do mesmo gênero, existem necessariamente elementos essenciais que lhes são comuns. com isto nãopretendemos simplesmente falar dos caracteres exteriores e visíveis que elas todas apresentam igualmente e que permitem dar delas, desde o começo da investigação,uma definição provisória; a descoberta destes signos aparentes é relativamente fácil, pois a observação que ela exige não necessita ultrapassar a superfície dascoisas. Mas estas semelhanças exteriores supõem outras que são profundas. Na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos deve necessariamente haverum certo

p. 208número de representações fundamentais e de atitudes rituais que, malgrado a diversidade das formas que umas e outras puderam revestir, em todas as partes têm a mesmasignificação objetiva e em todas as partes preenchem as mesmas funções. São estes elementos permanentes que constituem o que há de eterno e de humano na religião;eles são todo o conteúdo objetivo da idéia que se exprime quando se fala da religião em geral. Como é possível chegar a atingi-los? Certamente, não é observando as religiões complexas que aparecem no decorrer da história. Cada uma delas está formada de uma tal variedade de elementos queé muito difícil distinguir nelas o secundário do principal, o essencial do acessório. Que se considerem religiões como as do Egito, da índia ou da antigüidade clássica! São um emaranhado espesso de cultos múltiplos, variáveis com as localidades, com os templos, com as gerações, as dinastias, as invasões, etc. Nelas as superstiçõespopulares estão misturadas aos mais refinados dogmas. Nem o pensamento nem a atividade religiosa estão igualmente distribuídos na massa dos fiéis; segundo os homens,os meios e as circunstâncias, tanto as crenças quanto os ritos são sentidos de maneiras diferentes. Aqui existem padres, ali monges, em outro lugar leigos; existemmísticos e racionalistas, teólogos e profetas, etc. Nestas condições, é difícil perceber o que é comum a todos. Pode-se encontrar o meio de estudar utilmente, atravésde um ou de outro destes sistemas, tal ou tal fato particular que ali se encontra especialmente desenvolvido, como o sacrifício ou o profetismo, o monacato ou osmistérios. Mas como descobrir o fundo comum da vida religiosa sob a luxuriante vegetação que a recobre? Como, sob a contradição das teologias, as variações dos rituais,a multiplicidade dos agrupamentos, a diversidade dos indivíduos, reencontrar os estados fundamentais, característicos da mentalidade religiosa em geral? Nas sociedades inferiores, tudo é completamente diferente. O menor desenvolvimento das individualidades, a extensão mais fraca do grupo, a homogeneidadedas circunstâncias exteriores, tudo contribui para reduzir ao mínimo as diferenças e as variações. O grupo realiza, de maneira regular, uma uniformidade intelectuale moral de que só encontramos raros exemplos nas sociedades mais adiantadas. Tudo é comum a todos. Os movimentos são estereotipados, todo mundo executa os mesmos atos, nas mesmascircunstâncias, e esta conformidade da conduta não faz senão traduzir aquela do pensamento. Todas as consciências estando encadeadas nas mesmas correntes, o tipoindividual quase se confunde com o tipo genérico. Ao mesmo tempo que tudo é uniforme, tudo é simples. Nada é mais rude do que estes mitos compostos de um únicoe mesmo tema que se repete sem fim, do que estes ritos que são feitos de um pequeno número de gestos recomeçados à saciedade. A imaginação popular e sacerdotal aindanão teve nem o tempo nem os meios de refinar e de transformar a matéria-prima das idéias e das práticas religiosas; portanto, esta matéria se mostra a nu e se oferecepor si mesma à observação, bastando um esforço mínimo para descobri-la. O acessório, o secundário, os desenvolvimentos de luxo ainda não vieram esconder o principal.2 [ 2 Isto não é dizer, sem dúvida, que todo luxo esteja ausente dos cultos primitivos. Veremos, ao contrário, que em toda religião se encontram crenças epráticas que não visam a fins estritamente utilitários (livro in, cap. IV, §?). Mas este luxo é indispensável à vida religiosa, ele pertence à sua própria essência.Por outro lado, ele é muito mais rudimentar nas religiões inferiores do que nas outras e é isto que nos permitirá determinar melhor sua razão de ser. (N. doA.) ] Tudo está reduzido ao indispensável, àquilo sem o que não poderia haver religião. Mas o indispensável é também o essencial, isto é, o que antes de tudo importaconhecer.

p. 209 Portanto, as civilizações primitivas constituem casos privilegiados, porque são casos simples. Eis aí por que, em todas as ordens de fatos, as observaçõesdos etnógrafos freqüentemente foram verdadeiras revelações que renovaram o estudo das instituições humanas. Por exemplo, antes da metade do século XIX, estava-se convencido deque o pai era o elemento essencial da família: não se concebia que pudesse haver uma organização familiar na qual o poder paterno não fosse o princípio. A descobertade Bachofen veio transformar esta velha concepção. Até épocas muito recentes, considerava-se como evidente que as relações morais e jurídicas que constituem o parentescoeram apenas um aspecto das relações fisiológicas que resultam da comunidade de descendência; Bachofen e seus sucessores, Mac Lennan, Morgan e muitos outros, aindaestavam sob a influência deste prejuízo. Desde que conhecemos a natureza do clã primitivo, sabemos, ao contrário, que o parentesco não poderia definir-se pela consangüinidade.Para retornar às religiões, a consideração apenas das formas religiosas que nos são mais familiares fez com que se acreditasse durante muito tempo que a noção dedeus era característica de tudo o que é religioso. Ora, a religião que estudamos mais adiante é, em grande parte, estranha a toda idéia de divindade; aqui, as forçasàs quais se dirigem os ritos são muito diferentes daquelas que ocupam o primeiro lugar em nossas religiões modernas, e, entretanto, elas auxiliar-nos-ão a compreendermelhor estas últimas. Portanto, nada mais injusto que o desdenho que muitos historiadores têm ainda pelos trabalhos dos etnógrafos. Ao contrário, é certo que a etnografiafreqüentemente determinou, nos diferentes setores da sociologia, as mais fecundas revoluções. Por outro lado, foi pela mesma razão que a descoberta dos seres monocelulares,da qual falávamos há pouco, transformou a idéia que correntemente se fazia da vida. Como nestes seres muito simples a vida está reduzida a seus traços essenciais,é mais difícil que estes traços permaneçam desconhecidos. Mas as religiões primitivas não permitem apenas distinguir os elementos constitutivos da religião; gozam também a vantagem muito grande de facilitar suaexplicação. Porque aqui os fatos são mais simples, as relações entre os fatos também são mais aparentes. As razões pelas quais os homens explicam seus atos ainda nãoforam elaboradas e desnaturadas por uma reflexão erudita; elas estão mais próximas, mais aparentadas aos móveis que realmente determinaram estes atos. Para compreender bem um delírioe poder aplicar-lhe o tratamento mais apropriado, o médico precisa saber qual foi o seu ponto inicial. Ora, este acontecimento é tanto mais fácil de discernir quandose pode observar este delírio em um período mais próximo de seu começo. Ao contrário, mais se deixa à doença o tempo de se desenvolver, mais ela se esquiva à

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observação;é que, no percurso, intervieram todos os tipos de interpretações que tendem a reprimir no inconsciente o estado original e a substituí-lo por outros através dosquais é algumas vezes penoso reencontrar o primeiro. Entre um delírio sistematizado e as primeiras impressões que lhe deram nascimento, freqüentemente a distânciaé considerável. Acontece o mesmo com o pensamento religioso. Na medida em que ele progride na História, as causas que o chamaram à existência, permanecendo sempreativas, não são mais percebidas senão através de um vasto sistema de interpretações que as deformam. As mitologias populares e as teologias sutis fizeram seu trabalho:elas sobrepuseram aos sentimentos primitivos sentimentos muito diferentes que, dependendo dos primeiros, dos quais eles são a forma elaborada, entretanto não deixamtransparecer sua natureza verdadeira senão muito imperfeitamente. A distância psicológica entre a causa e o efeito, entre a causa aparente e a causa efetiva, tornou-semais considerável e mais difícil para o espírito percorrê-la. Esta obra será uma ilustração e uma verificação desta observação metodológica. Aqui ver-se-á como,nas religiões primitivas, o fato religioso traz ainda visível o cunho de suas

p. 210origens; ter-nos-ia sido bem mais árduo inferi-lo considerando apenas as religiões mais desenvolvidas. Portanto, o estudo que empreendemos é uma maneira de retomar, mas em condições novas, o velho problema da origem das religiões. Certamente, se por origemse entende um primeiro começo absoluto, a questão não tem nada de científica e deve ser afastada resolutamente. Não há um instante radical em que a religião tenhacomeçado a existir e não se trata de encontrar um atalho que nos permita transportarmo-nos até lá pelo pensamento. Como toda instituição humana, a religião não começa emparte alguma. Todas as especulações deste gênero também estão justamente desacreditadas; elas não podem passar de construções subjetivas e arbitrárias que não comportamcontrole de tipo algum. O problema que nós nos colocamos é completamente diferente. O que queríamos era encontrar um meio de discernir as causas, sempre presentes,das quais dependem as formas mais essenciais do pensamento e da prática religiosa. Ora, pelas razões que acabamos de expor, estas causas são tanto mais facilmenteobserváveis quanto as sociedades onde ocorrem são menos complicadas. Eis aí por que procuramos aproximar-nos das origens 3. Isto não representa que pretendamos atribuirvirtudes particulares às religiões inferiores. Ao contrário, elas são rudimentares e grosseiras; portanto, não poderia ser o caso de fazer delas modelos que as religiõesulteriores se limitaram apenas a reproduzir. Mas sua própria grosseria as torna instrutivas; pois elas constituem assim experiências cômodas, onde os fatos e suasrelações são mais fáceis de perceber. O físico, para descobrir as leis dos fenômenos que estuda, procura simplificá-los, desembaraçá-los de seus caracteres secundários. [ 3 Vê-se que damos à palavra origem, como à palavra primitivo, um sentido completamente relativo. Entendemos por isto não um começo absoluto, mas o maissimples estado social que atualmente é conhecido, aquele além do qual não nos é presentemente possível remontar. Quando falarmos das origens, dos começos da históriaou do pensamento religioso, é neste sentido que tais expressões deverão ser entendidas. (N. do A.) ] No que concerne às instituições, a natureza faz espontaneamente simplificações do mesmo gênero, no começo da história. Nós queremos apenas tirar proveitodisto. Sem dúvida, por este método, só poderemos atingir fatos muito elementares. Quando tivermos dado conta deles, na medida em que isto nos for possível, as novidadesde todo tipo, que se produziram no decorrer da evolução, não serão por isto explicadas. Mas, se não pretendemos negar a importância dos problemas que elas suscitam,estimamos que eles ganham se forem tratados em tempo oportuno e que há interesse em abordá-los somente após aqueles cujo estudo vamos empreender.

p. 211 II

Objeto secundário da investigação: gênese das noções fundamentais do pensamento ou categorias. — Razões para acreditar que elas têm uma origem religiosa e, por conseguinte,social. — Como, deste ponto de vista, se entrevê um meio de renovar a teoria do conhecimento.

Mas nossa investigação não interessa apenas à ciência das religiões. com efeito, toda religião tem um lado pelo qual ela ultrapassa o círculo das idéiaspropriamente religiosas e, através disto, o estudo dos fenômenos religiosos fornece um meio de renovar problemas que, até o presente, não foram debatidos senão entrefilósofos. Sabe-se desde muito tempo que os primeiros sistemas de representações que o homem se fez do mundo e de si mesmo são de origem religiosa. Não existe religião quenão seja uma cosmologia ao mesmo tempo que uma especulação sobre o divino. Se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é que a própria religião começou porocupar o lugar das ciências e da filosofia. Mas o que foi menos notado é que ela não se limitou a enriquecer com um certo número de idéias um espírito humano previamenteformado; ela contribuiu também para formá-lo. Os homens não lhe deveram apenas uma notável parcela da matéria de seus conhecimentos, mas também a forma segundo aqual esses conhecimentos são elaborados. Existe, na base de nossos julgamentos, um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual; são aquelas que os filósofos, desdeAristóteles, chamam de categorias do entendimento: noções de tempo, de espaço 4, de gênero, número, causa, substância, personalidade, etc. Elas correspondem às propriedadesmais universais das coisas. Elas são como quadros rígidos que encerram o pensamento; este parece não poder libertar-se delas sem se destruir, pois não parece que possamospensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço, que não sejam numeráveis, etc. As outras noções são contingentes e móveis; nós concebemos que elas possam faltara um homem, a uma sociedade, a uma época; aquelas nos parecem quase inseparáveis do funcionamento normal do espírito. São como a ossatura da inteligência. Ora, quandose analisam metodicamente as crenças religiosas primitivas, encontram-se naturalmente em seu caminho as principais dessas categorias. Estas nasceram na religiãoe da religião; são um produto do pensamento religioso. É uma constatação que faremos várias vezes no decorrer desta obra. [ 4 Dizemos do tempo e do espaço que são categorias, porque não há nenhuma diferença entre o papel que desempenham estas noções na vida intelectual e aqueleatribuído as noções de gênero ou de causa. (Ver sobre este ponto Hamelm, Essai sur lês Éléments Pnncipaux de la Représentation, pp 63, 76, Paris, Alcan, depois P.U.F.)(N. do A.) ]

p. 212Esta observação já tem por si mesma origem interesse; mas eis o que lhe dá sua verdadeira importância. A conclusão geral do livro que se vai ler é que a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas queexprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos reunidos e que são destinados a suscitar, a manter ou a refazer certosestados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de origem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos: elas também devemser coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. Pelo menos — pois, no estado atual de nossos conhecimentos nesta matéria, devemos nos guardar de toda tese radicale exclusiva — é legítimo supor que elas são ricas em elementos sociais. É isto, aliás, que, desde já, se pode entrever para algumas delas. Que se tente, por exemplo, representar o que seria a noção de tempo, abstração feita dosprocessos pelos quais nós o dividimos, o medimos, o exprimimos por meio de signos objetivos, um tempo que não seria uma sucessão de anos, de meses, de semanas, dedias, de horas! Isto seria algo quase impensável. Não podemos conceber o tempo senão sob condição de distinguir nele momentos diferentes. Ora, qual é a origem desta diferenciação?

