08. fato típico

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  • 8

    FATO TPICO

    ____________________________

    A primeira caracterstica do crime ser um fato tpico, descrito, como tal, numa

    lei penal. Um acontecimento da vida que corresponde exatamente a um modelo de fato

    contido numa norma penal incriminadora, a um tipo.

    Para que o operador do Direito possa chegar concluso de que determinado

    acontecimento da vida um fato tpico, deve debruar-se sobre ele e, analisando-o,

    decomp-lo em suas faces mais simples, para verificar, com certeza absoluta, se entre o

    fato e o tipo existe relao de adequao exata, fiel, perfeita, completa, total e absoluta.

    Essa relao a tipicidade.

    Para que determinado fato da vida seja considerado tpico, preciso que todos

    os seus componentes, todos os seus elementos estruturais sejam, igualmente, tpicos.

    Os componentes de um fato tpico so a conduta humana, a conseqncia

    dessa conduta se ela a produzir (o resultado), a relao de causa e efeito entre aquela

    e esta (nexo causal) e, por fim, a tipicidade.

    O objetivo, neste captulo, estudar cada um desses elementos do fato tpico,

    inclusive decompondo, cada um deles, em outros caracteres mais simples ainda, e

    estes, quando possvel, em outros componentes.

    8.1 CONDUTA

    Ao longo dos anos, os estudiosos do Direito Penal construram vrias teorias,

    procurando explicar a ao, em sentido amplo, ou conduta, o primeiro elemento do

    fato tpico.

    O tema da mais alta importncia, pois do conceito de conduta adotado

    decorrem profundas e diversas conseqncias para o tratamento de importantes

    questes penais prticas.

    No se trata de divergncias de natureza meramente acadmica, sem qualquer

  • 2 Direito Penal Ney Moura Teles

    reflexo na vida prtica, como poderia parecer. Ao contrrio, do conceito de conduta

    adotado decorre a prpria orientao do Direito Penal vigente em determinado pas,

    como se ver a seguir.

    8.1.1 Teoria causalista

    A teoria causalista ou naturalista da ao, de BELING e VON LISZT, incorpora ao

    conceito de conduta as leis da natureza; da o seu nome. Os adeptos da teoria causalista

    ou naturalista at pouco tempo atrs a que imperava no Brasil, e que, ainda hoje,

    infelizmente, tem adeptos entre juzes e integrantes de certos tribunais entendem que

    a conduta um puro fator de causalidade.

    Segundo eles, a vontade a causa da conduta e esta a causa do resultado. Em

    outras palavras: a conduta efeito da vontade e causa do resultado. A vontade causa a

    conduta, que d causa ao resultado.

    Para o causalismo, a conduta um comportamento humano voluntrio que se

    exterioriza e consiste num movimento ou na absteno de um movimento corporal.

    Essa teoria considera imprescindvel que a conduta tpica seja um comportamento

    voluntrio, impulsionado pela vontade do homem, que se concretiza, torna-se real,

    material, por meio de uma ao positiva ou negativa.

    Existe conduta na atitude de Cludio que se levanta da cama e vai at o

    banheiro, para escovar os dentes, tropea e derruba seu filho que, na queda, fratura o

    brao. O movimento voluntrio das pernas de Cludio dentro de seu quarto o andar,

    tropeando causou a fratura do brao de seu filho. A vontade de Cludio impulsionou

    seu comportamento, que deu causa ao resultado.

    Igualmente, conduta o comportamento de Jorge, impulsionado por sua

    vontade, que consiste em atirar, com a mo, uma pedra em direo ao corpo de Mrio,

    ferindo-o.

    Os causalistas, ao examinarem a conduta de uma pessoa, no realizam qualquer

    valorao acerca do fim pretendido pelo agente. Para eles, basta analisar a

    voluntariedade do comportamento se o agente queria movimentar-se ou abster-se de

    um movimento e se h nexo de causa e efeito entre o comportamento e a

    conseqncia dele advinda.

    No se importam quando examinam a conduta com o contedo da vontade

    do agente. No perguntam se Cludio, ao derrubar seu filho, desejava ou no feri-lo,

    nem se Jorge, ao atirar a pedra, queria ou no atingir e ferir o corpo de Mrio.

    Para a teoria causal, essas so questes que no se resolvem no mbito da

  • Fato Tpico - 3

    conduta, do fato tpico, momento em que basta verificar-se a voluntariedade do agente

    e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado.

    A finalidade, o contedo da vontade, diz o causalismo, no so temas para

    serem abordados no momento da anlise da tipicidade do fato. Devem ser estudados

    quando se for verificar a culpabilidade, que a terceira caracterstica do crime.

    8.1.2 Teoria finalista

    Contra o causalismo levantaram-se crticas importantes, falhas cruciais.

    Imaginem-se trs fatos da vida:

    Fato A: Joo, voluntariamente, dispara um tiro de revlver contra Mrcio,

    causando-lhe um ferimento na perna direita.

    Fato B: Pedro, voluntariamente, dispara um tiro de revlver contra Paulo,

    causando-lhe um ferimento na perna direita.

    Fato C: Antnio, voluntariamente, dispara um tiro de revlver contra

    Srgio, causando-lhe um ferimento na perna direita.

    Nos trs fatos, as trs condutas consistem em trs aes voluntrias de pressionar

    a tecla do gatilho da arma de fogo, disparando-a em direo a outra pessoa. As

    conseqncias das trs condutas, os resultados, so absolutamente idnticos nos trs

    fatos: leso do corpo do sujeito passivo.

    Em qual tipo legal de crime se ajusta cada um dos trs fatos? Seriam trs leses

    corporais, dolosas, como definidas no art. 129 do Cdigo Penal? Ou seriam trs

    leses corporais, culposas, de que trata o 6 do mesmo art. 129? Ou poderiam os

    trs fatos caracterizar-se como trs tentativas de homicdio?

    O adepto da teoria causalista no pode, neste momento, responder a essas

    indagaes, porque, segundo ele, no importa, no mbito do fato tpico, o contedo da

    vontade do agente. De conseqncia, s poder responder quando for analisar a

    culpabilidade.

    O primeiro funcionrio pblico encarregado de tomar contato com um fato

    definido como crime o delegado de polcia, a quem incumbe investigar como

    aconteceu, onde, quando, quem foi, como foi, por que foi e, aps registrar tudo isto,

    num documento denominado inqurito policial, o encaminhar ao juiz, que o mandar

    ao promotor de justia, cuja misso , se considerar necessrio, pedir ao juiz a

    condenao do infrator da norma penal.

  • 4 Direito Penal Ney Moura Teles

    O inqurito policial o alicerce sobre o qual se vai construir um conjunto de

    outros atos procedimentais, reunidos organizadamente naquilo que se chama processo

    penal, instrumento de busca da verdade, pelo qual, ao final, o julgador decide sobre o

    que lhe foi colocado: condena ou absolve o acusado da prtica do fato definido como

    crime. Essas noes de processo penal no so objeto deste estudo, por isso s so

    feitas aqui referncias bastante rudimentares, para que o nefito possa entender apenas

    o necessrio para o objetivo aqui proposto.

    Como far o delegado de polcia causalista encarregado de instaurar o

    inqurito policial, diante daqueles trs fatos? Em qual artigo do Cdigo Penal

    indiciar Joo, Pedro e Antnio?

    indiscutvel que ele precisa verificar o que se continha na vontade de cada um

    dos agentes, para definir em qual tipo legal de crime sua conduta se ajusta. Sem essa

    anlise, impossvel afirmar se como e quando um fato da vida tpico.

    Para se dizer que no fato A houve tentativa de homicdio, necessrio que se

    analise o contedo da vontade de Joo e se conclua que ele desejava matar Mrcio, no

    conseguindo porque, errando, s atingiu a perna, regio no letal.

    No segundo fato, B, para se afirmar que houve uma leso corporal dolosa,

    indispensvel que, analisando-se o contedo da vontade de Pedro, se conclua pela

    certeza de que este queria apenas e to-somente ferir Paulo.

    E no terceiro fato, C, ter havido leso corporal culposa, quando se chegar

    concluso de que Antnio, ao disparar voluntariamente sua arma, no desejava nem

    matar, nem ferir Srgio, mas, apenas, brincar com seu revlver.

    O indiciamento dos trs agentes em inqurito policial deve ser o mais prximo

    da realidade. As conseqncias so da mais alta importncia, bastando lembrar que os

    indiciados por leso corporal simples dolosa (art. 129, caput) ou culposa (art. 129, 6)

    podero no ser presos em flagrante, mas colocados em liberdade, como manda o art.

    69 da Lei n 9.099/95, que trata do processo por crimes de menor potencial ofensivo:

    A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrncia lavrar termo

    circunstanciado e o encaminhar imediatamente ao Juizado, com o autor do

    fato e a vtima, providenciando-se as requisies dos exames periciais

    necessrios. Pargrafo nico. Ao autor do fato que, aps a lavratura do termo,

    for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele

    comparecer, no se impor priso em flagrante, nem se exigir fiana.

    J os presos em flagrante indiciados por tentativa de homicdio s podero ser

    libertados mediante o pagamento de fiana arbitrada pelo juiz, nunca pelo delegado.

  • Fato Tpico - 5

    Essa apenas uma das conseqncias prticas do correto indiciamento, que

    decorre da exata tipificao de um fato concreto, possvel apenas quando se analisa no

    s a aparncia do fato, mas, principalmente, o contedo da vontade do agente.

    A distino entre uma leso corporal intencional, uma leso corporal causada por

    negligncia e uma tentativa de homicdio em que a vtima sai ferida est no contedo

    da vontade dos trs agentes, na finalidade da vontade do agente dos trs fatos, posto

    que o resultado idntico nas trs hipteses.

    HANS WELZEL, estudando a conduta nas primeiras dcadas do sculo passado,

    verificou que o elemento diversificador dos fatos tpicos no est em seu resultado, mas

    na ao. A ao do homem que mata outro com vontade de matar punida mais

    rigorosamente que a conduta do homem que mata outro sem vontade de matar, apesar

    de o resultado ser o mesmo nas duas situaes (morte de um homem), porque o Direito

    deseja censurar mais severamente aquele que teve vontade de causar o mal a outrem. Ao

    Direito importa distinguir entre o que quis um resultado e o que no o quis, mas, por

    descuido, o causou.

    Com base nessas observaes, WELZEL estruturou a Teoria Finalista da Ao ou

    Teoria da Ao Final, que diz ser toda ao uma atividade humana final, ou o exerccio

    da atividade finalista.

    Todo e qualquer comportamento humano um acontecimento finalista e no

    puramente causal, pois o homem, enquanto ser consciente das leis naturais, de causa

    e efeito, pode prever as conseqncias de seu comportamento e tem condies de

    dirigir sua atividade no sentido da produo de um ou de outro resultado. E, sempre

    que age, ele o faz com determinada finalidade.

