02 menezes
TRANSCRIPT
-
ORACULA 7.12 (2011) EDIO ESPECIAL
ISSN: 1807-8222
O ALM NO COTIDIANO
REPENSANDO FRONTEIRAS ENTRE ANTROPOLOGIA E HISTRIA A PARTIR DO CULTO AOS SANTOS1
RenatadeCastroMenezes*
Resumo
OobjetivodesteartigodemonstrarcomoacooperaoentreAntropologia
eHistrianoestudodocultoaossantoscapazdecomplexificarainterpretao
dessesfenmenose,consequentemente,ainterpretaodasrelaesentrealme
cotidiano. Para tanto, o texto estruturase em trs partes: uma discusso inicial
sobrea importnciadoestudodocultoaossantosparaascinciashumanas;em
seguida, apresenta uma proposta de tratamento do tema a partir de uma
abordageminterpretativista;eporfim,trazexemplosdearticulaoentrecasos
etnogrficos e relatos historiogrficos, contribuindo para a construo de
interpretaessobreasrelaesentresantosedevotos.
Palavras-chave:Cultoaossantos;interdisciplinaridade;Antropologia;Histria.
Abstract
The aim of this paper is to demonstrate how cooperation between
AnthropologyandHistoryinthestudyofthecultofsaintsisabletocomplexifythe
interpretation of these phenomena and, consequently, the interpretation of
1EstetextoumdosresultadosdapesquisaDevooeFormasdeSociabilidadenasFestasenoCotidiano, financiadacomrecursosdoeditalJovemCientistadoNossoEstado,daFundaodeAmparo Pesquisa Carlos Chagas Filho FAPERJ. So utilizados ainda dados das pesquisasanterioresPorumaantropologiadaDevoo:umaanlisedosprocessosdeconstruosocialdasa
ntidade (20062010) e Adinmicado sagrado: umestudo sobre santuriosurbanos (20012004).*DoutoraemAntropologiaSocial,professoraadjuntadoDepartamentodeAntropologiadoMuseuNacional/UFRJ e pesquisadora colaboradora do Iser/Assessoria. Email:[email protected].
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial21
relationshipsbetweendaily lifeandbeyond.Tothisend, thetext isstructuredin
three parts: an initial discussion on the importance of studying the cult of the
saints for theHumanSciences, thenpresentsaproposal foraddressing the issue
from an interpretative approach and finally, provides examples of cases linking
ethnographic and historiographical accounts, contributing to the construction of
interpretationsoftherelationshipbetweensaintsanddevotees.
Keywords:Cultofsaints;interdisciplinarity;Anthropology;History.
Introduo
Por que o culto aos santos catlicos, entendido como um conjunto de
crenas e prticas devocionais que remontam aos primeiros sculos do
cristianismo,podeserconsideradoumobjetodeestudosdointeressedasCincias
Humanas e uma rea de pesquisa relevante numa discusso sobre o alm? O
objetivo deste ensaio responder a essas perguntas, sob uma perspectiva
metodolgica e epistemolgica, acionando experincias de pesquisa na rea de
Antropologia.E,atravsdosargumentosapresentados,procurarsedemonstrar
comoosestmulosmtuosentreestadisciplinaeaHistriapodemcontribuirpara
aformulaodenovosproblemasenovasinterpretaessobreofenmenosocial
dadevoo.
O culto aos santos como um objeto relevante
OhistoriadoringlsPeterBrown,emsuaobrafundamentalsobreotemado
cultoaossantos, lembranosqueestesurgenaantiguidadecomofrutodacrena
naexistnciadeumcanaldecomunicaoentreoCueaTerra,cujamanuteno
se daria pelamediao de um ser humanomorto, o santo (ou a santa), ao qual
seriam atribudas qualidades especiais no trato com o sagrado.2 Tratarseia,
portanto, de ummortomuito especial, que aparece na literatura como capaz de
articulartrsdimenses,semprepresentes,emboracomvariantesquantoaoseu
grauesuaformadearticulao,deacordocomocontextohistrico,omodelode
2DizoautoremseulivroTheCultoftheSaints,umclssicosobreotema:ThisbookisaboutthejoiningofHeavenandEarth,andtherole, inthisjoining,ofdeadhumansbeings.Itwilldealwiththe emergence, orchestration, and function in late antiquity of what is generally know as theChristian "cult of the saints". Cf. BROWN, Peter. The Cult of the Saints. Chicago: The ChicagoUniversityPress,1982,p.1.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial22
santidade ou as caractersticas particulares do santo em questo. Essas so a
dimensotaumatrgica,adimensomediadoraeadimensoexemplar.Umsanto
capaz de provocar graas oumilagres. Ele ummediador ideal, pois por sua
proximidadecomDeuseJesuscapazdeconseguircoisasparaaspessoas.Eele
servecomoumexemploaserimitadoemborasejaumapossibilidadedeimitao
umtantocomplicada,vistosermuitodifcil,praticamentepossveliguallo,jque
um santo conjuga o humano ao sobrehumano. , portanto, numa articulao
tensionadaesingularentreessastrsdimensesdetaumaturgo,demediadore
deexem 3ploqueumsantoseconfigura.
Vsecomo,apartirdessassimplesdefinies,osantopodeserassociadoa
problemticassignificativasdopensamentoantropolgico.Aconstataodesuas
capacidades extraordinrias nos leva a indagar que tipo de pessoa ele , ou
melhor,formulandoemtermosmaisprximosaojargodadisciplina,aperguntar
qualanoodepessoaenvolvidananoodesantidade4.Trataserealmentede
umserhumano",ouhoutraclassificaomicaquecoloquesantosesantasem
uma categoria distinta, a meio caminho entre homens e deuses? Se estamos
falando de devoo a um morto, h semelhanas entre o culto aos santos
desenvolvido em uma sociedade e seus ritos fnebres? Esse morto que se faz
presente na vida de seus devotos est no mesmo plano de existncia habitado
pelosdemaisouovisita,vindodeumplanoparaleloousuperior?
Por outro lado, possvel perceber que a santidade uma identidade
atribuda.5 Ser santo, ou tornarse santo, pode implicar em um investimento
pessoal do postulante santidade numa espcie de "carreira", assumindo uma
3 A definio da santidade como uma articulao tensionada dessas trs dimenses umaformulao minha, construda a partir da literatura sobre o tema, inspirada notadamente emelementos presentes nas definies de Andr Vauchez; Sophie BoeschGajano, e Yves Congar(VAUCHEZ, Andr. Santidade. In: Enciclopdia Einaudi. Vol. 12: Mythos/Logos; Sagrado; ProfanoLisboa/Porto: Casa daMoeda/ImprensaNacional, 1987, p. 287300; CONGAR, Yves. Saintet. In:BAUMBERGER, P. F. (dir.) Encyclopaedia Universalis. Vol. 20. Paris: Encyclopaedia UniversalisFrance, 1990, p. 497499; BOESCHGAJANO, Sophie. Saintet. In: LE GOFF, J., SCHMITT, JC.Dictionnaireraisonnde l'occidentmdival.Paris:Fayard,1999.p.10231038).Essasdimensesestariam,ameuver,presentes inclusivenadefiniocannicaatualdesantidade.EmboracomatendnciadoVaticanodereforaradimensoexemplardosanto,comprovaesdemilagresfazempartedoprocessodecanonizaoesoexpectativaslegtimasemseuculto.4Anoodepessoase tornaumproblemaantropolgicodesdeotextodeMarcelMausssobreotema.VerMAUSS,Marcel.Umacategoriadoespritohumano:anoodepessoa,adeeu.In:______.SociologiaeAntropologia.SoPaulo:Cosac&Naify,2003,p.367397.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial23
conduta sacralizadora, que implique numa rgida moralidade, ou na superao
e/ou perseverana diante de provaes incrveis, sobrehumanas, isto , um
conjunto de atitudes que evidenciem um esforo de autoconstruo, de
autocontrole.6Masseatentarmosparacomoasantidadeoperadefatonoscasos
estudados,elasurgecomoumttulosocialmenteatribudo,poisumsantoouuma
santa s o ser se algum o/a reconhecer enquanto tal, isto , se algum lhe
atribuiressaqualidadeouseja,umttuloquenoeficazenquantopermanece
nonveldaautodefinio.Portanto,precisoquehajaumacomunidademoralque
reconheaosatributoseossinaisquemarcamemumapessoaasantidadefisica
oubiograficamenteequecultueosantoenquantotal.Asantidadeenvolvetermos
que se definem relacionalmente: no h santos sem devotos, nem devotos sem
santos.deumarelaoqueestamosfalando,arelaodedevoo,emqueuma
pessoa ao entregarse a um santo que seu protetor constrise como devoto
enquantoquesimultaneamenteatribuiaseusujeitodelouvoracapacidadedeser
portador ou "emanador" de santidade. Assim, estudar um santo implica em
analisartambmacomunidade,ouascomunidades,deseusdevotos,aquelesque
atribuemlegitimidadeeconsistnciaaseuttulo.