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Sem dúvida, os estados de consciência que nós já experimentamos podem produzir-se em nós, na própria ordem em que primitivamente se desenvolveram; e assim porçõesde nosso passado tornam-se presentes, distinguindo-se espontaneamente do presente. Mas, por mais importante que seja esta distinção para nossa experiência privada,falta muito para que ela seja suficiente para constituir a noção ou categoria de tempo. Esta não consiste simplesmente em uma comemoração parcial ou integral denossa vida passada. Ela é um quadro abstrato e impessoal que envolve não apenas nossa existência individual mas a da humanidade. Ela é um quadro ilimitado onde todaduração está exposta sob o olhar do espírito e onde todos os acontecimentos possíveis podem ser situados em relação a pontos de referência fixos e determinados.Não é meu tempo que assim pode ser organizado; é o tempo tal como é objetivamente pensado por todos os homens de uma mesma civilização. Apenas isto já é suficientepara fazer entrever que uma tal organização deve ser coletiva. E, com efeito, a observação estabelece que estes pontos de apoio indispensáveis, em relação aos quaistodas as coisas são classificadas temporalmente, são emprestados à vida social. As divisões em dias, semanas, meses, anos, etc., correspondem à periodicidade dosritos, das festas, das cerimônias públicas 5. Um calendário exprime o ritmo da atividade coletiva ao mesmo tempo que tem por função assegurar sua regularidade 6.O mesmo acontece com o espaço. Como o demonstrou Hamelin 7, o espaço não é este meio vago e indeterminado que Kant tinha imaginado: pura e absolutamente homogêneo,ele não serviria para nada e mesmo não apresentaria problemas ao pensamento. [ 5 Ver, em apoio a esta asserção, em Hubert e Mauss, Mélanges d'Histoire Religieuse (Travaux de 1'Année Sociologique), o capítulo sobre "A Representaçãodo Tempo na Religião" (Paris, Alcan). (N. do A.) 6 Através disto vê se toda a diferença que existe entre o complexo de sensações e de imagens que serve para nos orientar na duração e a categoria de tempo.As primeiras são o resumo de experiências individuais que não são válidas senão para o indivíduo que as fez. Ao contrário, o que exprime a categoria de tempo é umtempo comum ao grupo, é o tempo social, se assim se pode falar. Ela mesma é uma verdadeira instituição social. É também particular ao homem; o animal não temrepresentação deste gênero. Esta distinção entre a categoria de tempo e as sensações correspondentes poderia igualmente ser feita a propósito do espaço e da causa. Talvez ela ajudassea dissipar algumas confusões que alimentam as controvérsias das quais estas questões são objeto. Retornaremos a este ponto na conclusão desta obra (§4). (N. do A.) 7 Op. cit., p. 75 e seguintes. (N. do A.) ]

p. 213 A representação espacial consiste essencialmente numa primeira coordenação introduzida entre os dados da experiência sensível. Mas esta coordenação seriaimpossível se as partes do espaço fossem qualitativamente equivalentes, se elas realmente fossem substituíveis umas às outras. Para poder dispor espacialmente ascoisas, é preciso poder situálas diferentemente: colocar umas à direita, outras à esquerda, estas no alto, aquelas embaixo, no norte ou no sul, a leste ou a oeste,etc., etc., da mesma maneira que, para dispor temporalmente os estados de consciência, é preciso poder localizá-los em datas determinadas. O que representa dizerque o espaço não poderia ser ele mesmo se, assim como o tempo, ele não fosse dividido e diferenciado. Mas estas divisões, que lhe são essenciais, de onde provêm?Por si mesmo, ele não tem nem direita nem esquerda, nem alto nem baixo, nem norte nem sul, etc. Todas estas distinções evidentemente provêm do fato de que valoresafetivos diferentes foram atribuídos às regiões. E como todos os homens de uma mesma civilização representam o espaço de uma mesma maneira, é preciso evidentementeque estes valores afetivos e as distinções que dele dependem lhes sejam igualmente comuns; o que implica quase necessariamente que elas são de origem social 8. [ 8 De outra maneira, para explicar este acordo, seria preciso admitir que todos os indivíduos, em virtude de sua constituição orgâmco-psíquica, sãoespontaneamente afetados da mesma maneira pelas diferentes partes do espaço: o que é tanto mais inverossimilhante quanto as diferentes regiões são por si mesmasafetivamente indiferentes. Aliás, as divisões do espaço mudam com as sociedades; é a prova de que elas não são exclusivamente fundadas na natureza congenial do homem.(N. do A.) ] Existem, aliás, casos em que este caráter social se torna manifesto. Existem sociedades na Austrália e na América do Norte onde o espaço é concebido soba forma de um círculo imenso, porque o próprio acampamento tem uma forma circular 9, e o círculo espacial é exatamente dividido como o círculo tribal e à imagemdeste último. [ 9 Ver Durkheim e Mauss, Sobre Algumas Formas Primitivas de Classificação, in Année Sodologique, VI, p. 47 e seguintes. (N. do A.) ] Na tribo existem tantas regiões distintas quantos clãs e é o lugar ocupado pelos clãs no interior do acampamento que determina a orientação das regiões.Cada região se define pelo totem do clã ao qual ela é atribuída. Junto aos Zurii, por exemplo, o pueblo compreende sete partes; cada uma destas partes é um grupode clãs que teve sua unidade: segundo toda a probabilidade, ele era primitivamente um clã único que em seguida se subdividiu. Ora, o espaço compreende igualmente sete regiõese cada uma destas sete partes do mundo está em relações íntimas com uma parte do pueblo, isto é, com um grupo de clãs 10. "Assim" diz Cushing, "uma divisão é consideradaestar em relação com o norte; uma outra representa o oeste, uma outra o sul 11, etc." Cada parte do pueblo tem uma cor característica que o simboliza; cada regiãotem a sua que é exatamente aquela do bairro correspondente. No decorrer da história, o número dos clãs fundamentais variou; o número das regiões do espaço tambémvariou da mesma maneira. Assim, a organização social foi o modelo da organização espacial que é como um decalque da primeira. Não existe nem mesmo distinção da esquerdae da direita que, longe de estar implicada na natureza do homem em geral, não seja verossimilhantemente o produto de representações religiosas, logo, coletivas 12. [ 10 Ibid, p. 34 e seguintes. (N. do A.) 11 n Zuni Creation Myths, in 13th Report ofthe Biireau of American Ethnology, p. 367 e seguintes. (N. do A.) 12 V. Hertz, A Preeminência da Mão Direita. Estudo de Polaridade Religiosa, in Revue Philosophique, dezembro de 1909. Sobre a mesma questão das relaçõesentre a representação do espaço e a forma da coletividade, ver em Ratzel, Politische Geographie, o capítulo intitulado "Der Raum im Geist der Võlker" — O Espaçono Espírito do Povo. (N. do A.) ]

p. 214 Encontrar-se-ão, mais adiante, provas análogas relativas às noções de gênero, força, personalidade e eficácia. Pode-se também perguntar se a noção de contradiçãonão depende também de condições sociais. O que leva a isso é que o império que ela exerceu sobre o pensamento variou segundo o tempo e as sociedades. O princípiode identidade domina hoje o espírito científico; mas existem vastos sistemas de representações que desempenharam na história das idéias um papel considerável e ondeele é freqüentemente desconhecido: são as mitologias, desde as mais grosseiras até as mais engenhosas 13. Nelas, sem cessar, estão em questão seres que têm simultaneamenteos atributos mais contraditórios, que simultaneamente são unos e vários, materiais e espirituais, que podem subdividir-se indefinidamente sem nada perder do queos constitui; em mitologia, é um axioma que a parte eqüivale ao todo. Estas variações pelas quais passou na história a regra que parece governar nossa lógica atualprovam que, longe de estar inscrita por toda a eternidade na constituição mental do homem, ela depende, pelo menos em parte, de fatores históricos, por conseguintesociais. Não sabemos exatamente quais são eles; mas podemos presumir que existem 14. [ 13 Não pretendemos dizer que o pensamento mitológico o ignore, mas que ele o abole mais freqüentemente e mais abertamente que o pensamento científico.Inversamente, mostraremos que a ciência não pode não violá-lo, ao mesmo tempo conformando-se a ele mais escrupulosamente que a religião. Entre a ciência e a religião só existem,sob este aspecto como sob vários outros, diferenças de graus; mas, se não é preciso exagerálas, é importante notá-las, pois elas são significativas. (N. do A.) ] 14 Esta hipótese já tinha sido emitida pelos fundadores da Vôlkerpsychologie. Encontra-se notadamente indicada em um curto artigo de Windelband, intituladoDie Erkenntnisslehre unter dem võlkerpsycologischem Gesichtspunkte, in Zeitsch.f. Võlkerpsychologie, VIII, p. 166 e seguintes. Cf. uma nota de Steinhal sobre omês no tema, ibid., p. 178 e seguintes. (N. do A.) Uma vez admitida esta hipótese, o problema do conhecimento coloca-se em termos novos. Até o presente, apenas duas doutrinas estavam em pauta. Para uns, as categorias não podem ser derivadas da experiência: elas lhe são logicamente anteriorese a condicionam. São representadas como tantos dados simples, irredutíveis, imanentes ao espírito humano em virtude da sua constituição nativa. Eis por que se diz que são a priori. Para outros, ao contrário, elas seriam construídas, feitas de peças e pedaços, e o indivíduo seria o operário desta construção 15.

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[ 15 Mesmo na teoria de Spencer, é com a experiência individual que são construídas as categorias. Sob este aspecto, a anica diferença que existe entre oempirismo ordinário e o empirismo evolucionista é que, segundo este último, os resultados da experiência individual são consolidados pela hereditariedade. Mas esta consolidaçãonão lhes acrescenta nada de essencial; não penetra na sua composição nenhum elemento que não tenha sua origem na experiência do indivíduo. Igualmente, nesta teoria,a necessidade com a qual as categorias se impõem atualmente a nós é o produto de uma ilusão, de um prejuízo supersticioso, fortemente enraizado no organismo, massem fundamento na natureza das coisas. (N. do A.) ] Mas uma e outra solução levantam graves dificuldades. Adota-se a tese empirista? Então é preciso retirar às categorias todas as suas características. com efeito, elas distinguem-se de todos os outros conhecimentospor sua universalidade e necessidade. São os conceitos mais gerais que existem porque se aplicam a todo o real e, da mesma maneira que não estão ligadas a nenhumobjeto particular, são independentes de todo sujeito individual: elas são o lugar comum onde se encontram todos os espíritos. Além do mais, estes se encontram aquinecessariamente; pois a razão, que não é outra coisa que o conjunto das categorias fundamentais, é investida de uma autoridade à qual não podemos nos subtrair àvontade. Quando tentamos nos insurgir contra ela e nos livrar de algumas destas noções essenciais, chocamo-nos contra vivas

p. 215resistências. Portanto, não apenas elas independem de nós. mas impõe-se a nós. Ora, os dados empíricos apresentam caracteres diametralmente opostos. Uma sensação,uma imagem relacionam-se a um objeto determinado ou a uma coleção de objetos deste gênero e exprimem o estado momentâneo de uma consciência particular: ela é essencialmenteindividual e subjetiva. Também podemos dispor, com uma liberdade relativa, das representações que têm esta origem. Sem dúvida, quando nossas sensações são atuais,elas impõem-se a nós de fato. Mas, de direito, permanecemos senhores de concebê-las de outra maneira, de nos representá-las como desenrolando-se em uma ordem diferentedaquela na qual elas foram produzidas. Face a elas, nada nos prende, enquanto considerações de um outro gênero não intervém. Portanto, eis aí dois tipos de conhecimentoque são como que dois pólos contrários da inteligência. Nestas condições, reconduzir a razão à experiência é fazê-la dissipar se; pois é reduzir a universalidadee a necessidade que a caracterizam a puras aparências, ilusões que podem ser praticamente cômodas mas que não correspondem a nada nas coisas; é, por conseguinte,recusar toda a realidade objetiva à vida lógica que as categorias têm por função regular e organizar. O empirismo clássico chega ao irracionalismo; talvez sejamesmo por este último nome que conviria designá-lo. Os aprioristas, malgrado o sentido ordinariamente ligado aos rótulos, são mais respeitosos com os fatos. Visto que eles não admitem como verdade evidenteque as categorias são feitas dos mesmos elementos que nossas representações sensíveis, eles não são obrigados a empobrecê-las sistematicamente, a esvaziá-las de todo conteúdoreal, a reduzi las a simples artifícios verbais. Eles lhes deixam, ao contrário, todos os seus caracteres específicos. Os aprioristas são racionalistas; eles crêemque o mundo tem um aspecto lógico que a razão exprime em grau eminente. Mas para isso, é-lhes preciso atribuir ao espírito um certo poder de ultrapassar a experiência,de acrescer ao que lhe é imediatamente dado; ora. deste poder singular eles não oferecem nem explicação nem justificação. Pois limitar se a dizer que ele é inerenteà natureza da inteligência humana não o explica. Seria preciso ainda fazer entrever de onde nós temos esta surpreendente prerrogativa e como podemos ver nas coisasrelações que o espetáculo das coisas não poderia nos revelar. Dizer que a própria experiência só é possível sob esta condição é talvez deslocar o problema, não éresolvê-lo. Pois trata-se precisamente de saber de onde provém que a experiência não seja suficiente por si mesma, mas supõe condições que lhe são anteriores e exteriorese como acontece que estas condições são realizadas quando e como convém. Para responder a estas questões, imaginou-se algumas vezes, acima das razões individuais,uma razão superior e perfeita da qual as primeiras emanariam e de que elas teriam, por um tipo de participação mística, sua maravilhosa faculdade: era a razão divina. Mas esta hipótese tem pelo menos o grave inconveniente de estar subtraída a todo controle experimental; portanto, ela não satisfaz as condições exigíveisde uma hipótese científica. Além do mais, as categorias do pensamento humano jamais estão fixadas sob uma forma definida; fazem-se, desfazem-se e refazem-seininterruptamente; mudam segundo os lugares e os tempos. A razão divina é, ao contrário, imutável. Como esta imutabilidade poderia dar conta desta incessante variabilidade? Tais são as duas concepções que se chocam uma contra a outra desde séculos; e, se o debate se eterniza, é porque em verdade os argumentos trocados se eqüivalemsensivelmente. Se a razão é apenas uma forma da experiência individual, não existe mais razão. Por outro lado, se lhe reconhecermos os poderes que ela se atribui,sem se dar conta disso, parece que a colocamos fora da natureza e da ciência. Em presença destas objeções opostas, o espírito permanece indeciso. — Mas. se se admitea origem social das

p. 216categorias, uma nova atitude torna-se possível, permitindo, acreditamos, escapar destas dificuldades contrárias. A proposição fundamental do apriorismo é que o conhecimento é formado de dois tipos de elementos irredutíveis um ao outro e como que de duas camadas distintase superpostas. 16. Nossa hipótese mantém integralmente este princípio. com efeito, os conhecimentos chamados empíricos, os únicos dos quais os teóricos do empirismosempre se serviram para construir a razão, são aqueles que a ação direta dos objetos suscita em nossos espíritos. São portanto estados individuais, que se explicaminteiramente 17 pela natureza psíquica do indivíduo. Ao contrário, se, como nós o pensamos, as categorias são representações essencialmente coletivas, elas traduzemantes de tudo estados da coletividade: dependem da maneira pela qual esta é constituída e organizada, de sua morfologia, de suas instituições religiosas, morais,econômicas, etc. Portanto, entre estas duas espécies de representações existe toda a distância que separa o individual do social e tanto não se pode derivar as segundasdas primeiras quanto não se pode deduzir a sociedade do indivíduo, o todo da parte, o complexo do simples. 18. A sociedade é uma realidade sui generis; ela tem seuscaracteres próprios que não se reencontram, ou não se reencontram sob a mesma forma, no resto do universo. As representações que a exprimem têm, portanto, um conteúdocompletamente diferente que as representações puramente individuais e pode-se de início estar seguro de que as primeiras acrescentam alguma coisa às segundas. [ 16 Pode alguém se surpreender talvez porque não definimos o apriorismo pela hipótese do inatismo. Mas na realidade esta concepção desempenha na doutrinaum papel apenas secundário. É uma maneira simplista de se representar a irredutibilidade dos conhecimentos racionais aos dados empíricos. Dizer dos primeiros queeles são inatos não passa de uma maneira positiva de dizer que eles não são um produto da experiência tal como ela é ordinariamente concebida. (N. do A.) 17 Pelo menos na medida em que existem representações individuais e, por conseguinte, integralmente empíricas. Mas de fato, verossimilhantemente, não existenenhuma na qual estes dois tipos de elementos não se encontrem estreitamente unidos. (N. do A.) 18 Por outro lado, não é preciso entender esta irredutibilidade em sentido absoluto. Não queremos dizer que não exista nada nas representações empíricasque anuncie as representações racionais, nem que não exista nada no indivíduo que possa ser olhado como o anúncio da vida social. Se a experiência fosse completamenteestranha a tudo o que é racional, a razão não poderia aplicar-se a ela; igualmente, se a natureza psíquica do indivíduo fosse absolutamente refratária à vida social,a sociedade seria impossível. Portanto, uma análise completa das categorias deveria investigar até na consciência individual estes germes de racionalidade. Nós teremosocasião de retornar a este ponto em nossa conclusão. Tudo quanto queremos estabelecer aqui é que, entre estes germes indistintos de razão e a razão propriamentedita, existe uma distância comparável àquela que separa as propriedades dos elementos minerais dos quais está formado o ser vivo e os atributos característicos da vida,uma vez que ela está constituída. (N. do A.) ] A própria maneira pela qual se formam umas e outras as diferencia. As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende nãoapenas no espaço, mas no tempo; para fazê-las, uma multidão de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas idéias e sentimentos; longas séries degerações acumularam aqui sua experiência e seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais complexa do que a do indivíduo, estáaqui, portanto, como que concentrada. Compreende-se desde então como a razão tem o poder de ultrapassar a capacidade dos conhecimentos empíricos. Ela não o devea não sei qual virtude misteriosa, mas simplesmente ao fato de que, segundo uma fórmula conhecida, o homem é duplo. Nele existem dois seres: um ser individual quetem sua base no organismo, cujo círculo de ação se encontra, por isto mesmo, estreitamente limitado; e um ser social que representa em nós a mais alta realidadena ordem intelectual e moral que possamos conhecer pela observação, isto é. a sociedade. Esta dualidade de nossa natureza tem porxxxx p. 217conseqüência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móvel utilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual.