    Toda vontade tem um contedo, que o fim. A teoria causal, quando prescinde da

    anlise do contedo da vontade, est fraturando o conceito de ao, que um

    fenmeno uno. A vontade que impulsiona a conduta tem um contedo que no pode

    ser separado dela.

    A diferena, portanto, entre as duas teorias que, para os causalistas, a ao um

    puro processo causal, ao passo que o finalismo demonstrou que a conduta um

    processo causal dirigido a determinada finalidade.

    No importa, neste primeiro momento, qual seja a finalidade, mas que ela exista

    sempre. Em algumas situaes, essa finalidade dirigida produo de um dano a

    algum bem jurdico, noutras o fim pode ser a obteno de um resultado permitido ou

    no proibido. Mas, sempre, haver uma finalidade, sempre a vontade humana ter um

    contedo, no importa com qual natureza.

  • 6 Direito Penal Ney Moura Teles

    Segundo WELZEL, a direo final da ao realiza-se em duas fases: internamente,

    na esfera do pensamento, quando o homem se prope realizar alguma coisa e,

    externamente, quando concretiza, materializa esta sua vontade, por meio da colocao

    em marcha de um processo causal, dominado pela finalidade, para alcanar o fim

    proposto.

    Na proposio da realizao da conduta, esto includas a escolha do fim, a seleo

    dos meios e a aceitao dos efeitos secundrios da realizao da ao.

    Isso quer dizer que a finalidade da ao engloba no somente o fim escolhido, mas

    tambm os meios utilizados e os efeitos desta utilizao.

    Por exemplo, quando algum decide viajar de Braslia para Salvador, por via

    terrestre, conduzindo seu veculo, durante um final de semana, integram a direo final

    da conduta: (a) chegar a Salvador, um objetivo lcito; (b) viajar por rodovia, dirigindo o

    veculo (meios); (c) a possibilidade de atropelar um animal ou uma pessoa na pista ou

    colidir com outro veculo, enfim, toda e qualquer conseqncia secundria, decorrente

    da colocao do processo causal dirigido finalidade estabelecida inicialmente.

    A concluso indiscutvel de que somente analisando o contedo da vontade que

    se pode afirmar a realizao de um tipo legal de crime, j que a finalidade parte

    integrante da conduta, dela inseparvel. Essa a essncia do finalismo.

    8.1.3 Teoria social da ao

    Alguns importantes estudiosos do Direito Penal, como JESCHEK e WESSELS,

    entenderam que o finalismo de WELZEL seria insuficiente para conceituar a conduta,

    porque esquecia uma caracterstica essencial de todo comportamento humano, que

    seu lado social.

    Nem o causalismo, nem o finalismo, segundo eles, conseguem explicar a ao,

    pelo que acresceram ao conceito de conduta a idia de relevncia social; assim, ao

    um comportamento humano socialmente relevante, questionado pelos requisitos do

    Direito e no pelas leis naturais.

    Segundo essa teoria, para se verificar a tipicidade de uma conduta

    indispensvel conhecer no apenas seus aspectos causais e finalsticos, mas tambm

    sua nota social. Seria relevante do ponto de vista social a conduta que fosse capaz de

    afetar o relacionamento do indivduo com o meio social.

    A teoria social da ao (...) v na relevncia social do fazer ou da omisso

    humanos o critrio conceitual comum a todas as formas de comportamento.

  • Fato Tpico - 7

    Engloba o agir como fator sensvel da realidade social, com todos os seus

    aspectos pessoais, finais, causais e normativos.1

    Dois grandes penalistas, DAMSIO E. DE JESUS e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO

    formularam severas crticas que, parece, fulminam essa teoria.

    Para o primeiro,

    ela no deixa de ser causal, merecendo os mesmos reparos que a doutrina faz

    teoria mecanicista: no resolve satisfatoriamente o problema da tentativa e

    do crime omissivo. Por outro lado, se ao a causao de um resultado

    socialmente importante, como se define a conduta nos crimes de mero

    comportamento? Esta teoria, como a causal propriamente dita, d muita

    importncia ao desvalor do resultado, quando o que importa o desvalor da

    conduta. Se a ao a causao de um resultado socialmente relevante, ento

    no h diferena entre uma conduta de homicdio doloso e um comportamento

    de homicdio culposo, uma vez que o resultado idntico nos dois casos2.

    J o segundo, acerca do conceito de relevncia social, ensina que

    pela vastido de sua extenso, se presta para tudo, podendo abarcar at os

    fenmenos da natureza, pois no se h de negar relevncia social e jurdica

    mudana do curso dos rios, por ao da eroso, com repercusso sobre os

    limites das propriedades; morte, causada pela ao do raio, com a

    conseqente abertura da sucesso hereditria; e assim por diante. (...) Isso

    mostra, a nosso ver, que a relevncia social no um atributo especfico do

    delito, mas antes uma caracterstica genrica de todo fato jurdico, tomado

    este em seu sentido mais amplo. Sendo assim, se, de um lado, no se pode

    negar relevncia social ao crime, de outro, fora de dvida que essa uma

    qualidade que lhe advm da circunstncia de pertencer famlia dos fatos

    jurdicos, estes sim portadores originrios de um indefectvel aspecto social3.

    Incluir, no conceito de crime, a idia de relevncia social em nada ajuda a

    explic-lo. Alm disso, o finalismo esclarece com suficincia o conceito de ao.

    1 WESSELS, Johannes. Direito penal: parte geral. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1976. v. 1, p. 20.

    2 JESUS, Damsio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 204. 3 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1991. p. 105.

  • 8 Direito Penal Ney Moura Teles

    8.1.4 Teoria jurdico-penal

    O mesmo FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, aps entender que causalidade e

    finalismo no esgotam o vasto contedo do agir humano j que na maior parte dos

    casos o agente atuaria por instinto ou por costume , prope abandonar o conceito pr-

    jurdico, ontolgico, proposto por HANS WELZEL, com o regresso a um conceito

    eminentemente jurdico, que assim formulou:

    Ao o comportamento humano, dominado ou dominvel pela

    vontade, dirigido para a leso ou para a exposio a perigo de um bem

    jurdico, ou, ainda, para a causao de uma previsvel leso a um bem

    jurdico.4

    Esse conceito em absolutamente nada colide com o conceito finalista de ao.

    Na verdade, equivale a dizer que ao o comportamento humano voluntrio dirigido

    a um fim. DAMSIO E. DE JESUS formula-o: Conduta a ao ou omisso humana

    consciente e dirigida a determinada finalidade.5

    O conceito formulado por ASSIS TOLEDO no se distingue do finalista, mas

    apenas o detalha. Onde o finalista escreve: ao ou omisso humana consciente,

    detalhou: dominado ou dominvel pela vontade, o que equivale voluntariedade.

    Onde o finalismo diz: dirigido a determinada finalidade, o novo conceito foi mais

    pormenorizado: dirigido para a leso ou para a exposio a perigo de um bem jurdico,

    ou, ainda para a causao de uma previsvel leso a um bem jurdico. A idia,

    confessada por seu formulador, retornar ao que jurdico, e explicar, ainda, a conduta

    culposa. certo que no h esta necessidade, pois trata-se, em primeiro lugar, de

    conceituar a conduta, e isto o finalismo fez com propriedade e, sobretudo, simplicidade.

    Claro que, no segundo momento, a tarefa do estudioso verificar a qualidade da

    conduta, em face dos tipos construdos pelo legislador e, conquanto tenha ele criado

    tipos dolosos e tipos culposos, toda e qualquer conduta, para ser tpica, ou ser dolosa,

    ou ser culposa.

    Para conceituar conduta, no necessrio explicar suas duas qualidades que,

    como se ver adiante, so antagnicas e se repelem; da a impossibilidade e

    desnecessidade de se obter um conceito de ao, com a incluso de suas qualidades

    tpicas, dolosa e culposa. A no ser que tal conceito carea do rigor cientfico, como,

    alis, reconheceu o prprio ASSIS TOLEDO, quando enunciou o seu.

    4 Op. cit. p. 109. 5 Direito penal. Op. cit. p. 199.

  • Fato Tpico - 9

    8.1.5 Concluses

    A teoria finalista a que melhor atende aos interesses do Direito Penal, at

    porque a teoria que consegue explicar a conduta com base no prprio direito positivo.

    Basta verificar-se que, mesmo antes de sua formulao por HANS WELZEL, a lei j criava

    duas espcies de crimes: os crimes dolosos em que o agente deseja alcanar o

    resultado ou, mesmo sem o querer aceita-o e os crimes culposos cujos resultados

    so alcanados sem vontade, mas por negligncia, ou por descuido.

    Isso significa que s so definidas como crime duas espcies de condutas

    voluntrias: aquelas em que o agente deseja ou assume o risco de violar a norma e

    aquelas em que a viola por desateno, por no estar atento a seus deveres gerais de

    cuidado com a vida.

    Logo, toda e qualquer conduta definida como crime valorada, qualificada, na

    prpria definio legal do crime, no prprio tipo.

    O conceito finalista da ao esgota integralmente todo e qualquer

    comportamento humano, que em toda e qualquer hiptese est, sempre, dirigido a um

    fim, ainda quando se possa pensar que o agente atue por hbito, ou costume.

    A circunstncia de algum realizar, costumeiramente, habitualmente, a mesma

    atividade, o mesmo movimento, ou a mesma absteno de um movimento no tem o poder

    de retirar a finalidade de seu atuar. Desde que haja vontade, h finalidade.

    Apenas em movimentos involuntrios que se pode verificar a ausncia da

    finalidade, mas estes, evidente, no constituem conduta, como se ver adiante. Em

    sntese, a conduta o comportamento voluntrio do homem dirigido a um fim,

    proibido ou no.

    S constituem condutas os comportamentos corporais voluntrios externos dos

    humanos, consistentes em fazer alguma coisa ou em deixar de fazer alguma coisa.

    As atitudes puramente internas, exclusivamente psquicas do homem como

    desejar o mal ao prximo, sonhar com a morte do desafeto, rezar para que o mal

    acontea com seu inimigo no constituem condutas. Podem interessar aos deuses,

    aos religiosos e s religies, ao Direito Cannico, no ao Direito Penal.

    A conduta estrutura-se em dois elementos: um ato de vontade dirigido a uma

    finalidade e a atuao dessa vontade no mundo exterior, vontade essa que, segundo

    WELZEL, abrange o fim pretendido, os meios usados e as conseqncias secundrias.

  • 10 Direito Penal Ney Moura Teles

    8.2 AUSNCIA DE CONDUTA

    S existe conduta quando houver vontade do agente.

    A experincia da vida mostra algumas situaes em que o homem, sem vontade,

    movimenta-se ou abstm-se de movimento, dando causa, com uma dessas atitudes, a

    alguma leso a um bem jurdico penalmente protegido.