Essasegundadimensoabreoutrafrentedetrabalho,ouseja,levantaoutro
conjunto de questes. Quem cultua um santo e como o faz e quais grupos se
formamousearticulamemtornodeumadevoo tratasedovisdadevoo
enquantoumaformadesociabilidadequepodeaserexplorado,tantonarelao
santodevoto,comonarelaoentreosdevotos,ouentreesteseossacerdotesque
fazemamediaocomosagradoe,porvezes,controlamoacessoaoprpriosanto.
Abrese ento um amplo espectro anlise, que pode ir da questo da
reconstruo da identidade pessoal a partir de uma devoo at a questo do
estudodasassociaesligadasaocultoaossantos,quesearticulaassimadiversas
formaseprincpiosdeorganizaosocial.
5 O que quero reforar que para alm de, no caso das canonizaes, estar em jogo um ttuloo ntosnooficiais,humaatrficialmenteatribudo,emtodososcasos,mesmonosdesa ibuiodesantidadeporpartedeumacomunidadededevotos.6Versobreotemaosseguintestrabalhos:MATRE,Jacques."L'OrphelinedelaBrsina".ThrsedeLisieux(18731897).Essaisdepsycanalysesciohistorique.Paris:Cerf,1996;KLANICZAY,Gbor.Legends as LifeStrategies for Aspirant Saints. In: _____. The Uses of Supernatural Power: theTransformationsofPopularReligion inMedieval andEarlyModernEurope.Princeton:PrincetonUniversityPress, 1990, p. 95110;BYNUM,CarolineWalker. Fast, Feast andFlesh:TheReligiousSignificanceofFoodtoMedievalWomen.In:Representations11(1985):125.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial24
Outroconjuntodequestespodeserlevantadosepensarmoscomoeonde
umsantocultuado.Elepodeserobjetodecultodomstico,nacasadosdevotos,
ousercultuadoemtemplosaeleassociadosdealgumaforma.Maspodetambm
sercultuadoemespaospblicosdurantedeterminadaspocasdoano,emfestas,
procissesououtrasformasdecelebraocapazesde"sacralizar"periodicamente
determinadosespaosquenocotidianoaparecemcomodesvinculadosdareligio.
Tambmo tempoumadimensoque se liga aos santos: suas festasmarcamo
calendrio e imprimem ritmo vida social das comunidades que os celebram.
Podeseassimpensarnocultoaossantoscomoumdosoperadoresdaconstruo
socialdas categorias "tempo"e "espao", cujaanlisepermitea compreensode
processosdetemporalizaoeespacializao.
As manifestaes pblicas desse culto so ainda oportunidades de
abordagem da relao santodevoto por um pesquisador, pois se trata de uma
chance de visualizla. Ladainhas, novenas, exvotos, santinhos, promessas,
oraes,simpatiassoexpressesmateriaisdevnculoseemoesqueenvolvem
santosedevotos,oquepermiteveressarelaoemoperao,emmovimento.Ea
partirdapartevisveldasrelaespodesetentarrecuperaracomplexidadedesse
fenmeno, visto que as suas dimenses internas e profundas dificilmente so
verbali m a zadasouverbalizveis,tornandoseopacasparau observ dorexterno.
Atravs de rituais como invocaes, cantos e oraes, o santo se faz
presenteeageemfavordosquelhepedem.Entenderasconcepesacercadessa
presena,dessaaoaformaemqueelased,oefeitoquecapazdeprovocar,
as possibilidades de perceber suasmanifestaes bem como as interpretaes
sobreosmecanismosdeseleoqueaorientampoisnoso todosospedidos
que so atendidos aprofundar o conhecimento de moralidades, noes de
justiaecosmologiasnativas,aindaquesvezesdemaneirafragmentada.Assim,
no culto aos santos pode haver uma cosmologia, ou variantes cosmolgicas
atualizandose permanentemente ao serem postas em operao atravs das
relaes entre santos e devotos cosmologias que no so necessariamente
coincidentescomadefendidapelaortodoxia religiosacatlica. Isto, tratasede
uma aproximao religio como efetivamente vivida e pensada pelos agentes,
longedosmodelosprescritospelasortodoxiasemuitasvezesalheiasfronteiras
porelasestabelecidas.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial25
Outroconjuntodequestessurgeemtornodolugardocorponadevoo
o corpo do santo, onde se manifesta a santidade, atravs de dores, martrios,
resistncia, capacidades de superao, de abstinncia alimentar, lquida e/ou
sexual.Ocorpoquepermanece,exalaperfume,nosecorrompe,ousecorrompe
de forma distinta da dos demais mortais. O corpo que vira relquia, fonte de
proteo,restossagrados,invertendoatradioocidentaljudaicoromanadelidar,
distncia e com cuidado, com os cadveres7 Mas tambm o corpo do devoto,
instrumentodadevoo,ajoelhado,prostrado,quetocaebeijaaimagemdosanto,
que"sente"suamanifestao.Assim,antropologiadasantidadeeantropologiado
corpo se provocam mutuamente, ampliando nossa compreenso das formas
sociais o e o rdesimbolizaonoc rpo emtornod co po.
Todas as questes que discutimos at agora de um ponto de vista
antropolgicopodemigualmente interessaraoshistoriadores,poisos fenmenos
que citamos se desenvolvem numa amplahistriada santidade catlica, uma
histria milenar que coloca em jogo outras histrias particulares, no
necessariamentecoincidentes,eprincipalmente,nointercambiveis,vistonose
referirem aos mesmos domnios. Fazem parte desse conjunto a histria do
conceitodesanto, isto,dos tiposdepessoasasquais foi e temsidoatribudo
esse qualificativo (mrtires, confessores, bispos, ascetas, santos das casas reais,
religiososmendicantes,msticas femininas,etc.);ahistriadosmecanismosde
atribuiodessettulo,quetambmumahistriadasinstnciasquedetiveram,
ao longo dos sculos, a legitimidade de definir quem seria ou no santo (grosso
modo, poderseia dizer que esse aspecto se relaciona a um processo de
burocratizao,no sentidode construodemecanismos jurdicoprocessuaisde
atribuiodottulooficialdesanto,edecentralizaonasmosdosumopontfice
de algo que era inicialmente atribudo pelas comunidades crists locais a seus
mortosclebres),eumahistriadasformasdecultoaessessantos,isto,uma
histriadesuasdiversasmodalidadesedosdiferenteslugaresondeelesed,que
marcada por um intenso debate na literatura entre "continuidade pag X
novidade crist". Stephen Wilson e Jack Goody chamaram a ateno para uma
quarta histria latente, quemuitas vezes deixada de lado, que ahistriada
crtica ao culto dos santos, pois, como destaca Goody, esse culto nunca foi
7BROWN,Peter.TheCultoftheSaints,p.45.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial26
unnimedentrodaprpriaigreja,jquedesdesuasorigenshaveriacondenaes
deidolatria.8Entoseriaprecisoconsiderartambmumahistriadecondenao
docultoaossantosparalelahistriadoprprioculto.