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Na medida em que participa da sociedade, o indivíduo ultrapassa naturalmente a si mesmo, tanto quando pensa como quando age. Esse mesmo caráter social permite compreender de onde vem a necessidade das categorias. Diz-se de uma idéia que ela é necessária quando, por um tipo de virtudeinterna, se impõe ao espírito sem ser acompanhada por nenhuma prova. Portanto, existe nela algo que obriga a inteligência, que arrebata a adesão sem exame prévio. Esta eficáciasingular, o apriorismo a postula mas dela não se dá conta; pois dizer que as categorias são necessárias porque são indispensáveis ao funcionamento do pensamentoé simplesmente repetir que elas são necessárias. Mas, se elas têm a origem que nós lhes atribuímos, sua influência não tem mais nada que surpreenda. com efeito,elas exprimem as relações mais gerais que existem entre as coisas; ultrapassando em extensão todas as nossas outras noções, elas dominam todo o detalhe de nossavida intelectual. Portanto, se a cada momento do tempo os homens não se entendessem sobre estas idéias essenciais, se eles não tivessem uma concepção homogênea dotempo, do espaço, da causa, do número, etc., todo acordo entre as inteligências tomar-se-ia impossível e, por conseguinte, toda a vida comum. Igualmente, a sociedadenão pode abandonar as categorias ao livre arbítrio dos particulares sem abandonar a si mesma. Para poder viver, ela não só tem necessidade de um suficiente conformismomoral, mas existe também um mínimo de conformismo lógico, sem o qual ela não pode subsistir. Por esta razão, ela pesa com toda a sua autoridade sobre seus membros,a fim de prevenir as dissidências. Um espírito derroga ostensivamente estas normas de todo pensamento? Ela não o considera mais como um espírito humano no plenosentido da palavra e o trata como tal. É porque quando, mesmo em nosso foro interior, tentamos libertar-nos destas noções fundamentais, sentimos que não somos completamentelivres, que algo nos opõe resistência, em nós e fora de nós. Fora de nós, existe a opinião que nos julga; mas, além disto, como a sociedade está também representadaem nós, ela se opõe de dentro de nós mesmos, a estas veleidades revolucionárias; temos a impressão que não podemos abandonar-nos a isto sem que nosso pensamentocesse de ser um pensamento verdadeiramente humano. Tal parece ser a origem da autoridade muito especial que é inerente à razão e que faz com que aceitemos comconfiança suas sugestões. É a própria autoridade da sociedade,19 comunicando-se a certas maneiras de pensar que são como que as condições indispensáveis de todaação comum. A necessidade com a qual as categorias se impõem a nós não é portanto o efeito de simples hábitos dos quais poderíamos nos libertar com um pouco deesforço; ela não é, além do mais, uma necessidade física ou metafísica, porque as categorias mudam segundo os lugares e os tempos; ela é um tipo particular de necessidademoral que está para a vida intelectual assim como a obrigação moral está para a vontade. 20. 19 Observou-se freqüentemente que os distúrbios sociais tinham como efeito a multiplicação dos distúrbios mentais. É uma prova a mais de que a disciplina lógicaé um aspecto particular da disciplina social. A primeira se desmazela quando a segunda se enfraquece. (N. do A.) 20 Existe analogia entre esta necessidade lógica e a obrigação moral, mas não há identidade, pelo menos atualmente. Hoje, a sociedade trata os criminosos deoutra maneira que as pessoas das quais apenas a inteligência é anormal; é a prova de que a autoridade ligada às normas lógicas e a inerente às normas morais, malgradoimportantes similitudes, não são da .nesma natureza. São duas espécies diferentes de um mesmo gênero. Seria interessante investigar em que consiste e de onde provémesta diferença que, verossimilhantemente, não é primitiva, pois, durante muito tempo, a consciência pública mal distinguiu o alienado do delinqüente. Limitamo-nosa indicar a questão. Vê-se, por este exemplo, o número de problemas que levanta a análise destas noções que geralmente passam por ser elementares e simples e quesão, na realidade, de uma extrema complexidade. (N. do A.)

p.218Mas, se originalmente as categorias traduzem apenas estados sociais, não segue disto que elas só podem aplicar-se ao resto da natureza a título de metáforas? Seelas são feitas unicamente para exprimir coisas sociais, parece que não poderiam ser estendidas aos outros reinos senão por via de convenção. Assim, enquanto elasnos servem para pensar o mundo físico ou biológico, só poderiam ter o valor de símbolos artificiais, praticamente úteis talvez, mas sem relação com a realidade.Retornar-se-ia, portanto, por outra via, ao nominalismo e ao empirismo.Mas interpretar desta maneira uma teoria sociológica do conhecimento é esquecer que. se a sociedade é uma realidade específica, não é entretanto um império dentrode um império; ela faz parte da natureza, é sua mais alta manifestação. O reino social é um reino natural, que não difere dos outros senão por sua complexidade maior.Ora, é impossível que a natureza, no que ela tem de mais essencial, seja radicalmente diferente de si mesma aqui e lá. As relações fundamentais que existem entreas coisas — aquelas justamente que as categorias têm por função exprimir — não poderiam portanto ser essencialmente dessemelhantes segundo os reinos. Se, por razõesque teremos de investigar.21 elas desprendem-se de uma maneira mais aparente no mundo social, é impossível que elas não se reencontrem em outro lugar, mesmo quesob formas mais encobertas. A sociedade as torna mais manifestas mas delas não tem o privilégio. Eis como noções que foram elaboradas sobre o modelo das coisas sociaispodem auxiliar-nos a pensar coisas de uma outra natureza. Pelo menos, se, quando elas são assim desviadas de sua significação primeira, estas noções desempenham,em um sentido, o papel de símbolos, é o de símbolos bem fundados. Se, pelo único fato de serem conceitos construídos, neles entra o artifício, é um artifício quesegue de perto a natureza e que se esforça por se aproximar dela sempre mais.22 Do fato de que as idéias de tempo, de espaço, de gênero, de causa, de personalidadesão construídas com elementos sociais, não é preciso portanto concluir que elas são desprovidas de todo valor objetivo. Ao contrário, sua origem social faz antespresumir que elas não estão sem fundamento na natureza das coisas.23Renovada desta maneira, a teoria do conhecimento parece portanto chamada a reunir as vantagens contrárias das duas teorias rivais sem ter seus inconvenientes. Elaconserva todos os princípios essenciais do apriorismo; mas ao mesmo tempo, se inspira neste espírito de positividade ao qual o empirismo se esforçava em satisfazer.Ela deixa à razão seu poder específico, mas se dá conta dele e isto sem sair do mundo observável. Ela afirma como real a dualidade de nossa vida intelectual, masexplica-a por causas naturais. As categorias cessam de ser consideradas como fatos primeiros e inanalisáveis;21 A questão é tratada na conclusão do livro. (N. do A.)22 O racionalismo imanente a uma teoria sociológica do conhecimento é portanto intermediário entre o empirismo e o apriorismo clássico. Para o primeiro, as categoriassão construções puramente artificiais; para o segundo, elas são, ao contrário, dados naturais; para nós, elas são, em um sentido, obras de arte, mas de uma arteque imita a natureza com uma perfeição suscetível de crescer sem limite. (N. do A.)23 Por exemplo, o que está na base da categoria de tempo é o ritmo da vida social; mas, se existe um ritmo da vida coletiva, pode se estar seguro de que existe umoutro na vida individual, mais geralmente, naquela do universo. O primeiro é apenas mais marcado e aparente que os outros. Igualmente, veremos que a noção de gêneroformou-se sobre a de grupo humano. Mas. se os homens formam grupos naturais, pode-se presumir que existem, entre as coisas, grupos simultaneamente análogos e diferentes.São estes grupos naturais de coisas que formam os gêneros e as espécies.Se parece a numerosíssimos espíritos que não se pode atribuir uma origem social às categorias sem lhes retirar todo o valor especulativo, é porque a sociedade aindamuito freqüentemente passa por não ser uma coisa natural; de onde se conclui que as representações que a exprimem não exprimem nada da natureza. Mas a conclusãosó vale tanto quanto vale o princípio. (N. do A.)

p. 219e, entretanto, elas permanecem de uma complexidade da qual analises tão simplistas quanto aquelas com que se contentava o empinsmo não poderiam se dar conta Poiselas aparecem agora, não como noções muito simples que qualquer um pode apreender de suas observações pessoais e que a imaginação popular teria desgraçadamente complicado mas, ao contrario, como engenhosos instrumentos de pensamento, que os grupos humanos laboriosamente forjaram no decorrer dos séculos e onde acumularam o melhorde seu capital intelectual 24. Toda uma parte da historia da humanidade está aqui resumida. É chegar a dizer que, para compreendê-las e para julgá-las, é precisorecorrer a processos outros que os usados até o presente. Para saber de que são feitas estas concepções que nós mesmos não fizemos, não poderia ser suficiente queinterrogássemos nossa consciência. Precisamos olhar para fora de nós mesmos observar a historia, instituir toda uma ciência, ciência complexa, que não pode avançarsenão lentamente, por um trabalho coletivo, e a qual a presente obra traz a titulo de ensaio, algumas contribuições fragmentadas Sem fazer destas questões o objetodireto de nosso estudo, exploraremos todas as ocasiões que se oferecerão a nós de apreender em seu nascimento pelo menos algumas destas noções que sendo religiosaspor suas origens deviam entretanto permanecer na base da mentalidade humana24 Por isso é legitimo comparar as categorias a utensílios pois o utensílio por seu lado é capital material acumulado. Aliás entre as três noções de utensíliode categoria e de instituição existe um parentesco estreito (N do A)

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p. 221CONCLUSÃO

Em que medida os resultados obtidos podem ser generalizados

Anunciamos no início desta obra que a religião da qual empreenderíamos o estudo continha os elementos mais característicos da vida religiosa. Pode-se verificar agoraa exatidão desta proposição. Por mais simples que seja o sistema que estudamos, nós reencontramos nele todas as grandes idéias e todas as principais atitudes rituaisque estão na base das religiões mais avançadas: distinção das coisas em sagradas e profanas, noção de alma, de espírito, de personalidade mítica, de divindade nacionale mesmo internacional, culto negativo com as práticas ascéticas que são sua forma exasperada, ritos de oblação e de comunhão, ritos imitativos, ritos comemorativos,ritos de expiação. Aqui nada falta de essencial. Portanto, temos fundamentos para esperar que os resultados aos quais chegamos não são particulares apenas ao totemismo,mas podem auxiliar-nos a compreender o que é a religião em geral.Objetar-se-á que apenas uma religião, qualquer que possa ser sua área de extensão, constitui uma base estreita para tal indução. Não pretendemos desconhecer o queuma verificação extensa pode acrescentar em autoridade a uma teoria. Mas não é menos verdade que, quando uma lei foi provada por uma experiência bem feita, estaprova é universalmente válida. Se, mesmo num caso único, um sábio chegasse a surpreender o segredo da vida, fosse este caso aquele do ser protoplásmico mais simplesque se pudesse conceber, as verdades assim obtidas seriam aplicáveis a todos os seres vivos, mesmo aos mais elevados. Portanto, se nas humildes sociedades que acabaramde ser estudadas conseguimos realmente perceber alguns dos elementos dos quais são feitas as noções religiosas mais fundamentais, não existe razão para não estenderàs outras religiões os resultados mais gerais de nossa investigação. com efeito, não é concebível que, segundo as circunstâncias, um mesmo efeito possa ser devidoora a uma causa, ora a outra, a menos que, no fundo, as duas causas não passem de uma só. Uma mesma idéia não pode aqui exprimir uma realidade e ali uma realidadediferente, a menos que esta dualidade seja simplesmente aparente. Se, junto a certos povos, as idéias de sagrado, de alma, de deuses explicam-se sociologicamente,deve-se cientificamente presumir que, em princípio, a mesma explicação vale para todos os povos em que as mesmas idéias se encontram com os mesmos caracteres essenciais.Supondo portanto que não tenhamos nos enganado, pelo menos algumas de nossas conclusões podem legitimamente ser generalizadas. É chegado o momento de distingui-las.E uma indução desta natureza, tendo por base uma experiência bem definida, é menos temerária que tantas generalizações sumárias que, tentando atingir de uma só veza essência da religião sem apoiar-se na análise, de nenhuma religião em particular, arriscam se muito a perder-se no vazio.

p. 222 I

A religião apóia-se sobre uma experiência bem fundada mas não privilegiada. — Necessidade de uma ciência para atingir a realidade que funda esta experiência. — Qualé esta realidade: os agrupamentos humanos. — Sentido humano da religião. — Sobre a objeção que opõe sociedade ideal e sociedade real. Como se explicam, nesta teoria,o individualismo e o cosmopolitismo religioso.

Freqüentemente, os teóricos que tentaram exprimir a religião em termos racionais nela viram, antes de tudo, um sistema de idéias respondendo a um objeto determinado.Este objeto foi concebido de maneiras diferentes: natureza, infinito, incognoscível, ideal. etc.; mas estas diferenças pouco importam. Em todos os casos, eram asrepresentações, as crenças que.eram consideradas como o elemento essencial da religião. Quanto aos ritos, eles não apareciam, deste ponto de vista, senão como umatradução exterior, contingente e material destes estados internos que, únicos, passavam por ter um valor intrínseco. Esta concepção é de tal maneira difundida que,na maioria das vezes, os deba tes em que a religião é o tema giram em torno da questão de saber se ela pode ou não conciliar-se com a ciência, isto é, se ao ladodo conhecimento científico existe lugar para outra forma de pensamento que seria especificamente religioso.Mas os crentes, os homens que, vivendo da vida icligiosa, têm a sensação direta daquilo que a constitui, a esse modo de ver objetam que ele não corresponde à suaexperiência cotidiana. Eles sentem, com efeito, que a verdadeira função da religião não é fazer-nos pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representaçõesque devemos à ciência representações de uma outra origem e de um outro caráter, mas a de fazer nos agir, auxiliar nos a viver. O fiel que se comunicou com seu deusnão é apenas um homem que vê novas verdades que o descrente ignora; ele é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldadesda existência, seja para vence las. Ele está como que elevado acima das misérias humanas porque está ele vado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo domal, sob qualquer forma, aliás, que ele conceba o mal. O primeiro artigo de toda f é é a crença na salvação pela fé. Ora, não se vê como uma simples idéia poderiater esta eficácia. Uma idéia, com efeito, não é senão um elemento de nós mesmos; como poderia ela conferir nos poderes superio rés àqueles que temos por nossa natureza?Por mais que ela seja rica em virtudes afeti vás, não poderia nada acrescentar à nossa vitalidade natural; pois ela só pode liberar as forças emotivas que estãoem nós, não cria las nem aumentá-las. Do fato de que nós nos representamos um objeto como digno de ser amado e procurado não se segue que nos sintamos mais fortes;mas é preciso que deste objeto emanem energias superiores àquelas de que dispomos e. além do mais. que tenhamos algum meio de fazê-las penetrar em nós e de misturá-lasà nossa vida interior. Ora, para isto não é suficiente que nós as pensemos, mas é indispensável que nos coloquemos em sua esfera de ação, que nos voltemos para ladopelo qual podemos sentir melhor sua influência. Numa palavra, é preciso que ajamos e que repitamos os atos que são assim necessários, todas as vezes em que issoé útil para renovar seus efeitos. Deste ponto de vista, entrevê-se como este conjunto de atos regularmente repetidos, que constitui o culto, retoma toda a sua importância.De fato,

p. 223quem quer que realmente praticou uma religião bem sabe que é o culto que suscita estas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de entusiasmo, quesão, para o fiel. a prova experimental de suas crenças. O culto não é simplesmente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz para o exterior, ele é a coleçãodos meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente. Que ele consista em manobras materiais ou em operações mentais, é sempre ele que é eficaz.Todo o nosso estudo repousa sobre este postulado segundo o qual este sentimento unânime dos crentes de todos os tempos não pode ser puramente ilusório. Assim comoum recente apologista da fé,2 5 admitimos portanto que as crenças religiosas repousam sobre uma experiência específica da qual o valor demonstrativo, num sentido,não é infe rior àquele das experiências científicas, mesmo sendo diferente. Nós também pensamos "que uma árvore se conhece por seus frutos"2 6 e que sua fecundidadeé a melhor prova do que valem suas raízes. Mas do fato de que existe, se se quiser, uma "experiência religiosa" e do fato de que ela é fundada de alguma maneira— existe, aliás, uma experiência que não o seja? — não se segue em hipótese alguma que a realidade que a funda objetivamente seja conforme à idéia que dela fazemos crentes. O próprio fato de que a maneira pela qual ela foi concebida variou infinitamente segundo os tempos é suficiente ,para provar que nenhuma destas concepçõesa exprime adequadamente. Se um sábio coloca como um axioma que as sensações de calor, de luz, que experimentam os homens, correspondem a alguma causa objetiva, distoele não conclui que esta seja tal qual aparece aos sentidos. Igualmente, se as impressões que sentem os fiéis não são imaginárias. não constituem entretanto intuiçõesprivilegiadas; não existe nenhuma razão para pensar que elas nos instruem melhor sobre a natureza de seu objeto do que as sensações vulgares sobre a natureza doscorpos e suas propriedades. Para descobrir em que consiste este objeto, é portanto preciso fazê-lo submeter-se a uma elaboração análoga àquela que substituiu, àrepresentação sensível do mundo, uma representação científica e conceitual.Ora, é precisamente isto que tentamos fazer e vimos que esta realidade, que as mito logias representaram sob tantas formas diferentes mas que é a causa objetiva,universal e eterna destas sensações sui generis das quais é feita a experiência religiosa, é a socieda de. Mostramos que forças morais ela desenvolve e como despertaeste sentimento de apoio, de salvaguarda, de dependência tutelar que liga o fiel a seu culto. É ela que o eleva acima de si mesmo: é ela propriamente que o faz.Pois quem faz o homem é este conjunto de bens intelectuais que constitui a civilização e a civilização é obra da sociedade. E assim se explica o papel preponderantedo culto em todas as religiões, quaisquer que sejam. Pois a sociedade só pode exercer influência se ela for um ato e ela só pode ser um ato se os indivíduos quea compõem estiverem reunidos e agirem em comum. É pela ação comum que ela toma consciência de si e se põe; antes de tudo ela é uma cooperação ativa. Mesmo as