    Um exemplo: em certo hospital, meia-noite, a enfermeira Sandra deve

    ministrar, ao paciente Juarez, determinado medicamento, sem o qual o doente,

    inevitavelmente, morrer. Suponham que, dez minutos antes, Joaquim, desejando a

    morte de Juarez, aps entrar no hospital, consegue subjugar a enfermeira, conduzindo-

    a a um quarto, onde a amarra com cordas e a amordaa com fitas adesivas de primeira

    qualidade, mantendo-a atada a uma das colunas do prdio, de tal modo que lhe

    impossvel gritar, grunhir, sair, soltar-se, enfim, realizar qualquer movimento com o

    corpo ou, simplesmente, com a boca.

    Aos dez minutos do novo dia, o paciente, sem o medicamento indispensvel,

    morre.

    A enfermeira omitiu-se? Deixou de cumprir seu dever de ministrar o

    medicamento ao paciente? Houve, de sua parte, um comportamento humano, negativo,

    uma absteno de um movimento final?

    evidente que no. S h conduta quando h vontade. No exemplo, a fora

    imprimida contra a enfermeira impedia-lhe de ter vontade de agir. Era-lhe fisicamente

    impossvel agir. Mesmo que desejasse e certo que ela assim quis , com todas as

    suas foras, soltar-se das amarras, e dirigir-se ao quarto do paciente, para aplicar-lhe o

    medicamento, no lhe era possvel faz-lo. claro que ela deixou de cumprir um dever.

    Aconteceu uma inao, uma omisso, mas essa absteno do movimento do corpo no

    foi voluntria, no foi impulsionada pela vontade humana; logo, no constituiu uma

    conduta.

    Ela no teve vontade de omitir-se, no teve vontade de deixar de movimentar-

    se. Sem vontade, no h conduta.

    Situaes como essa so chamadas de ausncia de conduta.

    D-se a ausncia de conduta quando ocorre a leso de um bem jurdico, em

    conseqncia da atitude do homem positiva ou negativa sem, contudo, ter havido,

    da parte dele, vontade. uma situao em que ocorre a leso de um bem jurdico, com

    a interferncia do homem, sem que tenha havido, contudo, conduta, por inexistir a

    vontade. So trs os casos possveis.

  • Fato Tpico - 11

    8.2.1 Coao fsica absoluta ou fora irresistvel

    Como no exemplo da enfermeira, em algumas situaes, incide sobre algum uma

    fora fsica externa irresistvel, a qual, atuando materialmente sobre ele, no pode ser

    repelida, de modo a no lhe deixar qualquer opo de movimento corporal.

    Trata-se de uma fora absoluta, a que no se pode resistir.

    Nesses casos, o homem deixa de movimentar-se, deixa de realizar um

    comportamento positivo, de fazer alguma coisa, sem vontade alguma de abster-se, mas

    em virtude da irresistibilidade da fora externa que sobre ele atua. Essa fora to

    forte, que elimina, totalmente, a possibilidade de o homem ter vontade. Nem vontade

    de omitir-se.

    A fora deve ser fsica e absoluta, deve atuar materialmente, concretamente,

    sobre o corpo do homem e no apenas sobre sua mente, e deve ser de tal intensidade,

    que seja impossvel a ele contrapor-se, de modo a, pelo menos, neutraliz-la ou

    diminu-la, tornando-a resistvel.

    S haver coao fsica absoluta sobre aquela enfermeira, se as cordas que a ataram

    tiverem sido suficientemente fortes, estiverem devidamente ajustadas, pois, se tiver sido

    amarrada com lacinhos de fita, ou cordas frouxas, a fora no seria irresistvel.

    Havendo a chamada vis absoluta, no h vontade, no h conduta e, de

    conseqncia, no h fato tpico, e por isso o fato no crime.

    8.2.2 Movimentos reflexos

    Em movimentos do corpo ditados pelos reflexos naturais, tambm no se pode

    falar na existncia de vontade.

    Imaginem a situao: Joo, vendo Joana sentada ao lado da parede da sala de

    aula, e estando por ela apaixonado, resolve abord-la, dirigindo-se a sua frente, onde

    pretende declarar seu amor. Ao se aproximar da amada, encosta seu brao parede

    que, por um defeito da fiao eltrica interna, emite um choque eltrico que atinge, com

    grande intensidade, o corpo de Joo. Este, num movimento reflexo, impensado,

    indesejado, move bruscamente o brao, atingindo o rosto de Joana, bem no olho

    direito, causando-lhe equimoses.

    Esse fato revela um movimento corporal de Joo que, todavia, no constitui

    conduta, posto que no houve, da parte dele, qualquer vontade de movimentar o brao.

  • 12 Direito Penal Ney Moura Teles

    O que houve foi um movimento corporal instintivo, impensado, indesejado, mas

    determinado pela dor sofrida e que gerou um comando cerebral dirigido a Joo no

    sentido de que ele movesse seu brao, livrando-o do choque eltrico. No houve

    vontade e, por isso, no houve conduta. Sem conduta, no h fato tpico, no h crime.

    8.2.3 Estados de inconscincia

    O primeiro caso revelou a inexistncia de vontade, pela ao material externa

    imprimida contra o agente. Ali existe conscincia do fato, mas no h vontade. No

    movimento reflexo, no h nem conscincia acerca do fato e, de conseqncia, no

    pode haver vontade. Nos chamados estados de inconscincia, no existe, simplesmente,

    a conscincia. O agente encontra-se absolutamente privado da possibilidade de saber

    qualquer coisa. como se ele estivesse cego, surdo, mudo e em sono profundo. Logo,

    no pode querer.

    Durante o sono, no sonambulismo, na embriaguez letrgica, no se pode

    afirmar que o agente tenha agido, porque, em qualquer dessas hipteses, no se pode

    concluir pela existncia de mnima vontade.

    Nos casos em que o agente se tenha colocado, voluntariamente, num estado de

    inconscincia, para realizar o fato tpico, chamados actiones liberae in causa, o direito

    vai considerar relevante a atitude anterior, realizada com conscincia. Esse assunto

    tratado no item 11.2.3.

    Ausente, pois, a conscincia, ausente a vontade e, de conseqncia, a conduta,

    ainda que dessa situao decorra qualquer leso a qualquer bem jurdico. No havendo

    conduta, no h fato tpico, e sem este no h o crime.

    8.3 FORMAS DE CONDUTA

    Conduta o comportamento humano voluntrio dirigido a um fim (final), positivo

    ou negativo. A expresso conduta sinnima de ao, em seu sentido amplo, que

    engloba a conduta positiva e a conduta negativa. A conduta positiva chamada ao,

    em sentido estrito, e a conduta negativa chamada omisso.

    8.3.1 Ao

    Ao, em sentido estrito, tambm chamada comisso, ou conduta comissiva, a

    que se realiza por meio de um movimento do corpo dirigido a uma finalidade. Existe

  • Fato Tpico - 13

    uma vontade, um querer, e a manifestao dessa vontade, sua concretizao, por meio

    de um movimento do corpo. So exemplos de aes: disparar um tiro de revlver,

    empurrar o corpo de uma pessoa, cortar com uma faca um objeto, levar o copo ou o

    garfo boca.

    A grande maioria dos tipos legais de crime descreve condutas matar algum,

    subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mvel, constranger mulher

    conjuno carnal... que se realizam por aes em sentido estrito, de movimentos

    corporais, o que no impede possam algumas delas realizar-se por meio de

    comportamento oposto, da absteno de movimentos corporais, a omisso, como se

    ver a seguir.

    8.3.2 Omisso

    A omisso, ou conduta omissiva, a que se manifesta por absteno do

    movimento do corpo, dirigida a uma finalidade.

    A omisso no simplesmente deixar de fazer alguma coisa, mas deixar de realizar

    um comportamento que deveria ser realizado e que o omitente poderia ter concretizado

    a omisso a no-realizao de um comportamento exigido que o sujeito tinha a

    possibilidade de concretizar6.

    8.3.2.1 Omisso pura

    Omisso pura ou omisso prpria, que d lugar aos chamados crimes omissivos

    prprios, a absteno de um comportamento determinado por uma norma penal

    incriminadora.

    Para existir a omisso prpria, necessrio que exista um tipo legal de crime

    descrevendo uma conduta omissiva, como, por exemplo, no art. 269 do Cdigo Penal:

    Deixar o mdico de denunciar autoridade pblica doena cuja notificao

    compulsria.

    Como se v, o tipo descreve uma omisso, uma inao, a absteno de um

    movimento, pelo que a norma manda o sujeito realizar um movimento do corpo, uma

    ao, em sentido estrito: deve o mdico denunciar autoridade pblica a doena, deve

    realizar um comportamento positivo.

    6 JESUS, Damsio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 208.

  • 14 Direito Penal Ney Moura Teles

    No realizando o comportamento exigido pela norma incriminadora, quando lhe

    era possvel faz-lo, o sujeito realiza o fato tpico omissivo prprio.

    So exemplos de tipos de omisso pura os seguintes, do Cdigo Penal:

    a) definido, no art. 135, como omisso de socorro (Deixar de prestar assistncia,

    quando possvel faz-lo sem risco pessoal, criana abandonada ou extraviada, ou

    pessoa invlida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou no pedir,

    nesses casos, o socorro da autoridade pblica);

    b) no art. 244, o abandono material (Deixar, sem justa causa, de prover subsistncia

    do cnjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de

    ascendente invlido ou valetudinrio, no lhes proporcionando os recursos necessrios

    ou faltando ao pagamento de penso alimentcia judicialmente acordada, fixada ou

    majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente

    enfermo);

    c) no art. 246, o abandono intelectual (Deixar, sem justa causa, de prover instruo

    primria de filho em idade escolar).

    Os comportamentos omissivos so bem revelados nas locues verbais

    utilizadas na descrio das condutas: deixar de, no pedir, deixar, no lhes

    proporcionando, faltando ao pagamento etc.

    Como se verifica, nos referidos tipos no se exige que da omisso resulte algum

    dano a quem quer que seja, bastando, para caracterizar o fato, que o sujeito no realize o

    comportamento exigido e que ele podia realizar. Omisso no realizar o devido e

    possvel.

    8.3.2.2 Omisso imprpria

    A omisso imprpria, tambm chamada comisso por omisso, e que d lugar

    aos delitos omissivos imprprios ou comissivos por omisso, ou, ainda, comissivos

    omissivos, a absteno de um movimento corpreo final que o sujeito devia e podia

    realizar para impedir a produo de um resultado lesivo de um bem jurdico.

    Para a definio desses crimes, no existe uma norma penal incriminadora que

    mande o sujeito agir, como na omisso pura.

    Ocorre um fato tpico de crime omissivo imprprio quando, existindo norma

    penal impondo a determinado sujeito a obrigao de agir para impedir a ocorrncia de

    resultados lesivos conferindo-lhe, portanto, uma obrigao de realizar um

    comportamento positivo de modo a evitar que um bem jurdico seja atingido , ele,

  • Fato Tpico - 15

    podendo, no o realiza, em razo do que ocorre o resultado que deveria ter sido evitado.