Assim, as especificidades das relaes que os devotos estabelecem com
essas pessoas de cunhomuito especial que so os santos conformamobjetos de
estudo significativos para o desenvolvimento das cincias humanas. O culto aos
santos seria uma espcie de reservatrio de representaes, articulando
concepes de tempo e espao sagrados, capazes de provocar transformaes
radicaisnamorfologiasocialdassociedadesaelasrelacionadas,jquesanturios,
festaseperegrinaesestabelecemligaesdiretasentreasesferasdareligio,da
economiaedapoltica,alterandoo fluxodepessoasedebens, reconfigurandoa
geografia,estabelecendocalendrios.Ouseja,ocultoaossantosseria,comodiria
MarcelMauss,umfatosocialtotal:
Nesses fenmenos sociais totais (...) exprimemse, de uma s vez, asmais diversas instituies: religiosas, jurdicas e morais estas sendopolticas e familiares ao mesmo tempo econmicas estas supondoformas particulares de produo e do consumo, ou melhor, dofornecimentoedadistribuiosemcontarosfenmenosestticosemque resultam esses fatos e os fenmenos morfolgicos que essas
tinstituiesmanifes am.9
Portanto, enquanto um fato social total, o tema deve interessar a
pesquisadores das diversas reas das cincias humanas, como um fato scio
cultural que mobilizou e mobiliza milhes de pessoas e de recursos e em cujo
entorno se tecem prticas culturais, discursos simblicos, disputas politico
religiosas e atividades econmicas. Tratase, portanto, de evidenciar sua
importncia, em sua relao com a estrutura social e em sua relao com a
estruturasimblicoculturaldedeterminadogrupoouperodo.
Por um ra anlise inte pretativa e compreensiva do culto aos santos
No entanto, a relevncia do tema nem sempre reconhecida pelos
pesquisadores,quesvezeslhemanifestamcertomenosprezo,cujasrazespodem
8WILSON,Stephen.E.SaintsandTheirCults:Studies inReligiousSociology,FolkloreandHistory.Cambridge/Londres/Nova York: Cambridge University Press, 1985; GOODY, Jack. Relics and theCognitive Contradiction of Mortal Remains and Immortal Longings. In:_____. Representations andContradictions.Oxford:Blackwell,1997,p.7597.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial27
ser profundas. Comumente tratado sob as rubricas de religio popular, de
cultura popular, ou mesmo de catolicismo popular, as quais muitas vezes
podem camuflar uma postura condescendente, esses fenmenos foram tratados
desde a Idade Moderna, com as marcas da Reforma e da ContraReforma (ou
Reforma Catlica), como supersties e resqucios pagos, parte da
ignorncia que o progresso da razo ou da verdadeira f viria esclarecer e,
conseq .10uentemente,debelar
Com o Iluminismo, alguns pesquisadores passam a buscar destacar das
legendas em torno das vidas e obras das pessoas santificadas os ncleos de
verdade,interpelandorigorosamenteadocumentaoexistenteatravsdacrtica
histrica.Provadaforadesseprojetoestnacriao,nosculoXVII,daSociedade
dos Bollandistas uma ramificao dos jesutas especialmente criada para
recuperaodaverdadehistricaemtornodossantos.Noentanto,amodernidade,
marcadapeloparadigmadasecularizao,noatribuamuitaatenoaossantos,
pois poca a devoo a eles era percebida como um conjunto de crendices
popularesemviasdeextinoque,antesdequalquercoisa,sinalizavaapresena
de ranosmgicoreligiosos irracionaisaindanosuperados.Eraassimumtema
queinteressavamaisprpriaIgreja(emesmoassim,comressalvas11)doques
Cincias que se constituam, a no ser no caso do desvelamento de fraudes,
charlatanismo ou delrios histricos que eram as justificativas acionadas para
explicarracionalmenteaspretensascurasemilagresatribudosapseudosantos.
Gradualmente,noentanto,ecomodesenvolvimentodeoutrasconcepes
dedocumentopelaHistria,foisereconhecendoaimportnciadosregistrossobre
ocultodossantoscomorepositriosdedistintasformashistricasdopensamento
humano,embebidasemcosmovisesegradesclassificatriasqueforam,aolongo
dossculos,setransformando.Aconcepodequeasimagens,ospersonagense
osfeitosmilagrosospresentesnostextosenaiconografiasantoral,aparentemente
9 o osMAUSS,Marcel. Ensaio sobre a ddiva. in: ______. Sociologia eAntropologia. S Paulo: C ac&Naify,2003,p.187.10 Lembremos que essas prticas, juntamente com a venda de indulgncias e outros rituaiscatlicos,forampontosdedestaquenacrticaluteranaexploraodaingenuidadedosfiispelaIgrejaRomana,ouseja,forampilaresdedemarcaodeformasdistintasdeseconcebereviverocristianismo.11SegundoGeorgesDaix,ascanonizaescaememdesusoapso iluminismo,voltandoaganharfora no sculo XX, no pontificado de Joo Paulo II, o papa que mais teria canonizado (DAIX,
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial28
fantasiososousurreais, teriamumcartermticooualegricopermitiuqueuma
historiografia do sculo XX, renovada (penso aqui nos esforos da cole des
Annales,emsuasvriasgeraes,emais tarde,nosautoresvinculadosHistria
Social e Histria Cultural, atribusse nova legitimidade ao tema do culto aos
santos,enquantoum lcus estratgicodepercepodas ideaesqueoshomens
fazem das sociedades em que vivem e das que desejam viver, por cristalizarem
cosmologiaseutopiassingulares,bemcomopersonagensecenriosquerevelam
concepes idealizadas dosmundos celeste e terrestre e de suas relaes. Essas
concepes no apenas esto presentes no pensamento, mas orientam a ao,
produz findoe eitosexternospalpveis.
Nesse sentido, os historiadores Jacques Le Goff12 e JeanClaude Schmitt13
atribuem Escola Francesa de Sociologia, com os trabalhos de mile Dukheim,
Marcel Mauss, Henri Hubert e Robert Hertz, nos quais se gestou a idia de
representaes coletivas, uma influnciadecisiva.Eumbomexemplode comoa
nooderepresentaoassociarseiaaocultodossantosestarianaobrapioneira
de Robert Hertz, que em 1913 estudou a devoo a So Besso em aldeias e
parquiasdosAlpes.Emdeterminadomomentodeseutrabalho,Hertzdeparouse
comduasversessobreavidadosanto,umadequeeleteriasidoumsoldadode
uma legioromana,martirizadoporsua fcrist;aoutra,adequeele teriasido
umbemsucedidopastordeovelhas,mortoporinvejadoscolegas.Hertzconstatou
ocarterficcionaldeambasasverses,masissonoolevouadescartlascomo
focodeanlise,pois,paraele,ointeressedoscientistassociaispelahagiografiano
estarianaverdadequeelatrariasobreosanto:
Asduasversesnoensinamnadasobreaverdadeiraidentidadedeseuheri comum, mas ambas jogam uma viva luz sobre os hbitos depensamento e sobre as tendncias morais dos grupos profundamentediversosondeelasseconstituram.14
Parasustentaressaposio,emqueointeresseporumfatosocialestno
significado que lhe atribudo por distintos grupos, seria preciso assumir uma
perspectiva interpretativista, no sentido que o antroplogo Clifford Geertz,
G dos santo boa: Terramar,eorges.Dicionrio sdo calendrio romano edosbeatosportugueses. Lis20
:biografia.3ed.RiodeJaneiro:Reco00,p.23).