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idéiase os sentimentos coletivos apenas são possíveis graças a movimentos exteriores que os simbolizam, assim como o estabelecemos. Portanto, a ação domina a vida religiosaapenas porque a sociedade é sua fonte.A todas as razões que foram dadas para justificar esta concepção pode ser acrescentada uma última que se distinguiu em toda esta obra. Estabelecemos no percursoque as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, a ciência, têm origens religio-26 William James. The Varieties ofReligious Experience. (N. do A.)26 James, op. cit. (p. 19 da tradução francesa). (N. do A.)

p. 224sãs Vimos que acontece o mesmo com a magia e, em conseqüência, com as diversas técnicas que dela derivam. Por outro lado, sabe-se há muito tempo que, até um momentorelativamente avançado da evolução, as regras da moral e do direito não se diferenciavam das prescrições rituais. Portanto, pode-se dizer, resumindo, que quase todasas grandes instituições sociais nasceram da religião.2 7 Ora, para que os principais aspectos da vida coletiva tenham começado por aspectos variados da vida religiosa,é preciso evidentemente que a vida religiosa seja a forma eminente e como que uma expressão abreviada da vida coletiva inteira. Se a religião engendrou tudo o quehá de essencial na sociedade, é porque a idéia da sociedade é a alma da religião.As forças religiosas são pois forças humanas, forças morais. Sem dúvida, porque os sentimentos coletivos não podem tomar consciência de si mesmos senão fixando-sesobre objetos exteriores, tais forças não puderam se constituir sem tomar às coisas alguns dos seus caracteres: adquiriram assim um tipo de natureza física; a estetítulo elas vieram misturar-se à vida do mundo material e é por elas que se acreditou poder explicar o que nele se passa. Mas, quando são consideradas somente poreste lado e nesta atribuição, vê-se apenas o que elas têm de mais superficial. Na realidade é à consciência que são emprestados os elementos essenciais dos quaiselas são feitas. Ordinariamente parece que elas não teriam um caráter humano senão quando são pensadas sob forma humana;28 no entanto, mesmo as mais impessoais emais anônimas não passam de sentimentos objetivados.Só vendo as religiões sob este ângulo é possível perceber sua verdadeira significação. Prendendo-se às aparências, os ritos freqüentemente parecem o efeito de operaçõespuramente manuais: são unções, lavagens, refeições. Para consagrar uma coisa, se a coloca em contato com uma fonte de energia religiosa, assim como hoje, para esquentarou eletrizar um corpo, se o coloca em ligação com uma fonte de calor ou de eletricidade; os procedimentos empregados por uma e outra parte não são essencialmentediferentes. Assim compreendida, a técnica religiosa parece um tipo de mecânica mística. Mas estas manobras materiais são o invólucro exterior sob o qual se dissimulamoperações mentais. Finalmente, trata-se não de exercer um tipo de coação física sobre forças cegas e, aliás, imaginárias, mas de atingir consciências, de tonificá-las,discipliná-las. Tem-se afirmado algumas vezes que as religiões inferiores eram materialistas. A expressão é inexata. Todas as religiões, mesmo as mais grosseiras,são, em certo sentido, espiritualistas: pois as potências que elas colocam em jogo são antes de tudo espirituais e, por outro lado, é sobre a vida moral que elastêm por principal função agir. Compreende-se assim que o que foi feito em nome da religião não poderia ter sido feito em vão: pois foi necessariamente a sociedadedos homens, a humanidade que recolheu seus frutos.Mas, diz-se, qual é exatamente a sociedade da qual se tirou o substrato da vida religiosa? É a sociedade real, tal como ela existe e funciona sob nossos olhos, coma organização moral, jurídica que ela laboriosamente modelou no decorrer da história? Mas ela está repleta de taras e de imperfeições. Aqui, o mal rodeia o bem,a injustiça freqüentemente reina como soberana, a verdade é em cada instante obscurecida pelo erro. Como27 Apenas uma forma da atividade social ainda não foi expressamente ligada à religião: é a atividade econômica. Entretanto, as técnicas que derivam da magia têm,por isto mesmo, origens indiretamente religiosas. Além do mais, o valor econômico é um tipo de poder, de eficácia, e nós sabemos as origens religiosas da idéia depoder. A riqueza pode conferir maná; é portanto porque ela o tem. Através disto, entrevê-se que a idéia de valor econômico e a de valor religioso devem estar relacionadas.Mas a questão de saber qual é a natureza destas relações ainda não foi estudada. (N. do A.)28 É por esta razão que Prazer e mesmo Preuss colocam as forças religiosas impessoais fora da religião ou, pelo menos, no seu umbral, para ligá-las à magia. (N.do A.)

p. 225um ser tão grosseiramente constituído poderia inspirar os sentimentos de amor, o entu siasmo ardente, o espírito de abnegação que todas as religiões reclamam deseus fiéis? Estes seres perfeitos que são os deuses não podem ter emprestado suas feições a uma realidade tão medíocre, algumas vezes tão baixa.Trata-se, ao contrário, da sociedade perfeita, onde a justiça e a verdade seriam soberanas, de onde o mal sob todas as suas formas estaria extirpado? Não se contestaque ela esteja em estreita relação com o sentimento religioso; pois, diz-se, as religiões tendem a realizá-la. Apenas, esta sociedade não é um dado empírico, definidoe observável; ela é uma quimera, um sonho no qual os homens acalentaram suas misérias, mas que eles jamais viveram na realidade. Ela é uma simples idéia que vemtraduzir na consciência nossas aspirações mais ou menos obscuras para o bem, o belo, o ideal. Ora, estas aspirações têm em nós suas raízes, vêm das próprias profundezasde nosso ser; portanto, não existe nada fora de nós que possa explicá-las. Aliás, já são religiosas por si mesmas; portanto, a sociedade ideal supõe a religião,longe de poder explicá-la.29Mas, de início, é simplificar arbitrariamente as coisas ver a religião só por seu lado idealista: ela é realista à sua maneira. Não existe fealdade física ou moral,não existem vícios nem males que não tenham sido divinizados. Houve deuses do roubo e da astúcia, da luxúria e da guerra, da doença e da morte. O próprio cristianismo,por mais alta que seja a idéia que ele se faz da divindade, foi obrigado a dar ao espírito do mal um lugar em sua mitologia. Satã é uma peça essencial do sistemacristão; ora, se ele é um ser impuro, não é um ser profano. O antideus é um deus, inferior e subordinado, é verdade, mas dotado de poderes extensos; ele é mesmoobjeto de ritos, pelo menos negativos. Portanto, longe de a religião ignorar a sociedade real e dela fazer abstração, ela é sua imagem; reflete todos os seus aspectos,mesmo os mais vulgares e os mais repugnantes. Tudo se reencontra nela e se, freqüentemente, se vê o bem subjugar o mal, a vida a morte, as potências da luz as potênciasdas trevas, é porque não ocorre diferentemente na realidade. Pois, se a relação entre estas forças contrárias fosse inversa, a vida seria impossível; ora, de fato,ela se mantém e mesmo tende a se desenvolver.Mas se, através das mitologias e das teologias, se vê claramente transparecer a realidade, é bem verdade que ela se encontra aqui aumentada, transformada e idealizada.Sob este aspecto, as religiões mais primitivas não diferem das mais recentes e mais refinadas. Vimos, por exemplo, como os Arunta colocam na origem dos tempos umasociedade mítica, cuja organização reproduz exatamente a que existe ainda hoje; ela compreende os mesmos clãs e as mesmas fratrias, está submetida à mesma regulamentaçãomatrimonial, pratica os mesmos ritos. Mas os personagens que a compõem são seres ideais, dotados de poderes e virtudes aos quais não pode pretender o comum dos mortais.Sua natureza não é apenas mais alta, é diferente, porque pertence simultaneamente à animalidade e à humanidade. Aqui, as potências análogas sofrem uma metamorfoseanáloga: o próprio mal está como que sublimado e idealizado. A questão que se coloca é a de saber de onde vem esta idealização.Responde-se que o homem tem uma faculdade natural de idealizar, isto é, de substituir o mundo da realidade por um mundo diferente para onde ele se transporta pelopensamento. Mas isto é trocar os termos do problema, sem resolvê-lo, nem fazê-lo progredir. Esta idealização sistemática é uma característica essencial das religiões.Explicálas por um poder inato de idealizar é, portanto, substituir uma palavra por outra equivalente à primeira; é como dizer que o homem criou a religião porquetem uma natureza religiosa. Entretanto, o animal só conhece um único mundo: é o que ele percebe pela29 Boutroux, Science et Religwn, pp. 206-207. (N. do A.)

p. 226experiência tanto interna quanto externa. Apenas o homem tem a faculdade de conceber o ideal e de acrescentar ao real. De onde lhe advém este singular privilégio?Antes de fazer dele um fato primeiro, uma virtude misteriosa que se subtrai à ciência, é preciso estar seguro de que ele não depende de condições empiricamente determináveis.A explicação que propusemos da religião tem precisamente a vantagem de trazer uma resposta a tal questão. Pois o que define o sagrado é o fato de ser acrescentadoao real; ora, o ideal corresponde à mesma definição: não se pode portanto explicar um sem explicar o outro. Vimos, com efeito, que se a vida coletiva, quando atingeum certo grau de intensidade, desperta o pensamento religioso, é porque ela determina um estado de efervescência que modifica as condições da atividade psíquica.As energias vitais estão superexcitadas. as paixões mais vivas, as sensações mais fortes; existem mesmo algumas que não se produzem senão neste momento. O homem

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não se reconhece; sente-se como que transformado e, por conseguinte, transforma o meio que o rodeia. Para explicar-se as impressões muito particulares que experimenta,ele atribui as coisas, com as quais está mais diretamente em relação, propriedades que elas não têm, poderes excepcionais, virtudes que não possuem os objetos daexperiência vulgar. Numa palavra, ao mundo real em que se escoa sua vida profana ele superpõe um outro que, num sentido, existe apenas em seu pensamento, mas aoqual ele atribui, em relação ao primeiro, um tipo de dignidade mais elevada. Ele é portanto, sob seu duplo aspecto, um mundo ideal.Desta maneira, a formação de um ideal não constitui um fato irredutível que escape à ciência; depende de condições que a observação pode atingir, pois é um produtonatu ral da vida social. Para que a sociedade possa tomar consciência de si e manter, no grau de intensidade necessário, o sentimento que ela tem de si mesma, épreciso que se reúna e se concentre. Ora, esta concentração determina uma exaltação da vida moral que se traduz por um conjunto de concepções ideais onde se exprimea vida nova que assim dês pertou; elas correspondem a este afluxo de forças psíquicas que se acrescentam então àquelas das quais dispomos para as tarefas cotidianasda existência. Uma sociedade não pode criar se nem recriar-se sem. no mesmo instante, criar o ideal. Para ela, esta criação não é um tipo de ato sub rogatório, peloqual ela se completaria, uma vez formada; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente. Igualmente, quando se opõe a socie dade ideal à sociedade realcomo dois antagonistas que nos arrastariam em direções contrárias, realizam se e opõem se abstrações. A sociedade ideal não está fora da socie dade real, mas fazparte dela. Longe de estarmos divididos entre elas como entre dois pólos que se repelem, não podemos conservar uma sem conservar outra. Pois uma socie dade não ésimplesmente constituída pela massa dos indivíduos que a compõem, pelo movimentos que eles realizam, mas, antes de tudo. pela idéia que ela faz de si mesma. E, semdúvida, acontece que ela hesita sobre a maneira pela qual deve se conceber: sente-se puxada em sentidos divergentes. Mas estes conflitos, quando explodem, têm lugarnão entre o ideal e a realidade, mas entre ideais diferentes, entre o de ontem e o de hoje, entre aquele que tem para si a autoridade da tradição e aquele que apenasestá na iminência de vir a ser. Seguramente pode-se investigar de onde vem que os ideais evoluam; mas, para qualquer solução que se dê a este problema, ainda permaneceo fato de que tudo se passa no mundo ideal.Portanto, em vez de o ideal coletivo, expresso pela religião, ser devido a um não sei que poder inato do indivíduo, foi, muito pelo contrário, na escola da vidacoletiva que o indivíduo apiendeu a idealizar. Foi assimilando os ideais elaborados pela sociedade que ele se tornou capaz de conceber o ideal. Foi a sociedade que,encadeando-o em sua esfera de ação, fez com que ele adquirisse a necessidade de levantar-se acima do mundo da

p. 227experiência e ao mesmo tempo forneceu-lhe os meios de conceber outro. Pois este mundo novo foi ela quem o construiu, construindo-se a si mesma, porque é por eleexpressa. Assim, tanto no indivíduo quanto no grupo, a faculdade de idealizar não tem nada de misterioso. Não é um tipo de luxo do qual o homem poderia privar se,mas uma condição de sua existência. Ele não seria um ser social, isto é, não seria um homem, se não a tivesse adquirido. Sem dúvida, encarnando se nos indivíduos,os ideais coletivos tendem a individualizar-se. Cada um os compreende à sua maneira, os marca com o seu cunho; retiram-se elementos, acrescentam-se outros. O idealpessoal destaca-se assim do ideal social, na medida em que a personalidade individual se desenvolve e se torna uma fonte autônoma de ação. Mas, para compreenderesta aptidão, tão singular na aparência, de viver fora do real, é suficente relacioná-la às condições sociais das quais ela depende.Portanto, é preciso guardar-se de ver nesta teoria da religião um simples rejuvenescimento do materialismo histórico: isto seria equivocar-se completamente sobrenosso pensamento. Mostrando na religião uma coisa essencialmente social, não pretendemos de maneira alguma dizer que ela se limita a traduzir, em uma outra linguagem,as formas materiais da sociedade e suas necessidades imediatas e vitais. Sem dúvida, consideramos como uma evidência que a vida social depende de seu substrato etraz sua marca, assim como a vida mental do indivíduo depende do encéfalo e mesmo do organismo inteiro. ,Mas a consciência coletiva é outra coisa que um simplesepifenômeno de sua base morfológica. assim como a consciência individual é outra coisa que uma simples eflorescência do sistema nervoso. Para que a primeira apareça,é preciso que se produza uma síntese surgeneris das consciências particulares. Ora, esta síntese tem por efeito produzir todo um mundo de sentimentos, de idéias,de imagens que, uma vez nascidos, obedecem a leis que lhes são próprias. Atraem-se, repelem se, fundem-se, segmentam-se, sem que todas estas combinações sejam diretamentecomandadas e tornadas necessárias pelo estado da realidade subjacente. A vida assim estimulada goza mesmo de uma independência muito grande, para jogar se algumasvezes, em manifestações sem fim, sem nenhum tipo de utilidade, apenas pelo prazer de se afirmar. Mostramos precisamente que este é freqüente mente o caso da atividaderitual do pensamento mitológico.30Mas, se a religião é um produto de causas sociais, como explicar o culto individual e o caráter universalista de certas religiões? Se ela nasceu in foro externo,como pode passar para o foro interno do indivíduo e nele engajar-se mais e mais profundamente? Se ela é o trabalho de sociedades definidas e individualizadas, comopode se desvencilhar delas até ser concebida como a coisa comum da humanidade?Encontramos, no decorrer de nossa investigação, os primeiros germes da religião individual e do cosmopolitismo religioso, vimos como eles se formaram; possuímosassim os elementos mais gerais da resposta que pode ser dada a esta dupla questão.Mostramos, com efeito, como a força religiosa que anima o clã. encarnando-se nas consciências particulares, também se particulariza. Assim se formam seres sagradossecundários; cada indivíduo tem os seus, feitos à sua imagem, associados à sua vida íntima, solidários com seu destino: é a alma, o totem individual, o ancestralprotetor, etc. Estes seres são objeto de ritos que o fiel pode celebrar sozinho, fora de todo agrupa mento; portanto, é bem uma primeira forma de culto individual.Seguramente, ainda não passa de um culto muito rudimentar; mas é porque, como a personalidade individual está então muito pouco marcada, como se lhe atribuí muitopouco valor, o culto que a expri30 Cf. sobre esta mesma questão nosso artigo: "Representações individuais e representações coletivas", in Re\'ue de Métaphysique, maio de 1898. (N. do A.)