    Deixando de realizar a ao exigida e, em conseqncia dessa inao, ocorrendo

    o resultado, o sujeito que devia e podia agir responde pelo evento acontecido, como se o

    tivesse cometido.

    Veja-se o exemplo: Joo, beira da piscina de sua casa, v seu filho menor

    afogando-se e no tenta salv-lo, podendo faz-lo. O filho morre afogado.

    Do ponto de vista mecnico, meramente causal, no se pode dizer que Joo

    matou seu filho, uma vez que ele no realizou um comportamento destinado a obter o

    resultado morte. No realizou uma ao. No cometeu algo, no agiu. Ocorre que a lei

    ordena ao pai que proteja o filho, impedindo a ocorrncia de qualquer mal com o menor.

    Manda-o agir para impedir todos e quaisquer resultados lesivos a seu filho.

    Ao manter-se inerte, diante do perigo representado pelo afogamento, o pai,

    podendo movimentar-se para evitar o mal, viola a norma, e por isso responder pelo

    resultado, como se o tivesse produzido. como se ele tivesse cometido o crime de

    homicdio, por omisso. Da o nome de comisso por omisso.

    A omisso imprpria, portanto, no pode ser realizada seno por certas pessoas,

    aquelas que tm o dever de agir para impedir o resultado.

    O 2 do art. 13 do Cdigo Penal estabelece:

    A omisso penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para

    evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigao

    de cuidado, proteo ou vigilncia; b) de outra forma, assumiu a

    responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior,

    criou o risco da ocorrncia do resultado.

    Essas pessoas esto obrigadas a agir para evitar que o resultado ocorra. Se,

    podendo agir, no realizam uma ao, stricto sensu, a fim de impedir a ocorrncia do

    resultado, sero consideradas, por fora da norma, causadoras dele. claro que s se

    pode consider-las causadoras do resultado do ponto de vista normativo, por fora da

    norma, e no do ponto de vista fsico, natural, causal, j que o que mata o filho afogado

    a ingesto de gua nos pulmes e a asfixia que se segue etc.

    Quem mata o filho que est pendurado num barranco ou num galho de uma

    rvore e cai no despenhadeiro no o pai que, podendo, no o socorre, mas o

    traumatismo craniano decorrente do choque do corpo com o cho. Fisicamente, isso,

    mas, do ponto de vista do Direito, da norma jurdica, quem tinha o dever de agir para

    impedir o resultado lesivo ser considerado seu causador e por ele responder.

  • 16 Direito Penal Ney Moura Teles

    Assim, o pai, natural ou por adoo, o curador, o tutor, o carcereiro, o diretor do

    presdio, so pessoas que tm, por dispositivo legal, a obrigao de cuidar dos filhos,

    proteg-los e zelar por eles, pelos curatelados, tutelados e presos, respectivamente.

    Estando qualquer desses diante do risco de uma leso, aqueles, seus garantes,

    esto obrigados a agir para impedir que a leso ocorra.

    Se a pessoa, mesmo no tendo o dever legal de proteo, guarda ou vigilncia,

    assumir, contratualmente, a responsabilidade de impedir o resultado, tambm estar

    obrigada a agir. No necessria a existncia de um contrato, e tampouco escrito, mas

    que a pessoa se coloque numa posio de garantidora, de protetora.

    o caso do guia de turismo, da bab, do enfermeiro, em relao ao turista,

    criana e ao doente. Entre eles h uma relao de confiana, em que os primeiros se

    obrigam a prestar uma ateno especial. Por isso, na situao em que se pode prever a

    possibilidade de um resultado indesejado, lesivo, de um bem jurdico, o garante deve

    agir para impedir o resultado. Se no o faz, podendo, e o resultado ocorre, por ele ir

    responder, pois que assumiu a responsabilidade de evit-lo.

    A ltima situao a da pessoa que, com um seu comportamento precedente, cria

    o risco de que o resultado venha a ocorrer. Por exemplo, Joo coloca fogo em pastagem

    de sua propriedade, costume da regio Centro-oeste do pas, e o fogo, em razo dos

    ventos do Planalto Central, ultrapassa os limites de sua propriedade, atingindo um

    galpo situado no terreno de seu vizinho Alfredo, onde esto guardados bens de sua

    propriedade, mquinas agrcolas, alguns animais, e at crianas brincando.

    O risco da ocorrncia de um resultado lesivo a qualquer dos interesses dos

    vizinhos de Joo foi criado por seu comportamento voluntrio de atear fogo na

    vegetao de sua propriedade. certo que sua vontade no era de causar prejuzo a

    seus vizinhos; todavia, o fogo ultrapassou os limites de sua propriedade, e foi gerar

    perigo de leso para interesses de terceiras pessoas.

    Joo tem o dever jurdico de, podendo, agir para impedir a ocorrncia de quaisquer

    leses a quaisquer bens jurdicos de quem quer que seja, pois foi o responsvel pela

    criao da situao que os colocou sob o risco de sofrer qualquer leso.

    Essas pessoas as que tm o dever legal de proteo, guarda e vigilncia, as que

    de outra forma assumiram a responsabilidade de impedir o resultado, e as que, com

    comportamento antecedente, criaram a situao de risco de ocorrer o resultado so

    denominadas garantes, e esto obrigadas a agir para impedir que o resultado acontea.

    Se, podendo, no agem, vale dizer, omitindo-se, respondem pelo resultado como se

    tivessem dado causa a ele. essa a norma penal.

  • Fato Tpico - 17

    A nica possibilidade de se eximirem de responder pelo resultado, de no verem

    suas condutas tipificadas como comissivas por omisso, ou de omisso imprpria,

    demonstrarem absoluta impossibilidade de agirem. Por exemplo: no pode impedir a

    morte do filho que se afoga na piscina o pai que se encontrava em outra cidade no

    momento em que a criana se atira na gua.

    Apesar de ter o dever legal de proteo, guarda e vigilncia, o pai encontrava-se

    trabalhando em outro local, e, mesmo tendo o dever de agir para impedir o resultado,

    no lhe era possvel faz-lo, at por no ter conhecimento da necessidade de agir, e,

    mesmo que avisado, no lhe era possvel evitar o resultado.

    De conseqncia, s responde pelo delito comissivo por omisso aquele que tem o

    dever, legal ou jurdico, de agir para impedir o resultado e, podendo faz-lo, omite-se.

    8.4 DOLO

    O Direito Penal no poderia considerar crime o simples comportamento

    humano, a conduta, positiva (ao) ou negativa (omisso), independentemente da

    formao da vontade do sujeito.

    Longe se vai, na histria, o tempo em que se punia pela simples relao de causa e

    efeito entre o comportamento do homem e o resultado lesivo. Um Direito Penal

    democrtico s pode considerar crimes comportamentos humanos voluntrios que

    poderiam ter sido evitados.

    Importa muito saber qual a atitude interna do homem quando se comporta de

    modo a causar dano a um bem jurdico alheio. Agiu com vontade de matar? Agiu com

    displicncia?

    O que ocorre na esfera do pensamento humano, no interior da conscincia do

    sujeito, no momento em que ele movimenta seu corpo ou abstm-se do movimento que

    devia realizar? A resposta a essa indagao imprescindvel para se determinar a

    existncia de um crime.

    No crime qualquer causao de um resultado lesivo de um bem jurdico. H

    mortes inevitveis, como a causada por um raio que cai sobre a cabea de um homem.

    S sero considerados crimes resultados que poderiam ter sido evitados.

    Estabeleceu-se que os fatos definidos como crime sero dolosos ou culposos. Os

    primeiros constituem a regra e sero punidos mais rigorosamente, porque constituem

    comportamentos merecedores de maior resposta penal.

  • 18 Direito Penal Ney Moura Teles

    Logo, somente haver conduta tpica dolosa ou conduta tpica culposa. Por isso,

    necessrio entender tanto o conceito de dolo quanto o de culpa, em sentido estrito,

    que qualificam as condutas, respectivamente, de dolosas e de culposas.

    8.4.1 Teorias do dolo

    Vrias so as teorias que procuram explicar o que seja esta importantssima

    categoria do Direito Penal, o dolo. Basta estudar as trs mais importantes, a teoria da

    vontade, a da representao e a do assentimento ou do consentimento.

    8.4.1.1 Teoria da vontade

    A teoria clssica, elaborada por Carrara, dizia que dolo a inteno mais ou

    menos perfeita de praticar um fato que se conhece contrrio lei.

    Age com dolo, segundo a teoria da vontade, quem tem, como objetivo, a prtica

    de um fato definido como crime. Em outras palavras, dolosa a conduta em que o

    agente tem vontade de alcanar o resultado, de conseguir que ocorra, se materialize a

    conseqncia de seu comportamento.

    doloso o comportamento de quem tem conscincia do fato, de seu significado

    e, ao mesmo tempo, a vontade de realiz-lo.

    Exemplo: Joo tem conscincia de que, se deixar cair uma pedra pesada, de

    aproximadamente 20 quilogramas, sobre a cabea de Maria, sua mulher, que dorme,

    poder mat-la. Desejoso de ficar vivo, j que no consegue viver com sua mulher e

    est apaixonado por Mariana, desfere, contra sua mulher, o golpe violento com a

    pesada pedra, acabando por mat-la. Agiu, a toda evidncia, com dolo, com conscincia

    de que, realizando aquele comportamento, causaria a morte de Maria, e com vontade

    de produzir esse resultado.

    Significa dizer que Joo tinha conscincia e vontade de realizar o fato definido

    como crime no art. 121 do Cdigo Penal. Tinha conscincia dos fatos e vontade de dar

    causa ao resultado proibido.

    Quem assim agir, segundo essa teoria, age dolosamente. quem consegue

    representar o futuro resultado, quem o prev e, simultaneamente, deseja alcan-lo.

    Dolo , portanto, previso do resultado e, a um s tempo, vontade de alcan-lo. Dolo

    conscincia (previso) e vontade.

  • Fato Tpico - 19

    8.4.1.2 Teoria da representao

    Uma segunda teoria entende o dolo de forma bem distinta. No necessrio que

    o agente tenha vontade de alcanar o resultado, bastando que o preveja, que o

    represente.

    Se o agente antev o resultado e no se detm, realizando uma conduta que d

    causa ao resultado, mesmo no tendo desejado alcan-lo, ter agido dolosamente, por

    t-lo representado, porque o previu.

    Quem, dirigindo seu veculo por uma avenida movimentada avistando

    frente alguns transeuntes prximos da pista, que aparentam querer atravess-la, e

    prevendo a possibilidade de uma travessia e possvel atropelamento, com seu veculo ,

    continua, apesar da previso do atropelamento, no percurso, sem se deter, e acaba por

    atropelar algum, causando-lhe ferimentos, s por ter previsto a possibilidade do

    resultado, s por t-lo representado, s por isso, j teria agido com dolo.