12LEGOFF,Jacques.SoLus rd,2002,p.1930.13 SCHMITT, JeanClaude.Le corps, les rites, les rves, le temps.Essais d'anthropologiemdivale.Paris:Gallimard,2001,p.7.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial29
influenciadopelasociologiacompreensivadeMaxWeber,15atribuiuaotermo.Em
seu livroA InterpretaodasCulturas,degrande impactonos anos1970,Geertz
defendeuumacinciadosocialvoltadaproduodeinterpretaes:
Oconceitodeculturaqueeudefendo,ecujautilidadeosensaiosaseguirtentaro demonstrar, essencialmente semitico. Acreditando, comoMaxWeber,queohomemumanimalsuspensoemteiasdesignificaoque ele mesmo teceu, eu considero a cultura como essas teias, e suaanlise, consequentemente, no como uma cincia experimental embusca de leis, mas como uma cincia interpretativa em busca designificados.16
Em outra obramais recente, dos anos 1980, omesmo autor acrescentou
outroselementossuaposio:
[Nosltimosanos]muitoscientistassociaisafastaramsedeumidealdeexplicao voltado a leis e exemplos para outro, voltado a casos e
.interpretaes
A explicao interpretativa (...) concentrase no significado queinstituies, aes, imagens, elocues, eventos, costumes (...) tmparaseusproprietrios.Poressarazo,seusresultadosnoso leis,comoosdeBoyle,nemforas,comoasdeVolta,nemmecanismoscomoosdeDarwin,massimconstruescomoasdeBurkckhardt,WeberouFreud:desvelamentos sistemticos do mundo conceitual em que vivem
17
condottieres,Calvinistasouparanicos.
Amodalidadedessasconstruesvaria(...).Mastodaselasrepresentamtentativasdeformularcomoesteouaquelepovo,esteouaqueleperodo,estaouaquelapessoa,fazemsentidoparasimesmos,e,compreendendoisso,buscarexplicaesparaaordemsocial,paramudanashistricas,ouparaofuncionamentopsquicodeummodogeral.18
14 eetFolklore.HERTZ,Robert. SaintBesse, tuded'uncultealpestre. In:_____.SociologieReligieusParis:PUF,1970,p.144.15WEBER,Max. Essais sur quelques categories de la sociologie comprhensive. In:Essais sur lathoriedelascience.Paris:Plon,1992,p.301364.16TheconceptofcultureIespouse,andwhoseutilitytheessaysbelowattempttodemonstrate,isessentiallyasemioticone.Believing,withMaxWeber,thatmanisananimalsuspendedinwebsofsignificance he himself has spun, I take culture to be those webs, and the analysis of it to betherefore not an experimental science in search of law but an interpretive one in search ofmeaning.GEERTZ,Cliford.TheInterpretationofCultures.2ed.NewYork:BasicBooks,2000,p.5,traduominha.HediesbrasileirasdaobrapelaEditoraLTD,masatraduoapresentamuitostruncamentos,daaopopelacitaodooriginaleminglsepelatraduoprpria.17Manysocialscientistshaveturnedawayfromalawsandinstancesidealofexplanationtowardacases and interpretations one (). GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. New York: Basic Books,1983,p.19.Atraduominha,apesardeexistirediobrasileirapelaEditoraVozes.18 Interpretive explanation () trains its attention on what institutions, actions, images,utterances, events, customs, () all the usual objects of socialscientific interest, mean to thosewhose institutions, actions, customs, and so on they are. As a result, it issues not in laws likeBoyle's,orforceslikeVolta's,ormechanismslikeDarwin's,butinconstructionslikeBurckhardt's,Weber's, or Freud's: systematic unpackings of the conceptual world in whichcondottiere,Calvinists, or paranoids live. The manner of these constructions itself varies () But they allrepresent attempts to formulate how this people or that, this periodor that, this person or thatmakes sense to itself and,understanding that,whatweunderstandabout social order, historical
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial30
Tratase,assim,deumadefesadacompreensodosgruposhumanosem
seusprpriostermosparaumaposteriorgeneralizao.Porm,issocolocaum
grandedesafioaosquepesquisamgruposemsituaodealteridade,isto,em
situao distinta da do prprio pesquisador, seja no tempo, seja no espao:
como conseguir estabelecer parmetros para interpretar os contextos sociais
analisadosapartirdascategoriasdeentendimentodaquelesqueosvivenciam,
que muitas vezes podem nos parecer completamente opacas?19 Como
recuperaraspeculiaridadesdeoutrosmodosdepensar,seestamosimersosem
nossaprpriasociedade,embebidosdenossasprpriasconcepes, limitados
por nossas categorias do entendimento? Para impulsionar o esforo
compreensivo,,portanto,importantedesenvolverferramentasqueauxiliem
"desnaturalizao das prprias formas de classificao do mundo social,
levandoospesquisadoresaperceberoquantosuasvisesdemundoegrades
de enquadramento da experincia so histricas, isto , atreladas a
determinados contextos scioculturais. E, complementarmente, desenvolver
instrumentos que ativem a percepo de outras lgicas sociais, capazes de
orientaroutrasmodalidadesdepensamentoeao.
Para sustentar esse argumento, sero apresentados a seguir alguns
exemplos, retiradosdeexperinciasdepesquisa,de formaspelasquaisumolhar
interpretativoecompreensivo,quearticuleAntropologiaeHistria,podeoferecer
novaschavesdeleituradocultoaossantose,comodesdobramento,deconcepes
sobreoalm.
Experincias de pesquisa: as graas no cotidiano
Pesquisasediscussesbibliogrficassobreocultoaossantos tmsido
desenvolvidaspeloGrupodePesquisadeAntropologiadaDevoo,vinculado
aoProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocialdoMuseuNacional,da
change, orpsychic functioning in general.GEERTZ, Clifford.LocalKnowledge, p. 22. A traduotambmminha,comojjustificado.19 Lembremosque tomar comopontodepartida a opacidade, ou a incompreenso, em tornodecertos textos ou contextos e tentar tornlos inteligveis um recurso metodolgico eepistemolgicoutilizadoporautoresdepeso,comoMikhailBakhtin,queofazparatratardaobrade Franois Rabelais, ou Robert Darnton, que o faz para tratar de prticas de trabalhadores daFrana do Ancien Rgimen. Ver BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e noRenascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo/Braslia: HUCITEC/Editora da
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial31
UniversidadeFederaldoRiode Janeiro.20Emborasejaumgrupodepesquisa
em antropologia, o recurso histria, ou melhor, historiografia,
constantementeacionado,noporumapreocupaocomabuscadeorigensde
determinadas prticas ou noes, isto , no com a inteno de reconstituir
processos histricos. Para o grupo, tratase de um instrumento eficaz de
contraste, que ativa nossa percepo para lgicas alternativas. A anlise
historiogrfica nos traz as especificidades de certos contextos, em que as
categoriasa,boucteriamimportncia,adquirindodeterminadossignificados
relativos ao lxico de uma poca, numa espcie de testemunho das
possibilidades de variao das sociedades humanas, de um "outro possvel
sejaesteoutroummundo,umcontexto,umcomportamento,umestilodevida.
A comparao21 de anlises historiogrficas com o material recolhido em
nossos trabalhos etnogrficos, em outros contextos, produziria um efeito
iluminador,tornandoosmaiscompreensveis.
Seria importante dar concretude a essa formulaomais geral atravs de
algunsexemplosconcretos.Inicialmente,tomodoistrechosdeentrevistasobtidas
emum trabalho de campo realizado pormimno convento franciscano de Santo
Antnio, no Largo da Carioca, centro da cidade do Rio de Janeiro, no primeiro
semest 22rede2001.
