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REVISTA USP, So Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 19996
Uma leitura
anotada
do projeto
brasileiro de
Reforma
Psiquitrica
REVISTA USP, So Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 19996
REVISTA USP, So Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 1999 7
VALENTIM GENTIL
VALENTIM GENTIL professor de Psiquiatriada FMUSP e presidentedo Conselho Diretordo Instituto de Psiquiatriado Hospital das Clnicasda FMUSP.
Oobjetivo deste trabalho contribuir para a compreenso e parao aprimoramento da legislao de assistncia em Psiquiatria eSade Mental no Brasil, atravs de uma reviso dos documentos e princpios
que embasaram os projetos de lei aprovados ou em fase final de tramitao no
Congresso Nacional e nas Assemblias Legislativas estaduais. Isso se faz ne-
cessrio pois, nos dez anos desde o incio deste processo, acumularam-se
desinformao, impreciso factual, distores e impropriedades tcnicas de tal
monta que, no sendo corrigidas, inviabilizaro uma reforma competente.
A lei vigente em 1999 tem 65 anos (Decreto 24.559, de 3/7/1934). Ela
anterior ao eletrochoque (ECT 1938), moderna Psiquiatria, s neurocincias
e aos tratamentos psiquitricos atuais. Considerando-se as altas prevalncias
de transtornos mentais e seus significativos prejuzos para a vida da maioria da
populao, qualquer lei sobre esta matria deve interessar a todos e merecer a
mais ampla discusso e esclarecimento de seus propsitos e conseqncias.
O PROJETO DE 1989 E OS SUBSTITUTIVOS INICIAIS
Assinado pelo deputado Paulo Delgado (PT-MG), o Projeto de Lei no
3.657, submetido em 12/9/1989, foi aprovado pela Cmara dos Deputados, por
acordo de lideranas, em 14/12/1990. Ele tem a seguinte ementa: Dispe
sobre a extino progressiva dos manicmios e sua substituio por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internao psiquitrica compulsria.
Caso esse projeto refletisse o que sua ementa de fato diz, ele poderia merecer
aprovao, sem maior discusso. Infelizmente, o projeto no fiel ementa.
Para avaliar as implicaes e conseqncias do Projeto Delgado e dos seus
derivados, necessrio, inicialmente, examinar seu enunciado e acompanhar
sua tramitao.
O Projeto de Lei no 3.657 tem a seguinte redao:
Dispe sobre a extino progressiva dos manicmios e sua substituio por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internao psiquitrica compulsria.
Art. 1o Fica proibida, em todo o territrio nacional, a construo de novos
hospitais psiquitricos pblicos e a contratao ou financiamento, pelo
setor governamental, de novos leitos em hospital psiquitrico.
Art. 2o As administraes regionais de sade (secretarias estaduais, comis-
ses regionais e locais, secretarias municipais) estabelecero a planifica-
Agradecimentos: sra. NeuzaMaria de Oliveira, pela assesso-ria competente na pesquisa docu-mental; ao professor MicheleTansella, pelas informaes sobreo estado atual da reforma italia-na; ao prof. Luiz Salvador deMiranda S Jr. e aos drs. RicardoOliveira (Senado Federal) e AlfredoSchechtman (Ministrio da Sade),por informaes sobre projetos delei e assistncia no pas; ao pro-fessor Nbio Negro e dra.Maria de Lourdes Felix Gentil, porcomentrios e sugestes.
REVISTA USP, So Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 19998
o necessria para a instalao e funcio-
namento de recursos no-manicomiais
de atendimento, com unidade psiqui-
trica em hospital geral, hospital-dia, hos-
pital-noite, centro de ateno, centros
de convivncia, penses e outros, bem
como para a progressiva extino dos
leitos de caracterstica manicomial.
Pargrafo 1o As administraes regio-
nais disporo do tempo de 1 (um) ano,
a contar da data da aprovao desta Lei,
para apresentarem s comisses de sa-
de de poder legislativo, em seu nvel, o
planejamento e cronograma de implan-
tao dos novos recursos tcnicos de
atendimento.
Pargrafo 2o competncia das secre-
tarias estaduais coordenarem o proces-
so de substituio de leitos psiquitri-
cos manicomiais em seu nvel de atua-
o, e do Ministrio da Sade ao nvel
federal.
Pargrafo 3o As secretarias estaduais
constituiro, em seu mbito, um Con-
selho Estadual de Reforma Psiquitri-
ca, no qual estejam representados, vo-
luntariamente, os trabalhadores de sa-
de mental, os usurios e familiares, o
poder pblico, a ordem dos advogados
e a comunidade cientfica, sendo sua
funo acompanhar a elaborao dos
planos regionais e municipais de
desospitalizao, e aprov-los ao cabo
de sua finalizao.
Art. 3o A internao psiquitrica com-
pulsria dever ser comunicada, pelo
mdico que a procedeu, no prazo de 24
horas, autoridade judiciria local,
preferentemente Defensoria Pblica,
quando houver.