    Para essa teoria no necessrio que o agente tenha vontade de produzir o

    resultado, basta que o tenha previsto. Dolo seria a representao do resultado.

    8.4.1.3 Teoria do assentimento ou do consentimento

    Esta teoria, tanto quanto a teoria da vontade, exige que o agente tenha

    conscincia do fato, tenha previso do resultado, mas no exige que ele queira alcanar

    o resultado, bastando que o aceite, que nele consinta, caso ele acontea.

    Em outras palavras, para essa teoria dolosa a conduta de quem, prevendo o

    resultado, no o deseja, mas d seu assentimento, se o resultado, eventualmente,

    acontecer.

    Exemplo: Joo numa caada, avistando um animal e prximo dele um homem,

    desejando atingir a caa, prev que, se errar o tiro, poder atingir o homem a quem no

    deseja matar. Fazendo a previso, Joo, apesar disso, pensa: no quero atingir o

    homem, mas se o atingir, tudo bem, no posso fazer nada. Em seguida, atira e atinge

    o homem, em vez da caa. Nesse caso, para esta teoria, Joo agiu com dolo, porque,

    apesar de no querer o resultado, aceitou-o.

    8.4.1.4 Dolo no Cdigo Penal brasileiro

    Das trs teorias, a da representao no pode, em nenhuma hiptese, ser aceita,

    pois no pode ser tido como doloso o simples prever um resultado, que no

  • 20 Direito Penal Ney Moura Teles

    comportamento, mas um puro acontecimento psicolgico, no revelando nenhuma

    atitude, nem mesmo interna do sujeito, mas um simples pensamento, uma simples

    constatao, alis, absolutamente indemonstrvel.

    Quem apenas prev o resultado no pode ser tratado igualmente ao que, alm

    de prever, deseja alcan-lo. certo, portanto, que o dolo no pode ser apenas

    previso.

    No se pode esquecer que aqui se trata da construo de um elemento

    indispensvel para considerar uma conduta como tpica, merecedora de uma pena

    criminal, alis, a mais severa das sanes jurdicas.

    Devem ser consideradas delituosas as condutas realizadas com deliberada

    vontade de realizar a figura tpica, alcanando o resultado nela previsto. Aquele que age

    com a inteno de causar um dano a um bem jurdico deve merecer a maior

    reprovao. Com razo, pois, a teoria da vontade. Dolo deve ser conscincia do fato e a

    vontade de produzir o resultado.

    Por outro lado, dolo no pode ser apenas conscincia e vontade, previso e

    vontade de alcanar o resultado, uma vez que a atitude daquele que, mesmo no

    desejando o resultado, aceita-o, se ele ocorrer, to grave que merece quase tanta

    censura quanto a do que quer o resultado.

    Quem, aps prever um resultado, no se detm e age, com a atitude interna de

    aceitao da leso, de indiferena em relao ao bem jurdico alheio, deve ser

    equiparado ao que busca realizar a leso, alcanar o resultado. A atitude interna de no

    respeitar o bem jurdico alheio daquele que no deseja, mas aceita sua leso, deve

    merecer, se no idntico, pelo menos muito prximo tratamento, e ser equiparada do

    que a deseja, pois que, apesar da diferena, significam, praticamente, o mesmo para os

    bens jurdicos colocados sob a proteo do Direito Penal.

    Nenhum dos agentes se detm diante da previso do resultado lesivo. Um

    porque o deseja, o outro porque o aceita. As duas atitudes internas devem ser

    consideradas, igualmente, dolosas. Nenhum deles evita a conduta que o pode gerar,

    porque no est preocupado com a possibilidade da leso. E as duas condutas

    provocam a leso. A diferena entre querer e apenas aceitar no suficiente para impor

    tratamento diferente s duas condutas. Por isso, o Cdigo Penal brasileiro adotou as

    duas teorias, a da vontade e a do assentimento, no art. 18, I: Diz-se o crime: I doloso,

    quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

    dolosa a conduta quando o agente quis o resultado, e tambm quando,

    mesmo sem quer-lo, o agente assume o risco de sua produo, o que significa

  • Fato Tpico - 21

    aceita-o, se ele ocorrer. No se deve afirmar que age com dolo o agente que arrisca

    um comportamento, mas o que aceita o risco de sua produo. Aceitar ou assumir o

    risco no tem o mesmo sentido do popular arriscar, que significa, sim, um

    comportamento perigoso, arriscado, mas que no quer dizer, necessariamente, que o

    agente aceita o resultado lesivo, se ele vier a acontecer.

    8.4.2 Natureza e elementos do dolo

    Para os clssicos, o dolo, alm da conscincia do fato e da vontade de alcanar o

    resultado, conteria outro elemento, de carter normativo, que seria a conscincia da

    ilicitude, pelo que s agiria com dolo o sujeito que, alm de ter previso do resultado e

    vontade de alcan-lo, soubesse que sua conduta era proibida, ou ilcita.

    Para a teoria finalista, o dolo, porm, natural, no contendo esse elemento

    normativo que a conscincia da ilicitude. Dolo s conscincia do fato previso e

    vontade. A conscincia da ilicitude um elemento normativo que se situa no mbito da

    terceira caracterstica do crime, a culpabilidade.

    Quando do exame da culpabilidade, ser demonstrada com preciso a coerncia da

    teoria finalista a respeito da natureza do dolo, e a impossibilidade de colocar, entre seus

    elementos, a conscincia da ilicitude. Essa demonstrao no pode ser feita neste

    momento.

    Assim, so elementos estruturais do dolo: a conscincia e a vontade.

    O elemento intelectual do dolo a conscincia do fato, da conduta, do resultado

    e do nexo de causa e efeito que deve existir entre a conduta e o resultado.

    A vontade o elemento volitivo, que impulsiona a conduta em direo ao

    resultado.

    Um atirador, no stand de tiro ao alvo, do clube de tiro, que atinge algum que

    passa por detrs do alvo, matando-o, no tem conscincia do fato, nem vontade de

    alcanar o resultado. No agiu dolosamente.

    O caador que, avistando um vulto na selva, pensando tratar-se de uma caa,

    atira e verifica, depois, ter atingido um homem, igualmente age sem dolo, pois no tem

    nem conscincia de que est atirando numa pessoa, nem vontade de atingi-la.

    O dolo, segundo HANS WELZEL, abrange no s o fim pretendido, mas tambm os

    meios utilizados e as conseqncias secundrias vinculadas ao emprego dos meios.

  • 22 Direito Penal Ney Moura Teles

    8.4.3 Espcies de dolo

    O dolo direto, ou determinado, aquele em que o sujeito busca alcanar um

    resultado certo e determinado.

    Contrariamente, diz-se que o dolo indireto ou indeterminado, quando a

    vontade do agente no se dirige a um resultado certo, preciso, determinado.

    O dolo indireto pode ser alternativo, quando o sujeito quer um ou outro

    resultado, por exemplo, matar ou ferir seu desafeto. Sua vontade dirige-se a qualquer dos

    resultados, no a um deles especificamente. Se acontecer o primeiro, estava na vontade

    do agente. Se acontecer o segundo, do mesmo modo, era resultado almejado.

    A outra espcie de dolo indireto o dolo eventual, em que o agente no deseja o

    resultado previsto, mas o aceita, se ele, eventualmente, acontecer. Ocorre quando o

    agente, mesmo no querendo o resultado, assume, aceita o risco de sua produo. Sua

    vontade no se dirige ao resultado, mas, se este acontecer, ser aceito pelo agente.

    Com vontade de alcanar o resultado ou apenas aceitando-o, a conduta dolosa,

    o fato doloso, igualmente. Assim, no que diz respeito verificao da correspondncia

    entre o fato natural e o tipo legal de crime, nenhuma diferena faz ter sido o dolo direto

    ou indeterminado. J disse o doutrinador, o dolo eventual e o dolo direto so as faces

    de uma nica moeda.

    8.4.4 Conceito de dolo

    A noo de dolo apresentada at aqui a conscincia do fato e a vontade de

    causar o resultado, ou, em duas palavras, conscincia e vontade, ou, simplesmente,

    vontade de causar o resultado insuficiente, pois somente se aplica aos tipos legais

    de crimes que descrevem, alm da conduta, a produo de um resultado, como no

    homicdio simples, do art. 121, caput, do Cdigo Penal, matar algum.

    DAMSIO E. DE JESUS faz severa crtica a esse conceito, mostrando que o dolo

    deve abranger todos os elementos da figura tpica7.

    preciso ver, tambm, que muitos tipos legais de crime descrevem pura e

    simplesmente um comportamento humano, sem exigir a produo de qualquer

    conseqncia, como, por exemplo, deixar o mdico de denunciar doena de

    notificao compulsria.

    Esse tipo legal de crime s pode ser cometido com dolo. Dolo, nesse exemplo,

    7 Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 249.

  • Fato Tpico - 23

    no pode ser definido como previso e vontade de alcanar o resultado, pois o tipo

    referido no descreve qualquer resultado. Dolo, nesse caso, a vontade que deve ter o

    mdico de no denunciar a doena. Noutras palavras, para realizar esse fato tpico, o

    mdico deve ter conscincia de que a doena que no denunciou era de notificao

    compulsria e que assim se conduziu com vontade de no denunciar.

    Dolo, no caso, a vontade de realizar o tipo, a descrio da conduta proibida.

    Por isso, melhor dizer que dolo a conscincia e vontade de realizar o tipo

    objetivo de um delito8.

    8.5 CULPA, EM SENTIDO ESTRITO

    O Direito Penal deveria preocupar-se apenas com os comportamentos dolosos,

    que efetivamente representam uma atitude interna do homem que deve ser proibida e

    ter como conseqncia a severa sano penal. Deveria ser assim, no fosse o Direito

    Penal o protetor dos bens jurdicos mais importantes, das leses mais graves, que

    devem ser punidas, ainda que o fim pretendido por seus causadores seja outro.

    Modernamente, vm ocorrendo cada vez mais leses graves de bens jurdicos

    importantssimos, causadas por comportamentos humanos no dolosos. claro que

    pessoas morrem ou so feridas por causa de condutas humanas em que no se queria,

    nem se aceitava a leso, mas em muitos casos elas poderiam ser evitadas se o agente

    tivesse tomado um pouco de cuidado.

    Principalmente a partir do final do sculo passado, a vida das pessoas tornou-se

    extremamente perigosa, nas cidades abarrotadas de automveis, nas indstrias com

    suas mquinas velozes e potentes, no dia-a-dia do contato com materiais e elementos

    qumicos antes desconhecidos.

    O nmero de mortes e danos integridade corporal ou sade das pessoas,

    causados por comportamentos humanos no dolosos tem aumentado

    consideravelmente. O Direito Penal no poderia ignorar a existncia desses ataques,

    razo por que, ao lado da conduta dolosa, se passou a punir tambm o fato chamado

    culposo, praticado com culpa, em sentido estrito.