O primeiro depoimento de D. Rita, uma senhora de mais de 50 anos,
moradora da Baixada Fluminense (Caxias), catlica praticante, que vai ao
convento todas as semanas, s terasfeiras, dia consideradode SantoAntnio,
masquevaitambmaoutrasigrejasdocentro,comoadoMosteirodeSoBento,
ondehumarezade teroqueela considera interessante, e IgrejadeSantana,
onde participa da adorao ao Santssimo Sacramento. Pedi a D. Rita que me
contasseumagraaaelaconcedidaporSantoAntnio.
Universidade de Braslia, 1993; DARNTON, Robert.OGrandemassacre de gatos. Rio de Janeiro:Graal,1986.20Tratasedeumgrupodepesquisascoordenadopormim,registradonoCNPqecertificadopelaU R a d o e dF J.Informaesm isdetalha assobreotrabalhod grupopodem serobtidasac ssan oolinkhttp://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0202703R0U4BLX.21 r a Lembremos que comparar um p ocedimento ntropolgico fundamental, que significaconfrontarumacoisacomoutraparalhedeterminardiferena,semelhanaourelao.22 Este campo vinculavase pesquisa A dinmica do sagrado: um estudo sobre santuriosurbanos, mencionada anteriormente, que foi desenvolvida no perodo de 2001 a 2004 paraobtenodemeudoutoramentoemAntropologiaSocial.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial32
VoucontaragraadeSantoAntnioterfeitominhamevoltaraandar.Minhame,queerasuperativa,teveumatromboseeficouemcadeiraderodas, cama de hospital. Mas como era muito alegre, animada, sofriamuitopornoestarpodendoseadaptar,elanoconseguiaseacostumar.Euchoravasemparar,desesperadacomosofrimentodeminhame.Umdia,eudisse:"Me,vocvaivoltaraandar.Vocquer,vocvaivoltar.SeforavontadedeDeus,vaivoltar".Entovimaqui,comSantoAntnio,epedi.
Passoualgumtempo,enodiadomeuaniversrio,amemechamoudemanhnoquartoeestavadep,andando.Provavelmente [estimulada]pelo fatodesermeuaniversrio, eelaaindano terpodidomedarosparabns.
Depois, ela viveu bemmais cinco anos, quando voltou a piorar. Fui denovoaSantoAntnio.Comeceiaformularopedido,equandoolheiparaele, parei. Ele estava olhando paramim como se dissesse: "Mas o quevocestquerendo?Cincoanosnoforamosuficiente?Oquevocquermais?" E eu, entendendo meu egosmo, parei o pedido no meio. Meuegosmo em querer queminhame ficasse viva de qualquermaneira,
conmesmosofrendo.Eme formei.23
VemosqueD.Rita foiduasvezesaSantoAntnio,num intervalodecinco
anos, para pedir que sua me voltasse a andar e essa "ida at o santo" para
enunciar o pedido pode ser reveladora de sua importncia, atribuindo maior
solenidadeaumatoquepoderiaserfeitoemcasa.Arazoprincipalalegadapara
pediraosantoeraosofrimentodame"ativa",queestavaentrevadanumacama.
Daprimeiravez,pediue foiatendida.Dasegunda,oolhardosantoa impediude
concluiropedidoefezcomqueela"seconformasse":Ritacompreendeu,graasao
santo, que aquilo que amovia no eramais a preocupao com ame,mas seu
prprioegosmo,emquerlavivaepertodesiparasempre.Edetevesenomeio
dopedido.
O depoimento de D. Rita oferece uma srie de elementos para a reflexo
acerca da relao santodevoto: o pedido feito no convento, diante do santo; a
explicao semiracionalizada para a me ter voltado a andar (justificando no
apenaspelaaodosanto,mastambmporemoesecaractersticaspessoaisda
prpria senhora, que a teriam estimulado: ser "superativa", "alegre", "animada",
"queriadarosparabnspormeuaniversrio"),opedidoquedeveseradequado,
isto , que deve respeitar certa etiqueta. Tratei desses temas em outros
trabalhos,24mas o que gostaria de destacar neste ameno ao fato deD. Rita
23EntrevistacomD.Rita,6/3/2001.24 MENEZES, Renata de Castro. A dinmica do sagrado. Rituais, sociabilidade e santidade numconvento doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: RelumeDumar, 2004;MENEZES, Renata de Castro.Saberpedir:aetiquetadopedidoaossantos.In:ReligioeSociedade24.1(2004):4664.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial33
"olhar para Santo Antnio" e este "responder". Como interpretar este dado,
recupe urandoalgicaq emoveuessedilogoeessatrocadeolhares?
Deixemos esse ponto em suspenso enquanto outro exemplo acionado,
tambm deste trabalho de campo. Uma manh, conversando com D. Isis, uma
devota fervorosa de Santo Antnio, membro da Pia Unio, que vem todas as
semanasaoconventodesde1969eajudanobardeSantaClara,ondecomidase
bebidassovendidasaosvisitantes,peolhequemeconteumagraadosantoem
suavida.Elamecontauma,entorecente:
Fui tirar um sinal na Casa de Sade Santa Polnia. A enfermeiraperguntoumeupeso,pergunteiparaqu,elarespondeuqueeuiatomaranestesiageral.Aaenfermeirapercebeuquehaviatrocadoaspapeletas,eeuquasefuioperadadecncerquandonaverdadeeutinhaapenasum
aquefoiisso?sinal,umfibromadepele.Oquevocach
RenataUmagraadeSantoAntnio?
sisUmmilagredosanto,claro,porqueantesdeoperareuhaviadito:"valeime,meugloriosoSantoAntnio.25
Tratase,nosdizeresdeD.Isis,deummilagredeSantoAntnio,ummilagre
pequenoediscretocomosiacontecerentreaquelesquesedizemdevotosdeum
santo,maisainda comosdevotos fervorosos.PoisparaestesdevotosoSantose
tornaumapresenaconstantenavida.
Como entender essa proximidade, esse entrelace entre o alm e o aqui e
agora,semcairnumaperspectivanormativade interpretao?Dopontodevista
deumaconcepoduradecincia, relatoscomoosdeRitae Isisgeralmenteso
classificados como manifestaes populares de devoo (isto , ingnuas ou
simplrias) ou ainda como projees de fragilidades psicolgicas. Algo entre a
gnornciai eapatologia.
Noentanto,estoemjogoconcepesbastanterecorrentestantonaampla
literatura que trata do culto aos santos, como nas pesquisas que temos
desenvolvido. Em sua pesquisa de mestrado sobre a devoo a padre Librio
(18841980) emMinasGerais, LilianGomes encontrou enlaces entre o alm e o
cotidiano na fala de vrios interlocutores.26 Entrevistando Juliana, uma das
025EntrevistacomIsis,29/5/2 01.