p. 228me ainda não podia ser muito desenvolvido. Mas, na medida em que os indivíduos diferenciam-se mais e que o valor da pessoa aumenta, o culto correspondente ocupaum lugar maior no conjunto da vida religiosa, ao mesmo tempo que se fecha mais hermeticamente ao exterior.Portanto, a existência de cultos individuais não implica nada que contradiga ou que embarace uma explicação sociológica da religião; pois as forças religiosas àsquais eles se dirigem são apenas formas individualizadas das forças coletivas. Assim, mesmo quando a religião parece pertencer inteiramente ao foro interno do indivíduo,é ainda na sociedade que se encontra fonte viva da qual ela se alimenta. Podemos agora apreciar quanto vale este individualismo radical que queria fazer da religiãouma coisa puramente individual: ele desconhece as condições fundamentais da vida religiosa. Se permaneceu até o presente no estágio de aspiração teórica que jamaisse realizou, é porque ela é irrealizável. Uma filosofia pode elaborar-se no silêncio da meditação interior, mas não uma fé. Pois uma fé é, antes de tudo, calor,vida, entusiasmo, exaltação de toda atividade mental, transporte do indivíduo acima de si mesmo. Ora, como poderia ele, sem sair de si, acrescer algo às energiasque possui? Como poderia ultrapassar-se apenas com suas forças? O único foco de calor junto ao qual podemos nos reaquecer moralmente é o formado pela sociedadede nossos semelhantes; as únicas forças morais pelas quais podemos sustentar e aumentar as nossas são aquelas que outro nos fornece. Admitamos mesmo que existamseres mais ou menos análogos àqueles que nos representam as mitologias. Para que eles possam ter sobre as almas a ação útil que é sua razão de ser, é preciso quese acredite neles. Ora, as crenças são ativas somente quando partilhadas. Pode-se conservá-las por algum tempo mediante um esforço completamente pessoal; mas nãoé assim que elas nascem, nem que são adquiridas: é mesmo duvidoso que possam conservar-se nestas condições. De fato, o homem que tem uma verdadeira fé experimentainvencivelmente a necessidade de difundi-la; para isto, ele sai de seu isolamento, aproxima-se dos outros, procura convencê-los e é o ardor das convicções por elesuscitadas que vem reconfortar a sua. A fé estiolar-se-ia rapidamente se permanecesse sozinha.com o universalismo religioso acontece o mesmo que com o individualismo. Longe de ser um atributo exclusivo de algumas grandes religiões, nós o encontramos, semdúvida, não na base, mas no vértice do sistema australiano. Bunjil, Daramulun, Baiame não são simples deuses tribais; cada um deles é reconhecido por uma pluralidadede tribos diferentes. Seu culto é, em certo sentido, internacional. Portanto, esta concepção está muito próxima daquela que se encontra nas teologias mais recentes.Por esta razão, alguns escritores acreditaram dever negar sua autenticidade, por mais incontestável que ela seja.Ora, nós pudemos mostrar como ela se formou. ""•>Tribos vizinhas e de civilização igual não podem estar sem relações constantes umas com as outras. Todos os tipos de circunstâncias lhes fornecem a ocasião paraisto: além do comércio, que então é rudimentar, existem os casamentos; pois os casamentos internacionais são muito freqüentes na Austrália. No decorrer destes encontros,os homens tomam naturalmente consciência do parentesco moral que os une. Eles têm a mesma organização social, a mesma divisão em fratrias, clãs, classes matrimoniais;praticam os mesmos ritos de iniciação ou ritos bastante similares. Empréstimos mútuos ou convenções terminam por reforçar estas semelhanças espontâneas. Os deusesaos quais estavam ligadas instituições tão manifestamente idênticas dificilmente podiam permane cer distintos nos espíritos. Tudo os aproximava e, em conseqüência,

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mesmo supondo que cada tribo tenha elaborado a noção de uma maneira independente, eles necessariamente

p. 229deviam tender a confundir-se uns com os outros. Aliás, é provável que primitivamente tenham sido concebidos em assembléias intertribais. Pois são, antes de tudo,deuses de iniciação e, nas cerimônias de iniciação, tribos diferentes estão geralmente representadas. Portanto, se se formaram entes sagrados que não se relacionama nenhuma sociedade geograficamente determinada, não é que eles tenham uma origem extra-social. Mas é que, acima destes agrupamentos geográficos, já existem outroscujos contornos são mais indecisos: não têm fronteiras fixas, mas compreendem todo tipo de tribos mais ou menos vizinhas e parentes. A vida social muito particularque daí se origina tende a difundir-se sobre uma área de extensão sem limites definidos. Naturalmente, os personagens mitológicos que a ela correspondem têm o mesmocaráter; sua esfera de influência não é delimitada; eles planam acima das tribos particulares e acima do espaço. São os grandes deuses internacionais. * :*. , *Ora, não há nada nesta situação que seja especial às sociedades australianas. Não existe DOVO nem Estado que não esteja engajado em uma outra sociedade, mais oumenos ilimitada, que compreende todos os povos, todos os Estados com os quais o primeiro está direta ou indiretamente em relação; não existe vida nacional que nãoesteja dominada por uma vida coletiva de natureza internacional. Na medida em que se avança na história, estes agrupamentos internacionais atingem maior importânciae extensão. Entrevê-se assim como, em certos casos, a tendência universalista pode se desenvolver ao ponto de afetar não apenas as idéias mais altas do sistema religiosomas os próprios princípios sobre os quais ele repousa.

p. 230 II

O que há de eterno na religião, — Sobre o conflito entre a religião e a ciência; ele versa unicamente sobre a função especulativa da religião. — O que esta funçãoparece destinada a vir a ser.

Portanto, há na religião algo de eterno que está destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu.Não pode haver sociedade que não sinta necessidade de conservar e de reforçar, em intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as idéias coletivas que fazemsua unidade e sua personalidade. Ora, esta refeição moral só pode ser obtida por meio de reuniões, assembléias, congregações onde os indivíduos, estreitamente ligadosuns aos outros, reafirmam em comum seus sentimentos comuns. Daí cerimônias que, por seu objeto, pelos resultados que produzem, pelos procedimentos que nelas sãoempregados, não diferem em natureza das cerimônias propriamente religiosas. Que diferença essencial existe entre uma assembléia de cristãos celebrando as principaisdatas da vida de Cristo, ou uma de judeus festejando seja a saída do Egito, seja a promulgação do decálogo, e uma reunião de cidadãos comemorando a instituiçãode uma nova constituição moral ou algum grande acontecimento da vida nacional?Se hoje nós temos talvez alguma dificuldade em representar em que poderão consis tir estas festas e cerimônias do futuro, é porque atravessamos uma fase de transiçãoe de mediocridade moral. As grandes coisas do passado, aquelas que entusiasmavam nossos pais, não excitam mais em nós o mesmo ardor, seja porque elas entraram nouso comum a ponto de para nós se tornarem inconscientes, seja porque elas não correspondem mais às nossas aspirações atuais; entretanto, nada se fez ainda que assubstitua. Não podemos mais nos apaixonar pelos princípios em nome dos quais o cristianismo recomendava aos senhores tratar humanamente seus escravos e, por outrolado, a idéia que ele se faz da igualdade e da fraternidade humanas hoje nos parece deixar muito lugar a injustas desigualdades. Sua piedade pelos humildes nos parecedemasiado platônica; nós desejaríamos uma que fosse mais eficaz; mas ainda não vemos claramente o que tal piedade deve ser, nem como ela poderá se realizar nos fatos.Numa palavra, os antigos deuses envelhecem ou morrem e outros ainda não nasceram. Foi isto que tornou vã a tentativa de Comte para organizar uma religião com asvelhas recordações históricas, artificial mente despertadas: é da própria vida e não de um passado morto que pode sair um culto vivo. Mas este estado de incertezae de agitação confusa não poderá durar eternamente. Um dia virá em que nossas sociedades conhecerão horas de efervescência criadora no decorrer das quais novos ideaissurgirão, novas fórmulas hão de aparecer e servir, durante algum tempo, de guia para a humanidade; e uma vez vividas estas horas, os homens experimentarão espontaneamentea necessidade de revivê-las de tempos em tempos pelo pensamento, isto é, de conservar sua recordação por meio de festas que regularmente renovam os frutos. Já vimoscomo a revolução instituiu todo um ciclo de festas para

p. 231manter em estado de perpétua juventude os princípios em que se inspirava. Se a instituição periclitou rapidamente, foi porque a fé revolucionária durou pouco tempo,foi porque as decepções e o desencorajamento se sucederam rapidamente ao primeiro entusiasmo. Mas, mesmo que a obra tenha abortado, ela nos permite imaginar o queteria podido ser em outras condições; e tudo leva a pensar que cedo ou tarde será repetida. Não existem evangelhos que sejam imortais e não há razão para acreditarque a humanidade futuramente seja incapaz de conceber novos. Quanto a saber o que serão os símbolos que virão a exprimir a nova fé, se se assemelharão ou não aosdo passado, se serão mais adequados à realidade que terão por objetivo traduzir, esta é uma questão que ultrapassa a faculdade humana de precisão e que. aliás, nãoconcerne o fundamento das coisas. Mas as festas, os ritos, em uma palavra, o culto, não constituem toda a religião. Esta não é apenas um sistema de práticas; é também um sistema de idéias, cujo objetivoé exprimir o mundo. Vimos que mesmo as mais simples têm sua cosmologia. Qualquer que seja a relação existente entre estes dois elementos da vida religiosa, elesnão deixam de ser muito diferentes. Um está voltado para a ação, que ele solicita e regula; o outro para o pensamento, que ele enriquece e organiza. Portanto, elesnão dependem das mês mas condições e. por conseguinte, pode-se perguntar se o segundo corresponde a necessi dades tão universais e tão permanentes quanto o primeiro.Quando se atribuem ao pensamento religioso características especificas, quando se acredita que ele tem por função exprimir, por métodos que lhe são próprios, todo umaspecto do real, que escapa tanto ao conhecimento vulgar como à ciência, então nos recusamos naturalmente a admitir que a religião possa ser despida de seu papelespeculativo. Mas a análise dos fatos não nos pareceu demonstrar esta especificidade. A religião que acabamos de estudar é uma daquelas onde os símbolos empregadossão o que há de mais desconcertante para a razão. Aqui tudo parece misterioso. Estes seres que participam simultaneamente dos reinos mais heterogêneos, que se multiplicamsem deixar de ser unos, que se fragmentam sem diminuir, parecem à primeira vista pertencer a um mundo inteiramente diferente daquele em que vivemos; chegou-se mesmoa dizer que o pensamento que o construiu ignorava totalmente as leis da lógica. Jamais, talvez, o con traste entre a razão e a fé foi mais marcante. Portanto, sehouve um momento na história em que sua heterogeneidade deveria ressaltar com evidência, foi exatamente aquele. Ora. contrariamente às aparências, constatamos queas realidades às quais se aplica agora a especulação religiosa são aquelas mesmas que servirão mais tarde de objeto à reflexão dos sábios: a natureza, o homem ea sociedade. O mistério que parece envolvê-las é completamente superficial e dissipa-se diante de uma observação mais aprofundada: é suficiente afastar o véu como qual a imaginação mitológica as cobriu para que elas apa reçam tais como são. Estas realidades, a religião esforça-se por traduzi-las em uma lin guagem inteligívelque não difere em natureza daquela que a ciência emprega; nos dois lados, trata-se de ligar as coisas umas às outras, de estabelecer entre elas relações inter nas,classificá-las e sistematizá-las. Vimos que mesmo as noções essenciais da lógica científica são de origem religiosa. Sem dúvida, a ciência, para utiliza las. submete-asa uma elaboração nova, purificando-as de todo tipo de elementos adventícios. De uma maneira geral ela apresenta, em todos os seus passos, um espírito crítico quea religião ignora; cerca se de precauções para "evitar a precipitação e a prevenção", para manter a distância as paixões, os preconceitos e todas as influênciassubjetivas. Mas estes aperfeiçoamentos metodológicos não bastam para diferencia la da religião. Uma e outra, sob este aspecto, perseguem o mesmo fim; o pensamentocientífico não é senão uma

p. 232forma mais perfeita do pensamento religioso. Portanto, parece natural que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro, na medida em que este se tornamais apto a dar conta da tarefa.com efeito, é possível que esta regressão tenha se produzido no decorrer da história. Saída da religião, a ciência tende a substituí-la em tudo o que concerne àsfunções cognitivas e intelectuais. Já o cristanismo consagrou definitivamente esta substituição na ordem dos fenômenos materiais. Vendo na matéria a coisa profanapor excelência, ele facilmente abandonou seu conhecimento a uma disciplina estranha, tradidit mundum hominum disputationi;3^ foi assim que as ciências da natureza

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puderam estabelecer-se e fazer reconhecer sua autoridade sem dificuldades muito grandes. Mas ele não podia despojar-se tão facilmente do mundo das almas; pois ésobre as almas que o deus dos cristãos aspira, antes de tudo, a reinar. Foi porque, durante muito tempo, a idéia de submeter a vida psíquica à ciência tinha o efeitode um tipo de profanação; mesmo hoje, ela ainda repugna a numerosos espíritos. Entretanto, a psicologia experimental e comparativa constituiu-se e é preciso contarcom ela hoje em dia. Mas o mundo da vida religiosa e moral ainda permanece interdito. A grande maioria dos homens continua a crer que ali existe uma ordem de coisasonde o espírito não pode penetrar senão por vias muito especiais. Daí as vivas resistências que se encontram quando se tenta tratar cientificamente os fenômenosreligiosos e morais. Mas, a despeito das oposições, estas tentativas se repetem e tal persistência permite mesmo prever que esta última barreira terminará por cedere que a ciência se estabelecerá como senhora também nesta região reservada.Eis aí em que consiste o conflito da religião com a ciência. Freqüentemente se fez dele uma idéia inexata. Diz-se que em princípio a ciência nega a religião. Masa religião existe, é um sistema de fatos dados; numa palavra, ela é uma realidade. Como poderia a ciência negar uma realidade? Além do mais, enquanto a religiãoé ação, enquanto é um meio de fazer viver os homens, a ciência não poderia tomar o seu lugar, pois, se ela exprime a vida, não a cria; ela pode procurar explicara fé mas, por isto mesmo, a supõe. Portanto, não há conflito senão sobre um ponto limitado. Das duas funções que preenchia primitivamente a religião, existe uma,apenas uma, que tende cada vez mais a lhe escapar: é a função especulativa. O que a ciência contesta à religião, não é o direito de existir, é o direito de dogmatizarsobre a natureza das coisas, é a espécie de competência especial que ela se atribuía para conhecer o homem e o mundo. De fato, ela não se conhece a si mesma. Nãosabe nem de que ela é feita nem a quais necessidades ela responde. Ela mesma é objeto de ciência; pouco importa que possa impor leis à ciência! E como, por outrolado, fora do real a que se aplica a reflexão científica não existe objeto próprio sobre o qual verse a especulação religiosa, é evidente que essa não poderia desempenharno futuro o mesmo papel que no passado.Entretanto, ela parece destinada a se transformar antes que a desaparecer.Dissemos que na religião há algo de eterno; é o culto, a fé. Mas os homens não poderiam celebrar cerimônias nas quais eles não veriam razão de ser, nem aceitar umafé que eles não compreenderiam de nenhuma maneira. Para estendê-la ou simplesmente para conservá-la, é preciso justificá-la, isto é, elaborar sua teoria. Sem dúvida,uma teoria deste gênero é obrigada a se apoiar sobre as diferentes ciências, a partir do momento em que elas existem; primeiramente, ciências sociais, porque a féreligiosa tem suas origens na sociedade; psicologia, porque a sociedade é uma síntese de consciências humanas; enfim, ciências da natureza, porque o homem e a sociedadesão função do universo e não •31 Entregou o mundo a discussão dos homens. (N. do E.)