    8.5.1 Conceito e elementos da culpa, em sentido estrito

    8 CONDE, Francisco Muoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 57.

  • 24 Direito Penal Ney Moura Teles

    Os doutrinadores ensinam que no existe um conceito perfeito de culpa, em

    sentido estrito, mas que, com base no enunciado no art. 18, II, do Cdigo Penal (diz-se

    o crime culposo quando o agente deu causa ao resultado, por imprudncia,

    negligncia ou impercia), se poderia dizer que culposa a conduta voluntria que

    produz resultado ilcito, no desejado, mas previsvel, e excepcionalmente previsto,

    que podia, com a devida ateno, ser evitado9.

    A culpa, em sentido estrito, ou negligncia, expresso mais tcnica e precisa e

    que evita confuses desnecessrias, a falta de cuidado do agente, numa situao em

    que ele poderia prever a causao de um resultado danoso, que ele no deseja, nem

    aceita, e s vezes nem prev, mas que, com seu comportamento, produz e que poderia

    ter sido evitado.

    Desse conceito extraem-se os elementos que integram a culpa, em sentido

    estrito: (a) conduta voluntria; (b) inobservncia do dever de cuidado objetivo; (c)

    resultado lesivo indesejado; (d) previsibilidade objetiva; (e) tipicidade.

    8.5.2 Conduta voluntria

    S haver culpa, stricto sensu, e, de conseqncia, fato culposo, se nele

    estiverem reunidos todos os seus indispensveis elementos. Ausente um deles, o fato

    no culposo e, de conseqncia, no haver crime culposo.

    S interessam ao Direito Penal as condutas voluntrias. Por isso, para que haja

    culpa, a conduta, positiva ou negativa, deve ser voluntria e dirigida a determinada

    finalidade.

    De notar que, no fato culposo, a conduta no se dirige produo do resultado,

    no se destina realizao de um tipo legal de crime, pois, se assim fosse, haveria dolo.

    A conduta , todavia, final e dirige-se geralmente a um fim perfeitamente lcito,

    permitido pelo Direito.

    Se no for voluntria, no haver conduta, mas ausncia de conduta e o fato no

    ser tpico. Logo, no ser crime.

    8.5.3 Inobservncia do dever de cuidado objetivo

    Este um mundo farto de complexidade nas relaes humanas. Os indivduos

    9 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 6. ed. So Paulo: Atlas, 1991. p. 137.

  • Fato Tpico - 25

    vivem seu dia-a-dia intensamente. A moderna sociedade ocidental exige muito dos

    indivduos, em todos os setores de sua vida.

    O mundo vive uma guerra constante, em que todos desejam alcanar o sucesso,

    vida digna, felicidade, paz, prosperidade, tranqilidade, prazer, realizao pessoal,

    profissional, afetiva, enfim, todos querem ser felizes, e essa tal felicidade est sempre

    num ponto onde tudo leva a, quase sempre, acreditar o brao no alcana, a vista

    no divisa, as pernas no conseguem levar o corpo, ou o barco no aporta. Talvez, por

    isso, as pessoas no se contentam com o que tm e esto, sempre, apesar dos perigos e

    dos riscos, e, quase sempre, sem considerar conseqncias indesejveis, procurando o

    impossvel, com comportamentos impensados, perigosos, arriscados.

    Apesar da competio em que todos esto lanados, os homens devem

    comportar-se de modo a no causar prejuzo s outras pessoas. O direito posto na

    sociedade determina a todos o dever de agir de modo a respeitarem os bens e os valores

    dos outros indivduos.

    Se h pressa de chegar em casa, deve-se, todavia, evitar pisar os ps das

    pessoas que esto frente, empurr-las, derrub-las, sujar-lhes as roupas, enfim,

    deve-se realizar o objetivo, chegar ao destino, sem, contudo, causar, a quem quer que

    seja, qualquer dano, qualquer prejuzo, qualquer leso, ainda que no to grave.

    Se todos vivem apressadamente, perigosamente, em busca do sucesso, no

    podem, contudo, esquecer-se de que no haver sucesso algum s custas da desgraa

    alheia.

    Se importante e lucrativo para o empresrio da construo civil que o engenheiro

    e o arquiteto consigam construir um edifcio ao mesmo tempo belo, moderno, eficiente

    e com um custo reduzido, de modo a ser vendido por preo competitivo, que supere em

    muito o valor de seu custo, devem eles levar a cabo esse objetivo com o cuidado de no

    utilizarem materiais incompatveis, inservveis ou imprestveis, desaconselhados pela

    boa tcnica, e que possam, no futuro, comprometer as condies de segurana da obra,

    colocando em risco a sade e a vida de seus moradores.

    O cirurgio, na nsia de realizar um nmero maior de cirurgias num s dia, e,

    com isso, obter maior remunerao, no pode esquecer nenhum dos procedimentos

    recomendados pela tcnica que aprendeu e conhece, e tampouco descurar na execuo

    de cada um dos atos do procedimento, para que nenhum rgo ou tecido manipulado

    venha a sofrer leso capaz de lhe comprometer as condies de funcionamento ou, at

    mesmo, a existncia. Se o obstetra deve realizar a cesariana, no pode, por descuido,

    ou em razo da pressa, ferir o corpo do ser humano em formao, nem permitir que o

  • 26 Direito Penal Ney Moura Teles

    cordo umbilical, que envolvia seu pescoo, o estrangule.

    Quando se dirige de casa para o local de trabalho, ou deste para o comrcio, e

    da, retornando ao lar, conduzindo o veculo, possante e potente, fabricado no mesmo

    ano, ltimo modelo, ainda que haja pressa de chegar ao destino seja porque est

    atrasado, seja porque est faminto, seja, ainda, porque precisa cumprir um

    compromisso social anteriormente assumido , deve o homem, apesar de tudo, ter o

    devido cuidado para evitar que um gesto atrevido, ousado, ou descuidado, coloque a

    fora do veculo em movimento contra um corpo humano que atravessa a pista de

    rolamento, ou outro veculo, menos ou mais forte, num impacto de conseqncias as

    mais diversas possvel, inclusive para si mesmo.

    Nos dias de hoje em que a vida incorpora, cada vez mais, novos e modernos

    instrumentos e mecanismos, destinados a facilitar a vida do homem, mas que,

    conforme sejam manipulados, podem causar srios danos , todos tm, cada vez maior,

    um dever geral objetivo de adotar toda a cautela, toda a preocupao e precauo, todo

    o cuidado possvel, para no causar, com seus comportamentos, leses aos bens

    jurdicos alheios.

    um dever que no precisa estar escrito, expressamente, em uma norma

    jurdica. No necessria norma que imponha ao motorista do veculo a desacelerao

    e a compresso do pedal dos freios, quando, diante da luz verde do semforo, verificar

    um transeunte imprudente resolver atravessar a faixa, num momento para ele proibido.

    O sinal verde, se autoriza a travessia, no autoriza, contudo, o atropelamento.

    No necessrio que um qumico seja avisado de uma norma que o mande no

    acender fogo nas imediaes de substncias altamente sujeitas combusto. Tal

    proibio decorre do bom-senso, que o conhecimento acerca das coisas naturais lhe

    impe.

    Algumas relaes humanas, dada sua intensidade ou perigo, merecem, do

    direito, tratamento claro e especfico, inclusive com o estabelecimento de uma srie de

    normas de conduta, outras de natureza tcnica, que visam a, em ltima anlise, evitar a

    ocorrncia de acidentes e, mesmo, de fatos definidos como crime, com vistas a

    obteno do maior nvel de proteo dos bens jurdicos.

    Assim ocorre com o trfego de veculos automotores pelas ruas e estradas dos

    vrios pases. que, em pouco tempo, a quantidade dos veculos que trafegam numa

    cidade to grande que, se todos eles estivessem ao mesmo tempo em circulao, o

    espao das vias pblicas seria insuficiente para comport-los.

    Tornou-se necessrio estabelecer sentido de direo, velocidade mxima

  • Fato Tpico - 27

    permitida, locais onde podem ser estacionados, enfim, uma srie de normas que

    regulam o funcionamento dessa importante, saudvel e, ao mesmo tempo, perigosa,

    atividade humana.

    A vida do homem, pois, por ser perigosa, deve ser vivida com a observncia, por

    todas as pessoas, de um dever geral de cuidado, objetivamente verificvel. Esse dever

    imposto a todas as pessoas, e pode, mas no necessita, estar expressamente

    determinado, nem constar de alguma norma jurdica. um dever de cuidado objetivo

    que, obedecido, destina-se proteo dos bens jurdicos selecionados pela sociedade.

    A inobservncia desse dever geral constitui comportamento proibido pelo

    direito, e, se dela decorrer a leso a um bem jurdico, pode constituir o delito culposo.

    So formas de manifestao dessa violao: a imprudncia, a negligncia e a impercia.

    8.5.3.1 Imprudncia

    A imprudncia a prtica de um fato perigoso. A cautela impe a inao, a

    absteno de um movimento, o cuidado de no realizar uma ao, mas o sujeito,

    mesmo assim, age colocando um processo causal em movimento. , por exemplo,

    dirigir um veculo automotor em velocidade absolutamente incompatvel com

    determinado local, num estacionamento, s portas de uma escola ou numa praa

    repleta de transeuntes.

    A imprudncia , sempre, a realizao de um movimento do corpo. , pois,

    positiva.

    8.5.3.2 Negligncia

    A negligncia a ausncia de precauo, a omisso, a no-realizao de um

    movimento que deveria ter sido colocado em marcha, que a prudncia mandava fazer e

    o agente no faz.

    o descuido do pai que, ao chegar em casa, tira sua arma, carregada, e a deixa

    sobre a mesa da sala, local onde da a pouco estaro seus filhos menores e adolescentes.

    A negligncia , sempre, a omisso, a absteno de um movimento corporal; ,

    portanto, negativa.

    8.5.3.3 Impercia

  • 28 Direito Penal Ney Moura Teles

    Impercia a falta de aptido ou de destreza para o exerccio de determinada

    arte ou profisso, pressupondo, portanto, que o fato seja praticado no exerccio das

    artes ou profisses.

    Mdicos, engenheiros, farmacuticos, qumicos, pedreiros, motoristas,

    carpinteiros, enfim, todos os profissionais esto obrigados a desempenhar-se de acordo

    com as normas tcnicas de cada uma de suas profisses, a fim de no causarem leses

    aos bens jurdicos das outras pessoas.

    O cirurgio deve, ao fazer as incises sobre o corpo humano, atentar para as

    normas tcnicas procedimentais, de modo a no cometer erros no momento em que faz

    o bisturi incidir sobre os tecidos do corpo humano, e a no fazer incises mais

    profundas que o indispensvel, lesionando partes que no deveriam ser atingidas, ou

    afetando rgos outros que no os necessrios cirurgia proposta.