26 GOMES, Lilian Alves. Entre famlias, lugares e objetos: uma etnografia da santidade de PadreLibrio. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao em Antropologia Social/Museu
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial34
promotoras da devoo na cidade de Leandro Ferreira, perguntoulhe se ela ou
seusfamiliaresteriampromessasapagaraopadre.DisseJuliana:
Opessoalaqui temdisso.Eunotenho(...).Eutenhoassim,depediretal,depoiseuagradeo.Agentetemocostume,masnodigoquesejapromessa.Ns chegamosdohospital comele [oneto recmnascido]efomosdiretonacapelinhadoPe.Librio,aquiagentetemisso.Compraumcarro,vaidiretol,pegaagua[tidapormilagrosa]e joga.Quandovai viajar... por exemplo, eu fao excurso para praia, eu no saio comnibussemirlejogarguabentanele.Eupassoagarrafinhaecadaumtoma um pouco, o motorista e tal. E quando a gente chega tambmsempreagentevaiemandacelebrarumamissaemagradecimento.(...)A gente pede muito. Eu peo demais. (...) E depois a gente agradece.ConversamosmuitocomPe.Librio,elenossoamigoesabedoquea
sgentepreci a.27
Essa proximidade a Pe. Librio, a sensao de poder contar com a ajuda
constanteeapresenacotidianadoamigo,jfalecidoeconsideradosanto,poderia
seratribudaporalgunsaofatodesetratardeumsantopopular,nocanonizado
(emboraemprocessodebeatificao).Noentanto,emsuapesquisadedoutorado
sobreadevooaSantaRitadeCssianumaparquiadocentrodoRiodeJaneiro,
Raquel Lima tem encontrado situaes semelhantes no relacionamento dos
devotos com essa santa oficial. Interessada em analisar as interaes entre a
santa e os devotos estabelecidas atravs dos gestos devocionais como toques e
beijos feitos imagem da santa, Lima vem recuperando, em entrevistas, as
explicaesqueaspessoasdoparaosmovimentosvariadosqueexecutam:toco
nospsparahumildementeelameajudar,toconasmospoispelasmosquea
gentetransmiteenergia,passoamonelaassim(adevotamostragesticulando)
evoufazendocarinhoeconversandocomela.28Osdepoimentostmpermitido
pesquisadora esboar a anlise de um sistema comunicativo entre santos e
devotos:
UmasenhoracontouquehanoshaviaprometidoSantaRitaqueseelaa ajudasse a se livrar domarido violento e de seu casamento cheiodeagresses, ela, devota, colocaria sua alianade ourono dedoda Santa.(...) Aps muitos anos tentando obter o divrcio, ela finalmenteconseguiu,eentregoudepresentesuaalianaSanta(...).PergunteiseelaachavaqueSantaRitagostariadereceberaquelepresente,eadevota
gdisse que tem certeza que ela ostou, posto que lhe deu outra aliana, N ederal do Rio de Janeiro, 2011, Dacional/Universidade F issertao (Mestrado emAntropologiaSocial).27 as, lugares e objetos: uma etnografia GOMES, Lilian Alves. Entre famli da santidade de PadreLibrio,p.23.28 LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais e processos desimbolizao numa parquia do centro carioca. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao emAntropologiaSocial/MuseuNacional/UFRJ,2011(examedequalificao),p.8.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial35
querendodizercomissooutrocasamento(...).Esserelatointeressanteno apenas para perceber a manifestao da santa retribuindo outromaridoparaadevota,mastambmparapensarmosemcomoodevotoconstriodilogocomasanta.29
Dilogos,trocas,amizade,proteo,ajuda:comoproduzirumagradeparaa
leitura desses fenmenos relacionais que permita lhes conferir inteligibilidade?
Comoentendlos em suas lgicas prprias, e no como atos ilgicos, ou lgicas
desegundacategoria?Poistratloscomoexticosoupitorescosimplicariaem
assumir uma posio de autoridade diante deles e das pessoas que neles
participam.
Comojdito,orecursoantropolgicoclssicoparaissoacomparao,o
mtodocomparativo,ocontrasteentrevrioscontextossociais,oquepermitiria,
maisdoquebuscarumdenominadorcomum,mapearoespectrodesuavariao,a
complexidadede suasmodalidades, a capacidadede criatividade ediferenciao
treo 30en ssereshumanos,aplasticidadecaractersticadestaespcie,enfim.
No caso dos santos, a comparao poderia ser feita entre diferentes
personagens, ou entre o culto aomesmo santo em diferentes locais, cruzandoo
inclusive a diferentes tradies nacionais que lhe imprime variaes culturais
significativas.Poderseiamesmopensaremcomparaesinterreligiosas,poisa
despeito de diferenas conceituais significativas (ou seja, que no podem ser
desprezadas),anoodesantidadepodeserestendidaaocristianismo,aoisl,ao
hindusmo,aojudasmo,aobudismo,etc.
Porm, uma perspectiva que pode ser explorada a comparao com a
relaocomoalmemoutroscontextoshistricos,emqueoutraslgicas,outras
categorias,outrosprincpiosdeorganizaodomundosocialeoutrascosmologias
estivessem em vigor. Da comparao entre um ontem e um hoje determinados
criase um jogo de contrastes do qual podem surgir diferenas significativas, ou
pontosdecontatoquepermitamanalogias.31
29 LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais e processos desimbolizaonumaparquiadocentrocarioca,p.10.30Ouseja,precisopensarqueaAntropologianoseriaapenasumacinciaembuscadoquehdecomumentreossereshumanos (isto,deuniversais),mas tambmumacinciapreocupadaemreg o , istrar o alcance e as modalidades de sua varia (isto a plasticidade e a capacidade desingularizao).31 Clifford Geertz, em obra j citada, afirma que a teoria, seja cientfica ou outra, moveseprincipalmentepelaanalogia,umaformadecompreensoemqueomenosinteligvelsetornamais
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial36
Obviamente,tratasedebuscaranalogias,vistoqueahistrianoserepete
enosetratadeumarecomposiodemacroprocessoshistricos,vistoqueisso
implicaria em outro investimento de pesquisa cuja amplitude e viabilidade
certamente escapariam de nossas mos. Ou seja, tratase de postular prticas
comparativasentrecontextostratadosdeperspectivashistricaseantropolgicas.
Nocasodapresenacotidianadeumsantoquevaicomadevotasalade
operaes,oudeumsantoqueolhadoaltar,deumsantoqueamigoecomoqual
seconversaconstantemente,oudeumasantaqueacabacomocasamentoruime
manda um novo e bom marido, talvez a noo de maravilhoso quotidiano,
utilizadapor JacquesLeGoffpossanosajudar.32Tratasedeumadas formasde
irrupo domaravilhoso que este autor localizou nos sculos XII e XIII, citando
doisexemplos,quereproduzoaqui.
Asmanifestaesdomaravilhosoparecemmuitasvezessemligaocom a realidade cotidiana, mas revelamse dentro dela (...). Secontinua a haver o movimento de admirao dos olhos que searregalam, a pupila dilatase cada vez menos e este maravilhoso,conservando embora o seu carter vivido de imprevisibilidade, nopareceparticularmenteextraordinrio.
Interessante um exemplum de Cesrio de Heisterbach, no DialogusMiraculorum (incio do sculo XIII). Um jovem nobre, conversocisterciense,estaguardarcarneiros reunidosnumaeiradaabadiacisterciense a que pertence, quando v aparecer diante de si umprimo recentemente falecido. Com toda a tranqilidade, perguntalhe: Que fazes aqui? E o outro, em resposta: Morri, vim para lhedizer que estou no Purgatrio e preciso que rezeis por mim.Faremos o que necessrio O defunto afastase assim no prado edesaparecenohorizonte,comosefizessepartedapaisagemnatural.,sem que o mundo se mostre minimamente perturbado por essa
io.apar
NosOtiaImperialia,umtextoumpoucoanteriormasaindadoinciodo sculo XIII, entre as numerosssimas anotaes demirabilia, oautorGervsiodeTilburycontaquenascidadesdovaledoRdano(...)hseresmalficos,osdrages,queagridemascrianas,masnoso, salvo excees, os tradicionais papes. Introduzemse de noitenas casas, com as portas fechadas, tiram as crianas dos beros elevamnasparaaruaouparaaspraas,ondesoencontradasnodiaseguinte (...). Os vestgios da passagem dos drages so quase
acessvelporserestabelecidaumarelaoanalgicacomalgojconhecido.Comoexemplos,citaasanalogiasdaluzcomumaonda,docrebrocomumcomputador,doespaocomumbalodegs.Oautorassinalaaindaquedesdeosanos1980ascinciashumanasvmsubstituindoasanalogiascom as quais operavam classicamente: de analogias com fenmenos da natureza, passando poranalogiascomomundodoartesanatoeda indstriadomecanismoedamquina agora teriachegadoahoradasanalogiascomomundodasperformancesculturais(doteatro,dapintura,dagr ura, da lei e dos jogos), ao invsdas analogias com Cf.
alKnowledge,pp.78.amtica, da literat manipulaes fsicas.