p. 233podem ser abstraídos dele senão artificialmente. Mas, por mais importantes que possam ser estes empréstimos feitos às ciências constituídas, não poderiam ser suficientes;pois a fé é antes de tudo impulso para agir e a ciência, por mais longe que se a conduza, permanece sempre a distância da ação. A ciência é fragmentária, incompleta;só avança lentamente e jamais está concluída; a vida, entretanto, não pode esperar. Teorias destinadas a fazer viver, a fazer agir, são, portanto, obrigadas a passaradiante da ciência, e completá-la prematuramente. Elas são possíveis unicamente se as exigências da prática e as necessidades vitais, tais como nós as sentimos semconcebê-las distintamente, impelem o pensamento adiante, além daquilo que a ciência nos permite afirmar. Assim as religiões, mesmo as mais racionais e as mais laicizadas,não podem e não poderão jamais passar sem um tipo muito particular de especulação que, tendo os mesmos objetos que a ciência, não poderia entretanto ser propriamentecientífica: aqui as intuições obscuras da sensação e do sentimento freqüentemente substituem razões lógicas. Por um lado, esta especulação assemelha-se portantoàquela que encontramos nas religiões do passado; por um outro, distingue-se dela. Dando-se o direito de ultrapassar a ciência, ela deve começar por conhecê-la epor inspirar-se nela. Desde que a autoridade da ciência foi estabelecida, é preciso dela ter conta; pode-se ir mais longe do que ela sob a pressão da necessidade,mas é dela que é preciso partir. Não se pode afirmar nada que ela negue, nada negar que ela afirme, nada estabelecer que não se apoie, direta ou indiretamente, sobreprincípios tomados emprestado dela. Desde então, a lei não exerce mais a mesma hegemonia que antes sobre o sistema de representações que se pode continuar a chamarreligiosas. Em face dela ergue-se uma potência rival que, nascida dela, a submete doravante à sua crítica e ao seu controle. E tudo faz prever que este controlese tornará sempre mais extenso e mais eficaz, sem que seja possível atribuir limite à sua influência futura.

p. 234 III

Como a sociedade pode ser uma fonte do pensamento lógico, quer dizer, conceitual? Definição do conceito: não se confunde com a idéia geral; caracteriza se por suaimpessoalidade, sua comunicabilidade. — Ele tem uma origem coletiva. — A análise de seu conteúdo testemunha no mesmo sentido. — As representações coletivas comonoções-tipos das quais os indivíduos participam. — Sobre a objeção segundo a qual elas não seriam impessoais, senão sob condição de serem verdadeiras. — O pensamentoconceitual é contemporâneo à humanidade. . -- • <

Mas se as noções fundamentais da ciência são de origem religiosa, como a religião pode engendrá-las? Não se percebe à primeira vista que relações pode haver aquientre a lógica e a religião. Mesmo porque a realidade que exprime o pensamento religioso é a sociedade, a questão pode colocar-se nos termos seguintes, que fazemaparecer melhor ainda toda a dificuldade: o que pode fazer da vida social uma fonte tão importante da vida lógica? Nada, ao que parece, a predestinava a este papel;pois não foi evidentemente para satisfazer necessidades especulativas que os homens se associaram.Talvez se terá por temerário abordar aqui um problema de tal complexidade. Para poder tratá-lo como convém, seria preciso que as condições sociológicas do conhecimentofossem mais bem conhecidas; nós apenas começamos a entrever algumas delas. Entretanto, a questão é tão grave e está tão diretamente implicada por tudo o que precede,que nós devemos fazer esforço para não deixá-la sem resposta. Talvez, aliás, não seja impossível colocar desde agora alguns princípios gerais que podem, pelo menos,iluminar a solução.A matéria do pensamento lógico está feita de conceitos. Procurar como a sociedade pode ter desempenhado um papel da gênese do pensamento lógico significa, portanto,perguntar se como ela pode ter tomado parte na formação dos conceitos.Se, como acontece ordinariamente, não se vê no conceito senão uma idéia geral, o problema parece insolúvel. O indivíduo, com efeito, pode, por seus próprios meios,comparar suas percepções ou suas imagens, separar o que elas têm de comum, numa palavra, generalizar. Portanto, seria difícil perceber por que a generalização seriapossível somente na e pela sociedade. Mas, primeiramente, é inadmissível que o pensamento lógico se caracterize exclusivamente pela maior extensão das representaçõesque o constituem. Se as idéias particulares não têm nada de lógico, por que seria diferente em relação às idéias gerais? O geral não existe senão no particular,ele é o particular simplificado e empobrecido. Portanto, o primeiro não poderia ter virtudes e privilégios que o segundo não tem. Inversamente, se o pensamento conceitualpode aplicar-se ao gênero, à espécie, à variedade. por mais restrito que ele possa ser, por que ele não poderia se estender ao indivíduo, isto é, ao limite parao qual tende a representação na medida em que sua extensão dimi-

p. 235nui? De fato, existem vários conceitos que têm indivíduos por objetos. Em toda espécie de religião, os deuses são individualidades distintas umas das outras; entretanto,eles são concebidos, não percebidos. Cada povo representa-se de uma certa maneira, variável segundo os tempos, seus heróis históricos ou legendários; estas representaçõessão conceituais. Enfim, cada um de nós elabora uma certa noção dos indivíduos com os quais está em relação, de seu caráter, de sua fisionomia, dos traços distintivosde seu temperamento físico e moral: estas noções são verdadeiros conceitos. Sem dúvida, são. em geral, formados bem grosseiramente; mas, mesmo entre os conceitoscientíficos, existem muitos que sejam perfeitamente adequados ao seu objeto? Sob este aspecto existem, entre uns e outros, apenas diferenças de graus.Portanto, é preciso definir o conceito por outras características. Ele se opõe às representações sensíveis de toda ordem — sensações, percepções ou imagens — pelaspropriedades seguintes:As representações sensíveis estão em perpétuo fluxo; impelem-se umas às outras como as ondas de um rio e, mesmo durante o tempo que elas duram, não permanecem semelhantes

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a si mesmas. Cada uma delas é função do instante preciso em que surgiu. Não estamos jamais seguros de reencontrar uma percepção tal como a provamos na pri meiravez; pois, se a coisa percebida não mudou, nós não somos mais os mesmos• homens. O conceito, ao contrário, está como que fora do tempo e do devir; está imune a toda agitação; dir se-ia que está situado numa região diferente do espírito,mais serena e mais calma. Ele não se move por si mesmo, por uma evolução interna e espontânea; ao contrário, resiste à mudança. É uma maneira de pensar que, em cadamomento do tempo, está fixada e cristalizada.32 Na medida em que ele é o que deve ser, é imutável. Se muda, não é que esteja em sua natureza mudar; é que nós descobrimosnele alguma imperfeição; é que tem necessidade de ser retificado. O sistema de conceitos com o qual pensamos na vida corrente é aquele que exprime o vocabuláriode nossa língua materna, pois cada palavra traduz um conceito. Ora, a língua é fixa; ela não muda senão muito lentamente e, por conseguinte, acontece o mesmo coma organização conceitual que ela exprime. O sábio encontra-se na mesma situação frente à terminologia especial que emprega a ciência à qual ele se consagra e, porconseguinte, frente ao sistema especial de conceitos ao qual esta terminologia corresponde. Sem dúvida, ele pode inovar, mas suas inovações são sempre um tipo deviolências feitas às maneiras de pensar instituídas.Ao mesmo tempo que é relativamente imutável, o conceito é, senão universal, pelo menos universalizável. Um conceito não é meu conceito; ele me é comum com outroshomens ou, em todo caso, ele pode ser-lhes comunicado. É-me impossível fazer passar uma sensação de minha consciência para a consciência de outro: ela pertence estritamenteao meu organismo e à minha personalidade, deles não podendo ser destacada. Tudo o que posso fazer é convidar o outro a pôr-se em face do mesmo objeto que eu e aabrir-se à sua ação. Ao contrário, a conversação, o comércio intelectual entre os homens consiste numa troca de conceitos. O conceito e uma representação essencialmenteimpessoal: é por ele que as inteligências humanas se comunicam.3332 Wiliiam James. The Principies ofPsychology, I, p. 464. (N. do A.)33 Esta universalidade do conceito não deve ser confundida com sua generalidade: são coisas muito diferentes. O que chamamos universalidade é a propriedade quetem o conceito de ser comunicado a uma plurali dude de espíritos e mesmo, em princípio, a todos os espíritos; ora, esta comunicabilidade é completamente independentede seu grau de extensão. Um conceito que não se aplique senão a um único objeto, cuja extensão, por conseguinte, é mínima, pode ser universal neste sentido em queele é o mesmo para todos os entendimentos: tal o conceito de uma divindade. (N. do A.)

p. 236A natureza do conceito, assim definido, traduz suas origens. Se ele é comum a todos, é porque é obra da comunidade. Porque ele não traz a marca de nenhuma inteligênciaparticular, pois é elaborado por uma inteligência única, onde todas as outras se encontram e de alguma maneira vêm alimentar-se. Se ele tem mais estabilidade queas sensações ou as imagens, é porque as representações coletivas são mais estáveis que as individuais; pois, enquanto o indivíduo é sensível mesmo a fracas mudançasque se produzem em seu meio interno ou externo, apenas acontecimentos de uma suficiente gravidade podem conseguir afetar o acervo mental da sociedade. Todas as vezesque estamos em presença de um tipo3 4 de pensamento ou de ação que se impõe uniformemente às vontades ou às inteligências particulares, esta pressão exercida sobreo indivíduo revela a intervenção da coletividade. Por outro lado, dizíamos precedentemente que os conceitos com os quais pensamos correntemente estão consignadosno vocabulário. Ora, não é duvidoso que a linguagem e, por conseguinte, o sistema de conceitos que ela exprime seja o produto de uma elaboração coletiva. O que elaexprime é a maneira pela qual a sociedade em seu conjunto se representa os objetos da experiência. As noções que correspondem aos diversos elementos da língua sãopois representações coletivas.O próprio conteúdo destas noções testemunha neste sentido. Não existe quase nenhuma palavra, com efeito, mesmo entre aquelas que empregamos usualmente, cuja acepçãonão ultrapasse mais ou menos largamente os limites de nossa experiência pessoal. Freqüentemente um termo exprime coisas que nós jamais percebemos, experiências quejamais fizemos ou das quais jamais fomos testemunhas. Mesmo quando conhecemos alguns dos objetos aos quais ele se relaciona, não é senão a título de exemplos particularesque vêm ilustrar a idéia, mas que, apenas por eles, não seriam jamais suficientes para constituí la. Encontra-se portanto condensada na palavra toda uma ciênciacom a qual eu não colaborei, uma ciência mais do que individual; e ela me ultrapassa a tal ponto que não posso nem mesmo apropriar-me completamente de todos osseus resultados. Quem de nós conhece todas as palavras da língua que fala e a significação integral de cada uma delas? ;; *Esta observação permite determinar em que sentido pretendemos dizer que os conceitos são representações coletivas. Se eles são comuns a um grupo social inteiro,não é que eles representem uma simples média entre as representações individuais correspondentes; pois então eles seriam mais pobres que estas últimas em conteúdointelectual, enquanto que em realidade eles são prenhes de um saber que ultrapassa o de um indivíduo médio. Eles não são abstratos que só teriam realidade nas consciênciasparticulares, mas representações tão concretas quanto aquelas que o indivíduo pode fazer-se de seu meio pessoal: correspondem à maneira pela qual este ser especialque é a sociedade pensa as coisas de sua experiência própria. Se de fato os conceitos são o mais freqüentemente idéias gerais, se eles exprimem antes categoriase classes do que objetos particulares, é porque os caracteres variáveis e singulares dos seres só raramente interessam à sociedade; em razão de sua própria extensão,ela quase não pode ser afetada senão por suas propriedades gerais e permanentes. É portanto para este lado que se dirige sua atenção: está em sua natureza ver omais freqüentemente as coisas por grandes massas e sob3 4 Objetar-se-á que freqüentemente, no indivíduo, apenas pelo efeito da repetição, maneiras de agir ou de pensar fixam-se e cristalizam-se sob forma de hábitosque resistem à mudança. Mas o hábito não é senão uma tendência a repetir automaticamente um ato ou uma idéia, todas as vezes em que as mesmas circunstâncias os despertam;ele não implica que a idéia ou o ato estejam constituídos como tipos exemplares, propostos ou impostos ao espírito ou à vontade. É apenas quando um tipo deste gêneroestá preestabelecido, isto é, quando uma regra, uma norma está instituída, que a ação social pode e deve ser presumida. (N. do A.)

p. 237o aspecto que elas têm mais geralmente. Mas disso não existe necessidade; e, em todo caso, mesmo quando estas representações têm o caráter genérico que lhes é omais habitual, elas são a obra da sociedade e estão ricas de sua experiência.É isso, aliás, que faz o valor que o pensamento conceitual tem para nós. Se os conceitos fossem apenas idéias gerais, eles não enriqueceriam muito o conhecimento;pois o geral, como já dissemos, não contém nada mais que o particular. Mas se eles são, antes de tudo, representações coletivas, acrescentam ao que pode nos ensinarnossa experiência pessoal tudo o que a coletividade acumulou de sabedoria e de ciência no decorrer dos séculos. Pensar por conceitos não é simplesmente ver o realpelo lado mais geral; é projetar sobre a sensação uma luz que a ilumina, a penetra e a transforma. Conceber uma coisa é, ao mesmo tempo, apreender seus elementosessenciais, situá-la em um conjunto; pois cada civilização tem seu sistema organizado de conceitos que a caracteriza. Face a este sistema de noções, o espírito individualestá na mesma situação que o noús de Platão face ao mundo das Idéias. Ele se esforça por assimilá-las, pois tem necessidade delas para poder comerciar com seussemelhantes; mas a assimilação é sempre imperfeita. Cada um de nós as vê à sua maneira. Existem algumas que nos escapam completamente, que permanecem fora do nossocírculo de visão; outras, das quais não percebemos senão certos aspectos. Existem mesmo muitas que desnaturamos ao pensá-las; pois, como elas ^são coletivas pornatureza, não podem se individualizar sem ser retocadas, modificadas e, por conseguinte, falsificadas. Daí decorre que tenhamos tanta dificuldade em nos entendere que até, freqüentemente, nós mintamos, sem o querer, uns aos outros: é que todos empregamos as mesmas palavras sem lhes dar o mesmo sentido.Agora pode-se entrever qual é a parte da sociedade na gênese do pensamento lógico. Este não é possível senão a partir do momento em que, acima das representaçõesfugidias que ele deve à experiência sensível, o homem chegou a conceber todo um mundo de ideais estáveis, lugar-comum das inteligências. com efeito, pensar logicamenteé sempre, em alguma medida, pensar de maneira impessoal; é também pensar sub specie aeternitatis.3 B Impessoalidade, estabilidade, eis as duas características daverdade. Ora, a vida lógica supõe evidentemente que o homem sabe, pelo menos confusamente, que existe uma verdade distinta das aparências sensíveis. Mas como podeele chegar a esta concepção? Raciocina-se freqüentemente como se ela devesse apresentar-se espontaneamente desde que o homem abriu os olhos para o mundo. Todavia,não há nada na experiência imediata que possa sugeri-la, tudo chega mesmo a contradizê-la. Igualmente, a criança e o animal nem mesmo a presumem. A história mostra,aliás, que ela precisou de séculos para se depreender e se constituir. Em nosso mundo ocidental, foi com os grandes pensadores gregos que ela tomou, pela primeiravez, uma clara consciência de si mesma e das conseqüências que ela implica. E quando a descoberta se fez, este fato foi um encantamento que Platão traduziu em