    8.5.3.4 Concluso

    As trs modalidades de comportamento vistas constituem as manifestaes da

    ausncia de cautela, de cuidado, da observncia do dever que todos tm, com relao

    aos bens alheios.

    Na verdade, correto denominar essa inobservncia do dever de cuidado

    objetivo de, simplesmente, negligncia. Essa expresso, alis, deveria substituir a

    expresso culpa, em sentido estrito, inclusive na lei, para que no mais se falasse

    em crime culposo, fato culposo, mas em crime negligente ou fato negligente.

    Por uma razo muito simples: a impercia s ocorre porque o agente foi

    negligente, deixando de observar a norma tcnica a que estava obrigado. A impercia

    decorre da negligncia do agente que deixou de observar o cuidado devido. A

    imprudncia, igualmente, um comportamento positivo que decorre da ausncia da

    cautela, da falta da observncia de uma regra: o motorista que dirige em excesso de

    velocidade est sendo imprudente, porque no observa a regra que manda no

    ultrapassar a velocidade mxima para aquele local. imprudente, por ter sido

    negligente.

    A negligncia , na verdade, o gnero do qual impercia e imprudncia so

    espcies.

    8.5.4 Resultado naturalstico indesejado

  • Fato Tpico - 29

    Para que haja fato culposo, ou negligente, imprescindvel que seja produzido o

    resultado indesejado.

    Por mais que o sujeito tenha sido negligente, deixando de observar o dever de

    cuidado objetivo, s haver fato culposo se com seu comportamento tiver causado a

    modificao do mundo externo, atingindo um bem jurdico. Se no houver resultado,

    no haver crime culposo, podendo at ter havido outra infrao penal, mas dolosa, e

    no culposa.

    Por exemplo, se Joo est a dirigir em alta velocidade pelas ruas da cidade,

    realizando manobras altamente perigosas com seu veculo, colocando a vida das

    pessoas em perigo, assustando-as, mas, sem atingir nenhuma delas, sem ferir ou matar

    quem quer que seja, no haver fato culposo, mas poder ter acontecido um desses

    fatos dolosos: a contraveno penal do art. 34 da LCP: dirigir veculos na via pblica,

    ou embarcaes em guas pblicas, pondo em perigo a segurana alheia, ou o crime

    definido assim no art. 132 do Cdigo Penal: expor a vida ou a sade de outrem a

    perigo direto ou iminente. Qualquer dessas duas infraes ter sido cometida

    dolosamente. No haver fato culposo, sem resultado.

    S haver delito culposo, quando houver um resultado, e este resultado no

    pode ser desejado, nem aceito, pelo agente, pois, se assim for, o fato ser doloso.

    8.5.5 Previsibilidade objetiva

    Nem todas as leses no dolosas a bens jurdicos podem ser evitadas. Algumas

    condutas humanas so causa de danos a bens importantes em situaes em que era

    absolutamente impossvel evit-las, ainda que o homem se conduzisse com a mais

    perfeita e total observncia do dever de cuidado objetivo. que certos eventos so

    absolutamente inevitveis, e, como tal, situam-se fora do mbito da proteo do Direito

    Penal.

    O Direito somente pode proibir e punir os fatos que puderem ser evitados. S pode

    considerar proibidas as condutas que derem causa a resultados que puderem ser

    impedidos.

    E s podem ser evitados os resultados que puderem ser antevistos pelo homem, o

    agente. Se este no tiver a possibilidade de antev-los, no ter como agir ou abster-se

    para evitar que eles ocorram.

    Por essa razo, s se pode falar na ocorrncia de um fato culposo quando o

    sujeito tiver a possibilidade de prever o resultado lesivo, quando houver previsibilidade.

  • 30 Direito Penal Ney Moura Teles

    Previsibilidade a possibilidade de o sujeito, nas condies em que se encontra,

    antever o resultado lesivo. Previsvel aquele resultado que pode ser previsto.

    Para que o direito possa fazer incidir punio sobre algum que no desejava um

    resultado lesivo, indispensvel que tal leso pudesse ter sido evitada por ele, se tivesse

    agido com o devido cuidado.

    Trata-se de uma previsibilidade objetiva, normal, exigvel ao comum dos cidados,

    de todos, porque comum, no de uma previsibilidade anormal, presente entre os

    paranormais, os videntes e clarividentes, ou aquela que s uma pessoa extremamente

    prudente pode ter.

    Dirigindo seu veculo por uma movimentada avenida da cidade, ao meio-dia de

    uma quarta-feira, no feriado, prximo de uma faixa de travessia de pedestre, estando

    alguns deles margem da pista, plenamente previsvel, a qualquer motorista, que um

    dos pedestres, apressado, atravesse a avenida antes que o sinal o autorize.

    No previsvel, contudo, que, dirigindo o mesmo veculo, no mesmo dia e lugar,

    um daqueles transeuntes resolva cometer suicdio atirando-se sob o veculo, no exato

    momento em que este, em velocidade moderada, se aproxima do grupo de pedestres.

    A previsibilidade objetiva essencial para a existncia do fato culposo, porquanto

    s em sua presena o agente poderia ter evitado o resultado lesivo e, no tendo adotado

    as precaues necessrias, por ter sido negligente, acaba por dar causa ao resultado e

    por isso por ele responder.

    Sendo o resultado previsvel, o sujeito pode ter duas atitudes: prev ou no prev o

    resultado.

    8.5.5.1 Culpa inconsciente

    Ocorre quando o sujeito no realiza a previso do resultado. previsvel, mas

    ele, no obstante isso, no o prev e impulsiona, voluntariamente, a conduta, dando

    causa ao resultado. Com efeito, sua conduta culposa, mas ele no teve conscincia de

    que o resultado ocorreria, porque no realizou a previso, no representou o resultado

    que era, plenamente, previsvel. Por isso, agiu, e o fez sem a conscincia de que poderia

    causar o resultado. Foi negligente porque no representou o resultado. Por isso, diz-se

    ser sua culpa inconsciente.

    8.5.5.2 Culpa consciente e dolo eventual

  • Fato Tpico - 31

    s vezes o sujeito realiza a previso do resultado, mas confia sinceramente que

    poder evit-lo ou que ele no ocorrer, agindo com a convico plena de que, apesar

    da possibilidade de que o resultado ocorra, no acontecer nenhum resultado lesivo.

    Essa conduta culposa consciente.

    De notar que muito prxima da conduta com dolo eventual. Neste, o agente

    prev o resultado, no o deseja, mas o aceita, se ele eventualmente acontecer. Naquela,

    ele prev o resultado, no o deseja e no o aceita, em nenhuma hiptese, se ele vier a

    acontecer.

    A diferena entre condutas com culpa consciente e com dolo eventual muito

    tnue, situando-se exclusivamente no interior da psique humana, na aceitao, ou no,

    do resultado, uma atitude puramente interna.

    Exemplo: Everaldo, saindo do estacionamento da Faculdade em seu veculo,

    tendo Arlindo, seu colega, a seu lado, e vendo, frente, a colega de ambos, Cludia,

    prestes a atravessar a rua, resolve assust-la, passando com o carro bem prximo dela.

    Avistando-a, fala para Arlindo: Vou dar um susto na Cludia, tirando um fininho.

    Arlindo, preocupado, faz a previso de um resultado lesivo, e diz: Cuidado, voc pode

    atropel-la!

    Diante de um resultado lesivo previsvel, o agente, Everaldo, aps realizar a previso,

    com o auxlio de Arlindo, pode ter trs atitudes: a primeira delas , observando o dever

    de cuidado objetivo, evitar a conduta perigosa para o bem jurdico de Cludia. Se o

    fizer, timo, sem leso ao bem jurdico, sem fato tpico culposo, o fato no interessar

    para o estudioso do Direito Penal.

    Se, todavia, no quiser atentar para o que o Direito lhe recomenda e determina,

    seu comportamento, objetivo e subjetivo, poder ser um desses dois:

    1 mesmo prevendo um resultado lesivo, resolve prosseguir na conduta perigosa, na

    certeza de que, com sua habilidade, com sua destreza na conduo do veculo, ir

    apenas e to-somente assustar sua colega, convicto de que no haver qualquer leso,

    que ele, sinceramente, acredita que no acontecer e, por isso, no a admite, no a

    aceita, nela no consente; ou ento:

    2 prevendo o atropelamento, a possibilidade de causar leso colega, mesmo no

    desejando que isso ocorra, pode ele, todavia, continuar na conduta com o pensamento

    de que, se, eventualmente, vier a atingir Cludia, ferindo-a ou, mesmo, matando-a, essa

    hiptese ser aceita: se pegar, pegou, se matar, matou, se ferir, feriu, que se dane

    ela, no t nem a.

  • 32 Direito Penal Ney Moura Teles

    Na primeira hiptese, o agente, mesmo prevendo o resultado, no o quis nem o

    aceitou, no o admitiu. Ter agido com culpa consciente. Trata-se de fato tpico

    culposo, com culpa consciente. Na segunda, mesmo no desejando o resultado lesivo,

    aceitou-o; por isso, ter agido com dolo eventual.

    8.5.6 Tipicidade

    A regra do Direito Penal punir fatos praticados dolosamente, porque, neles, o

    sujeito queria alcanar o resultado ou, pelo menos, o aceitou.

    Excepcionalmente, em situaes muito prprias, o Direito tambm probe e

    pune a causao de leses a certos bens jurdicos, quando praticadas sem dolo, mas,

    com culpa, em sentido estrito. Por isso, o fato culposo excepcional, e s ser punido

    quando houver expressa previso legal.

    Tome-se o exemplo: Maria, grvida h seis meses, resolve subir em uma

    jabuticabeira para alcanar frutos que deseja saborear e, tendo chovido e estando a

    rvore escorregadia, cai de uma altura de quatro metros, provocando, com a queda,

    traumatismo abdominal que conduz ao abortamento do feto.

    Examinando-se a conduta de Maria, verifica-se que ela, voluntariamente, subiu

    em uma rvore, deixando de observar o dever de cuidado objetivo (com imprudncia),

    numa situao em que era objetivamente previsvel a ocorrncia de resultado lesivo

    no desejado (involuntrio), infelizmente, deu causa interrupo da gravidez, com a

    morte do produto da concepo.

    Seu comportamento realizou, como visto, todos os elementos at aqui

    demonstrados da culpa, em sentido estrito; todavia, no ser punido pelo Cdigo Penal,

    por faltar o ltimo dos requisitos do fato culposo: a tipicidade, a determinao legal da

    punio do aborto em sua modalidade culposa. No existe, pois o legislador no

    definiu como crime a prtica de aborto com culpa, stricto sensu, tendo previsto apenas

    na forma dolosa.

    No basta que o sujeito tenha causado, sem vontade, um resultado lesivo

    previsvel e indesejado, com negligncia. Se no estiver prevista na lei sua punio, se

    no houver o tipo culposo, no haver crime.