GEERTZ,Clifford.Loc32LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval.Lisboa:Edies70,1989.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial37
imperceptveis, o maravilhoso perturba o menos possvel aregularidade cotidiana. e provavelmente exatamente este o dadomaisinquietantedomaravilhosomedieval,ouseja,ofatodeningumse interrogar sobre a sua presena, que no tem ligao com ocotidianoeest,noentanto,totalmenteinseridanele.33
Portanto,segundoLeGoff,airrupodomaravilhosorealizase,entreos
sculosXIIeXIII,semfrices,semsuturas.Oreconhecimentodomaravilhoso
no quotidiano se d de forma natural.34 Mas o autor sustenta que tal
naturalidadevigorouporumperodohistrico,eemumareadeterminada,o
quepode serbem identificadoemoutranarrativa sobre a IdadeMdia, desta
vez cinematogrfica o impactante filmede IngmarBergmanOStimoSelo,35
cujapocadiegticaosculoXIV.Nessefilme,outrasituaosecoloca:umdos
personagens,Jof,umacrobataque,comaesposaMia,fazpartedeumatrupede
saltimbancos, tem vises. Numa delas, v a Virgem Maria em companhia do
MeninoJesusecontaoocorridomulher.Mialhepedecuidadoediscrio,pois
o anncio dessa viso poder condenlo como louco. Essa cena sinaliza uma
ruptura com a noo de maravilhoso cotidiano: no sculo XIV, o rtulo da
loucuracomeaaseraformadeenquadramentodovisionriodasapariesda
Virgem 36.
Como poderamos ento sumariar os ganhos do estabelecimento dessas
analogias entreAntropologia eHistria quanto ao alme o cotidiano, aindaque
reconhecendoasdiferenasentresantos,primosmortos,drageseossculosXII
XIIIeXXI?
33LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval,p.2526.34LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval,p.33.35Tratasedeumaproduosuecade1957,consideradaumclssicocinematogrfico,cujasinopseseria:Nosculo14,depoisdedezanosdelutanasCruzadas,ocavaleirosuecoAntoniusBlok(MaxvonSydow)voltaaseupaseoencontraassoladopelaPesteNegra.AMorte(BengtEkerot)surgediante do cavaleiro e quer levlo consigo. Este pede um adiantamento da pena, durante o qualjogarumapartidadexadrezcomaMorte.Ocavaleiro,acompanhadosemprepeloateuescudeiroJons(GunnarBjrnstrand),vsuavoltaamortepelafomeepelapeste,fiisqueseflagelamemrituais sinistros, bruxas queimadas pela Igreja. Somente quando conhece Jof (Nils Poppe) eMia(BibiAndersson),umingnuocasaldesaltimbancos,quesuasdvidasetormentossoaliviados.Extrado de http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/osetimoselo/id/4332,capturadoem26/10/2011.36Ver,apropsitodasApariesMarianas,ohistricoretraadoemSTEIL,Carlos;MARIZ,CecliaLoreto;REESINK,MsiaLins.Mariaentreosvivos.ReflexestericaseetnografiassobreapariesmarianasnoBrasil.PortoAlegre:UFRGS,2003,notadamenteasp.2536.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial38
Consideraes finais
Nesse esforo compreensivo, recuperamos um contexto histrico que
apresenta situaes anlogas aos depoimentos atuais, em que aes de santos e
outrasentidadesmaravilhosasesobrenaturaissefazempresentenocotidianode
formanaturalediscreta,semgrandesestardalhaos.
Assim, personagens que nos pareceriam irreais surgem de forma ativa,
produzindoefeitos,mobilizandopessoas,canalizandoenergias.Oreconhecimento
daproximidadedessespersonagens,cujaexistnciaestariaaprincpioassociada
outraesferasejaestadamorte,dosobrenatural,da imaginaooudoalm
permitenos indagar at que ponto as esferas so realmente outras. Ou seja,
permitenosperguntardequeformanocotidianodecertossujeitoshistricos,em
determinadoscontextosculturais,oalmeocotidianoso tematizados: soeles
estanques, com separaes ntidas, ou so esferas permeveis, porosas, com
passagensepontosdecontato?
Por outro lado, as analogias com o passado permitemnos manter a
complexidadedosdepoimentosrecolhidosnopresente,recuperandoosenquanto
racionalidadesprpriasdareligioconcretamentevivida,nombitodasrelaes
de devoo. Permitenos manter a ambivalncia dos santos, de que falou Peter
Brownnadefinio aque retornamos vrias vezes ao longodeste texto. Figuras
ambguas, estruturalmente ambivalentes, que se fazempresente l e c, que so
pessoasmortas,mastambmimagensvivas,quesopresenaeao,noapenas
noextr n iaordinrio,mas ocot diano.
Recuperar falas como as deD.Rita, deD. Isis, de Juliana oudadevota de
Santa Rita permitenos compreender melhor o que significa ser um devoto. A
literaturadocultoaossantosgeralmentetemsefixadonastrocasentrepessoase
santos tal como expressas em promessas e exvotos. Esse vis compreensvel,
porque focaliza a parte mais visvel, publicamente manifesta das relaes de
devoo.Masosdepoimentosquecitamospermitemperceberqueadevoono
envolveapenastrocaseficazeseinteressadasentresantosedevotos,isto,nose
refere apenas capacidade do devoto obter coisas atravs do santo, e
necessidade do santo ser homenageado pelo devoto. Ela envolve tambm uma
intensa comunicao que passa por olhares, gestos, palavras e envolve afetos,
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial39
emoesevontades,numarelaovinculantequevaimuitoalmdapromessa,ou
seja,deumatrocapontualeinteressada.
Em um questionrio que apliquei na pesquisa de 2001,37 essas questes
apareceram de forma pronunciada. Ao indagar aos entrevistados quem Santo
Antnioparavoc?,muitosfalaramdarelaoquetinhamcomele,eressaltaram
os sentimentospresentesnessa relao, tais comoa f, a confiana, aamizade,a
constncia e o respeito. Nesse conjunto de respostas, que se referiam
principalmente queles que se definiam como "devotos do santo", muitas
dimensespodemseragregadas.
Aminha f atribuo a SantoAntnio. Peoproteoquando voupara otrabalhoeagradeoquandovolto.Elemeuamigo,conversocomele38.