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linguagemmagnífica. Mas, se foi somente nesta época que a idéia se exprimiu em fórmulas filosóficas, ela necessariamente preexistia no estado de sentimento obscuro. Estesentimento os filósofos procuraram elucidar; não o criaram. Para que eles pudessem refletir sobre ele e analisá-lo, era preciso que ele lhes fosse dado e tratava-sede saber de onde vinha, isto é, em que experiência estava fundado. Era na experiência coletiva. Foi sob a forma do pensamento coletivo que o pensamento impessoalse revelou pela primeira vez à humanidade; c não se vê por que outra via se poderia fazer tal revelação. Apenas porque a sociedade existe, também existe, fora dassensações e das imagens individuais, todo um sistema de representações coletivas que gozam de35 Sob a forma de eternidade. (N. do E.)

p. 238propriedades maravilhosas. Por elas os homens se compreendem, as inteligências penetram umas nas outras. Elas têm em si um tipo de força, de ascendência moral emvirtude da qual se impõem aos espíritos particulares. Desde então o indivíduo se dá conta, pelo menos obscuramente, que acima de suas representações privadas existeum mundo de noções-tipos, segundo as quais ele é obrigado a regular suas idéias; entrevê todo um reino intelectual de que ele participa, mas que o ultrapassa. Éuma primeira intuição do reino da verdade. Sem dúvida, a partir do momento em que ele teve assim consciência desta mais alta intelectualidade, aplicou-se em pesquisarsua natureza; ele procurou a partir de onde estas representações eminentes mantinham suas prerrogativas e, na medida em que ele acreditou ter descoberto suas causas,empreendeu colocar ele mesmo estas causas em ação para delas tirar, por suas próprias forças, os efeitos que elas implicam: é dizer que ele se deu a si mesmo o direitode fazer conceitos. Assim, a faculdade de con ceber se individualizou. Mas, para compreender bem as origens da função, é preciso relaciona la às condições sociaisde que depende.Objetar-se-á que não apresentamos o conceito senão por um de seus aspectos, que ele não tem unicamente por missão assegurar o acordo dos espíritos uns com os outrosmas também, e mais ainda, seu acordo com a natureza das coisas. Parece que ele tem toda a sua razão de ser unicamente sob condição de ser verdadeiro, isto é, objetivo,e que sua impessoalidade só pode ser conseqüência de sua objetividade. É pelas coisas pensadas tão adequadamente quanto possível que os espíritos deveriam se comunicar.Não negamos que a evolução conceitual em parte se faça neste sentido. O conceito que, primitivamente, é tido por verdadeiro porque é coletivo, tende a não vir aser coletivo senão sob condição de ser tido por verdadeiro: nós lhe pedimos seus títulos antes de atribuir-lhe nosso crédito. Mas, primeiramente, não se pode perderde vista que ainda hoje a grande maioria dos conceitos dos quais nós nos servimos não são metodicamente constituídos; nós os possuímos na linguagem, isto é, na experiênciacomum, sem que eles tenham sido submetidos a nenhuma crítica prévia. Os conceitos cientificamente elaborados e criticados estão sempre em minoria muito pequena.Além do mais, entre estes e os que têm sua autoridade pelo único fato de serem coletivos, existem apenas diferenças de graus. Uma representação coletiva, porquecoletiva já apresenta garantias de objetividade: pois não é sem razão que ela pode se generalizar e se manter com uma suficiente persistência. Se ela estivesseem desacordo com a natureza das coisas, não teria podido adquirir um império extenso e prolongado sobre os espíritos. No fundo, o que forma a confiança que inspiramos conceitos científicos é que eles são suscetíveis de ser metodicamente controlados. Ora, uma representação coletiva está necessariamente submetida a um controleindefinidamente repetido: os homens que a ela aderem verificam-na por sua experiência própria. Portanto, ela não poderia ser completamente inadequada ao seu objeto.Pode, sem dúvida, exprimi-lo com o auxílio de símbolos imperfeitos; mas os próprios símbolos científicos jamais deixam de ser apenas símbolos aproximados. É precisamenteeste princípio que está na base do método que seguimos no estudo dos fenômenos religiosos: nós vemos como um axioma que as crenças religiosas, por mais estranhasque algumas vezes possam parecer, têm sua verdade que é preciso descobrir.3 6Inversamente, é preciso que os conceitos, mesmo quando são construídos segundo todas as regras da ciência, tirem autoridade unicamente de seu valor objetivo. Nãoé suficiente que eles sejam verdadeiros para serem acreditados. Se não estão em harmonia com36 Vê se o quanto falta para que uma representação careça de valor objetivo apenas pelo fato de ter uma origem social. (N. do A.)

p. 239as outras crenças, as outras opiniões, em uma palavra, com o conjunto das representações coletivas, eles serão negados; os espíritos lhes estarão fechados; elesserão, por conseguinte, como se não existissem. Se, hoje. é suficiente em geral que eles tragam o selo da ciência para encontrar um tipo de crédito privilegiado,é porque nós temos fé na ciência. Mas esta fé difere essencialmente da fé religiosa. O valor que nós atribuímos à ciência depende, cm suma, da idéia que fazemoscoletivamente de sua natureza e de seu papel na vida; é dizer que ela exprime um estado de opinião. com efeito, tudo na vida social, inclusive a própria ciência,repousa sobre a opinião. Sem dúvida, pode-se tomar a opinião como objeto de estudo e dela fazer a ciência; é nisto que consiste principal mente a sociologia. Masa ciência da opinião não faz a opinião; ela não pode senão ilumina la. torna la mais consciente de si. Através disto, é verdade, a ciência pode levá-la a mudar;mas a ciência continua a depender da opinião no momento em que ela parece legisla la; pois, como nós o mostramos, é da opinião que ela tem a força necessária paraagir sobre a opinião.Dizer que os conceitos exprimem a maneira pela qual a sociedade se representa as coisas é dizer também que o pensamento conceitual é contemporâneo à humanidade.Recusamo nos. portanto, a ver aqui o produto de uma cultura mais ou menos tardia. Um homem que não pensasse por conceitos não seria homem, pois não seria um sersocial. Reduzido apenas às percepções individuais, ele seria indistinto do animal. Se a tese con traria pôde ser sustentada, foi porque se definiu o conceito porcaracteres que não lhe são essenciais. Foi identificado com a idéia geral 3 7 e com uma idéia geral perfeitamente delimitada e circunscrita.38 Nestas condições,pode parecer que as sociedades inferiores não conheciam o conceito propriamente dito: pois elas têm apenas processos rudimen tares de generalização e as noções deque se servem geralmente não são definidas. Mas a maior parte de nossos conceitos atuais tem a mesma indeterminação; nós nos esforça mos um pouco por defini lossomente nas discussões e quando fazemos trabalho de sá bios. Por outro lado, vimos que conceber não é generalizar. Pensar conceitualmente não k simplesmente isolare agrupar em conjunto os caracteres comuns a um certo número de objetos; é subsumir o variável sob o permanente, o individual sob o social. E porque o pensamentológico começa com o conceito, segue se que ele existiu sempre; não houve período histórico durante o qual os homens teriam vivido, de uma maneira crônica, na confusãoe na contradição. Certamente, não se poderia insistir muito sobre os caracteres diferenciais que apresenta a lógica nos diversos momentos da história; ela evoluicomo a própria sociedade. Mas, por mais reais que sejam as diferenças, elas não devem levar a desconhecer as similitudes que não são menos essenciais.5' As Funções Mentais nas Sociedades Infenoi es, pp. 131 138. (N do A )38 Ibid., p. 446. (N. do A.)

p. 240 IV

Como as categorias exprimem coisas sociais. — A categoria por excelência é o conceito de totalidade, que não pode ser sugerido senão pela sociedade. — Por que asrelações que exprimem as categorias não pó diam tornar se conscientes senão na sociedade. — A sociedade não é um ser alógico. — Como as categorias tendem a se destacardos agrupamentos geográficos determinados. Unidade da ciência, por um lado, da moral e da religião, por outro. — Como a sociedade se dá conta desta unidade. — Explicaçãodo papel atribuído à sociedade: sua potência criadora. — Repercussões da sociologia sobre a ciência do homem.

Podemos agora abordar uma última questão apresentada já em nossa introdução e que permaneceu como que subentendida em toda a seqüência desta obra. Vimos que pelomenos algumas das categorias são coisas sociais. Trata-se de saber de onde lhes vem esta característica.Sem dúvida, porque elas próprias são conceitos, compreende-se sem esforço que sejam obra da coletividade. Não existem conceitos que apresentem no mesmo grau os signosaos quais se reconhece uma representação coletiva. com efeito, sua estabilidade e sua impessoalidade são tais que elas freqüentemente passaram por ser absolutamenteuniversais e imutáveis. Aliás, como elas exprimem as condições fundamentais do entendimento entre os espíritos, parece evidente que não puderam ser elaboradas senãopela sociedade.

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Mas no que as concerne o problema é mais complexo; pois elas são sociais num outro sentido e como que à segunda potência. Não apenas elas vêm da sociedade, mas aspróprias coisas que elas exprimem são sociais. Não apenas foi a sociedade que as instituiu, como também são aspectos diferentes do ser social que lhes servem deconteúdo; a categoria de gênero começou por ser indistinta do conceito de grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da categoria de tempo; o espaçoocupado pela sociedade forneceu a matéria da categoria de espaço; a força coletiva foi o protótipo do conceito de força eficaz, elemento essencial da categoria decausalidade. Todavia, as categorias não são feitas para aplicar-se unicamente ao reino social; estendem-se à realidade inteira. Como, portanto, foram tomados dasociedade os modelos sobre os quais elas foram construídas?É porque são conceitos eminentes que desempenham no conhecimento um papel preponderante. com efeito, as categorias têm por função dominar e envolver todos os outrosconceitos: são os quadros permanentes da vida mental. Ora, para que elas possam abraçar um tal objeto, é preciso que se tenham formado sobre uma realidade de igualamplidão.Sem dúvida, as relações que elas exprimem existem, de uma maneira implícita, nas consciências individuais. O indivíduo vive no tempo e tem, como o dissemos, um certo

p. 241sentido da orientação temporal, hlc esta situado num ponto determinado do espaço e pode-se sustentar, com boas razões, que todas as suas sensações têm algo de espacial.39Ele tem o sentimento das semelhanças; nele, as representações similares chamam-se, relacionam-se e a representação nova, formada pelo seu relacionamento, já temalgum caráter genérico. Igualmente, nós temos a sensação de uma certa regularidade na ordem de sucessão dos fenômenos; disto o próprio animal é capaz. Apenas, todasestas relações são pessoais, do indivíduo que nelas está engajado, e, por conseguinte, a noção que ele disto adquire não pode, em nenhum caso, estender-se além deseu estreito horizonte. As imagens genéricas que se formam em minha consciência pela fusão de imagens similares não representam senão os objetos que percebi diretamente;aí não há nada que possa me dar a idéia de uma classe, isto é, de um quadro capaz de compreender o grupo total de todos os objetos possíveis que satisfazem à mesmacondição. Seria preciso ainda ter previamente a idéia de grupo, que apenas o espetáculo de nossa vida interior não seria suficiente para despertar em nós. Mas sobretudonão há experiência individual, por mais extensa e prolongada que ela seja, que possa nos fazer presumir a existência de um gênero total que envolveria a universalidadedos seres e do qual os outros gêneros seriam apenas espécies coordenadas entre elas ou subordinadas umas às outras. Esta noção do todo, que está na base das classificaçõesque mencionamos, não nos pode vir do indivíduo, que não passa de uma parte em relação ao todo e que atinge unicamente uma fração ínfima da realidade. E, entretanto,talvez não exista categoria mais essencial; pois, como o papel das categorias é o de envolver todos os outros conceitos, a categoria por excelência parece deverser o próprio conceito de totalidade. Os teóricos do conhecimento o postulam ordinariamente como se ele não apresentasse problemas, sendo que ele ultrapassa infinitamenteo conteúdo de cada consciência individual tomada à parte.Pelas mesmas razões, o espaço que conheço pelos meus sentidos, do qual eu sou o centro e onde tudo está disposto em relação a mim, não poderia ser o espaço total,que contém todas as extensões particulares e onde, além do mais, elas estão coordenadas em relação a pontos de referência impessoais, comuns a todos os indivíduos.Igualmente, a duração concreta que sinto escoar em mim e comigo não poderia dar-me a idéia do tempo total: a primeira não exprime senão o ritmo de minha vida individual,o segundo deve corresponder ao ritmo de uma vida que não é a de nenhum indivíduo em particular, mas da qual todos participam. 40 Da mesma forma, enfim, as regularidadesque posso perceber na maneira pela qual as representações sucedem-se podem ter valor para mim; elas explicam como, quando me é dado o antecedente de um par de fenômenosdos quais experimentei a constância, tendo a esperar o conseqüente. Mas este estado de espera pessoal não poderia ser confundido com a concepção de uma ordem universalde sucessão que se impõe à totalidade dos espíritos e dos acontecimentos.Porque o mundo que exprime o sistema total dos conceitos é aquele que a sociedade se representa, apenas a sociedade pode fornecer-nos as noções mais gerais, segundoas quais deve ele ser representado. Apenas um sujeito que envolve todos os sujeitos particulares é capaz de abraçar um tal objeto. Porque o universo não existe senãoenquanto é pensado e porque ele não é pensado totalmente senão pela sociedade, o universo toma lugar nela; ele torna-se um elemento de sua vida interior e assima sociedade é ela mesma39 William James, Principies ofPsychology, I. p. 134. (N. do A.)40 Fala se freqüentemente do espaço e ao tempo como se eles não fossem senão a extensão e a duração con cretas, tais como pode senti-las a consciência individual,mas empobrecidos pela abstração. Na realidade, eles são representações de um gênero completamente diferente, construídas com outros elementos, segundo urr planomuito diferente e em vista de fins igualmente diferentes. (N. do A.)

p. 242o gênero total fora do qual nada existe. O conceito de totalidade não é senão a forma abstrata do conceito de sociedade: ela é o todo que compreende todas as coisas,a classe suprema que encerra todas as classes. Tal é o princípio profundo sobre o qual repousam todas estas classificações primitivas, onde os seres de todos osreinos estão situados e classificados nos quadros sociais, com as mesmas prerrogativas que os homens. 41 Mas, se o mundo está na sociedade, o espaço que ela ocupaconfunde-se com o espaço total. com efeito, vimos como cada coisa tem seu lugar determinado sobre o espaço social; e o que mostra bem a que ponto este espaço totaldifere das extensões concretas que nos fazem perceber os sentidos é que esta localização é completamente ideal e não se assemelha em nada àquela que seria se elanos fosse ditada apenas pela experiência sensível. 42 Pela mesma razão, o ritmo da vida coletiva domina e abarca os ritmos variados de todas as vidas elementaresdas quais ele resulta; por conseguinte, o tempo que o exprime domina e abarca todas as durações particulares. É o tempo total. A história do mundo não foi durantemuito tempo senão um outro aspecto da história da sociedade. Uma começa com a outra: os períodos da primeira são" determinados pelos períodos da segunda. O quemede esta duração impessoal e global, o que fixa os pontos de referência em relação aos quais ela está dividida e organizada são os movimentos de concentração oude dispersão da sociedade; mais geralmente, são as necessidades periódicas da refeição coletiva. Se estes instantes críticos se ligam mais freqüentemente a algumfenômeno material, como a recorrência regular de tal astro ou a alternância das estações, é porque são necessários signos objetivos para tornar sensível a todosesta organização essencialmente social. Igualmente, enfim, a relação causai, no momento em que é posta coletivamente pelo grupo, encontra-se independente de todaconsciência individual; ela plana acima de todos os espíritos e de todos os acontecimentos particulares. É uma lei de valor impessoal. Mostramos que foi exatamenteassim que ela parece ter nascido.Uma outra razão explica que os elementos constitutivos das categorias deveriam ser tomados emprestados da vida social: é que as relações que elas exprimem não podiamvir a ser conscientes senão na e pela sociedade. Se, em um sentido, elas são imanentes à vida do indivíduo, este não tinha nenhuma razão nem nenhum meio de apreendê-las,refletilas, explicitá-las e erigi-las em noções distintas. Para orientar-se pessoalmente na extensão, para saber em que momentos ele devia satisfazer às diferentesnecessidades orgânicas, ele não tinha nenhuma necessidade de fazer para si, de uma vez para todas, uma representação conceitual do tempo e do espaço. Muitos animaissabem encontrar o caminho que os leva aos lugares que lhes são familiares; os animais retornam a eles no momento conveniente, sem que tenham entretanto nenhuma categoria;sensações são suficientes para dirigi los automaticamente. Elas seriam igualmente suficientes ao homem se seus movimentos não tivessem que satisfazer senão a necessidadesindividuais. Para reconhecer que uma coisa se assemelha a outras das quais já tivemos experiência não é de forma alguma necessário que disponhamos umas e outrasem gêneros e espé cies: a maneira pela qual imagens semelhantes atraem se e fundem-se é suficiente para dar o sentimento da semelhança. A impressão do já visto,do já provado, não implica nenhuma classificação. Para distinguir as coisas que devemos procurar daquelas das quais devemos fugir não precisamos ligar os efeitosde umas e de outras às suas causas por um elo lógico, quando apenas conveniências individuais estão em jogo. Consecuções41 No fundo, o conceito de totalidade, o conceito de sociedade e o conceito de divindade são, ao que parece, apenas aspectos diferentes de uma única e me,sma,n«ção.(N. do A.)