    Os tipos culposos so construdos excepcionalmente, com base nos tipos

    dolosos. Por exemplo, no art. 121, caput, est definido o homicdio doloso, assim:

    matar algum. No 3 do mesmo artigo est definido o homicdio culposo, assim:

    se o homicdio culposo.

  • Fato Tpico - 33

    De conseqncia, no primeiro tipo deve-se entender: matar algum

    dolosamente, e no segundo, matar algum culposamente ou, neste tipo, em outras

    palavras, matar algum por negligncia, imprudncia ou impercia, o que significa

    dizer, causar a morte previsvel de algum por negligncia.

    No existem tipos culposos correspondentes a todos os tipos dolosos. No h

    previso legal de furto ou estelionato quando praticados culposamente. Tais fatos

    somente so punveis quando praticados com dolo. Outros, como o roubo e o estupro,

    s podem ser cometidos com dolo.

    J o homicdio e a leso corporal podem ser cometidos e so punidos em ambas

    as modalidades, com dolo ou com culpa, em sentido estrito.

    Para saber se determinado fato punido tambm na forma culposa, preciso

    procurar na lei, ao lado da figura dolosa, no mesmo artigo, ou em seguida a ele, a

    previso de sua punio, para concluir sobre se o legislador assim o definiu ou no.

    O crime culposo excepcional, como, alis, dispe o pargrafo nico do art. 18

    do Cdigo Penal: Salvo os casos expressos em lei, ningum pode ser punido por fato

    previsto como crime, seno quando o pratica dolosamente.

    8.5.7 Compensao e concorrncia de culpas

    Diferentemente do Direito Civil, no Direito Penal as culpas no se compensam. A

    culpa de um no compensa a culpa do concorrente, aquele que concorre para o

    resultado.

    Se Joo, dirigindo seu veculo com imprudncia, vem a atropelar Benedito, que,

    por sua vez, tambm agira com imprudncia quando atravessou a avenida, pode-se

    concluir que os dois agiram culposamente. A culpa de Benedito no compensa a culpa

    de Joo, no a exclui.

    O atropelador somente no responder pelo fato se houver culpa exclusiva do

    atropelado. Apenas quando o resultado decorrer de culpa exclusiva da vtima que o

    resultado no ser atribudo ao agente.

    Por outro lado, se duas pessoas realizam condutas diferentes que concorrem

    para a produo de certo resultado lesivo, ambos por ele respondero, verificando-se

    que ambos agiram culposamente. Por exemplo: dois veculos colidem numa esquina,

    saindo feridas vrias pessoas, que estavam nos veculos ou fora deles. Provando-se que

    os dois motoristas agiram com culpa, os dois sero responsabilizados.

  • 34 Direito Penal Ney Moura Teles

    8.6 RESULTADO

    Duas posies doutrinrias procuram esclarecer o que vem a ser o resultado de um

    crime. A teoria naturalstica o considera como um ente concreto, a modificao do

    mundo causada pela conduta, ao passo que a teoria normativa entende que resultado

    a leso do bem jurdico protegido pela norma penal.

    8.6.1 Teoria naturalstica

    Segundo essa teoria, o resultado a modificao do mundo externo produzida pela

    conduta, positiva ou negativa, do agente. uma entidade natural. No homicdio, o

    resultado a morte da vtima. No furto, a mudana da posse da coisa subtrada. uma

    conseqncia fsica, material, do comportamento do agente.

    Por essa teoria, existem crimes que tm resultado e crimes que no tm resultado,

    como na violao de domiclio, definida no art. 150 do Cdigo Penal, assim: entrar ou

    permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa de quem de

    direito, em casa alheia ou em suas dependncias.

    Como se verifica, este tipo descreve pura e simplesmente uma conduta que no

    produz qualquer conseqncia natural. Tal crime se consuma com a simples atitude do

    agente, entrando em casa alheia, ou, depois de ter entrado, nela permanecendo.

    O comportamento humano, bvio, j uma mudana na vida; no mundo,

    todavia, no se pode ignorar que uma coisa a conseqncia da conduta, outra a

    prpria conduta. A primeira segue-se ao comportamento, e este no se confunde com

    ela. Uma coisa, como diz MUOZ CONDE, o produzir e outra o produzido. O produzir

    a conduta, o produzido o resultado10.

    Por isso, uma parte dos crimes tem resultado, como o homicdio, o furto, o

    estupro, o roubo, e outros so crimes sem resultado, de mera conduta, ou de mera

    atividade: a violao de domiclio, a omisso de socorro, a omisso de notificao de

    doena, e a maior parte das contravenes penais.

    8.6.2 Teoria normativa

    A outra corrente diz que o resultado a leso ou o perigo de leso do bem jurdico

    protegido pela norma penal, pouco importando se a conduta deu ou no causa a uma

    10 Op. cit. p. 21.

  • Fato Tpico - 35

    modificao do mundo externo a ela.

    Sempre, num fato tpico, independentemente da modificao do mundo externo,

    um bem jurdico lesionado ou exposto a perigo. De conseqncia, todos os crimes tm

    resultado, pois em todos eles haver sempre uma leso ou um perigo de leso de um

    bem jurdico.

    Na violao de domiclio, o resultado seria a leso do direito inviolabilidade da

    casa; na omisso de socorro, seria o perigo da leso sade ou integridade corporal

    da pessoa abandonada, extraviada ou ferida etc. Na omisso de notificao de doena, o

    resultado seria o perigo de contaminao, para a sade de toda a populao ou de parte

    dela.

    8.6.3 Discusso

    Suponham a seguinte situao: Paulo decidiu matar Mauro e, encontrando-se com

    este, saca de seu revlver e vai atirar contra o desafeto que, mais rpido, consegue

    atirar contra o agressor, matando-o com um nico tiro disparado.

    Mauro realizou o fato tpico descrito no art. 121 do Cdigo Penal, pois matou

    algum. Todavia, pode-se com tranqilidade concluir que agiu em legtima defesa cujo

    estudo ser feito no item 10.4 , pois que repeliu uma agresso injusta, atual, a sua

    vida, usando moderadamente do meio necessrio.

    Viu-se uma conduta humana que produziu a modificao do mundo externo, a

    morte de um homem. Houve um resultado naturalstico, mas no aconteceu leso de

    bem jurdico.

    Sim, porque, quando o Direito Penal permite a prtica de um fato que, a princpio,

    proibido, porque tal fato lcito, e tratando-se da morte justificada de um homem,

    porque tal vida no se encontrava sob a proteo do Direito.

    Se o Direito protegesse a vida do agressor, no poderia ter permitido que o

    agredido a tirasse. Se permitiu que Mauro matasse Paulo, porque no estava

    protegendo a vida de Paulo.

    A concluso a que se pode chegar, pois, de que a leso ao bem jurdico no

    conseqncia da conduta, mas a qualidade de ser tal conduta proibida. Se ilcita,

    houve leso ou perigo de leso. Se permitida, no houve leso nem perigo de leso.

    O resultado, de conseqncia, s pode ser compreendido no plano natural,

    enquanto efeito concreto da conduta. A lesividade do bem jurdico h de ser entendida

    e explicada no plano da ilicitude, da relao de contrariedade entre o fato e o

  • 36 Direito Penal Ney Moura Teles

    ordenamento jurdico. Quando o fato for ilcito, ter havido leso ou perigo de leso.

    Quanto for lcito, no.

    Alguns doutrinadores defendem a teoria normativa, amparando-se na norma do

    art. 13 do Cdigo Penal, que diz: O resultado, de que depende a existncia do crime,

    somente imputvel a quem lhe deu causa. Para esse pensamento, haveria

    incompatibilidade entre os tipos que no descrevem resultado naturalstico e o

    dispositivo do art. 13, que afirmaria que, para haver crime, deve haver resultado.

    O raciocnio simplista e parte de uma leitura equivocada da norma do art. 13. A

    simples interpretao literal do preceito conduz a seu entendimento correto. Quer a lei

    dizer que o resultado, do qual depende a existncia de certo crime no de todo e

    qualquer crime s pode ser atribudo a quem lhe deu causa.

    Quando a definio de um crime contiver uma conduta e um resultado, este

    somente ser imputado a quem lhe tiver dado causa. O dispositivo, portanto, destina-se

    a regular a relao de causalidade dos fatos definidos como crime em que, alm de

    conduta, se exige a produo de um resultado. Nada alm disso.

    de todo evidente que, prevendo o Cdigo Penal crimes com resultado e crimes

    sem resultado, com relao a estes teria que, necessariamente, estabelecer norma

    tratando da relao de causalidade entre conduta e resultado.

    A norma do art. 13 do Cdigo Penal, em vez de amparar a teoria normativa, ao

    contrrio, milita em favor da naturalista, pois deixa bem claro que h crimes de

    resultado e crimes sem resultado.

    Se vrios tipos do mesmo Cdigo descrevem, incriminando apenas condutas,

    simples atividades, meros comportamentos, sem a exigncia da produo de qualquer

    resultado naturalstico, certo que a norma da parte geral, do art. 13, somente se refere

    aos outros tipos, alis, os mais importantes, por descreverem as condutas mais graves

    contra os bens mais importantes.

    Resultado, portanto, no a leso ou perigo de leso do bem jurdico penalmente

    protegido, mas a modificao do mundo exterior, o efeito concreto, o evento natural, a

    conseqncia resultante da conduta humana voluntria final.

    8.7 NEXO DE CAUSALIDADE

    Nos fatos definidos como crime em que, alm de conduta, se exige a produo de

    um resultado, imprescindvel que entre o comportamento humano e o resultado

    verificado exista relao de causa e efeito, a fim de que se possa atribu-lo ao agente da

  • Fato Tpico - 37

    conduta. A conduta deve ser a causa do resultado; este, a sua conseqncia. de toda

    obviedade, pois, que no se pode atribuir ou imputar a algum a responsabilidade por

    algo que no produziu.

    Quando Jos desfere um golpe de faco que decepa a cabea de Alfredo, que morre

    instantaneamente, dvidas no restam de que a conduta de Jos foi a causa da morte

    de Alfredo.

    Nem sempre, todavia, entre conduta e resultado existe relao de causa e efeito to

    simples e claramente verificvel. Basta pensar algumas hipteses:

    a) Slvio atira no peito de Armando, que, minutos aps ser socorrido, atingido

    por outro disparo na cabea, efetuado por Alexandre que nem conhece Slvio, nem

    sabia de sua conduta , falecendo em seguida;

    b) Mrio dispara contra Celso que, ao sair em direo ao hospital, atingido por

    uma viga do telhado que desaba, matando-o;

    c) Sinval atira contra Marcos, que, aps socorrido e levado ao hospital, recebe, ali,

    da enfermeira, uma dose excessiva do medicamento receitado, morrendo por isso;

    d) Lus atinge, com um tiro de revlver, Carlos, que, levado ao hospital, tratado e

    contrai, di