TodasasperguntasqueeufaoparaSantoAntnio,elemeresponde.Eleumgrandeeverdadeiroamigo.39
SantoAntnio umamigo, nahorado trabalho, eu estouangustiada evenhonaigrejaenoprecisofalarnada,solharparaaimagememedumconforto.40
Meufielamigoeconselheiro.41
Ele est aomeu lado, eu no o vejo comomorto, como santo, vejo elecomoamigo.42
O santo, visto a partir de seus devotos, no apenas o taumaturgo, o
exemplo e omediador, complexificando a definio que apresentamos no incio
desteartigo.Ele issotudo,mastornasetambmoamigo,oconfidente,"aquele
que me conhece melhor do que ningum", o que me aconselha, o que me
entendesemquesejaprecisodizernada", oquemeconcedegraassemqueeu
precise pedir. Agregase devoo sentimentos quedemonstramestar em jogo
no apenas pedir, receber e retribuir ao santo, mas estabelecer vnculos que
envolvemdimensesmaisprofundas.43
37Oquestionriofoiaplicadoa250pessoasnosdias12e13dejunhode2001,porquatroalunosdegraduaodaPUCRio.Maioresdetalhessobreametodologiaeoformatodoquestionrio,bemco dinmicadosagrado,mosobreaidentidadedosalunos,estoemMENEZES,RenatadeCastro.Acaptulo1.38 Depoimentodemulher,46anos,moradoradeCopacabana,junhode2001.39Depoimentodemulher,38anos,moradoradeBonsucesso,junhode2001.40 001.Depoimentodemulher,30anos,moradoradoFlamengo,junhode241Depoimentodemulher,24anos,moradoradaIlhadoGovernador,junhode2001.42Depoimentodemulher,25anos,moradoradoIraj,junhode2001.43 Obviamente o subtexto aqui o do Ensaio sobre a Ddiva, deMarcelMauss e a aproximaodistintivaquepretendoproduziraquientredevooereciprocidade,sendoesseltimoconceito
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial40
Recuperando a complexidade dos depoimentos dos devotos e tentando
entrar em sua lgica, tornase possvel perceber as especificidades que eles
atribuemrelaodedevoo.Hmuitasmaneirasdealgumserelacionarcom
umsanto,desderealizandopedidoseventuaisparaatenderaumaemergncia,at
mesmo fazendosimpatiasenovenaspara conseguiroque sequeralcanar.Mas
algum que se defina como um devoto, ou seja, algum que se colocou sob o
registro da devoo, no v as coisas assim. A relao de devoo tornase
distintivaemrelaosdemais.Elaimplicanumvnculoduradouroepermanente
deumapessoacomumsanto,vnculoquepodeseestenderpelavidaafora,emque
mais que a retribuio, entram em cena o agradecimento e a entrega de si.44 A
devoo, e principalmente a devoo fervorosa, se manifesta numa atitude de
doao do devoto ao santo. Como retribuio pelas benesses que ele
ocasiona/ocasionouemsuavida,odevotoseentregaaele,ouaobemdosoutros,
poramoraele.
Poroutrolado,quantomaisfervorosaumadevoo,oslimitesentrevidae
graatendemaseconfundir.Umdevotofervorosoparecevivernumpermanente
estado de graa, marcado por uma gratido constante por seu santo protetor.
Comoosantosefazpresenteesuaintervenoacontecemesmosemserdemanda,
a distino entre o que e o que no graa cada vez mais difcil de se
estabelecer. A devoo tornase assim uma chave interpretativa para a prpria
vida, em que os episdios ganham sentido ao serem classificados e encadeados
numasucessodegraas,castigos,advertncias,milagres.
Emsntese,atravsdeumasriedeestmulosmtuosentreAntropologiae
Histria, conseguimos produzir uma interpretao do culto aos santos mais
prxima s formulaes que deles fazem os prprios devotos, construindo uma
visomaiscomplexaeplsticadasrelaesentrealmecotidiano.
associado obra de Mauss. Cf. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. in: ______. Sociologia eAntropologia,p.183314.44Noteseque,segundonossosdadosdecampo,ovnculoentresantoedevotoenvolveafidelidade,masnoaexclusividade,poispossvelsecombinardevoesavriossantos.Quantodurao,este vnculo , parafraseando o poeta Vinicius deMoraes, vivido como "infinito enquanto dura".Tidocomoeternopelodevoto,h,noentanto,apossibilidadedeincorporaodenovasdevoesao panteo de cada pessoa, o que faz com que no curso da vida uma devoo principal possaassumiropapeldeumadevoosecundria,eviceversa,tornandovnculosmaisoumenosfortes,oumaisoumenosfracos,dependendodomomentovividopelodevotoParaalm,claro,doscasoscadavezmaisrecorrentesnoBrasilatualdedesfiliaoreligiosa.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial41
Referncias biblio
BAKHTIN,Mikhail.AculturapopularnaIdadeMdiaenoRenascimento:ocontextode Franois Rabelais. So Paulo/Braslia: HUCITEC/Editora da Universidade de
grficas
Braslia,1993.
BOESCHGAJANO, Sophie. Saintet. In: LE GOFF, J., SCHMITT, JC. Dictionnaireidentmdival.Parisraisonndel'occ :Fayard,1999,p.10231038.
BROWN,Peter.TheCultoftheSaints.Chicago:TheChicagoUniversityPress,1982.
BYNUM,CarolineWalker.Fast,FeastandFlesh:theReligiousSignificanceofFood.toMedievalWomen.In:Representations11(1985):125
CONGAR, Yves. Saintet. In: BAUMBERGER, P. F. (dir.)EncyclopaediaUniversalis.. cyclopaediaUniversalisFrance,1990,p.497499.Vol.20 Paris:En
DAIX, Georges. Dicionrio dos santos do calendrio romano e dos beatos:Terramar,2000.portugueses.Lisboa
.Ograndemassacredegatos.DARNTON,Robert RiodeJaneiro:Graal,1986.
TheInterpretatio asicBooks,2000.GEERTZ,Clifford. nofCultures.2ed.NewYork:B
alKnowledge.NewYork:BasicBoGEERTZ,Clifford.Loc oks,1983.
GOMES,LilianAlves.Entrefamlias,lugareseobjetos:umaetnografiadasantidadede Padre Librio. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao em AntropologiaSocial/MuseuNacional/UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,2011.Dissertao(MestradoemAntropologiaSocial).
GOODY, Jack. Relics and the Cognitive Contradiction of Mortal Remains andImmortalLongings.In:_____.RepresentationsandContradictions.Oxford:Blackwell,1997,p.7597.
HERTZ,Robert.SaintBesse,tuded'uncultealpestre.In:_____.SociologieReligieuseetFolklore.Paris:PUF,1970,p.144.
KLANICZAY, Gbor. Legends as LifeStrategies for Aspirant Saints. In: _____.TheUsesofSupernaturalPower: theTransformationsofPopularReligion inMedieval
urope.Princeton:PrincetonUniversityPress,1990,ppandEarlyModernE .95110.
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa:Edies70,1989.
a.3ed.RiodeJaneiro:Record,2002.LEGOFF,Jacques.SoLus:biografi
LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais eprocessos de simbolizao numa parquia do centro carioca. Rio de Janeiro:ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial/MuseuNacional/UFRJ,2011
o).(examedequalifica
MATRE, Jacques. L'Orpheline de la Brsina. Thrse de Lisieux (18731897).Essaisdepsycanalysesciohistorique.Paris:Cerf,1996.
-
Oracula7.12(2011)EdioEspecial42
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. In: ______. Sociologia e Antropologia. SoPaulo:Cosac&Naify,2003,p.183314.
_____. Uma categoria do esprito humano: a noo de pessoa, a de eu. In:______.aulo:Cosac&Naify,2003,pSociologiaeAntropologia.SoP .367397.
MENEZES, Renata de Castro. A dinmica do sagrado. Rituais, sociabilidade esantidadenumconventodoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:RelumeDumar,2004.
MENEZES, Renata de Castro. Saber pedir: a etiqueta do pedido aos santos. In:1(2004):4664.ReligioeSociedade24.
SCHMITT,JeanClaude.Lecorps,lesrites,lesrves,letemps.Essaisdanthropologiemdivale.Paris:Gallimard,2001.
STEIL, Carlos; MARIZ, Ceclia Loreto; REESINK, Msia Lins (org.).Maria entre osvivos.Reflexes tericas e etnografias sobre apariesmarianas no Brasil. PortoAlegre:EditoradaUFRGS,2003.
VAUCHEZ, Andr. Santidade. In: Enciclopdia Einaudi. Vol. 12: Mythos/Logos;Sagrado;Profano.Lisboa/Porto:CasadaMoeda/ImprensaNacional,1987,p.287300.
WEBER, Max Essais sur quelques categories de la sociologie comprhensive.thoriedelascience.PaIn:______.Essaissurla ris:Plon,1992,p.301364.
WILSON,Stephen.E.SaintsandTheirCults:StudiesinReligiousSociology,FolkloreandHistory.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1985.