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42 V. C/ai.siJicaçõt"> Primitivas, loc. cit.. p. 40 e seguintes. (N., dg A.)

p. 243puramente empíricas, fortes conexões entre representações concretas são. para a vontade, guias igualmente seguros. Não apenas o animal não tem outros, mas tambémfreqüentemente nossa prática privada não supõe nada a mais. O homem prevenido é aquele que tem uma sensação bem clara do que é preciso fazer mas que freqüentementeseria incapaz de traduzi-la em lei.Acontece de outra maneira na sociedade. Esta só é possível se os indivíduos e as coisas que a compõem são repartidos entre diferentes grupos, isto é, classificados,e se estes grupos são classificados uns em relação aos outros. Portanto, a sociedade supõe uma organização consciente de si que não é outra coisa que uma classificação.Esta organização da sociedade comunica-se naturalmente ao espaço que ela ocupa. Para prevenir todo choque, é preciso que a cada grupo particular uma porção determinadade espaço seja destinada: em outros termos, é preciso que o espaço total seja dividido, diferenciado, orientado e que estas divisões e estas orientações sejam conhecidasde todos os espíritos. Por outro lado, toda convocação para uma festa, para uma caçada, para uma expedição militar implica que datas sejam fixadas, combinadas e,por conseguinte, que um tempo comum seja estabelecido, tal que todo mundo o conceba da mesma maneira. Enfim, o concurso de vários para a consecução do mesmo fimcomum só é possível quando se compreende a relação que existe entre este fim e os meios que permitem atingMo, isto é, se a mesma relação causai é admitida por todosos cooperadores do mesmo empreendimento. Portanto, não é espantoso que o tempo social, o espaço social, as classes sociais, a causalidade coletiva estejam na basedas categorias correspondentes, por que é sob suas formas sociais que diferentes relações foram, pela primeira vez, apreen didas com uma certa claridade pela consciênciahumana.Em resumo, a sociedade não é de maneira alguma o ser ilógico ou alógico, incoerente e caprichoso que freqüentemente se vê nela com prazer. Contrariamente, a consciênciacoletiva é a mais alta forma da vida psíquica, porque é uma consciência de consciências. Colocada fora e acima das contingências individuais e locais, ela vê ascoisas unicamente pelo seu aspecto permanente e essencial que ela fixa em noções comuni caveis. Ao mesmo tempo que ela vê do alto, vê ao longe; a cada momento dotempo ela abraça toda a realidade conhecida; por isso, apenas ela pode fornecer ao espírito quadros que se apliquem à totalidade dos seres e que permitem pensa los.Estes quadros, ela não os cria artificialmente; encontra os em si mesma: apenas toma consciência deles. Eles traduzem maneiras de ser que se encontram em todos osgraus do real, mas que não sur gem em plena claridade senão no ponto culminante, porque a extrema complexidade da vida psíquica que aqui se desenrola necessita deum maior desenvolvimento da consciência. Atribuir ao pensamento lógico origens sociais não é rebaixá-lo, diminuir seu valor, reduzi Io a apenas um sistema de combinaçõesartificiais; ao contrário, é relacioná-lo a uma causa que o implica naturalmente. Isto não é dizer, seguramente, que noções elabo radas desta maneira possam serimediatamente adequadas ao seu objeto. Se a sociedade é algo de universal em relação ao indivíduo, não deixa de ser ela mesma uma individua lidade que tem sua fisionomiapessoal, sua idiossincrasia; ela é um sujeito particular que, por conseguinte, particulariza o que pensa. Portanto, as representações coletivas contêm elementossubjetivos e é necessário que eles sejam progressivamente depurados para se tornarem mais próximos das coisas. Mas, por mais grosseiras que elas possam ser na origcm, ficou demonstrado que com elas foi lançado o germe de uma mentalidade nova, à qual o indivíduo jamais poderia elevar se apenas pelas suas forças: desde então,a via es tava aberta para um pensamento estável, injpessoal e organizado, bastando lhe, em seguida, desenvolver sua naturc/a.^

p. 244Por outro lado, as causas que determinaram este desenvolvimento parecem não diferir especificamente daquelas que suscitaram o germe inicial. Se o pensamento lógicotende cada vez mais a desembaraçar-se dos elementos subjetivos e pessoais que ele ainda carrega nas origens, não é porque fatores extra-sociais intervieram; é muitoantes porque uma vida social de um gênero novo se desenvolveu cada vez mais. Trata-se desta vida internacional que tem já por efeito universalizar as crenças religiosas.Na medida em que ela se estende o horizonte coletivo alarga-se; a sociedade cessa de aparecer como o todo por excelência, para vir a ser a parte de um todo muitomais vasto, com fronteira indeterminadas e suscetíveis de recuar indefinidamente. Por conseguinte, as coisas não podem mais manter-se nos quadros sociais em queestavam primitivamente classificadas; elas precisam ser organizadas segundo princípios que lhes sejam próprios e, assim, a organização lógica diferencia-se da organizaçãosocial e torna-se autônoma. Eis aí, ao que parece, como o elo que ligava primeiramente o pensamento a individualidades coletivas determinadas desprende-se cada vezmais; como, por conseguinte, ele se torna sempre mais impessoal e se universaliza. O pensamento verdadeira e propriamente humano não é um dado primitivo: ele é umproduto da história. Ele é um limite ideal de que nós nos aproximamos cada vez mais e que, pelo que parece, não chegaremos jamais a atingir.Assim, longe de existir entre a ciência, por um lado, a moral e a religião, por outro, a espécie de antinomia que freqüentemente se admitiu, estes diferentes modosda atividade humana derivam, na realidade, de uma única e mesma fonte. É o que Kant tinha compreendido bem, e foi por que ele fez da razão especulativa e da razãoprática dois aspectos diferentes da mesma faculdade. O que, segundo ele, faz sua unidade é que ambas são orientadas para o universal. Pensar racionalmente é pensarsegundo leis que se impõem à universalidade dos seres racionais; agir moralmente é conduzir-se segundo máximas que possam, sem contradição, ser estendidas à universalidadedas vontades. Em outros termos, a ciência e a moral implicam que o indivíduo seja capaz de elevar-se acima de seu próprio ponto de vista e de viver uma vida impessoal.com efeito, é certo que isto é um traço comum a todas as formas superiores do pensamento e da ação. O que o kantismo não explica é apenas de onde vem a espéciede contradição que o homem termina assim por realizar. Por que ele é forçado a fazer-se violência para ultrapassar sua natureza de indivíduo e, inversamente, porque a lei impessoal é obrigada a decair encarnando-se nos indivíduos? Dir-se-á que existem dois mundos antagônicos dos quais participamos igualmente; o mundo damatéria e dos sentidos, por um lado, o mundo da razão pura e impessoal, por outro? Mas é repetir a questão em termos apenas diferentes; pois trata-se precisamentede saber por que ele nos faz levar concorrentemente estas duas existências. Por que estes dois mundos, que parecem contradizer-se, não permanecem fora um do outro,o que é que os obriga a penetrarem-se mutuamente a despeito de seu antagonismo? A única explicação que foi dada desta singular necessidade foi a hipótese da queda,com todas as dificuldades que ela implica e que é inútil lembrar aqui. Ao contrário, todo mistério desaparece no momento em que se reconheceu que a razão impessoalnão é senão um outro nome dado ao pensamento coletivo. Pois este só é possível pelo agrupamento dos indivíduos; ele os supõe, portanto e, por sua vez, estes o supõemporque não podem manter-se senão agrupando-se. O reino dos fins e das verdades impessoais não pode realizar-se senão pelo concurso das vontades e das sensibilidadesparticulares; e as razões pelas quais estas aqui participam são as mesmas razões pelas quais elas concorrem. Em uma palavra, existe o impessoal em nós porque existeo social em nós e, como a vida social compreende simultaneamente representações e práticas, esta impessoalidade estende-se naturalmente tanto às idéias quanto aosatos.

p. 245Causará talvez espanto o ver-nos relacionar à sociedade as formas mais elevadas da mentalidade humana: a causa parece bem humilde em relação ao valor que damos aoefeito. Entre o mundo dos sentidos e dos apetites, por um lado, e aquele da razão e da moral, por outro, a distância é tão considerável que o segundo parece nãoter jamais podido somar-se ao primeiro senão por um ato criador. — Mas atribuir à sociedade este papel preponderante na gênese de nossa natureza não é negar estacriação; pois a sociedade dispõe precisamente de uma potência criadora que nenhum ser observável pode igualar. Toda criação, com efeito, a menos que seja uma operaçãomística que escape à ciência e à inteligência, é o produto de uma síntese. Ora, se as sínteses de representações particulares que se produzem no seio de cada consciênciaindividual já são, por si mesmas, produtoras de novidades, quanto mais eficazes serão estas vastas sínteses de consciências completas como as sociedades! Uma sociedadeé o mais potente feixe de forças físicas e morais de que a natureza nos oferece o espetáculo. Em parte alguma se encontra tal riqueza de materiais diversos, levadosa um tal grau de concentração. Portanto, não é surpreendente que uma vida mais alta dela se depreenda que, reagindo sobre os elementos dos quais ela resulta, eleva-osa uma forma superior de existência e os transforma.Assim, a sociologia parece destinada a abrir uma nova via à ciência do homem. Até agora, estava-se colocado face a esta alternativa: ou explicar as faculdades superiorese «específicas do homem ligando-as às formas inferiores do ser, a razão aos sentidos, o espírito à matéria, o que implicava negar a sua especificidade; ou ligá-lasa alguma realidade supra-experimental que se postulava, mas da qual nenhuma observação pode estabelecer a existência. O que colocava o espírito neste embaraço eraque o indivíduo passava por serfinis naturae: parecia que além não haveria mais nada, pelo menos nada que a ciência pudesse atingir. Mas, a partir do momento em

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que se reconheceu que acima do indivíduo existe a sociedade e que esta não é um ser nominal e de razão, mas um sistema de forças atuantes, uma nova maneira de explicaro homem tornou-se possível. Para conservar-lhe seus atributos distintivos, não é mais necessário colocá-los fora da experiência. Pelo menos, antes de chegar a esteextremo, convém investigar se o que no indivíduo ultrapassa o indivíduo não lhe viria desta realidade supra-individual, mas dada na experiência, que é a sociedade.Certamente, não se poderia dizer desde agora até onde estas explicações podem estender-se e se elas são de natureza a suprimir todos os problemas. Mas é igualmenteimpossível marcar previamente um limite que elas não poderiam ultrapassar. O que é preciso é testar a hipótese, submetê-la tão metodicamente quanto possível ao controledos fatos. Foi o que tentamos realizar.

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ÍNDICEDURKHEIM — Vida e obra VCronologia XBibliografia XDA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL lPrefácio da segunda edição 3LIVRO I — A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHOCAP. I — Método para determinar esta função 23CAP. II — Solidariedade mecânica ou por similitude 35CAP. in — A solidariedade orgânica ou devida à divisão do trabalho 59AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO 71Prefácio da primeira edição 73Prefácio da segunda edição 75Introdução 85CAP. I — O que é um fato social? 87CAP. II — Regras relativas à observação dos fatos sociais 94CAP. in — Regras relativas à distinção entre o normal e o patológico 110CAP. IV — Regras relativas à constituição dos tipos sociais 125CAP. V — Regras relamas à explicação dos fatos sociais 132CAP. VI — Regras relativas ao estabelecimento das provas 150CONCLUSÃO 159O SUICÍDIO 163Introdução 165LIVRO II — CAUSAS SOCIAIS E TIPOS SOCIAISCAP. I — Método para os determinar ,177LIVRO III — DO SUICÍDIO COMO FENÔMENO SOCIAL EM GERALCAP. I — O elemento social do suicídio 183AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA 203Introdução 205Objeto de investigação — sociologia religiosa e teoria do conhecimento 205CAP. I — Objeto principal do livro 205CAP. II — Objeto secundário da investigação 211CONCLUSÃO 221

Composto e impresso naDivisão Gráfica da Abril S. A.Acabamento: Círculo do Livro S.A.São Paulo—Capital"me X

Orelha do livroOs PensadoresDurkheim

"De todos os elementos da civilização, a ciência é o único que, em certas condições, apresenta um caráter moral. com efeito, as sociedades tendem cada vez maisa ver como um dever do indivíduo desenvolver sua inteligência, assimilando as verdades científicas que são estabelecidas. Existe desde agora um certo número de conhecimentosque devemos todos possuir. Não se é obrigado a jogarse no grande conflito industrial, não se é obrigado a ser artista, mas agora todo mundo é obrigado a não permanecerignorante. Esta obrigação é mesmo tão fortemente sentida que, em certas sociedades, não apenas é sancionada pela opinião pública como também pela lei." DURKHEIM:Da divisão do trabalho social."Devemos considerar os fenômenos sociais em si mesmos, desligados dos sujeitos conscientes que, eventualmente, possam ter as suas representações; é preciso estudá-losde fora, como coisas exteriores, porquanto é nesta qualidade que eles se nos apresentam." DURKHEIM: As regras do método sociológico."A taxa social dos suicídios só se pode explicar sociologicamente. É a constituição moral da sociedade que fixa em cada instante o contingente dos mortos voluntários.Existe, portanto, para cada povo uma energia determinada que leva os homens a se matarem." DURKHEIM: O Suicídio."O valor que atribuímos à ciência depende da idéia que fazemos coletivamente de sua natureza e de seu papel na vida; é dizer que ela exprime um estado de opinião.com efeito, tudo na vida social, inclusive a própria ciência, repousa sobre a opinião. Sem dúvida, pode-se tomar a opinião como objeto de estudo e dela fazer aciência; é nisto que consiste principalmente a sociologia." DURKHEIM: As formas elementares da vida religiosa.

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PIAGETKANTBACHELARDDURKHEIMLOCKEPLATÃO cDESCARTESMERLEAU-PONTYWITTGENSTEINHEIDEGGERBERGSONSTO TOMÁS DE AQUINOHOBBESESPINOSAADAM SMITHSCHOPENHAUERVIÇOKIERKEGAARDPASCALMAQUIAVELHEGELE OUTROS

Capa finalNeste volumeDA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL (1893)Análise da função da divisão do trabalho social e dasolidariedade devida a essa divisão. No prefácio que escreveupara a segunda edição da obra, Durkheim focalizaum tema que considera da maior importância: o papelque os agrupamentos profissionais estão destinados a preencherna organização social dos povos contemporâneos.AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO (1895)A partir da conceituação de fato social, Durkheim prescreveas regras relativas à observação desses fatos, à distinção entreo normal e o patológico, à constituição dos tipos sociais,à explicação dos fatos sociais e ao estabelecimento das provas.O SUICÍDIO (1897) — Introdução: livro II, cap. l; livro in, cap. I.Estudando sociologicamente o suicídio, Durkheim mostraque, num determinado espaço de tempo e em cadasociedade, há um número definido de pessoas que se matam.A causa desse fenômeno "escapa necessariamente a quem só observaos indivíduos — porque ela é exterior aos indivíduos".AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA (1912) —Introdução e ConclusãoAo investigar o sistema totêmico da Austrália, Durkheim discuteos princípios básicos da sociologia da religião e o conflitoentre religião e ciência. Na conclusão aponta o quehaveria de eterno, do ponto de vista sociológico, na religião.Seleção de textos: José Arthur CiannottiTraduções de Margarida Carrido Esteves, Luz Cary, J. VasconcelosEsteves e Carlos Alberto Ribeiro de Moura Consultor da Introdução: José Arthur Ciannotti