Pargrafo 1o Define-se como internao
psiquitrica compulsria aquela reali-
zada sem o expresso desejo do pacien-
te, em qualquer tipo de servio de sa-
de, sendo responsabilidade do mdico
autor da internao sua caracterizao
enquanto tal.
Pargrafo 2o Compete ao Defensor P-
blico (ou outra autoridade judiciria de-
signada) ouvir o paciente, mdicos e
equipe tcnica do servio, familiares e
quem mais julgar conveniente, e emitir
parecer em 24 horas, sobre a legalidade
da internao.
Pargrafo 3o A Defensoria Pblica (ou
autoridade judiciria que a substitua)
proceder auditoria peridica dos es-
tabelecimentos psiquitricos, com o ob-
jetivo de identificar os casos de seqes-
tro ilegal, e zelar pelos direitos do cida-
do internado.
Art. 4o Esta lei entra em vigor na data de
sua publicao, revogadas as disposi-
es em contrrio, especialmente aque-
las constantes do Decreto-Lei no 24.559,
de 3-7-1934.
Uma clara radicalizao da Proposta
de Poltica de Sade Mental da Nova Re-
pblica (Secretaria Nacional de Progra-
mas Especiais de Sade Diviso Nacio-
nal de Sade Mental, julho/1985) que pre-
cedeu a VIII Conferncia Nacional de Sa-
de (Histria das Conferncias Nacionais de
Sade Radis/ENSP/Fiocruz, 3/1986) e a
I Conferncia Nacional de Sade Mental
(Ministrio da Sade, 6/1987), esse proje-
to foi bem recebido por setores preocupa-
dos com o evidente estado calamitoso da
assistncia no pas. Ele sofreu tambm duras
crticas (1) .
Remetido ao Senado Federal em 15/2/
1991 como Projeto de Lei da Cmara, no
8, de 1991, foi distribudo Comisso de
Assuntos Sociais (CAS) em 4/4/1991. A,
inicialmente recebeu pareceres de dois
relatores, os senadores Jos Paulo Bisol
(PSB-RS, em 12/1991) e Lcio Alcntara
(PSDB-CE, em 11/1995), antes de ser sub-
metido a votao.
Desde o Parecer Bisol (4/12/1991) fo-
ram apontados erros conceituais e de tcni-
ca legislativa no Projeto Delgado, como a
inconstitucionalidade por vcio de iniciati-
va, ao impor atribuies ao Poder Executi-
vo Estadual, atribuir inconstitucionalmente
o status de autoridade judiciria defensoria
pblica e considerar todas as internaes no-
voluntrias como compulsrias.
Votado na CAS, em 23/11/1995, com
parecer favorvel do relator, senador L-
cio Alcntara, o Projeto Delgado foi rejei-
1 Entre elas um Manifesto do De-partamento de Psiquiatria daFMUSP (Manifestao sobreas Propostas de Reformulaoda Poltica de Sade Mental),publicado na Revista de Psiquia-tria Clnica, 20 (1), 1993, pp.33-42, e republicado pelo Jor-nal Brasileiro de Psiquiatria, 42(3), 1993, pp. 169-76.
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tado e substitudo, por 18 votos a 4, pelo
voto em separado do senador Lucdio
Portella (PFL-PI). Ao contrrio do Projeto
Delgado, o Substitutivo Portella incluiu o
hospital psiquitrico entre os estabeleci-
mentos de sade mental (ambulatrio,
pronto-socorro, emergncia psiquitrica no
pronto-socorro geral, enfermaria psiqui-
trica no hospital geral, hospital psiquitri-
co, hospital-dia, hospital-noite, centro de
convivncia, penso protegida, hospital
judicirio de custdia e tratamento mental,
e [] outros estabelecimentos que venham
a ser regulamentados pelo Poder Pblico).
Alm disso, o Substitutivo Portella definiu
trs tipos de hospitalizao psiquitrica
voluntria, involuntria e compulsria (2)
, estabeleceu como objetivo da assistn-
cia a reabilitao e a reinsero social, com
obrigatoriedade de a hospitalizao ofere-
cer assistncia integral ao doente e vedou
[] a internao de doentes mentais em
instituies com caractersticas asilares.
Em tramitao que no nos ficou clara,
o Substitutivo Portella recebeu 7 novas
emendas de Plenrio. Foi ento (em fins de
1998) objeto de parecer do senador Sebas-
tio Rocha (PDT-AP), no qual consta que
o Substitutivo Portella contemplava []
o que poderia ser considerado o modelo de
assistncia ideal, j que prev [] comple-
mentaridade entre o atendimento em hos-
pitais psiquitricos [] e as demais formas
de atendimento. Entretanto, esse parecer
(12/1998) foi contrrio a nova aprovao
do Substitutivo Portella por considerar que
ele [] perpetua, na prtica, a situao
atual de predominncia da institucio-
nalizao como forma de assistncia.
De fato, ao incluir o hospital psiquitri-
co entre os estabelecimentos de sade men-
tal, sem diferenci-lo conceitualmente dos
atuais man